Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA | ||
| Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL CONCESSIONÁRIA DE ESTACIONAMENTO TAXA DE ESTACIONAMENTO | ||
| Nº do Documento: | RP20250210126592/24.4YIPRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 02/10/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Independentemente da configuração ou natureza jurídica dada os contratos ou acordos tácitos estabelecidos entre utentes dos estacionamentos concessionados, a concessionária, tal como esses utentes, estão submetidos ao Regulamento Municipal que disciplina aqueles estacionamentos. II – Assim, pretendendo a concessionária cobrar judicialmente as taxas de estacionamento que o utente deixou de pagar, compete materialmente aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação dessa pretensão, como decorre do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF. (da responsabilidade do relator) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 126592/24.4YIPRT.P1
Relator – José Eusébio Almeida Adjuntos – José Nuno Duarte e Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Os subscritores acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório Na presente ação (iniciada como procedimento injuntivo[1]), intentada por A..., SA contra AA, a requerida deduziu Oposição, invocando, no que ora importa, a incompetência material do tribunal recorrido.
Conhecendo da referida exceção da incompetência material do tribunal, foi proferida, a 20.11.24, a seguinte decisão, de que ora se recorre: “Nos moldes em que a autora desenha a ação resulta que pretende da ré [a] contraprestação devida pela utilização de múltiplos estacionamentos em parqueamentos de automóveis, delimitados e perfeitamente assinalados, cuja exploração está adjudicada à autora pela Câmara Municipal de Matosinhos por via de um contrato de concessão celebrado entre a autora e a edilidade. Basta, portanto, ler a petição inicial para perceber que, nos termos do n.º 1 do artigo 590.º, do Código de Processo Civil, os autos têm questão que, em sede liminar, se impõe apreciar de imediato: a da incompetência material deste Tribunal, tendo em conta a causa de pedir que a autora invoca. Apreciando e decidindo. A quantia peticionada respeita, segundo alega a autora, à utilização pela ré de espaço de estacionamento, sendo ademais certo que a exploração e concomitante cobrança pela autora, respeitando a domínio público, é feito ao abrigo do disposto de um contrato de concessão celebrado com a edilidade e as tarifas cobradas ao utente é definido por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 – II Serie (com sucessivas alterações). Donde a cobrança de taxas pelo estacionamento dos veículos na via pública e ao proceder à fiscalização do cumprimento das regras de estacionamento fixadas no regulamento municipal, a autora enquanto concessionária está a agir no uso de poderes de autoridade em que foi investida através dos contratos de concessão, a fim de prosseguir, no lugar da autarquia, um fim de interesse público e que é o de facultar maior disponibilidade para o estacionamento e fluidez de circulação rodoviária. Assim, e seguindo-se, passim, a posição adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.2010 – disponível em dgsi –, sendo a autora “concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, atua, nessa qualidade, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados”, pelo que os “contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina aqueles estacionamentos, e só por isso tem a autora direito a cobrar as taxas de utilização fixadas no dito diploma”. Vale por dizer que “contendo tal Regulamento normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução de tais contratos cai no âmbito do disposto no art. 4.º, al. f), do ETAF”, ou seja, a quantia aqui peticionada insere-se na economia de uma relação jurídica com este desenho e, em consequência, perfila-se como uma relação jurídico-administrativa. Em consequência, impõe-se declarar a incompetência, em razão da matéria, deste Juízo Local Cível para o julgamento da presente acção, o que ora se faz”.
II – Do Recurso Inconformada com a decisão transcrita, a autora veio apelar. Pretende que a “sentença recorrida [seja] substituída por outra, julgando competente o Juízo Local Cível de Matosinhos [e se] ordene o prosseguimento dos autos”. Para tanto, conclui: A - Vem o recurso apresentado contra o despacho que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Matosinhos para cobrança dos créditos da autora. B - No âmbito da sua atividade, a autora celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina. C - No seguimento deste contrato de concessão, adquiriu e instalou em vários locais da cidade onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático. D - Enquanto utilizadora do veículo ..-..-GD, a ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a autora explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de 1120,40€, que recusa pagar. E - Para cobrança deste valor, a recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal. F - A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária. G - As ações intentadas pela autora contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperi, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada. H - A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do tribunal, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato. I - A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações. J - O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança. K - Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição. L - Proposta tácita temporária da autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela autora, amplamente publicitados no local. M - Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é a existência de uma relação jurídica administrativa. N - Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração». O - O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação. P - Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente. Q - A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade. R - Nos termos do disposto no artigo 2.º do DL 146/2014 de 9 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas. S - Os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos. T - Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização. U - Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária. V - A A..., ao contrário o que vem referido na sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados. W - Que poderes de autoridade? Se a recorrente estivesse investida em poderes de autoridade, após audição prévia, executaria o património dos devedores. Mas não é assim! X - Entender, como pretende o tribunal que os tribunais competentes são os administrativos e que, de entre estes, por se tratar de putativas Taxas de utilização, seriam os fiscais os tribunais competentes, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos da cidade de Matosinhos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos, que ficariam na discricionariedade, de muito improvável realização, dos poderes públicos. Y - Fundamental é que a recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes. Z - Por tudo o que se alegou, mal andou o tribunal ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96, al. a), 278, n.º1 al. a), 577 al. a) e 578 do CPC, quer o artigo 4.º, n.º1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40 da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
Não houve resposta ao recurso.
Ponderando a natureza da (única) questão a apreciar, e não havendo divergência quanto aos factos relevantes a considerar, dispensaram-se os Vistos e nada vemos que obste à apreciação do mérito do recurso. Atentas as conclusões da apelante, o objeto do recurso restringe-se a saber se, como defende a recorrente, o tribunal recorrido é materialmente competente para a apreciação da causa.
III – Fundamentação III.I – Fundamentação de facto As transcrições (que fizemos) do Requerimento de Injunção, do despacho apelado e das conclusões da apelante, tudo conforme relatório que antecede, mostram-se bastantes ao conhecimento do mérito da apelação.
III – Fundamentação de Direito A questão que importa apreciar não é nova nem recente e, tanto quanto se pôde verificar, tem recebido resposta uniforme dos tribunais superiores. Vejamos.
No acórdão de 20.01.2011, do Tribunal da Relação de Lisboa [Processo n.º 918/09.5TBP DL.L1-8, Relator, Desembargador António Valente, dgsi] deixou-se sumariado: “Celebrado um contrato de concessão entre a Câmara Municipal e a autora, contrato esse de direito público, através do qual o município, munido de jus imperii, adjudicou a esta, a concessão, exploração, gestão e manutenção dos estacionamentos de duração limitada (...) é da competência dos tribunais administrativos a apreciação da ação de responsabilidade civil contratual, relativa ao contrato celebrado entre a concessionária e o réu que utilizou o estacionamento e não efetuou o pagamento da taxa de utilização”. Do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, a 13.07.2010 [Processo n.º 825/09.1TBPDL.L1-8, Relatora, Desembargadora Carla Mendes, dgsi] havia-se sumariado: “1 – A competência do tribunal afere-se essencialmente pela causa de pedir e pelo pedido. 2 – Incumbe aos tribunais administrativos o julgamento de ações que tenham por objeto todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com exceção dos que o legislador ordinário atribua expressamente a outra jurisdição. 3 - Esta competência fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente. 4 – Celebrado um contrato de concessão entre a Câmara Municipal e a autora, contrato esse de direito público, através do qual o município, munido de jus imperii, adjudicou a esta, a concessão, exploração, gestão e manutenção dos estacionamentos de duração limitada na cidade – deliberação camarária/atos de gestão corrente é da competência dos tribunais administrativos a apreciação da ação de responsabilidade civil contratual, relativa ao contrato celebrado entre a concessionária e o réu que utilizou o estacionamento e não efetuou o pagamento da taxa de utilização”. Ainda do Tribunal da Relação de Lisboa [acórdão de 22.04.2010, Processo n.º 1950/09.4TBPDL.L1-2, Relator, Desembargador Ezaguy Martins, dgsi] podemos ler o seguinte sumário: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer de ação intentada por empresa a quem o Município adjudicou a concessão da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada, para haver de particular utilizador daquelas a importância de tarifas devidas pela falta de pagamento da taxa correspondente à utilização da zona de estacionamento”.
O Supremo Tribunal Administrativo também já apreciou a questão. No acórdão de 25.10.2017 [Processo n.º 0167/17, Relator, Conselheiro Aragão Seia, dgsi] deixou-se sumariado: “O requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa acção cujo conhecimento é da competência dos TAFs”.
No muito recente acórdão, proferido no Tribunal da Relação de Évora [acórdão de 16.12.2024[2], Processo n.º 42536/24.7YIPRT.E1, Relatora, Desembargadora Maria João Sousa e Faro] em recurso onde foi apelante a A..., SA, deixou-se dito o que, com síntese, nos permitimos transcrever: “(...) a competência em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe a ação, definida esta pela causa de pedir, pelo pedido, pela natureza das partes, ou seja em função dos termos em que o autor estrutura a pretensão que quer ver reconhecida. No caso, a recorrente intentou procedimento de injunção tendente ao pagamento pela recorrida de determinadas quantias respeitantes ao estacionamento do seu veículo em zonas em que se mostra concessionada a exploração do estacionamento tarifado de superfície pela C.M Local 1. à recorrente. Não há quaisquer dúvidas que a Câmara Municipal transferiu, através do contrato de concessão, a atividade pública, por si titulada, melhor, o “direito de gerir essa atividade no seu próprio nome”. A responsabilidade para definir o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos é de natureza pública, constituindo atribuição das Câmaras (...) enquanto concessionária da exploração do estacionamento tarifado de superfície a recorrente prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, o que nos reconduz à conclusão de que estamos em presença de uma relação jurídica administrativa /tributária. Aliás, o STA tem repetidamente afirmado (cfr. entre outros, Acórdão de 25-10-2017 (Aragão Seia ) que “o requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa acção cujo conhecimento é da competência dos TAFs.” (...) Trata-se de matéria que cai na previsão da alínea o) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, cabendo, por isso, na esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais. Em suma: Não há qualquer motivo para alterar a jurisprudência do Tribunal de Conflitos e que tem sido sufragada pela do STA”.
Neste Tribunal da Relação do Porto, igualmente no final do ano de 2024, a 11 de dezembro, foi prolatado acórdão no mesmo sentido [Processo n.º 79534/24.2YIPRT.P1, Relatora, Desembargadora Isabel Peixoto Pereira, dgsi] e com o seguinte sumário: “Compete à jurisdição administrativa conhecer de uma ação para pagamento/ condenação em quantia pecuniária, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação do réu no pagamento de quantias devidas pela utilização desses parques, a saber, taxas”. Aí se deixou escrito o que, com síntese, transcrevemos: “(...) a exploração e concomitante cobrança pela A., respeitando a domínio público, é feita ao abrigo do disposto no contrato de concessão celebrado com a edilidade, sendo que bem assim as tarifas cobradas aos utentes são definidas por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 (...) nos termos do Regulamento citado, os meios coercivos e as interdições, como claras manifestações do poder do Estado, estabelecidos no quadro do ordenamento/regime do estacionamento de duração limitada, em cujo contexto a Apelante intervém e de cujo quadro nunca enjeitou aproveitar-se, como se vê, claramente, por exemplo do valor reclamado. (...) Conclui-se, pois, que o objeto da ação se origina no quadro de uma relação jurídica materialmente administrativa, sem que a atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada convole a relação para o domínio jus privatístico, já que o regime que regula os contornos da atividade cedida se submetem, manifestamente, a um estatuto substantivo de direito público. (...) em causa a concessão pelo Município de Matosinhos à A., para exploração, gestão e manutenção de parques de estacionamento naquela cidade, nos termos previstos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada já citado… Ora, por via da concessão, ficou a A. obrigada, perante a concedente, a assegurar o funcionamento dos referidos parques de estacionamento em conformidade com o referido Regulamento, cabendo-lhe, em consequência, exigir o pagamento das “taxas”, nele previstas (cfr. artigo 4º do Regulamento) e fiscalizar essa utilização pelos interessados, como naquele igualmente se prevê (16º, última parte do regulamento), sendo certo que vem reclamado o valor integrante da taxa sancionatória prevista no artigo 19º do mesmo Regulamento. Assim, é de concluir que, por via da concessão, a recorrente foi investida de um poder público, para a realização de um interesse público, legalmente definido como sendo o de solucionar o estacionamento no perímetro urbano da cidade de Matosinhos”.
Ainda mais recentemente (20.01.2025), neste Tribunal da Relação do Porto, e nesta mesma Secção, foi proferida Decisão Singular do Relator (Desembargador Miguel Baldaia de Morais), em recurso em que apela a também aqui recorrente. Permitimo-nos citar, com síntese, o que ali ficou dito: “(...) para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais, deve olhar-se aos termos em que a ação foi posta – seja quanto aos seus elementos objetivos seja quanto aos seus elementos subjetivos. (...) a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais de outras ordens jurisdicionais e se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a ação em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial. Daí que a afirmação da incompetência em razão da matéria do tribunal comum implique necessariamente a identificação de um normativo que atribua o conhecimento da causa em apreço a outra ordem jurisdicional. (...) o conceito de relação jurídica administrativa assume-se como decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, conceito esse que a doutrina tem procurado densificar, defendendo-se maioritariamente que o mesmo deverá ser entendido no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, regulada por normas de Direito Administrativo, e que serão aquelas em que “pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. No entanto, para além da cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos, o ETAF contém no n.º 1 do seu art. 4.º um elenco de matérias que, em concreto, se consideram ser da competência dos Tribunais Administrativos, sendo que quando estejam em causa ações relativas a contratos, como é o caso, releva especialmente a norma inserta na al. e). (...) In casu, a decisão recorrida afirmou a competência dos tribunais de jurisdição administrativa para a apreciação do presente pleito, convocando a regra plasmada na mencionada al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, na qual se dispõe que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes». (...) A alínea e) enuncia, assim, três critérios: - contratos de objeto passível de ato administrativo; - contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam aspetos específicos do respetivo regime substantivo; - contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público. (...) independentemente da natureza jurídica que assumam os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes (como é o caso da ré) estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos, e só por isso tem a demandante direito a cobrar as taxas de utilização fixadas nesse instrumento normativo (...) Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do contrato de concessão a apelante se vinculou expressamente ao cumprimento do Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua atuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respetivas regras e condições”.
Tendo em conta o conjunto de citações que antecedem e, em especial, a extensa citação da decisão por último referida, a similitude da questão a apreciar e o sentido unívoco da jurisprudência fazem com que nos dispensemos de repisar argumentos em segunda mão.
Acompanhando esse sentido da jurisprudência, parece-nos claro, também a nós, que entre o Município e a recorrente foi celebrado um contrato de concessão, concretamente de concessão de exploração do domínio público (artigo 408 do Código dos Contratos Públicos). Está em causa, como refere Diogo Freitas do Amaral [Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª Edição, com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal, Almedina, 2016, pág. 468] “um bem dominial, isto é, um bem que, por motivo da sua afetação à utilidade geral, ao interesse público, está submetido a um regime de proteção que exorbita o direito comum. Este é gerido pelo concessionário, em vez de o ser pela Administração; e o primeiro não é pago pela segunda: paga-se pela cobrança de taxas ao público – se se tratar de um bem no uso direto do público (é o caso, por ex., da concessão de exploração de um porto de recreio ou de uma doca) – ou pela exploração económica do bem – nos casos em que o bem não é usado diretamente pelo público (concessão de uma pedreira, de uma mina, de uma nascente de águas mineromedicinais, etc.).
Neste enquadramento, a competência material dos tribunais administrativos e fiscais decorre diretamente do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, alínea esta que, com as alterações introduzidas ao Estatuto na revisão/reforma de 2015, passou a compreender todo o contencioso dos contratos, “suprimindo-se, assim, aquilo que era o regime que se desenvolvia ao longo das als. b), e) e f)[3] do n.º 1 do artigo 04.º do ETAF/04 [Carlos Carvalho, “Alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, in Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, Coordenadores, Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão, 2.ª Edição, AAFDL, 2016, págs. 159 e ss., a pág. 167].
Sempre se acrescente, sem com isso se desdizer o antes dito, que, dúvidas houvesse quanto ao enquadramento da questão que apreciamos na citada alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, sempre haveria que subsumi-la na alínea o) do mesmo preceito, por estarem em causa “relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Por tudo, há que confirmar a decisão do tribunal recorrido, ou seja, o recurso mostra-se improcedente.
Atento o seu decaimento, as custas do presente recurso são devidas pela apelante – artigo 527, n.ºs 1 e 2 do CPC.
IV - Dispositivo Pelos fundamentos antes expostos, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar a presente apelação improcedente, e, em conformidade, confirma-se integralmente a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente.
Porto, 10.02.2025 José Eusébio Almeida José Nuno Duarte Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
_____________________________ [1] Cujo Requerimento de Injunção ora se sintetiza: “1. A Requerente é uma sociedade que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel. 2.No âmbito da referida exploração, adquiriu e colocou, em vários locais da cidade de MATOSINHOS máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização. 3.A Requerida é proprietária do veículo com a matrícula ..-..-GD. 4. Enquanto utilizadora do referido veículo, estacionou, nos vários parques de estacionamento que a Requerente explora, sem se dignar proceder ao pagamento do tempo de utilização. 5 .Assim sucedeu, nomeadamente nos seguintes locais, que se discriminam: (...) 6. O total do valor em dívida ascende a € 1.120,40 que a Requerida, apesar das inúmeras insistências da Requerente, se vem recusando a pagar. 7.Os juros de mora vencidos, somam (...) 8. Deste modo, tem a Requerente o direito de receber da Requerida o crédito no montante global de € 1.151,57 e ainda o direito a executar o património da devedora nos termos do disposto no art. 817 do Código Civil”. [2] Referimos a data que resulta da publicação na dgsi, ainda que o acórdão termine com a referência a “4.XI.2024” e refira (em texto) tratar-se de decisão singular, manifestos lapsos que nada alteraram ao sentido do decidido e à citação que dele fazemos. [3] Daí a referência, pensamos, a esta alínea (f) na decisão recorrida. |