Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP00034108 | ||
| Relator: | MIGUEZ GARCIA | ||
| Descritores: | HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO PRESSUPOSTOS EMOÇÃO VIOLENTA CULPA DIMINUIÇÃO DA CULPA CÔNJUGE INFIDELIDADE ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA | ||
| Nº do Documento: | RP200204030141525 | ||
| Data do Acordão: | 04/03/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recorrido: | T J ARMAMAR | ||
| Processo no Tribunal Recorrido: | 28/01 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
| Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / TEORIA GERAL. | ||
| Legislação Nacional: | CP95 ART72 N1 N2 B ART73 N1 A B ART131 ART133. | ||
| Sumário: | Os fundamentos privilegiantes do artigo 133 do Código Penal integram um tipo de culpa que diminui de forma autónoma a responsabilidade do agente, mas a ilicitude do homicídio fica intocada, não obstante o privilégio, pois o bem jurídico afectado não perde a sua valia. A emoção referida no citado artigo 133 tem de ser compreensível, ou seja, tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente. Tal compreensibilidade representa uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito, assumindo ainda um cunho objectivo, sendo irrelevante do ponto de vista penal que o agente seja portador de uma especial sensibilidade perante a situação que sobre ele agiu. Provado que o arguido agiu em estado emocional violento, decorrente da revelação da infidelidade sexual que sua mulher acabava de lhe fazer, sendo esse estado de emoção que imediatamente o determinou à agressão, primeiro com socos e depois com o estrangulamento que lhe veio a causar a morte, não poderá este comportamento do arguido ter-se como favorecido com tal privilegiamento . Com efeito, ainda que tivesse ficado perturbado e exaltado com o comportamento da mulher, não parece compreensível, do ponto de vista de um homem médio e fiel ao direito, que se tenha deixado dominar por essa emoção violenta. A conduta do arguido insere-se assim na prática do crime de homicídio simples do artigo 131 do Código Penal, em circunstâncias que diminuem de forma acentuada a sua culpa, no quadro geral do artigo 72 ns.1 e 2 alínea b), daquele Código. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam em audiência na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto. I. No Tribunal Judicial da Comarca de Armamar, o Ministério Público deduziu acusação contra José Luís ....., com termo de identidade e residência a fls. 5 dos autos, imputando-lhe a autoria material de um crime de homicídio do artigo 131º do Código Penal Amadeu ....., admitido a intervir como assistente por despacho de fls. 221, requereu então a abertura da instrução, por entender que o crime praticado era o de homicídio, mas qualificado nos termos do artigo 132º, nºs 1 e 2, alíneas b), c) e g), do mesmo Código. Realizadas diligências de instrução e o correspondente debate, foi o arguido pronunciado pela prática do crime constante da acusação. Submetido a julgamento em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, foi o arguido José Luís ..... condenado, como autor material de um crime de homicídio voluntário, especialmente atenuado, dos artigos 72º, nºs 1 e 2, alínea b), 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 131º, do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão. Do respectivo acórdão condenatório interpuseram recurso o assistente, o Ministério Público e o arguido. O assistente Amadeu ..... conclui a sua motivação sustentando que a) Ocorre motivo para anular o julgamento, de modo a permitir a ampliação da matéria de facto relativamente a questões de que a sentença não conheceu e deveria ter conhecido -com violação do disposto no artigo 379°, nº 2, do Código de Processo Penal — pois constavam dos autos, designadamente da motivação da defesa aduzida pelo arguido. Aponta tais questões (se foi a vítima ou a testemunha Clarisse ..... a autora de uns versos manuscritos; que tipo de relação existia entre esta testemunha e a falecida; quando e em que circunstâncias foram parar às mãos do arguido aqueles versos, e uma fotografia que apareceu em plena audiência; e qual a duração do contrato de trabalho que o arguido foi cumprir a França) e a justificação para o que pretende. b) A anulação do julgamento impõe-se, em seu entender, para se apurar, perante a deficiente redacção do está no ponto 21 da matéria provada, quais os factos que o arguido efectivamente confessou. O recorrente encontra aí insuficiência, mais do que manifesta, pois se o arguido matou a mulher por "desconfiar dela e suspeitar que andasse envolvida com outro homem" e "sentir que a sua mulher já não o tratava como antes o fazia, mostrando-se-lhe algo indiferente", perpetrou este crime por motivo fútil, fazendo culminar aí a sua "desconfiança". c) Há ainda que apurar as circunstâncias e factos concretos em que o arguido fez assentar aquela "desconfiança" e "suspeição" acerca do comportamento da mulher, já que as expressões utilizadas são meros conceitos de direito que urge extirpar da sentença. d) Por outro lado, os factos descritos em 8, 9, 10, 11, 12 e 13 da matéria provada não traduzem confissão alguma, por se tratar de matéria que é manifestamente favorável à defesa, tratando-se apenas da versão que o arguido deu dos factos, em audiência, sem o contraditório da vítima. É que, para o recorrente, a confissão só releva, em consonância com os artigos 352° do Código Civil e 552° do Código de Processo Civil — cuja ratio não foi levada em conta — quando incide sobre factos desfavoráveis à defesa e aos interesses do arguido. E a prova de que todos os factos descritos de 8 a 13 reproduzem apenas a versão unilateral do arguido, está afinal na sentença. e) Como a narrativa dos factos que antecederam a prática do crime não foi testemunhada por ninguém, os mesmos não podem ser levados em conta. Sendo manifestamente insuficiente a matéria dada como provada com vista à atenuação especial da pena, o Tribunal fez indevido uso nos termos do artigo 73º. f) Além disso, ocorre também contradição entre a fundamentação fáctica e a jurídica e entre ambas e a sentença, como inequivocamente resulta do ponto 21 dos factos apurados, onde o tribunal dá como provado que o arguido, no momento em que decidiu tirar a vida à mulher, não tinha o menor conhecimento dos factos que o tribunal deu como provados em 5 e 6. Por isso, do ponto de vista da culpa, longe de funcionar o mecanismo da atenuação especial, antes deveria a pena ser consideravelmente agravada e não especialmente atenuada, pois o arguido não tinha motivos para reagir como reagiu. g) Não apreciando nem dando o devido relevo a todos os factos apurados, nem retirando dos mesmos as necessárias ilações e dando como provados determinados factos, decidindo-se depois como se os mesmos não estivessem nos autos ou mesmo contrariando-os, ocorre contradição insanável entre a fundamentação fáctica, mas também entre esta e a própria decisão. O que se subsume a violação do disposto no artigo 379°-1-c), assentando também aí uma das muitas razões deste recurso, como se prevê no art.410º-2, b), ambos do CPP. h) Mas além de a matéria em que o Tribunal se baseou ser insuficiente para fazer funcionar o mecanismo da atenuação especial prevista nos artigos 72°-1, 2-b) e 73°-1, a) e b) do Código Penal, também não a valorizou devidamente, ocorrendo assim erro notório na apreciação da prova. Se o tivesse feito, nunca poderia julgar quase dirimentes, como julgou, as circunstâncias que precederam o crime pois, de concreto e objectivo, temos apenas que ele andava desconfiado da mulher e que esta, no fatídico dia da sua morte, ter-lhe-á dito coisas e proferido desabafos, quiçá descabidos, mas compreensíveis em pessoas de cultura rudimentar que entram em stress. i) Além disso, ficou provado, como se vê do ponto 20, que o mesmo “agira de modo livre e consciente, com intenção de tirar a vida à vítima, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”. Daí que, ao fazer-se uso da atenuante especial, tenha o Colectivo incorrido em interpretação deficiente do disposto nos artigo 72° e 73° do CP e na prática da nulidade prevista no artigo 379°-2 do CPP, afastando--se ainda das razões de prevenção geral e especial contra este tipo de crime. j) Seja como for, ainda que se mantivesse inalterada a matéria de facto a pena aplicada não se coaduna com a natureza da actuação e culpa do arguido, pelo que constitui grave injustiça atenuarem-se-lhe especialmente ambas, com base em circunstâncias que só posteriormente foram apuradas, mas que, seguramente, não estiveram na origem da decisão de matar. k) E muito menos, na sua génese, pela singela razão de que o arguido só tivera conhecimento dos factos descritos em 5 e 6, depois da prática do crime, sendo irrelevante ou, pelo menos, inatendível, que a mulher lhos tivesse "confessado", já que, objectivamente, nenhuma prova tinha de que essas palavras pudessem ir além da mera intenção de o retaliar, no calor da discussão. l) E ainda que para essa graduação houvesse de ser levada em conta a "pretensa contribuição" da vítima para o alegado estado emocional do arguido, essa ponderação só poderia ter lugar, quando muito, em sede de atenuação geral e nunca especial ou "especialíssima", como erradamente se fez. m) Como decorre da matéria fixada em 5, 6 e 21, o arguido matou a mulher a sangue frio, com base em meras desconfianças, sendo absolutamente inócuo ou irrelevante do ponto de vista da culpa que as haja confirmado a posteriori, e numa "confissão" da pobre, feita (se é que existiu) sabe-se Deus em que termos e circunstâncias. Procedendo o recurso, deverá em seu entender anular-se o julgamento, a fim de se apurarem factos essenciais à descoberta da verdade, ou deverá revogar-se a decisão recorrida, condenando-se o arguido pela prática do crime por que ia acusado, fixando a medida de pena pouco abaixo do seu limite máximo, por não poder beneficiar de qualquer atenuante geral e, muito menos, especial. Por sua vez, nas conclusões de recurso do Ministério Público começa-se por chamar a atenção para o facto de atenuação especial da pena ter carácter excepcional, impondo-se o seu uso moderado. No presente caso a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena não se mostram diminuídas: a revelação da infidelidade da mulher não podia causar uma reacção tão emotiva e violenta que lhe retirasse ou diminuísse a sua capacidade de decisão e não a matar. Não é revelador de grande exaltação ou emoção violenta, pelo contrário de alguma frieza, calma e discernimento, o comportamento do arguido que após ter morto a mulher apertando-lhe o pescoço, em casa do casal, onde também se encontrava o filho mais novo de 8 anos de idade, vai ao quarto deste e diz-lhe para não sair de lá (possivelmente para o não traumatizar), não foge, e aguarda em casa a chegada da autoridade policial. Ainda que emocionado e exaltado, não é compreensível nem admissível o comportamento do arguido. Não diminuindo a provocação injusta e imerecida da vítima, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, por forma acentuada, o tribunal não pode atenuar especialmente a pena, tendo esta circunstância valor apenas como atenuante geral influindo na medida concreta da pena. Os factos foram praticados no seio de um ambiente familiar já degradado, pois, além do mais, o arguido havia cerca de um ano que desconfiava da mulher e suspeitava que andasse envolvida com outro homem. Não é, por outro lado, relevante a confissão do arguido. A pena deve fixar-se entre 8 e 12 anos de prisão, tendo-se violado o artigo 72º, nºs 1 e 2, do Código Penal. O arguido José Luís ..... conclui a sua motivação do seguinte modo: a) O recurso tem por objecto a qualificação jurídico criminal da conduta do arguido. b) O tribunal, tendo concluído pela verificação dos requisitos da “emoção violenta do agente” e do nexo de causalidade entre a emoção violenta e o facto criminoso mas não também pela verificação do pressuposto da compreensibilidade da emoção, afastando assim o artigo 133º. c) Porém, o douto acórdão enveredou por uma argumentação filosófica, histórica, social e política, absolutamente desajustada ao "homem médio" suposto pela ordem jurídica, e que, levada às ultimas consequências, exclui, em situações passionais, a aplicação do elemento privilegiador em mérito. d) "Compreensível" é um conceito relativo pois a compreensão implica um juízo sobre os factos compreendidos: sem conhecer o motivo da emoção que leva ao facto não é de todo possível compreender tal emoção. e) Acresce que a "compreensibilidade da emoção" deve ser aferida em função da probabilidade de uma emoção de idêntica intensidade surgir numa pessoa de referência idealizada: um "homem médio" possivelmente também a sentiria. f) Ora a factualidade provada é adequada a obscurecer a inteligência, a arrebatar a vontade e a enfraquecer a livre determinação do homem médio. g) Dito de outro modo: a emoção violenta do arguido foi natural, aceitável e não censurável e susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica e, por isso, compreensível. h) Consequentemente, a condenação do arguido deveria ter sido pelo crime de homicídio privilegiado, da previsão do artigo 133° do Código Penal. i) E a pena concreta deveria ser de 2 anos de prisão, com suspensão da sua execução, tendo-se violado o disposto no artigo 133º do Código Penal. Houve resposta tanto do Ministério Público como do assistente Amadeu da Fonseca ao recurso do arguido José Luís ....., sendo ambos de parecer que o mesmo não merece provimento. Nesta Relação, o entendimento do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto vai no sentido de não serem os factos susceptíveis de integrar o homicídio privilegiado do artigo 133º do Código Penal, justificando-se porém a atenuação especial da pena com base em provocação injusta ou ofensa imerecida (artigo 72º, nº 2, alínea b), do Código Penal), ao contrário do que pensa o digno Procurador da República. Quanto ao recurso do assistente, também ele não merece provimento. Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal. Só o assistente Amadeu da Fonseca voltou a intervir para, nomeadamente, criticar o parecer do Ex.mo Procurador Geral Adjunto. Colheram-se os vistos legais. II. No acórdão deram-se como provados os seguintes factos. 1. O arguido casou com Clarisse Helena ..... em 5 de Março de 1988. 2. Deste casamento existem dois filhos menores, Luís Carlos ..... e José Francisco, nascidos, respectivamente, a 14 de Agosto de 1988 e 28 de Novembro de 1992. 3. Até meados de 1998, o arguido e a sua mulher levaram uma vida de casal normal, vivendo ambos na localidade e freguesia de ......, em habitação que primeiro herdou por óbito do seu pai. 4. Em meados de 1998, o arguido emigrou para a Suíça. onde cumpriu, sucessivamente, contratos temporários de vários meses cada. 5. Algum tempo depois da ida do arguido para a Suíça, ainda no ano de 1998, a sua mulher, Clarisse Helena ......, começou a relacionar-se, amorosa e sexualmente, com José Manuel ....., residente da mesma localidade de ....., relacionamento que se manteve por cerca de meio ano. 6. Terminado o relacionamento com aquele José ....., a mulher do arguido, pouco tempo volvido, iniciou nova relação amorosa com um outro indivíduo da mesma localidade, de nome Jorge ....., que passou a frequentar a residência do casal, indicada em 3), mesmo de noite, aí pernoitou algumas vezes durante os períodos temporais em que o arguido se encontrava na Suíça, passando ambos — a Clarisse Helena ..... e o Jorge ..... — a sair juntos frequentemente e a manterem encontros em diversos locais desta comarca e de concelhos vizinhos. 7. Em data não apurada do final de Fevereiro ou do início de Março de 2000, por sentir que a sua mulher já não o tratava como antes o fazia, mostrando-se-lhe algo indiferente, o arguido começou a desconfiar dela e a suspeitar que ela andasse envolvida com outro homem. 8. Por gostar da sua mulher e querer manter o casamento, o arguido convidou-a a passarem ambos um fim-de-semana sozinhos, fora de casa, convite a que ela acedeu. 9. Na sequência do referido no número anterior, o arguido e a sua mulher decidiram passar sozinhos o fim-de-semana de 10 e 11 de Março de 2001, tendo saído de casa no dia 9 do mesmo mês, sexta-feira, à noite, pernoitando nessa noite numa pensão da cidade de Peso da Régua e seguindo, no dia 10, para a cidade de Chaves, onde ficaram hospedados num hotel. 10. Regressaram ambos a casa por volta das 19 horas do referido dia 11 de Março, tendo ficado acordado entre eles que na manhã do dia seguinte o arguido levaria a sua mulher a Moimenta da Beira, onde esta iria começar a trabalhar numa boutique pertencente à sua irmã Maria Augusta ....., conforme combinado entre aquela e esta. 11. No dia 12 de Março de 2001, cerca das 8,30 horas, quando ambos se encontravam no interior da sua residência, onde também estava o filho mais novo do casal, José Francisco ....., e aprontando-se o arguido para levar, de automóvel, a sua mulher à indicada localidade de Moimenta da Beira, esta disse-lhe que não queria que ele a acompanhasse e que iria sozinha "pois não precisava de cães atrás dela". 12. Nesse momento, iniciou o arguido uma discussão com a sua mulher, na qual lhe comunicou as suspeitas que vinha tendo acerca do modo como ela estava a relacionar-se com ele, tendo-lhe então a mesma revelado que, há mais de ano e meio, vinha mantendo relações amorosas e sexuais extraconjugais, primeiramente com um tal José ..... e depois com um indivíduo de nome Jorge Machado, ambos acima mencionados. 13. Acto contínuo, perturbado e exaltado pela revelação que a mulher acabava de lhe fazer e por se sentir traído na fidelidade que lhe dedicava, o arguido lançou-se sobre ela e desferiu-lhe, primeiramente, diversos socos na cabeça e noutras partes do corpo e, logo de seguida, apertou-lhe fortemente o pescoço com as suas mãos. 14. A dado momento, caíram ambos ao chão, tendo, no entanto, o arguido continuado a apertar o pescoço da sua mulher com as suas mãos, cravando-lhe as unhas. 15. O arguido só largou o pescoço da sua mulher quando se apercebeu que estava inanimada e viu que ela sangrava pela boca e pelos ouvidos. 16. Abandonou então a sala onde tinha ocorrido a descrita agressão, deixando aí a sua mulher, estendida no chão e sem auxílio, e dirigiu-se ao quarto do seu filho José Francisco, dizendo-lhe que não saísse de lá, o que este cumpriu, tendo o arguido permanecido também dentro de casa. 17. Por volta das 9 horas daquele mesmo dia, apareceu na residência do arguido a testemunha Sérgio Inácio ....., sobrinho da Clarisse Helena ....., que logo perguntou àquele onde estava a sua tia, pois tinha sido alertado telefonicamente por outra sua tia, Maria Augusta ....., que eles estavam a discutir. 18. Instantes depois, o Sérgio Inácio ..... deparou com o corpo da Clarisse Helena .... inerte no chão da dita sala, na posição de decúbito dorsal, o que fez com ele chamasse os bombeiros voluntários de Armamar, os quais transportaram depois a Clarisse Helena ..... ao Centro de Saúde desta vila, onde chegou já cadáver. 19. Em resultado da agressão perpetrada pelo arguido, a Clarisse Helena ..... sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia junto a fls. 46, que aqui se dá por reproduzido, entre as quais se destacaram múltiplas escoriações e equimoses no pescoço e na região frontal, hemorragias das partes moles do pescoço do tecido subcutâneo e dos músculos esternocleidomastoideu, hemorragia e fractura do aparelho laríngeo, tendo a sua morte ocorrido por asfixia devida a esganadura. 20. O arguido agiu de modo livre e consciente, com intenção de tirar a vida à sua mulher, bem sabendo que a sua conduta era proibida pela lei penal. 21. Confessou a quase totalidade dos factos descritos, à excepção do que consta dos nºs 5) e 6), já que destes ficou apenas a saber no dia referenciado em 11) e pelo modo relatado em 12). 22. Sempre foi fiel à sua mulher e gostava de lhe satisfazer os caprichos. 23. Não tem antecedentes criminais, sempre manteve bom comportamento social, é pessoa conceituada no meio em que vive, é trabalhador e amigo dos seus filhos. 24. Mostrou arrependimento pelo desfecho da sua relatada conduta. Não se provaram outros factos, designadamente que: 1. Na discussão indicada em II. 12), o arguido tenha perguntado à sua mulher se mantinha relações sexuais com o referido Jorge ....., ou sequer que tenha sido ele a abordar tal relacionamento. 2. Quando a mulher estava já prostrada no soalho, o arguido tenha continuado a desferir-lhe socos na cabeça. 3. Quando o Sérgio Inácio deparou com o corpo da sua tia Clarisse Helena ....., no local e circunstâncias mencionados em II. 18), esta ainda revelasse sinais de vida. A motivação do acórdão vem assim desenvolvida. A convicção sobre os factos provados assentou no conjunto da prova produzida e examinada na audiência de julgamento nos seguintes termos. Os factos mencionados em 1) e i), nas certidões dos assentos de casamento e de nascimento juntas a fls. 76 a 78. Os restantes factos, em primeira linha, nas declarações do arguido, em segunda linha e em conjugação com tais declarações, nos depoimentos das testemunhas José Francisco ....., Luís Carlos ......a (ambos filhos do arguido e da vítima), Clarisse ..... (amiga íntima da vítima há vários anos), Maria Augusta ..... (que foi patroa da vítima e que era sua amiga, bem como do arguido) e José Manuel..... (que manteve relacionamento amoroso e sexual com a vítima durante cerca de meio ano, no final de 1998 e início de 1999), finalmente, nos depoimentos das testemunhas Sérgio Inácio ..... (sobrinho da vítima e que foi a primeira pessoa achegar à residência do arguido e da vítima após as agressões levadas a cabo por aquele), Zarzinho ..... e sua mulher Rosa Rita ...... (respectivamente, cunhado e irmã da vítima, os quais se deslocaram à residência do arguido alguns minutos depois de aí ter chegado o seu filho Sérgio Inácio) e Maria Augusta ..... (também irmã da vítima). Os demais depoimentos mostraram-se irrelevantes no apuramento dos factos atinentes à responsabilidade criminal do arguido, tendo alguns deles (que adiante se indicarão) relevado apenas na aferição da personalidade e modo de vida deste. A confissão do arguido teve a extensão e conteúdo que já acima [em II. 21] ficou apontado. O menor José Francisco estava em casa com os pais, no seu quarto, quando ocorreu a discussão e agressões mencionados em 11 e segs. Ouviu-os discutir, mas não soube dizer qual o conteúdo da discussão. Apercebeu-se das agressões e ouviu a mãe aos gritos. Confirmou o que consta do nº 16, a ida do Sérgio Inácio à casa dos pais, após aquelas discussões e agressões (que também lá estiveram, de seguida, os seus tios Zarzinho .....o e Rosa Rita) e que nessa altura viu que a sua mãe estava deitada de costas no chão da sala e que não se movia nem falava. Este menor e o seu irmão Luís Carlos relataram diversos episódios que presenciaram atinentes a visitas que os identificados José ..... e Jorge ..... (primeiro aquele, depois este) fizeram, por diversas vezes, de noite, à sua mãe, quando o arguido se encontrava emigrado na Suíça, estando a vítima em casa apenas com eles (José Francisco e Luís Carlos) e que em muitas dessas ocasiões a mãe os mandava para a cama, ficando ela sozinha com cada um daqueles, na sala ou na cozinha. Numa dessas ocasiões, o José Francisco deu conta que o Jorge ..... tinha dormido com a sua mãe lá em casa, numa altura em que o arguido estava na Suíça, facto de que deu conhecimento ao Luís Carlos. Este último, numa ocasião, viu a mãe a beijar o dito Jorge ..... na boca, na cozinha da sua casa e, noutra, ocasião, viu-a ir, de noite, ao encontro do mesmo indivíduo que se encontrava nas traseiras da sua casa dentro de um veículo automóvel, aí tendo ela permanecido durante algum tempo. Referiram, ainda, que em diversas ocasiões o Jorge ..... tomou refeições com a sua mãe e com eles, quer em Tarouca, quer em Armamar. Questionados se deram conhecimento ao pai (arguido) do descrito comportamento da mãe, disseram que não, tendo o Luís Carlos acrescentado que não o fez porque teve pena dele, por saber que ele iria ficar muito triste. E não se pense que estes dois menores produziram os seus testemunhos indiferentes ao facto de estarem a falar da sua própria mãe. Por várias vezes, com a voz embargada e a chorarem, disseram que gostavam muito da sua mãe e que gostavam que ela ainda fosse viva, mesmo que não vivesse com o arguido. Os seus testemunhos mostraram-se verdadeiros e disso convenceram o Colectivo. A testemunha Clarisse ...... ouviu o início da discussão mencionada em II. 11 e 12 e foi ela que, telefonicamente, informou a testemunha Maria Augusta ..... de que o arguido e a vítima estavam a discutir, tendo sido também ela que disso deu conhecimento às testemunhas Zarzinho ..... e Rosa Rita ...... demonstrou conhecer perfeitamente (e disso deu conta ao Tribunal) o relacionamento extraconjugal da vítima com os identificados José ..... e Jorge ....., situou temporalmente esses relacionamentos (nos termos que foram dados como provados), confirmando que em várias ocasiões aqueles se encontraram com a vítima (um de cada vez e em momentos temporais distintos) na casa desta e do arguido, quando este se encontrava a trabalhar na Suíça, e que aí permaneciam com ela muito para lá da meia noite, com os menores José Francisco e Luís Carlos a dormirem e que em diversas ocasiões a vítima passeou com tais indivíduos, tendo também tomado diversas refeições acompanhada do dito Jorge ..... . Referiu, ainda, tal testemunha que nunca viu o arguido com outras mulheres, que devotava grande afecto e amor pela vítima e que lhe satisfazia todas as vontades. Manifestou-se convicta de que o arguido só no dia dos factos e nos momentos que precederam o fatídico óbito da vítima é que soube, da boca dela (e teria sido isso que o levou a agredi-la até lhe tirar a vida), daqueles relacionamentos extraconjugais e de que ele só acreditaria neles se os tivesse presenciado ou sendo--lhes revelados pela própria mulher (não já por outra pessoa, tal era a confiança que devotava à esposa). A testemunha Maria Augusta confirmou o telefonema que a Clarisse ..... lhe fez e declarou que foi ela que depois telefonou ao Sérgio Inácio para que fosse a casa do arguido e da vítima ver o que se estava a passar entre eles. Confirmou, ainda, o que consta da parte final do n° 10) dos factos provados. A testemunha Sérgio lnácio disse que foi o primeiro a chegar à casa do arguido e da vítima, indicou onde e como encontrou a segunda e que foi ele que chamou os bombeiros para que transportassem a vítima ao hospital. Confirmou que o menor José Francisco se encontrava em casa e que o arguido nada fez para se por em fuga, antes ali aguardou pela chegada da autoridade policial. As testemunhas Zarzinho ..... e Rosa Rita disseram que chegaram a casa do arguido alguns minutos depois do seu filho Sérgio Inácio e descreveram como e onde encontraram a vítima. Confirmaram a presença do José Francisco em casa. O primeiro disse que quando lá chegou a vítima já aparentava estar morta, pois, além de não se mexer, tinha a língua de fora, deitava sangue pela boca e pelos ouvidos e tinha os olhos dilatados. A testemunha José ..... confirmou o relacionamento amoroso e sexual que manteve com a vítima e situou-o no tempo. A testemunha Maria Augusta ..... depôs acerca do relacionamento extraconjugal da vítima com o referido Jorge ....., do qual demonstrou conhecimento, explicando-o e fundamentando-o pormenorizadamente. Foi principalmente em função dos testemunhos dos filhos do casal, José Francisco e Luís Carlos, de Clarisse ..... e de Maria Augusta ..... que o Tribunal aceitou como verdadeira aversão dos factos apresentada pelo arguido, particularmente do que aconteceu nos momentos que precederam o fatídico desenlace que culminou na morte da vítima, pois tal versão mostrou-se plausível e compatível com o que resultou dos depoimentos daqueles e que acima, resumidamente, ficaram expostos. Nesta parte, relevaram, ainda: o relatório de autópsia, junto a fls. 46, o documento constante de fls. 17, o crc junto a fls. 149. Finalmente, tiveram-se em conta os depoimentos das testemunhas José Manuel ..... (presidente da Junta de Freguesia de .....), Maria Filomena ........, Maria de Fátima ..... e José Paula ...... (todos residentes na mencionada localidade e freguesia), que demonstraram conhecimento acerca da personalidade e modo de vida do arguido, da sua conduta social e da sua aceitação no meio. O tribunal não deu como provados os factos referenciados no ponto III do acórdão por absoluta falta de prova acerca dos mesmos. III. Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, os recursos interpostos visam, exclusivamente, o reexame da matéria de direito, desde logo porque o Ministério Público, o assistente e o arguido renunciaram ao direito de documentação dos actos da audiência, conforme consta da acta de fls. 220. Por conseguinte, não houve gravação da prova produzida oralmente na audiência de julgamento. Por outro lado, e conforme tem vindo a ser entendimento pacífico, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. O Tribunal Colectivo entendeu que a factualidade a que se chegou integra o crime de homicídio simples, beneficiando o arguido da atenuação especial da pena. Ao Ministério Público na 1ª instância e ao assistente repugna tal atenuação, pugnando este por uma pena pouco abaixo do limite máximo cabido ao crime de homicídio voluntário, por não poder o arguido beneficiar de qualquer atenuante geral e, muito menos, especial. O arguido considera que o homicídio é o privilegiado do artigo 133º do Código Penal. Para o acórdão sob recurso a conduta do arguido é subsumível apenas à previsão dos artigos 72º, nºs 1 e 2, alínea b), 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 131º, do Código Penal. Mas como a defesa sustentou a aplicação ao caso concreto do artigo 133º do Código Penal, escreve-se a dado passo, justificando a rejeição da tese do homicídio privilegiado: “o arguido agiu em estado emocional violento, decorrente de infidelidade que a sua mulher, e vítima, acabava de lhe fazer”; “foi este estado de emoção violenta que imediatamente o determinou à agressão daquela, por meio de socos que lhe desferiu em várias partes do corpo e, essencialmente, ao seu estrangulamento que foi causa directa e necessária da morte da mesma pela asfixia daí resultante”. Quanto ao requisito de que a emoção seja compreensível, o acórdão tem como certo que a compreensibilidade não pode ser determinada com recurso ao chamado critério da proporcionalidade entre o acto injusto provocador da vítima e o facto ilícito provocado pelo arguido, nem com recurso a juízos de moralidade, mas valorando o julgador a situação psíquica que levou o agente à prática do crime, no contexto em que se verificou — e se se conseguir estabelecer uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção violenta, terá que concluir-se pela respectiva compreensibilidade. Ora, num contexto jurídico (em que deixou de se punir o adultério como crime e em que se consagra o princípio da igualdade entre cônjuges e a vinculação recíproca aos deveres de fidelidade e de respeito), e por via dele, social, como o actual, a atitude do arguido não é compreensível, consequentemente, não caem os factos na previsão do artigo 133º do Código Penal. Ainda assim, a conduta ocorreu em circunstâncias que diminuem de forma acentuada a sua culpa, mas no quadro geral do artigo 72º do Código Penal: na origem da reacção emotiva e violenta do arguido esteve o comportamento provocatório, injusto e imerecido, da própria vítima que começou por impedir que ele a acompanhasse a Moimenta, dizendo-lhe que não precisava de cães atrás dela, e que continuou e culminou com a revelação de que lhe era infiel há mais de ano e meio e que tinha mantido relacionamento sexual com dois indivíduos. O assistente, por seu turno, conduz os seus esforços para a alteração da matéria de facto assente, pretendendo que se apurem determinadas questões que tem por relevantes. Em seu entender, é manifestamente insuficiente a matéria dada como provada com vista à atenuação especial da pena de que o tribunal fez uso nos termos do artigo 73º. Há, aliás, contradição entre a fundamentação fáctica e a jurídica e entre ambas e a sentença e erro notório na apreciação da prova. Por conseguinte, deverá anular-se o julgamento, a fim de tais factos serem apurados; ou então deverá revogar-se a decisão recorrida, condenando-se o arguido pelo crime de que vinha acusado com a pena pouco abaixo do seu limite máximo. Para o arguido, a factualidade apurada é adequada a obscurecer a inteligência, a arrebatar a vontade e a enfraquecer a livre determinação do homem médio. E uma vez que a emoção violenta do arguido foi natural, aceitável e não censurável e susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica e, por isso, compreensível — a condenação deveria ter sido pelo crime de homicídio privilegiado da previsão do artigo 133° do Código Penal, e a pena concreta fixada em 2 anos de prisão, com suspensão da sua execução. Cremos que o acórdão fez bem afastando no caso concreto a aplicação do artigo 133º do Código Penal. Esta disposição corresponde, quanto aos seus elementos objectivos e subjectivos, à norma base do artigo 131º, de que formalmente se destaca, beneficiando a moldura penal de circunstâncias privilegiantes que apontam para uma sensível diminuição da culpa. Os fundamentos privilegiantes integram um tipo de culpa que diminui de forma autónoma a responsabilidade do agente, mas a ilicitude do homicídio fica intocada, não obstante o privilégio, pois o bem jurídico afectado não perde a sua valia — por ex., a vida da vítima que “provocou” o agressor não fica por isso desvalorizada, o que se atende é à sensível diminuição da culpa deste (cf. Moos, Wiener Kommentar, Viena, 1984, § 76, nº de margem 4). Tais fundamentos não se identificam, portanto, com qualquer forma de justificação do comportamento do agressor. A exigência de uma diminuição sensível da culpa – decorrente de situações de menor exigibilidade— contende com todas as cláusulas de privilegiamento, a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero e um motivo de relevante valor social ou moral. No que respeita à primeira, não basta uma qualquer emoção, mas a emoção violenta compreensível, quando, e só quando, diminua sensivelmente a culpa do agente. O requisito da compreensibilidade da emoção representa assim uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito, devendo considerar-se que a compreensibilidade assume ainda um qualquer cunho objectivo de “participação” do julgador nas conexões objectivas de sentido que moveram o agente (assim, Figueiredo Dias, Conimbricense PE I, p. 50). Por conseguinte, não se trata da sensibilidade pessoal do arguido perante a situação que sobre ele agiu. Do ponto de vista penal, é perfeitamente irrelevante que o arguido seja portador de uma especial sensibilidade, ou que tudo se congregue para uma visão das coisas igualmente especial no círculo de pessoas a que o mesmo pertence. O arguido recorrente tem como facto incontroverso que a emoção sofrida foi violenta e natural, aceitável e não censurável. Sendo, a mais disso, susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica — será compreensível. Para a análise da presente questão, é já possível concluir (não obstante o que a seguir se dirá a propósito da matéria de facto) que o elenco dos factos provados mostra que a vítima recusou a oferta do marido para a levar de carro a Moimenta, porque não queria que ele a acompanhasse — dizendo-lhe que iria sozinha, “pois não precisava de cães atrás dela”. No decorrer da discussão que se seguiu, tendo-lhe ele comunicado suspeitas quanto aos seu comportamento, ela acabou por lhe revelar as ligações amorosas que, há mais de ano e meio, vinha mantendo, primeiro com um, e depois com um segundo indivíduo. O arguido, aliás, tinha-se deslocado, da Suíça a Portugal, movido pelas desconfianças que o diferente tratamento recebido lhe suscitavam, tendo ambos passado, juntos, o fim de semana fora de casa. Para o acórdão sob censura é manifesto que o arguido agiu em estado emocional violento, decorrente da revelação da infidelidade que a mulher acabava de lhe fazer, sendo esse estado de emoção violenta que imediatamente o determinou à agressão, primeiro com socos, desferidos em várias partes do corpo, e depois com o estrangulamento da mulher, o qual foi causa directa e necessária da morte. Até aqui, não podemos deixar de acompanhar o decidido. Mas aceitando-se que o efeito diminuidor da culpa se fica a dever ao reconhecimento de que nessa situação também o agente conformado com a ordem jurídica teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, não poderá ter-se o comportamento do arguido, tomado na sua globalidade e no entrecruzar das suas relações com a vítima, como favorecido por tal privilegiamento. No caso, e dizendo-o agora como no acórdão do STJ de 23 de Fevereiro de 2000, BMJ-494-123, o juízo de culpa não atinge uma intensidade tal que leve a subtraí-la ao homicídio “simples”. Ainda que o arguido tivesse ficado perturbado e exaltado com o comportamento da mulher, não parece compreensível, do ponto de vista de um homem médio e fiel ao direito, que se tenha deixado dominar por essa emoção violenta. Também aí coincidimos com a conclusão encontrada na 1ª instância, não sendo de passar por alto, bem ao contrário, a introdução da perspectiva constitucional sugerida pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto. São sábias palavras as que acompanham o seu chamamento à dignidade da pessoa humana: “ninguém pode ser senhor dos nossos sentimentos, por mais dolorosas que as nossas opções, baseadas naqueles, possam tornar-se para outras pessoas”, mesmo as mais íntimas e próximas. No mesmo sentido fala a igualdade entre homem e mulher, a qual, ainda que nem sempre seguida na prática, é pressuposto de soluções legais “que dão ao homem e à mulher, na vida do casal, na vida social, profissional e pública, responsabilidades idênticas e direitos e deveres não diferenciados, como antigamente, com base nos sexos”. O recurso do arguido não merece, pois, provimento. No recurso do assistente Amadeu ..... começa-se por arguir a nulidade da sentença, com invocação do disposto no artigo 379º, nº 2 — mais à frente alude-se ainda ao respectivo nº 1, alínea c) —, do Código de Processo Penal. Consistiria esta em não ter o acórdão conhecido, devendo conhecer, pois constavam dos autos, designadamente da motivação da defesa aduzida pelo arguido, questões relacionadas com a autoria de uns versos, que fora imputada pelo arguido à vítima, para inculcar a tese da sua infidelidade conjugal. Deve todavia notar-se que na sua contestação o arguido se limitou a oferecer o merecimento dos autos e que nem da acta nem do texto do acórdão consta, de forma explícita, qualquer referência a tal matéria. Ainda que a fls. 8 do processo apareça um papel contendo o que parece ser uns versos, não se alcança o seu interesse para a questão da infidelidade da mulher, estabelecida no ponto 6 da matéria provada, desde logo, a partir dos esclarecimentos do menor José Francisco e do irmão Luis Carlos, mas também das palavras de Clarisse ....., à margem do apoio nos tais versos. Quanto à fotografia, vê-se da acta, a fls. 223, toda uma discussão em torno da mesma, que termina com a recomendação do ilustre advogado de defesa para o arguido manter silêncio quanto às perguntas formuladas. Mal se compreende que se volte a insistir nesse assunto e que ao mesmo se pretenda dar uma relevância que para o caso não tem, como também não tem saber-se qual a duração do contrato de trabalho que o arguido foi cumprir no estrangeiro. Para sua convicção o Colectivo ouviu, entre outros depoimentos, a versão do arguido, como expressamente se diz na fundamentação, o qual, inclusivamente, confessou, com as limitações decorrentes do ponto 21 da matéria provada. O recorrente, representado por Advogado na audiência de julgamento, teve a oportunidade para no decurso dela colocar as questões que entendeu pertinentes, contraditando os pontos de vista contrários, pelo que não é agora ocasião de reeditar o assunto. Conclusão: não foi cometida a pretendida nulidade. Noutra vertente, refere-se a insuficiência dos factos provados para a decisão, apontada como um dos vícios insanáveis que determinam o reenvio do processo para novo julgamento. Ora, os factos provados mostram, nomeadamente, o seguinte: No dia 12 de Março de 2001, cerca das 8,30 horas, quando ambos se encontravam no interior da sua residência, onde também estava o filho mais novo do casal, e aprontando-se o arguido para levar a sua mulher a Moimenta da Beira, esta disse-lhe que não queria que ele a acompanhasse e que iria sozinha "pois não precisava de cães atrás dela". Nesse momento, iniciou o arguido uma discussão com a sua mulher, na qual lhe comunicou as suspeitas que vinha tendo acerca do modo como ela estava a relacionar-se com ele, tendo-lhe então a mesma revelado que, há mais de ano e meio, vinha mantendo relações amorosas e sexuais extraconjugais, primeiramente com um tal José ..... e depois com um indivíduo de nome Jorge ....., ambos acima mencionados. Acto contínuo, perturbado e exaltado pela revelação que a mulher acabava de lhe fazer e por se sentir traído na fidelidade que lhe dedicava, o arguido lançou-se sobre ela e desferiu-lhe, primeiramente, diversos socos na cabeça e noutras partes do corpo e, logo de seguida, apertou-lhe fortemente o pescoço com as suas mãos. A dado momento, caíram ambos ao chão, tendo, no entanto, o arguido continuado a apertar o pescoço da sua mulher com as suas mãos, cravando-lhe as unhas. O arguido só largou o pescoço da sua mulher quando se apercebeu que estava inanimada e viu que ela sangrava pela boca e pelos ouvidos. Abandonou então a sala onde tinha ocorrido a descrita agressão, deixando aí a sua mulher, estendida no chão e sem auxílio, e dirigiu-se ao quarto do seu filho José Francisco, dizendo-lhe que não saísse de lá, o que este cumpriu, tendo o arguido permanecido também dentro de casa. Tendo o arguido agido com dolo homicida, não restam quaisquer dúvidas de que os factos assim descritos integram, por banda do arguido, a autoria do crime de homicídio voluntário, sendo a sua actuação inteiramente idónea a produzir a morte. Tais factos provados são inteiramente suficientes para a decisão, mesmo considerando a opção pela atenuação especial. Como escreve o Prof. Eduardo Correia, Crime de ofensas corporais voluntárias, parecer, CJ, ano VII (1982), tomo 1, seria desconhecer toda a realidade social ignorar a força inibidora de uma justa apreciação e determinação que a dor ou estado de perturbação, causados por uma ofensa ou por uma provocação injusta envolvem. Daí que, se a provocação teoricamente não exclui, pelo menos diminui a liberdade e deve portanto, nessa medida, atenuar a pena. No acórdão sob recurso entendeu-se, e bem quanto a nós, que a conduta do arguido ocorreu em circunstâncias que diminuem de forma acentuada a sua culpa, não nos termos exigidos pelo tipo privilegiado do artigo 133º, mas no quadro geral do artigo 72º, por na origem da reacção emotiva e violenta do arguido ter estado o comportamento provocatório, injusto e imerecido, da própria vítima que começou por recusar que ele a acompanhasse a Moimenta, dizendo-lhe que não precisava de cães atrás dela e que continuou e culminou com a revelação da sua infidelidade há mais de ano e meio. De modo que não há lugar a alterar seja o que for, nem na matéria referente à confissão do arguido, pois o que ele confessou está perfeitamente identificado, foi tudo, menos o que consta de 5 e 6, sendo perfeitamente claro o que consta do ponto 7, nomeadamente quanto aos motivos por que o arguido começou a desconfiar: “por sentir que a sua mulher já não o tratava como antes, mostrando-se-lhe algo indiferente”. Ainda quanto à confissão, esta releva na medida em que foi sincera e percepcionada conforme as regras da experiência. O juiz opera com máximas de experiência (artigo 127º do Código de Processo Penal) quando se trata de aferir a credibilidade de um interveniente, seja o arguido ou uma testemunha, levando em conta, por ex., a forma sensata como depôs, o que nada tem a ver com normas ou princípios de direito e processo civil, que aqui não se aplicam — e tudo isso independentemente de serem tais declarações corroboradas ou confirmadas por outros meios probatórios. Quanto às contradições apontadas ao ponto 21 da matéria fáctica, dizendo o recorrente que “o tribunal dá como provado que o arguido, no momento em que decidiu tirar a vida à mulher, não tinha o menor conhecimento dos factos que o tribunal deu como provados em 5 e 6” — não há, afinal, contradição nenhuma, já que o arguido agiu por causa da resposta que a mulher lhe deu, de que não precisava de cães atrás dela, e da revelação que lhe fez, que é a matéria constante desses pontos 5 e 6.. Ainda segundo este recorrente, o acórdão enferma de erro notório previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, como outro dos vícios insanáveis. Erro notório é o erro tão evidente que não pode deixar de ser detectado imediatamente por qualquer leitor médio, com a simples leitura do texto da decisão. O erro notório previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial. Enquanto tal vício subsistir, a causa não pode ser decidida (cf., nestes termos, o acórdão do STJ de 9 de Outubro de 1996, BMJ-460-557). Mas também desta vez de erro notório, decorrente do texto da decisão, esteja ele ligado à questão da atenuação especial ou a outra matéria, não parece sofrer o acórdão. Uma coisa é certa, e começou por ser notada pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto, é que ao pretender fazer ressaltar uma contradição, o recorrente entra em lapso, pois a atenuação especial, baseada em diminuição sensível da culpa, não se contradiz com o dolo do agente. Quanto à pena, ela, seguramente, não pode ser elevada a um nível próximo do máximo previsto no artigo 131º, desde logo porque se justifica a atenuação especial, tanto do ponto de vista do que se apurou, como é essa a justificada solução de direito. Improcede assim toda a argumentação deste recorrente. Por idêntico motivo, não tem apoio a pretensão do Ministério Público recorrente. A pena concreta, encontrada no espaço da moldura do crime especialmente atenuada — com o limite máximo da pena de prisão (16 anos) reduzido de um terço e o limite mínimo (8 anos) reduzido a um quinto: artigos 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 131º —, não merece contestação, enquanto satisfaz aos critérios expressos pelo artigo 71º, e leva em conta que, no direito vigente, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente (artigo 40º, nº 1, do Código Penal). Por conseguinte, não se mostram violadas as normas dos artigos artigo 379°, nº 1, alínea c), e nº 2, e 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal, 72°, nºs 1 e 2, alínea b), e 73°, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal, e 352° do Código Civil e 552° do Código de Processo Civil. Como igualmente se não mostra violado o artigo 133º do Código Penal. Ainda no que respeita à medida da pena e uma vez que o recorrente arguido subordina a sua discordância à qualificação jurídica dos factos, pretendendo submetê-los ao homicídio privilegiado do artigo 133º do Código Penal, fica-nos vedado continuar na análise dessa questão, sujeita de resto pelo acórdão à adequada disciplina do artigo 71º do Código Penal, como anteriormente se procurou demonstrar. Nestes termos, acordam em negar provimento tanto ao recurso do assistente Amadeu ..... como ao do Ministério Público e ao do arguido José Luís ....., confirmando-se o acórdão recorrido. Fixa-se a taxa de justiça a cargo do assistente em 4 Ucs e em 2 Ucs a da responsabilidade do arguido. Nos termos do artigo 213º do Código de Processo Penal, manter-se-á a medida coactiva adoptada, de prisão preventiva, já que os pressupostos de facto e de direito que a determinaram se reforçaram substancialmente com o decidido no presente acórdão. Porto, 3 de Abril de 2002 Manuel Cardoso Miguez Garcia Pedro dos Santos Gonçalves Antunes Arlindo Manuel Teixeira Pinto José Casimiro da Fonseca Gimarães |