Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
377/25.5T9VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MARTINS
Descritores: PROCESSO TUTELAR EDUCATIVO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA FASE JURISDICIONAL
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RP20251212377/25.5T9VCD.P1
Data do Acordão: 12/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Na fase jurisdicional do processo tutelar educativo qualquer pessoa, incluindo o ofendido, poderá ter legitimidade para recorrer quando a decisão judicial atinge algum direito relevante a defender.
II - Com a entrada no tribunal do requerimento para abertura da fase jurisdicional, incumbe ao juiz, em primeiro lugar, verificar se existem questões prévias que obstem ao conhecimento da causa, designadamente, se tal requerimento obedece aos requisitos enunciados no artigo 90º da LTE.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 377/25.5T9VCD.P1

Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de … - ...






Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. Por sentença proferida, em 23.09.2025, decidiu-se arquivar o processo tutelar educativo relativo aos factos imputados aos menores AA, BB e CC.
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I.1. Recurso da decisão

DD, representante legal de EE, interpôs recurso da sentença, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (que se transcrevem integralmente):
1. A decisão recorrida padece de vícios de facto e de direito, violando o disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e 379.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP), por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade material, nomeadamente quanto à recolha e análise de registos disciplinares dos menores arguidos, bem como não foram realizadas quaisquer entrevistas, nem existe relatório da DGRS, em relação a dois dos agressores.
2. Tais omissões comprometem a fundamentação da decisão de arquivamento e constitui nulidade, nos termos legais, por se ter dado como provado um facto essencial — a inexistência de antecedentes disciplinares — sem suporte probatório.
3. A sentença recorrida incorre ainda no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, aplicável ex vi artigo 128.º da Lei Tutelar Educativa (LTE), por contradição entre a matéria de facto e a decisão, carecendo de reapreciação e renovação de prova.
4. Verifica-se igualmente violação dos princípios da verdade material (artigo 340.º do CPP) e da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa), pilares fundamentais de um Estado de Direito democrático.
5. A decisão recorrida (apelando ao despacho de arquivamento do Ministério Público) sustenta o facto criminoso como “tendo o episódio em causa sido aparentemente pontual e isolado”, e, na sentença recorrida, “Resultando evidente que estão em causa factos pontuais, isolados e não repetidos pelos menores”, dando, de outra sorte, como indiciado que estes três agressores perpetuaram o episódio durante lapso temporal não apurado, tirando fotografia com uma cenoura e “gozando” com a VÍTIMA deste hediondo crime (factos indiciados 7. e 8.).
6. Ou seja, objectivamente, o episódio não só não foi isolado, como perpetuado pelos menores e demais alunos que, de forma desprezível, gozaram durante mais de dois anos com a VÍTIMA, relembrando-lhe, como se necessário fosse, o crime que sobre ele foi praticado e a humilhação que achavam por bem eternizar!
7. Neste segmento é ostensiva, e resulta do texto da decisão recorrida, a contradição insanável entre os factos indiciados e a decisão proferida, cabível na previsão do artg. 410.º nº 2 al. b) do CPP, que importa expurgar da decisão.
8. A decisão recorrida desconsidera a posição processual e os direitos da vítima, em afronta ao artigo 67.º-A do CPP e ao Estatuto da Vítima (Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro), relegando o ofendido a um papel meramente acessório, em contradição com o espírito e a evolução legislativa de proteção da vítima.
9. Ao privilegiar em exclusivo a tutela dos menores infractores, a decisão esquece a necessária ponderação entre a finalidade educativa da intervenção tutelar e a afirmação dos valores fundamentais da convivência social, conforme preceitua o artigo 2.º da LTE.
10. Assim, deve o processo ser reenviado ao tribunal a quo, nos termos dos artigos 426.º e 426.º-A do CPP, para produção de prova adicional, designadamente quanto aos antecedentes disciplinares e à efetiva reintegração social dos menores arguidos, o que impede a conclusão extraída a quo por inexistência de suporte probatório.
11. Apenas dessa forma se assegurará a reposição da legalidade, a concretização do princípio da verdade material e a realização de uma justiça equilibrada, que salvaguarde, em igual medida, os direitos do menor infractor e da vítima.”
Pugna pela revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos nos termos constantes da LTE.
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I.2. Respostas ao recurso

I.2.1.O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição integral):
“1. A decisão do Douto Tribunal teve subjacente o requerimento por parte do Ministério Público de arquivamento do processo por entender desnecessária a aplicação de medida tutelar uma vez que, decorridos mais de dois anos da sua ocorrência e ponderando as personalidades e percursos de vida dos jovens AA, BB e CC, não se vislumbra que na atualidade se mostre necessária a intervenção da justiça tutelar, para além desta fase de inquérito.
2. A finalidade da intervenção tutelar é a educação do menor para o direito e não a retribuição pelo crime.
3. “Não há lugar aplicação de medida tutelar sem que se conclua, em concreto, pela necessidade de corrigir a personalidade do menor no plano do dever-ser jurídico manifestada na prática do facto”, para além de que “a intervenção tutelar educativa só deve ocorrer quando a necessidade de correção da personalidade subsistir no momento da aplicação da medida”.
4. No âmbito do inquérito tutelar educativo foi produzida a prova bastante e necessária para que o Ministério Público tivesse pugnado pelo arquivamento do processo tutelar educativo
5. Da prova produzida em sede de inquérito tutelar educativo resulta evidente que os três jovens foram, e são, capazes de refletir sobre os seus atos e já o fizeram em mais do que uma ocasião, pelo menos o AA e o CC, formalizando pedidos de desculpas pessoalmente ao EE.
6. A factualidade descrita nos autos ocorreu há mais de dois anos e quando os jovens tinham apenas 13 ou 14 anos de idade, assumindo que foi uma brincadeira que foi longe demais e que, à data, nenhum deles estava consciente de que os factos pudessem vir a ter consequências tão graves para o EE.
7. O percurso de desenvolvimento dos três jovens nestes 2 últimos anos pautou-se por comportamentos conforme ao direito, isto porque não lhe são conhecidos registos disciplinares, nem aplicação de medidas tutelares educativas, posteriores aos factos, o que faz antever que pautaram o seu comportamento de uma forma ajustada, não havendo indicadores associados à possibilidade de qualquer um deles desenvolver comportamentos sexuais impróprios ou abusivos.
8. Daqui resulta evidente que o comportamento dos jovens foi um ato isolado factos pontuais, isolados e não repetidos pelos menores.
9. Importa salientar que as consequências sofridas pelo jovem EE decorreram não apenas do ato em si mesmo, mas sobretudo da difusão da sua ocorrência por vários outros alunos da escola e pelo facto de ter sido alvo de comentários depreciativos e jocosos ao longo do tempo.
10. Nenhuma prova foi carreada para o processo que os jovens tenham tido qualquer intervenção na divulgação de vídeos e de fotografias do evento ocorrido, sendo que no balneário estavam outros alunos da turma.
11. Em face de todas as considerações acima explanadas, afigura-se-nos que a douta sentença que determinou o arquivamento do processo não padece de qualquer vício de facto e de direito, pelo que não violou o disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e 379.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP), nem qualquer outra norma jurídica.”
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I.2.2. CC, menor, representado pelos seus progenitores, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluiu nos seguintes termos (transcrição integral):
“I. Em face do expendido, impõe-se concluir, com a necessária gravidade e rigor jurídico, que o recurso interposto enferma de insanável improcedência, porquanto a decisão recorrida se encontra em irrepreensível consonância com a letra e o espírito da Lei Tutelar Educativa, com a matriz axiológica da Constituição da República Portuguesa e com a doutrina e jurisprudência firmadas sobre a matéria.
II. O Recorrente, olvidando a teleologia própria do processo tutelar educativo, confunde-o com um processo penal de índole retributiva, pretendendo fazer dele um instrumento de satisfação punitiva. Todavia, o processo tutelar educativo, no desenho normativo do legislador de 1999, não visa punir, mas educar; não procura censurar o passado, mas orientar o futuro do menor infractor.
III. A intervenção tutelar funda-se num paradigma pedagógico e não sancionatório, sendo que o processo corre em benefício do menor e não contra ele, subordinando-se integralmente à sua reeducação e reintegração social, à luz do artigo 1.º da Lei Tutelar Educativa.
IV. A primeira e decisiva falha do recurso radica na ausência de legitimidade processual do recorrente. Com efeito, nem o texto da Lei Tutelar Educativa, nem a sua interpretação sistemática e teleológica, consentem que o ofendido — ou quem por ele actue — assuma a qualidade de sujeito processual com poderes recursórios.
V. O artigo 123.º do diploma, ao definir taxativamente quem detém legitimidade para recorrer, exclui o ofendido, reservando a alínea c) a terceiros titulares de direitos próprios e imediatamente afectados pela decisão.
VI. Não se vislumbra, porém, qualquer direito subjectivo do recorrente atingido de modo directo pela decisão de arquivamento, a qual apenas reconheceu a inexistência de necessidade de intervenção educativa do Estado.
VII. Não procede, pois, a invocação da alínea c) do artigo 123.º da LTE, cuja ratio se prende com a tutela de direitos jurídicos próprios — e não com o mero interesse moral ou emocional na censura da conduta de um menor/Recorrido.
VIII. A interpretação extensiva preconizada pelo Recorrente subverteria o carácter fechado e auto-suficiente do regime tutelar educativo, cuja legitimidade recursória não comporta ampliação.
IX. Acresce que, ainda que se admitisse legitimidade formal, sempre faltaria a legitimidade material, pois o recorrente não actua em representação exclusiva do menor ofendido, inexistindo demonstração do exercício singular das responsabilidades parentais ou do consentimento do outro progenitor, em violação do artigo 16.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 128.º da Lei Tutelar Educativa.
X. Por outro lado, carece de qualquer fundamento a alegada nulidade derivada da ausência de relatório social.
XI. O artigo 87.º da LTE é cristalino ao conferir ao Ministério Público a faculdade — e não o dever absoluto — de determinar a realização de inquérito social, 'logo que se justifique'.
XII. A lei não impõe a elaboração do relatório em todos os casos, mas apenas quando o Ministério Público careça de elementos suficientes para avaliar a necessidade de intervenção tutelar. No caso em apreço, o Ministério Público, com prudente critério, considerou bastantes os dados recolhidos e, em consequência, dispensou a realização do relatório, sem que tal decisão enferme de ilegalidade ou nulidade.
XIII. A decisão recorrida revela, ademais, um exercício judicioso e ponderado da função jurisdicional. O Tribunal a quo, avaliando o percurso do menor, a sua integração familiar, escolar e social, bem como a sua interiorização dos valores normativos, concluiu, com inteira correcção, que não se mostrava necessária qualquer medida tutelar. Tal juízo encontra respaldo nos princípios da actualidade, da proporcionalidade e da necessidade, previstos nos artigos 2.º, 78.º, 93.º e 120.º da Lei Tutelar Educativa, que delimitam o âmbito legítimo da intervenção educativa.
XIV. A medida tutelar não constitui um direito do ofendido, mas um dever do Estado, a exercer apenas quando se revele imprescindível à educação do menor para o direito.
XV. A decisão de arquivamento não só respeita a coerência interna do sistema, como traduz uma aplicação exemplar do princípio da intervenção mínima e da finalidade educativa.
XVI. Demonstra-se que o Recorrido evidencia comportamento responsável, estabilidade emocional e plena compreensão do desvalor da sua conduta, inexistindo qualquer indício de necessidade de intervenção institucional.
XVII. A manutenção do arquivamento é, pois, a única solução consentânea com a lei e com a razão jurídica
XVIII. Em suma, o recurso em apreço carece de legitimidade, de interesse em agir e de fundamento jurídico. A decisão recorrida não padece de vício, ilegalidade ou omissão, antes concretiza o espírito da Lei Tutelar Educativa e os princípios constitucionais da proporcionalidade e da protecção da criança e do jovem.
XIX. Assim, impõe-se a sua integral manutenção, com a consequente negação de provimento ao recurso, por ser de inteira justiça.”
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I.2.3.FF e marido GG, representantes legais do menor BB, na resposta ao recurso, pronunciaram-se pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição integral):
1. Verifica-se que quer o despacho de arquivamento quer a sentença que o confirmou, e esta é que é para aqui relevante, estão conformes com a lei (LTE) e com a sua finalidade educativa, respeitando os princípios da necessidade, proporcionalidade e atualidade.
2. Isto porque quer o Ministério Público quer a Juíza reconheceram que o facto ocorreu; que os menores envolvidos assumiram responsabilidade, refletiram sobre o episódio e que, três anos volvidos, não há indícios de repetição ou de trajetória delinquente.
3. O ofendido esquece-se que quem teve a ideia que desencadeou o problema foi…ele próprio, só que, na dinâmica da situação, acabou por se “virar o feitiço contra o feiticeiro”…
4. É falso que logo após o facto “gozaram durante mais de dois anos” com a vítima, já que esta continuou a relacionar-se com esses mesmos colegas - excepto o recorrente porque, entretanto, mudou de estabelecimento de ensino.
5. O mesmo esteve presente em aniversários e festas com os mesmos.
6. Na verdade, a justiça tutelar educa, não vinga.
7. As alegações do recorrente apenas querem transformar um processo educativo numa via de punição ou de prolongamento de sofrimento da vítima, o que contraria a natureza da LTE.
8. Não ouve violação de qualquer normativo do Código Penal, Código de Processo Penal e muito menos da Lei Tutelar Educativa. Aliás, solução diversa para o caso é que violaria o estatuído nos arts 2º e 87º da LTE.”
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I.3. Parecer do Ministério Público

No sentido da rejeição do requerimento de abertura da fase jurisdicional por falta de adequada fundamentação e nessa medida, por inobservância dos requisitos exigidos e consequente devolução do processo ao MºPº para o corrigir, realizando as necessárias diligências para o efeito e que não podem ser levadas a cabo na fase jurisdicional.
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I.4. Resposta ao parecer

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP), tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público
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1.5. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. QUESTÕES PRÉVIAS

II.1. Da legitimidade processual do recorrente
§1. CC, menor, representado pelos seus progenitores, na sua resposta ao recurso invocou a falta de legitimidade processual do recorrente.
Para tal argumentou, em síntese que, nem o texto da Lei Tutelar Educativa, nem a sua interpretação sistemática e teleológica, consentem que o ofendido — ou quem por ele actue — assuma a qualidade de sujeito processual com poderes recursórios.
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§2. O artigo 123º da Lei 166/99, de 14.09 (Lei Tutelar Educativa, doravante LTE), na redacção introduzida pela Lei 4/2015, de 15.01, dispõe (na parte que aqui importa):
Têm legitimidade para recorrer:
(…) c) Qualquer pessoa que tiver a defender direito afetado pela decisão, limitada à parte em que a decisão recorrida afete tal direito.”
Daqui decorre que qualquer pessoa (incluindo o ofendido) poderá ter legitimidade para recorrer nas situações processuais em que é afectado pela decisão, ou seja, quando a decisão atinge algum direito relevante a defender.
É precisamente o que acontece no caso dos autos.
No presente recurso, estando em causa uma decisão que pôs termo ao processo tutelar educativo – arquivamento do processo tutelar educativo relativo aos factos imputados aos menores AA, BB e CC –, tal decisão afecta os interesses da vítima, que sente na aplicação de medida tutelar um efeito auto-protetor, na medida em que um futuro acompanhamento dos menores-agressores reduz a probabilidade de eventuais outros contactos abusivos e reforça o seu sentimento de segurança, contribuindo para a sua estabilidade emocional. Com efeito, a recuperação da estabilidade psíquica e emocional da vítima também passará pela perceção da existência de mecanismos que actuam sobre os agressores pelo reconhecimento institucional da gravidade dos factos (o que lhe permite ver o seu sofrimento validado). Estes interesses não são de punição, mas de função social e comunitária relevante para a recuperação plena da estabilidade da vítima. Em suma, a vítima tem interesse pessoal, direto e juridicamente relevante em contestar a decisão recorrida, sendo que o artigo transcrito também não afasta a sua legitimidade formal.
Nestes termos, o recorrente tem, pois, legitimidade para interpor recurso da decisão aqui posta em causa.
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II.2. Da representação legal do recorrente

§1. CC, menor, representado pelos seus progenitores, na sua resposta ao recurso sustentou que o recorrente padece de legitimidade material, porquanto, não actua em representação exclusiva do menor ofendido, inexistindo demonstração do exercício singular das responsabilidades parentais ou do consentimento do outro progenitor.
Invoca a violação do artigo 16.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 128.º da LTE.
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§2. No caso dos autos, qualquer um dos progenitores podia, valida e eficazmente, apresentar recurso em nome do ofendido menor sem estar acompanhado pelo outro progenitor.
Senão vejamos.
A incapacidade de exercício dos menores é, em regra, suprida pelo regime da representação, sendo o poder paternal (responsabilidades parentais – cfr. artigo 1877º do Cód. Civil) o meio principal e normal de suprimento de tal incapacidade (cfr. artigo 124º do Cód. Civil).
Embora não se ignore que o exercício do poder paternal (as responsabilidades parentais) compete, em regra, a ambos os progenitores, sendo dirimido qualquer desacordo pelo tribunal (cfr. artigo 1901º do Código Civil), no caso em apreço, qualquer um dos pais podia praticar o acto aqui em causa (que consiste na interposição de recurso em representação do ofendido menor) atento o disposto no artigo 1902º, n.º 1 do Código Civil que preceitua que “Se um dos pais praticar acto que integre o exercício do poder paternal, presume-se que age de acordo com o outro, salvo quando a lei expressamente exija o consentimento de ambos os progenitores ou se trate de acto de particular importância (…)”.
No caso vertente, não existe no processo penal (aplicável por força do disposto no artigo 128º, n.º 1 da LTE) norma equivalente ao artigo 16.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (atinente à representação de ambos os pais do menor para a propositura de acções no foro civil), não exigindo a lei processual penal que ambos os pais de um menor interponham recurso em sua representação, bastando por isso que qualquer um deles o faça em nome e no interesse do menor.
Acresce que, a interposição do presente recurso por parte de um dos progenitores em representação do ofendido menor, foi apresentado no âmbito do exercício de um poder-dever no interesse do menor, não sendo, pois, exigível que par ao efeito seja necessário o consentimento de ambos os progenitores.
Aliás, estando em causa uma situação em que se visa defender um direito do menor contra uma decisão que o afecta nos termos acima expostos, parece-nos não ser viável que esta protecção do menor possa ficar dependente do consentimento por parte de um dos progenitores.
Por todo o exposto, o recorrente está devidamente representado no presente recurso por um dos seus ascendentes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1. Objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Assim, da análise das conclusões do recorrente extraímos sequencialmente as seguintes questões:
1ª A nulidade a que alude o artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP – omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade;
2ª Os vícios decisórios aludidos no artigo 410º, n.º 2, als. a) e b) dos CPP;
3ª A violação do princípio da verdade material (artigo 340º do CPP) e da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP).
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III.2. A decisão recorrida(transcrição integral)

“Só por manifesto lapso se entende que os autos de inquérito tenham sido remetidos também à distribuição e por apenso, pois que nos mesmos se diz a final – cfr. despacho datado de 7/06 – “remeto os presentes autos à Procuradoria do MP junto do juízo de ..., para apensação ao inq. nº 377/25.5T9VC”.
Assim, notifique o Requerente para quanto a estes autos de inquérito esclarecer o que tiver por conveniente.
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Entende-se dever proferir-se decisão sobre o requerimento formulado pelo Ministério Público, ponderando a data da prática dos factos e a necessidade de definir a situação jurídico-processual destes menores no âmbito do presente processo.
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O Ministério Público veio requerer a abertura da fase jurisdicional imputando aos menores AA, do BB e do CC, relativamente a factos susceptíveis de consubstanciar a prática em autoria material de eventual prática de factos qualificados pela lei como crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
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O Ministério Público requer o arquivamento do processo por entender desnecessária a aplicação de medida tutelar uma vez que, decorridos mais de dois anos da sua ocorrência e ponderando as personalidades e percursos de vida dos jovens AA, BB e CC, não se vislumbra que na atualidade se mostre necessária a intervenção da justiça tutelar para além desta fase de inquérito.
Com efeito, os três jovens foram, e são, capazes de refletir sobre os seus atos e já o fizeram em mais do que uma ocasião. Tiveram, pelo menos o AA e o CC, já a oportunidade de pedir desculpas pessoalmente ao EE, o que fizeram. Os seus percursos não apresentam comportamentos desviantes que permitam sustentar a necessidade de, apesar do tempo decorrido, continuar a ser necessária (e até legítima) uma intervenção do Estado na sua educação. E aquela que podia ser a finalidade primordial dessa intervenção – a de consciencializa-los das consequências que atos semelhantes podem ter no futuro de um ofendido – já foi alcançada, com os três jovens a percecionarem que, não obstante o tempo decorrido, o episódio em causa marcou, talvez para sempre, a vida do EE, não apenas pelo que ocorreu, mas pela divulgação pública que acabou por ter (sendo que só foi divulgada, porque ocorreu).
Aqui chegados, impõe-se concluir que, não obstante a gravidade dos factos e das suas consequências, atendendo aos princípios que regem a justiça tutelar de menores - mormente aos princípios da necessidade e da atualidade -, neste momento os interesses educativos do já não exigem qualquer intervenção tutelar educativa. Em causa estão factos pontuais, isolados e não repetidos pelo menor, o menor pediu desculpas ao ofendido, do certificado de medidas tutelares educativas nada consta, não foram instaurados outros ITES desde a prática dos factos, o menor estar bem integrado em termos familiares, educativos e sociais.
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Cumpre apreciar e decidir: -
Estabelece o artigo 93.º, n.º 1, alínea b), da Lei Tutelar Educativa que, recebido o requerimento para abertura da fase jurisdicional, o juiz arquiva o processo quando, sendo o facto qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, lhe merecer concordância a proposta do Ministério Público no sentido de que não é necessária a aplicação de medida tutelar.
Os factos imputados aos menores são qualificados como um crime em coautoria, do crime de violação, na modalidade prevista no n.º 1, alínea b) do artigo 164.º do Código Penal (“Quem constranger outra pessoa a sobre ou praticar atos de introdução vaginal, anal ou de partes do corpo ou objetos).
As medidas tutelares educativas têm subjacente a ideia de responsabilização do jovem, mostrando-lhe que a prática de condutas que consubstanciam ilícitos criminais, porque violadoras de bens essenciais da comunidade, não são toleradas pela sociedade em que se insere, de modo a que a sua personalidade (em formação) interiorize o respeito por essas normas fundamentais.
Estas medidas visam, por isso, a educação do jovem para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (artigo 2.º, n.º 1 da Lei Tutelar Educativa).
É ponto assente que a aplicação de qualquer medida tutelar educativa tem como pressuposto a prática de facto qualificado pela lei penal como crime e a necessidade da educação do jovem para o direito ou seja, a prática por menor de idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime e a necessidade, subsistente no momento da decisão, de educação do jovem para o direito, bem como a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (artigo 2.º supra citado).
Como estão em causa jovens cuja personalidade ainda está em formação, as medidas tutelares têm uma finalidade socializadora, no sentido da interiorização pelo mesmo dos valores e das normas jurídicas, e protectora.
A sujeição de um jovem a medidas tutelares pressupõe a prática por este de factos qualificados pela lei como crime e, desta forma, a violação de deveres jurídicos fundamentais, visando assim a sua educação para o direito de forma a que a sua personalidade em formação interiorize o respeito pelas normas e valores fundamentais da sociedade em que está inserido (neste sentido, Souto Moura, A Tutela Educativa: Factores de Legitimação e Objectivos, Revista Infância e Juventude, n.º 4/2000, pgs. 37 e 38).
Resultando evidente que em causa estão factos pontuais, isolados e não repetidos pelos menores, a gravidade dos factos foi esbatida pela circunstância de os jovens terem pedido desculpas ao ofendido e terem assumido a responsabilidade pelos actos praticados emitindo um juízo crítico e de censura.
Em conformidade com o exposto, e ao abrigo das citadas disposições normativas, determino o arquivamento do presente processo tutelar educativo relativo aos factos imputados aos menores AA, do BB e do CC.
Não são devidas custas.
Notifique.”

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III.3. O despacho de arquivamento (proferido em 22.07.2025, que se transcreve integralmente)
“A.
A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ... deu conta de uma sinalização feita por uma senhora Psicóloga onde relata que um aluno do 11.º ano do Colégio ..., no Porto, numa reação emocional descontrolada terá relatado a dois colegas da mesma turma, um deles seu paciente, que quando frequentava o 9.º ano no referido colégio foi “sodomizado por quatro colegas de turma, no balneário masculino, com recurso a uma cenoura, na presença de todos os colegas de turma do sexo masculino que se encontravam no mesmo balneário”. Acrescentou a senhora Psicóloga que, segundo o aluno que acompanha e que lhe fez o relato, “todo o colégio sabe o que se passou”, sendo tema de piadas para constante humilhação do jovem (vítima).
Foram identificados o ofendido como sendo EE, nascido a ../../2008, e dois dos suspeitos como sendo BB, nascido a ../../2008, e AA, nascido a ../../2008.

No decurso do inquérito foi ainda identificado um terceiro suspeito, CC, nascido a ../../2008.

Foi remetido para incorporação o inquérito tutelar educativo n.º ... a que havia dado origem a certidão remetida para a Procuradoria de Família e Menores ... por ser a territorialmente competente na área de residência do jovem BB.

B.
Em abstrato, está noticiada a eventual prática de factos qualificados pela lei como crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, considerando que à data da ocorrência o ofendido já teria completado 14 anos de idade.

C.
O inquérito está instruído com a participação por factos ilícitos, os assentos de nascimento e os certificados de registo de medidas tutelares educativa dos três jovens, onde nada consta averbado, informações de identificação civil (cartões de cidadão) dos respetivos progenitores, listagens de processos em que todos são/foram intervenientes, com informações solicitadas ao Colégio ..., e com o relatório social elaborado pela DGRSP, nos termos do artigo 71.º da Lei Tutelar Educativa, relativamente ao jovem AA.

Foi ouvido o ofendido EE, que prestou todos os esclarecimentos necessários acerca dos factos e juntou fotografia de um desses factos.

Foi consultado o processo de promoção e proteção que corre termos a favor do jovem na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ....

Foram ouvidos, em declarações, os três suspeitos, tendo cada um deles dado a sua versão dos factos, sendo na sua maioria coincidentes entre si e com o do ofendido.

Não se mostra necessária para a decisão a produção de mais elementos de prova.

D)
Os elementos de prova colhidos permitem considerar como suficientemente indiciada a seguinte factualidade:
1. No ano letivo de 2022/2023, EE, AA, BB e CC eram colegas do 9.º ano, turma B, do Colégio ..., no Porto.
2. Em data não concretamente apurada entre os meses de março e de final de maio de 2023, quando estavam no balneário do colégio, um outro colega da mesma turma, HH, exibiu uma cenoura, que levara para a escola por brincadeira.
3.Fizeram todos piadas sobre a cenoura, enquanto alimento que pode ser usado como objeto fálico, nas quais também o EE participou, dizendo que podia colocar a cenoura no ânus do AA.
4. Nessa sequência, o AA agarrou o EE pelos braços e, com a ajuda do BB, deitaram-no no chão do balneário, de barriga para baixo, segurando-lhe os braços, presos, por trás das costas.
5. Com o EE assim deitado e incapaz de se defender, o AA e o BB puxaram-lhe os calções para baixo.
6. O CC segurou na cenoura e colocou-a encostada ao ânus do EE, introduzindo-a, num movimento de segundos, que não mereceu reação de nenhum dos alunos presentes.
7. Em data não concretamente apurada, um grupo de colegas de turma, entre os quais o AA, o BB e o CC tiraram uma fotografia no balneário da escola, a segurarem uma cenoura, que foi publicada no grupo de WhatsApp da turma e em algumas páginas pessoais de redes sociais.
8. Ao longo desse ano letivo e nos anos letivos de 2023/2024 e de 2024/2025, até ao início de janeiro de 2025, vários alunos do colégio faziam piadas com a palavra ‘cenoura’ quando o EE passava nos corredores.
9. Os jovens AA, BB e CC foram capazes de refletir sobre o sucedido e mostraram arrependimento sério, admitindo que à data dos factos, tendo apenas 13 ou 14 anos de idade, não pensaram que o sucedido pudesse vir a ter tanto impacto no EE.
10. Os jovens AA e CC referiram ter pedido desculpas pelo sucedido ao EE pouco tempo depois do ocorrido e terem-no feito novamente, mais recentemente, depois de saberem que o EE continuava perturbado.
11.O AA e o CC continuaram com o EE no mesmo colégio, ainda que em turmas diversas, até o EE ter saído, em janeiro último.
12. O jovem BB saiu do colégio no final desse ano letivo.
13. Os três jovens revelam competências pessoais e sociais suscetíveis de lhes permitirem antecipar os fatores de risco associados à emergência de comportamentos menos convencionais e de desenvolver padrões de comportamento globalmente ajustado ao socialmente instituído.
14. Os grupos de pares são constituídos por jovens da mesma faixa etária e com comportamentos convencionais.
15. O AA é praticante de Taekwondo, desde os 4 anos de idade, o CC de andebol, federado, e o BB, de ténis, ocupando todos uma parte considerável dos seus tempos livres na prática dessas atividades desportivas organizadas.
16. Nenhum dos jovens tem registos disciplinares, anteriores ou posteriores aos factos.

Não tendo sido possível indiciar, com suficiência, a seguinte factualidade,
a) Quem é que deu conhecimento do sucedido a outros alunos da turma e do colégio que não se encontravam no balneário na data de ocorrência dos factos.

E)
Cumpre apreciar e decidir.
A intervenção tutelar educativa rege-se pelo princípio da intervenção mínima. Isto significa que apenas se aplicam medidas tutelares educativas se o jovem tiver praticado um facto considerado por lei como crime e se, em concreto, se verificar a necessidade de corrigir a sua personalidade no sentido de o educar para o direito, uma vez que a intervenção tutelar visa garantir as condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável. Para além disso, é ainda exigível que a necessidade de correção se mantenhano momento da aplicação da medida ou da tomada de decisão que afete o menor, uma vez que a intervenção tutelar não tem carácter retrospetivo, mas sim prospetivo.
A intervenção tutelar deve confinar-se aos casos em que o Estado está legitimado a intervir para educar um(a) menor para o direito, mesmo contra a vontade de quem está investido do poder-dever de o(a) educar. E tal apenas se pode admitir quando se manifeste uma situação desviante ou rotineira que torne clara uma rutura com aqueles que são os elementos e princípios nucleares da ordem jurídica.
Nestes termos, embora seja um pressuposto objetivo necessário, a prática por menores com idades compreendidas entre 12 e 16 anos de um facto qualificado na lei como crime não é suficiente para a intervenção tutelar, sendo ainda necessário que em concreto se verifique o pressuposto subjetivo da “necessidade da educação para o direito” e que tal necessidade subsista no momento da aplicação da medida.
O presente inquérito tutelar consubstancia o primeiro contacto do AA, do BB e do CC com o sistema de justiça.
São jovens que estão bem integrados, social e familiarmente, que mantêm comportamentos genericamente ajustados e reconhecem a importância da adesão às regras e valores sociais.
Nenhum dos três jovens negou a sua responsabilidade na ocorrência dos factos cuja dinâmica, não obstante o tempo já decorrido, foi por eles relatada de forma muito semelhante ao que foi o relato do ofendido EE, razão pela qual as declarações de todos eles mereceram credibilidade. A única divergência esteve na existência, ou não, de efetiva introdução da cenoura no ânus do EE, que este diz ter a certeza que ocorreu e que coincidiu com o momento em que “deixou de resistir”, admitindo que foi tudo muito rápido, que o AA também refere ter ocorrido (o que até deixou os demais incrédulos), que o BB disse não ter sido capaz de perceber se ocorreu ou não e que o CC negou que tivesse ocorrido, referindo que apenas a colocou encostada às nádegas e ao ânus, mas sem chegar a haver efetiva introdução. Nesta parte, porque o relato do EE mereceu credibilidade, pela forma sincera com foi prestado, e tendo sido confirmado pelo AA, o facto foi considerado como suficientemente indiciado.
Todos os jovens mostraram arrependimento sincero pela prática dos factos, ocorridos há mais de dois anos e quando tinham apenas 13 ou 14 anos de idade, assumindo que foi uma brincadeira que foi longe demais e que, à data, nenhum deles estava consciente de que os factos pudessem vir a ter consequências tão graves para o EE.
Esta capacidade de que os três jovens tiveram de refletir sobre os seus atos e de se descentrarem das suas perspetivas e perceberem a do outro são demonstradoras de capacidade de reestruturação comportamental.
O percurso de desenvolvimento dos três jovens decorre de uma forma ajustada, não havendo indicadores associados à possibilidade de qualquer um deles desenvolver comportamentos sexuais impróprios ou abusivos.
Em suma, tratam-se de jovens com capacidade crítica e reflexiva sobre a realidade, que valorizam vida pautada pelo cumprimento de regras e de expetativas sociais, tendo o episódio em causa sido aparentemente pontual e isolado nas suas vidas.
Por outro lado, importa referir que as consequências sofridas pelo jovem EE decorreram não apenas do ato em si mesmo, mas sobretudo da difusão da sua ocorrência por vários outros alunos da escola e pelo facto de ter sido alvo de comentários depreciativos e jocosos ao longo do tempo. A que não serão alheias características da sua própria personalidade e vivências pessoais, sendo manifesta uma baixa autoestima.
Não foi possível identificar quem é que contribuiu efetivamente para essa difusão, sendo que no balneário estavam outros alunos da turma E mesmo que se admita que o AA, o BB e/ou o CC também o pudessem ter feito (o que os mesmos não admitiram), inexistem meios de prova que permitam imputar-lhes essa difusão.
Aqui chegados, importa regressar ao início: a justiça tutelar de menores, referindo-se à prática de factos qualificados pela lei como crime, não é a justiça criminal dos menores. Se a justiça criminal tem uma finalidade acentuadamente retributiva, de punir o(s) autor(es) de crime(s), já a justiça tutelar de menores tem uma finalidade educativa. Visa-se a educação dos jovens para o direito e a inserção, de forma digna e responsável, na vida em sociedade. Esta justiça rege-se sobretudo por princípios de atualidade e de necessidade, só devendo haver uma intervenção do Estado na educação dos jovens se, e quando, no momento atual em que os factos estão em análise, se mantiver a referida necessidade de educação para o direito.
Ora, no caso em análise, ainda que os factos suficientemente indiciados permitam imputar a prática, em coautoria, do crime de violação, na modalidade prevista no n.º 1, alínea b) do artigo 164.º do Código Penal (“Quem constranger outra pessoa a sobre ou praticar atos de introdução vaginal, anal ou de partes do corpo ou objetos”), decorridos mais de dois anos da sua ocorrência e ponderando as personalidades e percursos de vida dos jovens AA, BB e CC, não se vislumbra que na atualidade se mostre necessária a intervenção da justiça tutelar para além desta fase de inquérito.
Com efeito, os três jovens foram, e são, capazes de refletir sobre os seus atos e já o fizeram em mais do que uma ocasião. Tiveram, pelo menos o AA e o CC, já a oportunidade de pedir desculpas pessoalmente ao EE, o que fizeram. Os seus percursos não apresentam comportamentos desviantes que permitam sustentar a necessidade de, apesar do tempo decorrido, continuar a ser necessária (e até legítima) uma intervenção do Estado na sua educação. E aquela que podia ser a finalidade primordial dessa intervenção – a de consciencializa-los das consequências que atos semelhantes podem ter no futuro de um ofendido – já foi alcançada, com os três jovens a percecionarem que, não obstante o tempo decorrido, o episódio em causa marcou, talvez para sempre, a vida do EE, não apenas pelo que ocorreu, mas pela divulgação pública que acabou por ter (sendo que só foi divulgada, porque ocorreu).
Aqui chegados, impõe-se concluir que, não obstante a gravidade dos factos e das suas consequências, atendendo aos princípios que regem a justiça tutelar de menores - mormente aos princípios da necessidade e da atualidade -, neste momento os interesses educativos do AA, do BB e do CC já não exigem qualquer intervenção tutelar educativa.
Face ao exposto, determino o arquivamento do inquérito por desnecessidade de medida, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 87.º da Lei Tutelar Educativa.
**

Comunique este arquivamento aos três jovens e seus progenitores, assim como ao respetivos Ilustre Defensores, nos termos do artigo 78.º, n.º 3, da Lei Tutelar Educativa.
Comunique, com cópia, à equipa da DGRSP – Porto Tutelar Educativo, para conhecimento.
Na medida em que o Colégio ... aguardou o conhecimento da investigação para ponderar a (des)necessidade de atuar, e porque o AA e o CC continuam a ser alunos da instituição, dê conhecimento deste despacho, remetendo cópia do mesmo.”
***


III.4. O requerimento de abertura da fase jurisdicional (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes, com sublinhado aposto)
“Compulsado o despacho de arquivamento proferido verifico que o mesmo padece de lapso na medida em que, atendendo à qualificação jurídica dos factos imputados ao jovem AA, não era da competência da Magistrada do Ministério Público proceder ao arquivamento.
De acordo com o disposto no artigo 93º, n,º 1 b) da LTE que
1 - Resolvidas as questões referidas no artigo anterior, o juiz:
(…)
b) Arquiva o processo quando, sendo o facto qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, lhe merecer concordância a proposta do Ministério Público no sentido de que não é necessária a aplicação de medida tutelar.
(…)
Ora, não há dúvidas que ao jovem foi imputada a eventual prática de factos qualificados pela lei como crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, cuja moldura penal é de 1 a 6 anos de prisão.
Na fase de inquérito, o Ministério Público só pode proceder ao arquivamento do inquérito se concluir pela desnecessidade de aplicação de medida tutelar, o facto qualificado como crime ser punível com pena de prisão de máximo superior a um ano; ou, o facto qualificado como crime ser punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos.
O caso dos autos, sufragando a posição assumida no douto despacho final proferido, é um dos que se torna desnecessária aplicação de uma medida tutelar. Contudo, não basta este requisito, é necessário que o facto qualificado como crime seja punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos.
Ora, os factos aqui em causa integram-se na previsão do art. 164º, n.º 1 b) do Código Penal, sendo punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.
Nestes termos à Magistrada do Ministério Público cabia requerer a abertura da fase jurisdicional, o que não fez por manifesto lapso.
Assim, e após manifesta concordância da M. Ilustre Colega subscritora do despacho final, requeiro a abertura da fase jurisdicional relativamente aos jovens:
BB, solteiro, estudante, titular do cartão de cidadão ...51, filho de GG e de FF, residente na Rua ..., ..., ... ...;
AA, solteiro, estudante, titular do cartão de cidadão ...78, filho de II e de JJ, residente na Rua ..., ... ..., ...;
CC, solteiro, estudante, titular do cartão de cidadão ...92, filho de KK e de LL, residente na Rua ...., ... Porto.
Dando aqui por integralmente reproduzido o douto despacho proferido no dia 22 de julho de 2025, promovendo que, aberta a fase jurisdicional, seja ordenado o arquivamento dos autos, por não ser necessária a aplicação de qualquer medida tutelar, nos termos do disposto no artigo 93º, n.º 1 b) da LTE.
Remeta os autos ao Juízo de Família e Menores de Vila do Conde, a fim de ser registado e autuado como processo Tutelar Educativo.”
***


III.5. Apreciação do Recurso

§1. O recorrente entende que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos para produção de prova adicional nos termos constantes da LTE.
*

§2. Conforme se escreveu no acórdão do TRP de 19.12.2007, relatado por Maria do Carmo Silva Dias (acessível em www.dgsi,pt)“Em traços gerais, começaremos por lembrar que, o direito tutelar educativo assenta, hoje em dia (desde a entrada em vigor da Lei nº 166/99, de 14/9, que aprovou a Lei Tutelar Educativa), na ideia de que as medidas tutelares educativas apenas se mostram justificadas quando, perante a análise concreta de cada caso submetido a apreciação, se conclua pela “necessidade de corrigir a personalidade do menor no plano do dever-ser jurídico manifestada na prática do facto”(…).
Esse pressuposto da necessidade de “educação do menor para o direito” exige, como requisito prévio, que o menor entre os 12 e os 16 anos de idade tenha praticado (comprovadamente) facto qualificado pela lei como crime (art. 1 da LTE), isto é, tenha praticado facto que ofenda gravemente (ou de forma intolerável) bens jurídicos fundamentais (essenciais à livre convivência em sociedade) que merecem a tutela penal.”
Sucede que, antes de se concluir pela necessidade de “educação do menor para o direito”, pressuposto da fase jurisdicional do processo tutelar educativo, é indispensável que o requerimento para abertura da fase jurisdicional contenha todos os requisitos a que alude o artigo 90º da LTE, o qual dispõe:
“O requerimento para abertura da fase jurisdicional contém:
a) A identificação do menor, seus pais, representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto;
b) A descrição dos factos, incluindo, quando possível, o lugar, o tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do menor;
c) A qualificação jurídico-criminal dos factos;
d) A indicação de condutas anteriores, contemporâneas ou posteriores aos factos e das condições de inserção familiar, educativa e social que permitam avaliar da personalidade do menor e da necessidade de aplicação de medida tutelar;
e) A indicação da meadida a plicar ou das razões por que se torna desnecessária;
f) Os meios de prova;
g) A data e assinatura.”
Na verdade, atenta a importância do requerimento de abertura da fase jurisdicional (que delimita o âmbito do objecto do processo tutelar educativo, visando determinar a abertura da fase jurisdicional daquele processo, cuja natureza e finalidades são as previstas no artigo 92º da LTE), após a sua entrada no tribunal, incumbe ao juiz, em primeiro lugar, verificar se existem questões prévias que obstem ao conhecimento da causa (artigo 92º-A, n.º 1 da LTE, com a alteração introduzida pela Lei 4/2015, de 15.01).
Isto significa que, antes de se avaliar a necessidade de aplicação de medida tutelar, importa indagar se ocorrem questões prévias que obstem ao conhecimento da causa, o que impõe a necessária análise (apreciação) se o requerimento de abertura da fase jurisdicional obedece aos requisitos enunciados no artigo 90º da LTE.
O que não foi feito no caso dos autos.
Na verdade, o tribunal a quo avançou para o despacho liminar nos termos do disposto no artigo 93º da LTE, sem ter previamente escrutinado se existiam questões prévias que obstem ao conhecimento da causa em conformidade com o disposto no artigo 92º-A da LTE.
Ora, debruçando-nos sobre o despacho de arquivamento acima transcrito (para o qual remete o requerimento de abertura da fase jurisdicional), temos de concluir que o mesmo não obedece a todos os requisitos exigidos no citado artigo 90º da LTE.
Com efeito, a descrição fáctica do despacho de arquivamento acima transcrito (para o qual remete o requerimento de abertura da fase jurisdicional) não contém os elementos do tipo subjectivo do imputado crime de violação, p. e p. no artigo 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal. Isto é, não contém a narração de todos os factos necessários (no caso, pelo menos os elementos intelectual e volitivo) para integrar a prática do referido crime de violação, os quais não podem sequer ser acrescentados pelo juiz por os seus poderes de cognição estarem limitados pelo que consta do requerimento de abertura da fase jurisdicional (assim também se assegurando as garantias de defesa do menor, enquanto sujeito activo do processo tutelar).
Nesta medida, o requerimento de abertura da fase jurisdicional não cumpre o requisito essencial contido no artigo 90º-b) da LTE.
Como também o Ministério Público não indicou, como lhe competia, qualquer prova no seu requerimento para abertura da fase jurisdicional, o que nos conduz ao requisito essencial contido no artigo 90-f) da LTE.
Assim, nos termos do artigo 92º-A, n.º 2, al. a) da LTE o requerimento de abertura da fase jurisdicional aqui em apreço devia ter sido rejeitado.
O facto de não ter sido rejeitado o requerimento de abertura da fase jurisdicional, apesar de nele faltar, nomeadamente, a descrição de factos qualificados pela lei como crime (por ausência de narração do elemento subjetivo), teve como consequência que o tribunal concluísse pela desnecessidade de aplicação de medida tutelar sem previamente verificar o pressuposto essencial desse juízo, i. é., a existência de indícios seguros da prática de factos qualificados pela lei como crime. Ao prosseguir para a fase decisória sem essa filtragem obrigatória, o tribunal recorrido acabou por realizar essa avaliação em abstrato, sem assentar esse juízo no primeiro requisito que condiciona toda a intervenção tutelar educativa.
Por isso, revoga-se a decisão recorrida (com argumentação distinta da argumentação recursória), que deverá ser substituída por outra decisão que rejeite o requerimento de abertura da fase jurisdicional, a ter lugar no tribunal da 1ª instância a fim de ser assegurado o duplo grau de jurisdição.
*

§3.Consequências da revogação da decisão recorrida
O conhecimento das questões suscitadas pelo recorrente acima enunciadas fica prejudicado com a rejeiçã do requerimento deo abertura da fase jurisdicional nos moldes acima descritos e a remessa do processo à 1ª instância para substituição da decisão revogada.

***




IV- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida (embora com diferente fundamentação) e, em consequência, determinar a remessa do processo ao Tribunal da 1ª instância para substituir a decisão recorrida por outra que rejeite o requerimento de abertura da fase jurisdicional nos termos determinados no ponto III.5.§2.
*
Sem tributação.
















Porto, 12.12.2025

Maria do Rosário Martins (Relatora)

Maria Joana Grácio (1ª Adjunta)

Madalena Caldeira (2ª Adjunta)