Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3382/03.9TBGDM-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: M. PINTO DOS SANTOS
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
COMPROPRIEDADE
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Nº do Documento: RP201103153382/03.9TBGDM-B.P1
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ocorre erro na forma de processo quando é indevidamente instaurado um processo de inventário (subsequente ao decretamento de divórcio) e o que se impunha era a instauração de uma acção de divisão de coisa comum, para pôr termo à indivisão decorrente da compropriedade de diversos bens (móveis e imóveis).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pc. 3382/03.9TBGDM-B.P1 – 2ª Sec.
(apelação)
_________________________________
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Ramos Lopes
Des. Maria de Jesus Pereira
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Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

Por apenso à acção executiva comum para pagamento de quantia certa, instaurada por B… contra C…, ambos residentes em …, deduziu esta a presente oposição à execução, na qual invocou a nulidade da sentença homologatória que constitui o título dado à execução (tal sentença homologou um acordo, entre ambos, outorgado em conferência de interessados, no qual a executada-opoente se reconheceu devedora de 71.449,58€, a título de tornas, ao exequente, e se obrigou a pagar-lhe tal importância no prazo de 60 dias), com a seguinte alegação, integradora, segundo ela, dos fundamentos dessa nulidade:
● que ela e o exequente foram casados um com o outro em regime de separação de bens;
● que «por razões que só a razão desconhece» (expressão sua) ambos intentaram na Conservatória do Registo Civil uma acção de divórcio por mútuo consentimento, em que juntaram o respectivo assento de casamento com menção daquele regime de bens;
● que juntaram a esse processo uma relação de bens comuns, apesar de não os haver, mas sim e apenas bens que lhes pertenciam em compropriedade;
● que o divórcio foi ali decretado sem que ninguém tenha reparado na nulidade cometida;
● que depois foi instaurado um processo de inventário para partilha de bens comuns do casal, tendo sido aí seguida a respectiva tramitação como se o regime de bens do casamento fosse o da comunhão de adquiridos;
● que ambos outorgaram, nesse processo, um acordo que abarcou, nomeadamente, a adjudicação dos bens e o pagamento de tornas, acordo/transacção esse que foi homologado pela sentença que constitui o título executivo da execução de que esta oposição é dependência (e está apensada);
● que, por isso, o objecto de tais acordo/transacção e sentença é ilegal, por violação do disposto no art. 294º do CCiv., sendo a respectiva nulidade fundamento de oposição à execução nos termos do art. 814º al. h) do CPC.
Concluiu pugnando pela procedência da oposição, com a consequente declaração de nulidade do título executivo e pela extinção da instância executiva.

O exequente contestou a oposição, sustentando, no essencial:
● que há muito transitou em julgado a sentença homologatória dada à execução, não podendo o vício ser invocado na oposição à execução, nem conhecido pelo Tribunal;
● que o acordo ali homologado foi outorgado de livre vontade e de boa fé por ambas as partes, traduzindo um negócio jurídico válido de divisão do património que a ambos pertencia em compropriedade e no qual a opoente se confessou também devedora ao exequente da referida quantia (de tornas);
● que a conduta processual da opoente configura um manifesto abuso de direito, por contrastar, em termos absolutos, com a que manteve desde que o divórcio entre ambos foi decretado até ao momento em que deduziu a presente oposição à execução (actuação que descreve factologicamente), período durante o qual nunca questionou a validade da dita transacção e da sentença que a homologou, o que, em seu entender, impede que a referida nulidade seja declarada e a oposição proceda.
Terminou requerendo a improcedência da oposição.

Foi depois proferido despacho saneador tabular, com dispensa de fixação da base instrutória por simplicidade da matéria de facto controvertida.

A opoente reclamou por o Tribunal «a quo» não ter conhecido no saneador da nulidade que arguiu.

Observado o contraditório, foi proferido, a fls. 82, um despacho no qual, depois de se declarar que “não tendo sido fixada a matéria de facto assente e a base instrutória, não lhe (à opoente) assiste o direito de efectuar qualquer reclamação”, acrescentou-se que “todavia, encontrando-se, de facto, os autos em estado que permite conhecer de mérito, é nesse sentido que se profere a decisão que se segue”.

E na sequência disso, a fls. 82-84, aquele Tribunal proferiu decisão final nestes autos de oposição à execução, julgando-os improcedentes pelos seguintes motivos:
● por “não ser este o meio processual idóneo a conseguir tal intento (a declaração de nulidade da sentença homologatória dada à execução), havendo na legislação processual civil mecanismos legais para rever tal sentença”;
● por se encontrar “esgotado o poder jurisdicional concernente à prolação de tal sentença, sendo certo que não foi a mesma objecto de recurso (…)”;
● por a nulidade invocada não ser enquadrável “no âmbito dos fundamentos previstos no art. 814º do CPC, maxime, o que vem elencado no seu nº 1 al. h), por não se tratar de situação que aí seja contemplada”;
● por não resultar ”do acordo dos ex-cônjuges e da subsequente sentença homologatória a fixação de objecto legalmente impossível tal como defendido pela oponente, sendo certo que o regime de bens do casamento que outrora os uniu em nada contende com o acordo celebrado”, pois “limitaram-se as partes a dispor de bens, partilhando-os nos termos que da acta constam, encontrando-se tal faculdade na sua livre disponibilidade (…)”;
● e por “se tratar, a nosso ver, de situação flagrante de abuso de direito com todas as consequências legais daí advenientes”.

Inconformada com tal decisão, a opoente interpôs o recurso de apelação em apreço, cuja motivação concluiu do seguinte modo:
“a) O título executivo ajuizado nos presentes autos é uma sentença homologatória de transacção em processo de inventário subsequente ao processo de divórcio.
b) O título executivo é nulo de pleno direito porquanto é ilegal o seu objecto.
c) A referida transacção correu termos em processo de inventário para partilha de bens comuns de casal, tendo sido ordenada a sua tramitação como se o regime de bens de casamento fosse o da comunhão de adquiridos.
d) O regime de bens de casamento entre recorrente e recorrido foi o de separação.
e) Pelo que inexistem bens comuns do casal.
f) O divórcio foi decretado sem que ninguém tenha reparado na nulidade cometida, o mesmo ocorrendo com o processo de inventário.
g) Sendo a transacção homologada por douta sentença.
h) Assim, a douta sentença homologatória da transacção é nula por ser ilegal o seu objecto.
i) Tal nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado (artigo 286º do CC).
j) Os negócios celebrados contra disposição legal imperativa são nulos (artigo 294º do CC).
k) Tal nulidade foi invocada pela recorrente em sede de oposição à execução, pelo que deveria ter sido declarada oficiosamente, extinguindo-se a instância.
l) Ao não declarar nulo o título executivo e consequentemente declarar extinta a instância, o tribunal «a quo» violou o disposto nos artigos 286º, 289º nº 1, 294º, todos do CC e 814º do CPC.
m) Um entendimento contrário é permitir – mais uma vez – que seja proferida uma decisão judicial (sentença) baseada em títulos ou pressupostos nulos.
Termos em que, dando provimento ao presente recurso e, em consequência, sendo revogada a decisão do tribunal «a quo» e substituída por outra que declare a invocada nulidade, julgando a oposição procedente e extinguindo a instância, se fará a costumada justiça”.

O exequente respondeu (contra-alegou) em defesa da confirmação do decidido na 1ª instância.
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II. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção à delimitação decorrente das conclusões das alegações da opoente-apelante - art. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3 do C.Proc.Civ., na redacção aqui aplicável, dada pelo DL 303/3007, de 24/08, já que a acção executiva de que depende esta oposição foi instaurada depois de 01/01/2008 (cfr., por um lado, os arts. 11º nº 1, “a contrario” e 12º nº 1 de tal DL e, por outro, o teor da certidão junta a fls. 131, na qual consta que a execução foi instaurada em 14/06/2009) –, as questões que importa apreciar e decidir consistem em saber:
● Se a nulidade (ou a anulabilidade) da sentença homologatória – que constitui o título executivo na acção de que esta oposição é dependência – pode ser fundamento da oposição deduzida pela executada;
● Se a sentença homologatória em questão (melhor, a transacção/confissão por ela homologada) pode ser declarada nula (ou ser anulada) com base no que a opoente-apelante alegou/invocou.
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III. Factos provados:

Embora sem os indicar expressamente em item próprio, a decisão recorrida teve como assente o seguinte circunstancialismo:
- Exequente e executada-opoente, ora divorciados, foram casados um com o outro sob o regime de separação de bens.
- Eram titulares, em regime de compropriedade, de bens móveis e imóveis.
- Depois de decretado o divórcio, o aqui exequente-apelado instaurou processo de inventário como se fosse para partilha de bens comuns do casal, tendo ele e a aqui opoente-apelante, na conferência de interessados que ali teve lugar a 07/07/2008, acordado, além do mais, na adjudicação dos bens que ficavam a pertencer a um e a outro e, ainda, que “as tornas devidas ao cabeça-de-casal, B…, no montante de 71.449,58€ (…) serão pagas, no prazo de 60 dias, no escritório do mandatário do cabeça-de-casal, contra recibo”.
- Tal acordo/transacção foi homologado por sentença, da mesma data, que transitou em julgado.
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IV. Apreciação jurídica:

1. A primeira questão que importa solucionar é a de saber se a nulidade (ou a anulabilidade) da sentença homologatória – quando esta constitui título executivo – pode ser fundamento da oposição à execução.
Não há dúvida que o título executivo na execução a que esta oposição diz respeito (de que é dependência e a que está apensa) é a sentença homologatória que foi proferida no processo de inventário (para partilha de bens comuns) que correu termos entre as mesmas partes destes autos e no qual estas acordaram (transigiram) quanto à partilha/adjudicação dos bens que consideraram que pertenciam a ambos, tendo também a aqui executada-opoente, ora apelante, reconhecido/confessado que era devedora perante o aqui exequente, ora apelado, da quantia de 71.449,58€, de tornas, obrigando-se a pagá-la no prazo de 60 dias (após a data da transacção), tudo como melhor consta da «acta de conferência de interessados» certificada a fls. 138-139 destes autos.
A ora apelada, na oposição que deduziu, invocou a nulidade de tal sentença homologatória estribando-se no disposto no art. 294º, com referência ao art. 295º, ambos do CCiv., que consideram nulos os negócios e os actos jurídicos que contrariem disposição legal de carácter imperativo.
De acordo com a al. h) do nº 1 do art. 814º do CPC, quando a execução se estribe em sentença homologatória de confissão ou transacção, a oposição pode ter por fundamento “qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses actos”.
Justificando este fundamento da oposição à execução, ensina Lebre de Freitas [in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 3º, 2003, pg. 318, anotação 3 ao art. 814º] que “no caso de execução de sentença homologatória de confissão ou transmissão, podem, além dos fundamentos indicados nas alíneas a) a g), invocar-se quaisquer causas que, segundo a lei civil, determinem a nulidade ou a anulabilidade do negócio jurídico homologado (simulação, dolo, erro, inidoneidade do objecto, incapacidade, etc.)”. E isto porque “os actos de auto-composição do litígio constituem negócios jurídicos (…), como tais sujeitos ao respectivo regime geral (art. 301º-1), sem que o trânsito em julgado da sentença que os homologue obste à propositura da acção de declaração de nulidade ou de anulação (art. 301º-2), e esta pode surgir sob a forma de oposição à execução”.
Também Amâncio Ferreira [in “Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., pgs. 183-184] refere que “no caso de execução de sentença homologatória de confissão ou transacção, deve o executado basear a sua oposição em qualquer das causas que, nos termos da lei substantiva, determinam a nulidade ou a anulabilidade desses actos”, acrescentando que “essas causas reportam-se à falta de vontade ou aos vícios de consentimento dos outorgantes (arts. 240º e segs. do CC), como para a confissão diz expressamente o art. 359º do CC e para a transacção se infere da sua classificação como contrato pelo nº 1 do art. 1248º do mesmo Código” [Já antes da Reforma Processual de 1995-96 este fundamento da oposição à execução, específico das execuções fundadas em sentença homologatória de confissão ou transacção, estava previsto no CPC e era referido, nomeadamente, por Lopes-Cardoso, in “Manual da Acção Executiva”, ed. INCM, 1987, pgs. 779-780 e por Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. IV, pg. 35].
Temos, assim, como certo que a nulidade ou a anulabilidade das sentenças homologatórias de confissões ou transacções – transitadas em julgado - constitui fundamento de oposição à execução quando esta se baseie em tal espécie de títulos, embora a causa da nulidade ou da anulabilidade deva reportar-se ao negócio subjacente à sentença, ou seja, à confissão ou à transacção homologadas, e não tanto à própria decisão; isto sem prejuízo da nulidade e da anulabilidade destas sentenças poderem também ser invocadas em acção instaurada com este fim, ou em recurso extraordinário de revisão, nos termos da al. d) do art. 771º do CPC.
Daí que a opoente, ora apelante, pudesse, na petição destes autos de oposição à execução, por ser meio legal e adequado, arguir a nulidade da sentença homologatória que constitui o título da execução que lhe foi movida pelo ora apelado.
Questão é saber se o que aquela alegou no referido articulado integra alguma causa de nulidade – ou até de anulabilidade – da dita sentença ou da transacção/confissão que por ela foi homologada (na execução só está em causa a parte da transacção em que a opoente se confessou devedora de tornas ao exequente, no montante que já se deixou referenciado). Esta é a questão a que iremos responder no item seguinte.
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2. Quanto a esta segunda questão, importa começar por dizer que a opoente, ora apelante, não radicou a nulidade da dita sentença homologatória, ou sequer a sua eventual anulabilidade, em qualquer falta ou vício da vontade, dela própria, do outro outorgante, o aqui apelado, ou de ambos, no contrato de transacção por aquela homologado (o art. 1248º nº 1 do CCiv. define a «transacção» como “o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”, podendo estas envolver, de acordo com o nº 2, “a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”), já que não invocou nenhuma das causas previstas nos arts. 240º e segs. do CCiv. (simulação, reserva mental, erro, dolo ou coacção – sendo que algumas destas causas geram a nulidade do negócio/contrato, ao passo que outras determinam apenas a sua anulabilidade). Também não invocou a incapacidade de nenhum dos outorgantes na transacção, nem a inidoneidade do objecto desta ou a sua indisponibilidade, até porque o que nela estava em causa era a partilha (ou melhor, a divisão) de bens móveis e imóveis que a ambos pertenciam, o que significa que a transacção não incidiu sobre direitos indisponíveis.
O raciocínio (pouco claro, diga-se, quer no articulado inicial desta oposição, quer nas alegações do recurso) que a opoente-apelante apresenta para a invocação daquela nulidade parece ser, apenas e tão-só, o seguinte:
● ela e o apelado, entretanto divorciados, foram casados sob o regime de separação de bens;
● neste regime não há bens comuns (património comum do casal);
● mas eram titulares, em regime de compropriedade, de bens móveis e imóveis;
● não podia o apelado, após o decretamento do divórcio, ter intentado o processo de inventário para partilha de inexistentes bens comuns do casal;
● devia era ter instaurado acção de divisão de coisa comum para pôr termo à indivisão dos bens de que eram comproprietários;
● não podia, por isso, naquele processo de inventário, ter havido a transacção que houve, de partilha e adjudicação dos bens a um e a outro, conforme acordaram, nem ela ter-se confessado devedora, ao apelado, da aludida quantia de tornas;
● já que tal transacção, não tendo em conta o referido regime de bens, violou disposição legal de carácter imperativo, sendo, por via disso, nula, como nula é, igualmente, a sentença que a homologou e que foi dada à execução.
Embora este raciocínio da apelante se apresente correcto até certo ponto, não concordamos, porém, com a conclusão que dele extrai, pois o que houve, adiantamos já, foi um mero erro na forma do processo que não foi tempestivamente arguido, nem oficiosamente conhecido pelo Tribunal «a quo» e que, por ter ficado sanado, já não permite que se ataque nem a transacção nem a sentença homologatória que no apontado processo de inventário tiveram lugar.
Expliquemo-nos.

Que o regime da separação de bens é incompatível com a existência de um património comum do casal (e de bens comuns) é inequívoco, conforme decorre do disposto no art. 1735º do CCiv.. Mas, como é evidente, não impede que o casal que adoptou tal regime de bens (ou em que o seu casamento ficou imperativamente sujeito a este regime) seja comproprietário de bens móveis e/ou imóveis.
Embora diversas, não deixa de haver alguma conexão de regimes entre a comunhão (no património comum) e a compropriedade, até porque as disposições legais que regulam esta última “são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles”, conforme prescreve o art. 1404º do CCiv..
Certo é também, como diz a apelante, que, para pôr termo à comunhão dos bens que constituíam o património comum do casal, além da via amigável que aqui não interessa considerar, os ex-cônjuges devem lançar mão do processo de inventário previsto no art. 1404º do CPC, ao passo que para terminar com a indivisão, resultante do regime da compropriedade, os titulares deste direito devem recorrer, além da via amigável que não releva aqui, à acção especial de divisão de coisa comum, como estabelece o nº 1 do art. 1423º do CCiv..
No caso, face ao regime de bens que vigorou no casamento que celebraram – e que foi dissolvido por divórcio -, é manifesto que deviam ter recorrido a esta última acção e não àquele processo de inventário para porem termo à indivisão dos bens que lhes pertenciam em compropriedade.
Mas ao ter sido proposto (pelo ora apelado) o processo de inventário em vez da acção de divisão de coisa comum, regulada nos arts. 1052º e segs. do CPC, não foi violada qualquer disposição legal de carácter imperativo. Apenas foi «escolhida» uma forma de processo que não era a adequada para pôr fim à apontada indivisão.
Mas esta incorrecta escolha da acção integra unicamente a excepção do erro na forma de processo, prevista no art. 199º do CPC e que, uma vez invocada em tempo, importaria unicamente a anulação dos actos que não poderiam ser aproveitados e levaria à «convolação» da mesma para a acção de divisão de coisa comum, adaptando-a aos adequados trâmites desta.
Tal erro era invocável pela aqui opoente-apelante nos dez dias seguintes à sua primeira intervenção no referido processo de inventário, em conformidade com o disposto no art. 204º nº 1 do CPC, devidamente adaptado, uma vez que aquela espécie processual não comporta o articulado de contestação. E também poderia ser oficiosamente conhecido até à prolação da sentença homologatória da partilha ou, considerando o que nele aconteceu, até à sentença homologatória da transacção outorgada na conferência de interessados, de acordo com o enunciado na parte final do nº 2 do art. 206º do mesmo corpo de normas.
Por não ter sido invocado nem oficiosamente conhecido nos prazos acabados de mencionar, o indicado vício (erro na forma de processo) ficou definitivamente sanado e a transacção ali homologada por sentença ficou, necessariamente, a valer não como acto de partilha de inexistentes bens comuns do casal, mas como acto (manifestação de vontades dos intervenientes) de cessação da indivisão dos bens pertencentes aos outorgantes em compropriedade e de adjudicação a cada um deles dos que integraram os respectivos quinhões (como se da conferência de interessados prevista no art. 1056º do CPC se tratasse).
Sendo válida a transacção, também nenhum obstáculo se antolha relativamente à confissão de dívida, por tornas, que nela foi aposta pela ora apelante, que vale como parcial pagamento em dinheiro da quota do ora apelado, nos termos enunciados no nº 3 do art. 1056º que remete para o art. 1378º, ambos do CPC (que regula o «pagamento ou depósito das tornas» no inventário).
Como tal, a sentença que validamente homologou tais transacção e confissão (já transitada em julgado) podia servir de título executivo à execução intentada pelo ora apelado contra a ora apelante, por esta, segundo aquele, não ter cumprido a obrigação a que se vinculou de lhe pagar 71.449,58€, a título de tornas, no prazo acordado.

Além do que se deixa dito, a invocada nulidade, mesmo que existisse, não poderia ser invocada pela ora recorrente, pelo menos nos termos em que o foi, ou seja, sem ser sustentada em algum vício de vontade da sua parte (vícios a que já atrás fizemos referência e que ela, manifestamente, não alegou no seu articulado), já que, assim, sem mais, se traduz num claro abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium».
Vejamos porquê.
O art. 334º do CCiv. considera que age em abuso de direito ou que é ilegítimo o exercício de um direito “quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Para que o exercício de um direito seja abusivo exige-se, assim, que “o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder” ou, dito de outro modo, “que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça”. Basta que o excesso se verifique objectivamente, não se exigindo que o agente tenha consciência dele. Mas só haverá abuso de direito se houver “contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”. E no preenchimento dos conceitos constantes da parte final daquele normativo - de «boa fé», «bons costumes» e «fim social ou económico» - haverá que atender, quanto aos dois primeiros, “às concepções ético-jurídicas dominantes”, e quanto ao último nos “juízos de valor positivamente consagrados na própria lei” [cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 1998, pgs. 564-565 que cita também Manuel de Andrade; veja-se tb Coutinho de Abreu, in “Do Abuso de Direito”, 1999, pgs. 15 a 47, que entende que há abuso de direito “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”].
O abuso de direito comporta várias cambiantes ou modalidades, das quais se destaca, por ser a que aqui importa considerar (e é também a que mais vezes é invocada nos processos judiciais), a do «venire contra factum proprium», ou da conduta contraditória. Dentro desta distinguem-se: o «venire» negativo, em que o agente “manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não irá praticar certo acto e, depois, pratica-o mesmo” (ainda que o acto em causa seja permitido por integrar o conteúdo de um direito subjectivo) e o «venire» positivo, em que “o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a”, podendo estas actuações dizer respeito quer ao exercício de um determinado direito potestativo, quer ao exercício de um direito subjectivo comum. No fundo, nesta modalidade, o abuso de direito ocorre quando alguém exerce um direito em contradição com uma conduta (sua) anterior em que a outra parte tenha legitimamente confiado, vindo esta, com base na confiança gerada e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões na convicção de que aquele direito já não seria exercido [assim, Meneses Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, 2000, pgs. 250-255 e Tomo IV, 2005, pgs. 275-297; mesmo Autor, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, vol. II, pgs. 742-745 e Baptista Machado, in “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, RLJ ano 118, pgs. 169, 227 e 228].
Desta descrição decorre que o «venire contra factum proprium» demanda:
● em primeiro lugar, um comportamento anterior, suficientemente inequívoco/concludente no seu conteúdo, da parte que exerce o direito que seja susceptível de gerar uma situação objectiva de confiança no destinatário (parte contrária);
● depois, uma actuação deste destinatário, objectivamente justificada, baseada na boa fé e na confiança gerada por aquele comportamento;
● finalmente, um comportamento posterior (actual) daquele primeiro declarante, objectivamente contraditório com o inicialmente manifestado.
Ora, no caso ocorrem todos estes pressupostos:
Em primeiro lugar, o comportamento processual da ora apelante anterior ao momento que culminou com a transacção homologada pela sentença aqui em apreço foi suficientemente inequívoco e susceptível de gerar no ora apelado uma situação objectiva de confiança de que jamais viria a ser invocada a nulidade ora em equação. Isto porque, como decorre do que alegou na petição da oposição, e apesar do regime de bens que vigorava, ela e o seu então ainda cônjuge, o ora apelado, sempre agiram ao longo dos processos como se fossem casados sob um regime de comunhão de bens, pois no processo de divórcio (que, como dissemos, correu termos em Conservatória do Registo Civil) juntaram uma relação de bens comuns do casal e ao longo do processo de inventário (instaurado, como se disse, pelo ora apelado) a apelante, depois de citada e até ao momento em que outorgou a dita transacção (na conferência de interessados) continuou a aceitar que havia bens comuns a partilhar já que não invocou qualquer nulidade relacionada com a não observância do regime de bens que vigorou no seu casamento, tendo culminado a sua atitude processual com a outorga daquela transacção.
Em segundo lugar, a actuação do aqui apelado, ao outorgar a dita transacção e ao partilhar os bens que a ambos pertenciam com a apelante, aceitando que esta ficasse com a sua quota preenchida em excesso e recebendo ele, dela, tornas em dinheiro, revela, objectivamente, boa fé da sua parte (que a apelante não pôs em causa na oposição), compreensível pela confiança nele gerada de que o não acatamento das consequências do regime de bens que efectivamente vigorou no casamento não seria entrave ao acordado e não viria a ser invocado pela apelante.
Finalmente, porque o comportamento desta última posterior à transacção judicial é objectivamente contraditório (incompatível) com toda a descrita actuação e com a invocação da referida nulidade nos presentes autos, não tanto por não ter recorrido da sentença homologatória com o fundamento que ora invoca, mas principalmente porque só veio fazê-lo mais de um ano depois da indicada transacção e quando se viu confrontada com a penhora do seu salário, requerida pelo ora apelado na petição executiva.
Daí que, como começámos por dizer na abordagem a esta questão do abuso de direito, também por aqui a oposição teria que improceder.

Bem andou, pois, a decisão recorrida em ter julgado improcedente a oposição e ordenado o prosseguimento da execução (embora devesse tê-lo feito em momento anterior e mais adequado), havendo, consequentemente, que a confirmar e julgar improcedente a apelação.
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Sumário do que fica enunciado (art. 713º nº 7 do CPC):
● Ocorre erro na forma de processo quando é indevidamente instaurado um processo de inventário (subsequente ao decretamento de divórcio) e o que se impunha era a instauração de uma acção de divisão de coisa comum, para pôr termo à indivisão decorrente da compropriedade de diversos bens (móveis e imóveis).
● Decorridos os prazos de arguição ou de conhecimento oficioso desse vício, o mesmo considera-se sanado e a transacção outorgada pelas partes na respectiva conferência de interessados é válida (enquanto acto que põe termo à indivisão dos bens e procede à respectiva adjudicação), como válida é a sentença que a homologa.
● Uma tal sentença pode servir de título executivo a execução em que um dos outorgantes demanda o outro por este não lhe ter pago a quantia de que ali (na transacção) se confessou devedor, a título de tornas.
● A tais transacção e sentença homologatória não é oponível o fundamento previsto na al. h) do nº 1 do art. 814º do CPC, até porque, em último caso, a sua invocação traduzirá um manifesto abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium».
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V. Decisão:

Em conformidade com o exposto, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar improcedente a apelação e confirmar, embora com diferente argumentação, a decisão recorrida.
2º) Condenar a apelante nas custas.
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Porto, 2011/03/15
Manuel Pinto dos Santos
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Maria de Jesus Pereira