Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
325/1998.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ALIMENTOS
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA DOS ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
CAPITAÇÃO DOS RENDIMENTOS DO AGREGADO FAMILIAR
PENHORA
REMUNERAÇÃO MENSAL
Nº do Documento: RP20110531325/1998.P1
Data do Acordão: 05/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Estando penhorada uma parte do salário do progenitor do menor, apenas a parte não penhorada pode ser considerada rendimento do agregado familiar para efeito de determinação do requisito de que depende a obrigação de pagamento dos alimentos por parte do Fundo de Garantia de Alimentos a Menor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 325/1998.P1
Do 1º Juízo Cível de Vila do Conde.
REL. N.º 649
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, veio, no âmbito do processo em referência, interpor recurso de apelação da decisão que fixou a prestação a cargo desse Instituto em 100,00 € por cada uma das menores B… e C…, filhas de D… e E….

O recurso foi admitido, com efeito devolutivo.

Nas alegações de recurso, o apelante defende que a decisão da 1ª instância deve ser revogada, concluindo do seguinte modo:
1. Não consta da douta sentença recorrida a verificação de um dos requisitos cumulativos que a Lei 75/98, de 19.11, em conjugação com o DL 70/2010, de 16.06, exige para que as prestações de alimentos possam ser atribuídas nos termos que preconiza.
2. Com efeito, da sentença não consta a inexistência de rendimentos líquidos das menores B… e C…, superiores ao salário mínimo nacional, nem a prova de que estas não beneficiam na mesma quantidade, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontram.
3. Sendo o agregado familiar das menores composto pela mãe, uma irmã de maior idade e elas próprias, o rendimento que há que considerar, in casu, para chegar à capitação prevista no n.º 2 do art. 3º do DL 164/99, tem de ser calculado nos termos das regras do DL 70/2010, de 16.06.
4. Esse rendimento, no valor de € 543,95, per capita, é superior ao salário mínimo nacional.
5. O apelante considera que, in casu, não estão preenchidos os pressupostos necessários ao pagamento pelo Fundo de Garantia dos alimentos devidos às menores B… e C….
6. É imprescindível a existência dos vários requisitos cumulativos, uma vez que a prestação de alimentos só se mantém enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão (e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado).
7. A intervenção do apelante tem natureza subsidiária.

Nas contra-alegações o Ministério Público pugna pelo não provimento do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.
*
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente – artigos 684º, n.º 3, e 690º do CPC (na versão anterior ao DL 303/2007, de 24 de Agosto) – a única questão que se coloca é a de saber se estão reunidas as condições legais para responsabilizar o Fundo de Garantia de Alimentos a Menores pelas prestações alimentares fixadas na sentença.

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. O agregado familiar é composto pela progenitora e três filhas.

2. Os rendimentos do agregado consistem em:
- 1.373,14 € do vencimento auferido pela mãe, enquanto funcionária da Conservatória do Registo Civil de …, sendo que desse, 558,22 € são retidos por força de uma penhora (rendimento efectivo 814,92 €);
- 95,54 € a título de prestações sociais às crianças.

3. As despesas mais significativas são:
- 120,00 € com despesas de habitação e manutenção (nelas se incluindo luz, água, gás e telefone);
- 300,00 € com despesas de alimentação;
- 186,00 € com despesas de saúde da progenitora a quem foi diagnosticado, em Maio de 2010, um cancro da mama;
- 253,00 € com despesas de educação com as descendentes, sendo que destes, 143,00 € respeitam à filha mais velha, estudante universitária em …;
- 80,00 € a título de deslocações entre … e ….

O DIREITO

Existem algumas insuficiências da matéria de facto que importa suprir oficiosamente ao abrigo do artigo 659º, n.º 3, do CPC.
Assim, com base nos documentos autênticos juntos a fls. 5, 6 e 7, consigna-se o seguinte:
- A F… nasceu no dia 22 de Outubro de 1991;
- A B… e a C… nasceram no dia 25 de Novembro de 1996.
Verifica-se ainda da certidão de fls. 59, que:
- O progenitor, D…, está recluído no Estabelecimento Prisional de ….

Feito este aditamento à matéria de facto, vejamos se a apelação procede.

Como já referimos, a questão que vem colocada no recurso prende-se exclusivamente com o eventual não preenchimento do requisito previsto no artigo 3º, n.º 2, do DL 164/99.
Vejamos.
A garantia de alimentos devidos a menores foi consagrada na Lei n.º 75/98, de 19.11., cujo n.º 1 estabelece:
“Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.
Para a determinação do montante de alimentos, o n.º 2 do artigo 2º dessa lei manda atender à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
O DL 164/99, de 13.05., veio regulamentar essa lei, instituindo o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, e definindo as condições em que esse Fundo pode ser chamado a intervir.
Assim, o artigo 3º, n.º 1, desse diploma refere que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) assegura o pagamento das prestações de alimentos até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando:
a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro; e
b) O menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
O n.º 2 do mesmo artigo, na versão original, acrescentava:
“Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao salário mínimo nacional, quando a capitação de rendimentos do respectivo agregado familiar não seja superior àquele salário”.
Com a publicação do DL 70/2010, de 16.06., as coisas foram substancialmente alteradas.
Surgido da necessidade de contenção da despesa pública, este DL redefiniu as condições de acesso aos apoios sociais concedidos pelo Estado, aplicando-se a todos os apoios sociais cujo acesso tenha subjacente a verificação da condição de rendimentos.
Nessa medida, o n.º 3 do DL 164/99, na redacção dada pelo citado DL 70/2010, passou a dispor que “o conceito de agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação de rendimentos, referidos no número anterior, são calculados nos termos do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho”.
Ora, quanto ao conceito de agregado familiar nenhuma dificuldade se levanta – artigo 4º.
No que respeita aos rendimentos a considerar, o artigo 3º, n.º 1, do DL 70/2010, identifica os seguintes:
a) Rendimentos de trabalho dependente;
b) Rendimentos empresariais e profissionais;
c) Rendimentos de capitais;
d) Rendimentos prediais;
e) Pensões;
f) Prestações sociais;
g) Apoios à habitação com carácter de regularidade;
h) Bolsas de estudo e de formação.
Finalmente, no que toca à capitação de rendimentos, o artigo 5º preceitua que no apuramento da capitação dos rendimentos do agregado familiar, a ponderação de cada elemento é efectuada de acordo com a escala de equivalência seguinte:
Requerente 1
Por cada individuo maior 0,7
Por cada indivíduo menor 0,5
De acordo com o que resultou provado, o único rendimento a ter em conta é o da Requerente. Esse rendimento advém-lhe do trabalho que presta na Conservatória do Registo Civil de ….
Trata-se de trabalho dependente, sem margem para qualquer dúvida, estando a questão em saber se deve considerar-se o valor de 1.373,14 €, correspondente ao vencimento mensal auferido, ou antes o rendimento efectivo de 814,92 € em consequência da penhora de 558,22 € que incide sobre aquele valor.
A consideração de um ou de outro faz toda a diferença no presente caso, por causa da operação de capitação dos rendimentos.
É consabido que a penhora consiste na apreensão de bem ou bens do património do devedor para que o seu credor se possa pagar do crédito que possui contra aquele. Um dos seus efeitos materiais é a privação da posse directa do bem pelo devedor, ou seja, a sua indisponibilidade.
No caso, a penhora do vencimento da Requerente tornou-se efectiva com a notificação da entidade empregadora para proceder ao desconto correspondente ao crédito penhorado e seu consequente depósito em instituição de crédito, como decorre do artigo 861º, n.º 1, do CPC. Significa isto que a Requerente vê todos os meses amputada, na origem, uma parte significativa do seu rendimento de trabalho, não chegando, por conseguinte, a dispor da totalidade do montante que a entidade empregadora lhe paga.
Por isso, o Ministério Público, nas doutas contra-alegações, defende que apenas deve ser considerado o valor mensal efectivamente recebido pela Requerente, isto é, o valor da remuneração mensal abatido da verba penhorada.
É também este o nosso entendimento.
Sendo, como vimos, várias as normas e vários os diplomas que regem a matéria de alimentos a menores, deve procurar interpretar-se o conteúdo das diversas disposições, inferindo-o dos factores racionais que as inspiraram, da génese histórica que as prendem a leis anteriores e do modo como se conexionam no sistema.
Castanheira Neves[1] ensina que “o problema jurídico-normativo da interpretação não é o determinar a significação, ainda que significação jurídica, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos (…). Uma boa interpretação não é aquela que, numa pura perspectiva hermenêutica-exegética, determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspectica prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto”.
Para se determinar a finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada[2].
O escopo prático que os vários preceitos citados visam atingir é o da garantia, por parte do Estado, de que todas as crianças tenham acesso a condições mínimas de subsistência, cumprindo-se desse modo, não só os imperativos constitucionais (artigo 69º da CRP), mas também as normas vinculativas do direito internacional, maxime, a Convenção sobre os Direitos da Criança.
A norma do n.º 3 do artigo 3º do DL 164/99, na redacção que lhe deu o DL 70/2010, constitui uma derivação da norma geral ou supra-ordenada contida no artigo 1º da Lei 75/98 e não pode, naturalmente, ser analisada separadamente, desfocada do princípio jurídico geral de que emana.
Por isso, quando aquela norma remete para “os rendimentos de trabalho dependente” terão de incluir-se nesta categoria, tão só, os rendimentos líquidos e efectivos auferidos pelo trabalhador dependente, isto é, aquilo de que mensalmente pode dispor para o seu sustento e do seu agregado.
Portanto, teremos de considerar como único rendimento da Requerente o valor de 814,92 €, tal como acertadamente – pensamos nós – se ponderou na decisão recorrida.
Dividindo esse valor pela soma dos índices da escala de equivalência (1 + 0,7 + 0,5 + 0,5 = 2,7), a capitação de rendimentos obtida é na ordem dos 301,82 €, montante este inferior ao salário mínimo nacional[3].
Consequentemente, deve manter-se a decisão que atribuiu a cada uma das menores B… e C… a prestação alimentar de 100,00 €, que o FGADM deverá assegurar em substituição do progenitor inadimplente.
*
III. DECISÃO

Em conformidade com o que se expôs, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.
*
Sem custas, dada a isenção do recorrente.
*
PORTO, 31 de Maio de 2011
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
__________________
[1] “Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais”, BFD – Universidade de Coimbra, 1993, página 84.
[2] Francesco Ferrara, “Interpretação e Aplicação das Leis”, 3ª edição, página 141.
[3] O salário mínimo nacional em vigor à data da decisão (2010), era de 475,00 € - DL 5/2010, de 15 de Janeiro.