Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0733086
Nº Convencional: JTRP00040496
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CITAÇÃO
NULIDADE
CÓPIAS ILEGÍVEIS DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RP200706180733086
Data do Acordão: 06/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 723 - FLS 142.
Área Temática: .
Sumário: I – O princípio do contraditório só é correctamente observado se for de molde a que cada uma das partes possa, não apenas, deduzir as suas razões, de facto e de direito, e oferecer as suas provas, mas, também, controlar as provas do adversário, discreteando sobre o valor e resultado de umas e de outras.
II – Por isso, as cópias dos documentos que acompanham a citação e as notificações (art. 228º, nº3, do CPC) têm que ser legíveis, possibilitando que o respectivo conteúdo seja totalmente perceptível para o seu destinatário, assegurando, em conformidade, a efectiva possibilidade de pronúncia àquele contra quem são opostos os meios de prova.
III – Assim, também viola o sobredito princípio do contraditório a junção, com o articulado da p. i., de meras cópias, a preto e branco, de fotografias visando ilustrar a factualidade alegada em tal articulado, o que determina a nulidade da respectiva citação, tido em conta o disposto no art. 198º, nº4, do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

B………, Lda, instaurou no .º Juízo do Tribunal Judicial de Ovar, contra C………., S.A., acção declarativa de condenação sob a forma de processo Ordinário.

Com a petição inicial juntou a autora vários documentos, sendo que ao documento junto sob o nº 4, denominado "relatório técnico de peritagem efectuada ao edifício D………., situado nos n.° . e .. da Rua ………., cidade de Ovar.", foram anexadas fotocópias, a preto e branco, de doze fotografias, as quais visavam ilustrar o texto do aludido relatório, onde se descrevem os defeitos invocados na aludida petição.

Citada, a ré veio invocar a nulidade da sua citação, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 198.°, n.°s 1 e 4, 228.°, n.°s 1 e 3, 235.°, n.° 1 e 236.°, n.° 1, todos do Cód. Processo Civil, alegando que as aludida fotografias, por se tratarem de simples fotocópias, não são legíveis, o que a impede de exercer cabalmente a sua defesa.

A parte contrária pronunciou-se no sentido de indeferimento de tal pretensão, conforme resulta da sua contestação de fls. 141 e segs.

Por despacho com cópia a fls. 27/28, foi indeferida a arguida nulidade da citação.
Em síntese, argumentou-se no despacho que, mesmo “admitindo que a simples fotocópia de tais fotografias, a preto e branco, possa não ser inteiramente legível, o certo é que tal não prejudicou o exercício da defesa por parte da ré, exigida pelo n.° 4 do art. 198.° do Cód. Processo Civil para que a arguição da nulidade seja atendida”.
É que-- acrescenta-se no mesmo despacho-- “uma vez que as aludidas fotografias se destinam unicamente a complementar as conclusões do relatório que descreve, de forma pormenorizada, os defeitos invocados pela autora, a sua hipotética ilegibilidade em nada prejudicou o exercício do direito de defesa da ré.”

Inconformada com esta despacho, dele recorreu a Ré C………., S.A, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
1ª. O art. 228°, n.° 3,- do CPC é expressão clara do direito de defesa, de que o direito à jurisdição (acesso aos tribunais - art. 200 da CRP) é manifestação - cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1°, pg. 376; Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, pg. 169 - aí se integrando, fazendo com eles corpo e inteligência, os princípios do contraditório (ut art. 3° do -CPC) e da igualdade das partes (ut art. 3°-A do CPC);

2ª. O direito de acesso aos tribunais tem por pressuposto o correcto funcionamento das regras do contraditório, de forma a que cada uma das partes possa deduzir as suas razões, de facto e de direito, ofereça as suas provas e controle as provas do adversário, discreteando sobre o valor e resultado de umas e de outras - cfr. Acs. do TC de 20-11-1991, BMJ 411-155; de 22-8-1988, DR, II Série, n.° 93; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, vol. 1, 1956, pg. 364;

3ª. Por isso que o legislador consagrou expressamente no n.° 3 do art. 228° do CPC que as cópias dos documentos têm que ser legíveis, no sentido do seu conteúdo ser totalmente perceptível para o seu destinatário, assegurando, em conformidade a efectiva possibilidade de pronúncia àquele contra quem são opostos os meios de prova, designadamente impugnando-os nos termos dos arts. 368° do CC e 544°, n° 1, do CPC;

4ª. A cópia do doc. n.° 4 da PI facultado à agravante é integrado e constituído por 12 fotografias a preto e branco, concretamente sob as páginas n.°s 5 a 12, pelo que não estão anexas ao documento e não são dele cindíveis; são, elas próprias, o dito documento n.° 4 da Pl;

5ª. A sua ilegibilidade é verificável por qualquer destinatário normal e comummente diligente; impede a agravante de apreciar e pronunciar-se sobre o seu conteúdo, postergando o cabal exercício do seu direito de defesa, quando, para mais, por via desse documento, a A. pretende demonstrar a existência de "defeitos de construção" cuja reparação peticiona nos autos;

6ª. Em resultado dos vícios evidenciados pelo doc. n.° 4 da PI, a citação enferma de nulidade por preterição de formalidades essenciais prescritas na lei, com manifesto prejuízo para a defesa da agravante - ut arts. 198°, n.°s 1 e 4, conjugados com os arts. 228°, n.° 1 e n.° 3, 235°, n.° 1 e 236°, n.° 1, todos do CPC.

7ª- A decisão recorrida violou as disposições legais supra citadas.

TERMOS EM QUE, na procedência dos fundamentos alegados, deverá ser revogada a decisão recorrida, com as legais consequências.”

Contra-alegou a agravada, sustentando a confirmação do despacho recorrido.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a única questão proposta para resolução consiste em saber se a junção com a petição inicial de meras cópias, a preto e branco, das aludidas fotografias consubstancia nulidade da citação, por postergar o “cabal exercício do direito de defesa” da ré.

II. 2. A matéria de facto a ter em conta é a já supra referida, que nos dispensamos de repetir.

III. O DIREITO

Fundamenta a agravante a sua pretensão no estatuído no artº 228º, nº3 do CPC, que dispõe:
“ARTIGO 228.º
(Funções da citação e da notificação)
1. A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender. Emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa.
2. A notificação serve para, em quaisquer outros casos, chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto.
3. A citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto.”

Em causa está saber se o direito ao exercício pleno do contraditório foi coarctado à ré pelo facto de lhe terem sido remetidas meras cópias (a preto e branco) das fotografias.

Através da citação (ver artº 480º CPC) dá-se, de facto, cumprimento ao princípio do contraditório-- através dela, o réu pode contestar a acção que contra si foi proposta.
Trata-se de um dos princípios fundamentais do nosso sistema processual civil-- princípio que alguns até já denominaram como a trave mestra desse sistema.
O próprio relatório do Decreto-Lei n.° 329.°-A/95, refere que se trata de um princípio estruturante de todo o processo civil[1].
Dada a sua capital importância, é que tal princípio-- consagrado em várias disposições legais, entre as quais se destaca o artº 3º do CPC-- está presente ao longo de todo o processo-- não só na fase dos articulados, mas em todas as fases do processo incluindo na do julgamento, continuando a ser observado na fase do recurso.
Visa-se a proibição da prolação de decisões surpresa, já que não é lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Segundo Lebre de Freitas[2], esse princípio é hoje entendido como a garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activa­mente no desenvolvimento e no êxito do processo.
Assim, segundo o disposto no Ac. publicado in Ac.s. T.C., 11º vol., a pág. 741 e 20º vol., a pág. 495, o princípio do contraditório permite a cada uma das partes "deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário, e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras".

Como dissemos supra, através da citação dá-se cumprimento, efectivo, ao princípio do contraditório.
Como tal, se entendermos que, no caso sub judice, foi violado tal princípio -- na leitura que aqui dele fazemos --, ter-se-á de concluir pela verificação da suscitada nulidade da citação. É que, de acordo com o estatuído no n.° 1 do art. 198.° do Cód. Processo Civil "(...) é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades previstas na lei.". E uma dessas formalidades-- qual “pescadinha de rabo na boca”-- é, precisamente, a observância plena do aludido princípio do contraditório.

Ora, entendeu-se no despacho recorrido que as fotografias em causa foram juntas com a petição inicial apenas “para ilustrar o texto” do documento n.° 4, junto com esse articulado, documento esse denominado "relatório técnico de peritagem efectuada ao edifício D………., situado nos n.° . e .. da Rua ………., cidade de Ovar.".
Mais se acrescentou naquele despacho que as fotografias foram juntas para “complementar as conclusões do relatório que descreve, de forma pormenorizada, os defeitos invocados pela autora” na p. i.
Assim sendo, por entender que a sua hipotética ilegibilidade em nada prejudicou o exercício da defesa da ré-- que apresentou contestação--, concluiu o despacho recorrido que não ocorre a nulidade da citação, atento o disposto no nº 4 do artº 198º CPC.
Não concordamos, porém.

Com efeito, é nosso entendimento que o direito de defesa da ré-- e, por isso, o aludido princípio do contraditório-- só será cabalmente satisfeito, caso disponha de todos os elementos juntos pela contraparte, em termos de sobre eles poder emitir pronúncia.
E, obviamente, não satisfaz tal desiderato quando apenas o articulado se encontra legível e o mesmo não aconteça com todos os demais elementos documentais que com ele são juntos e lhe servem de suporte ou complemento. E é assim mesmo que toda a factualidade que se alega e se quer provar conste do mesmo articulado de forma detalhada ou minuciosa.
Portanto, o princípio do contraditório só é plenamente observado desde que o réu possa dispor, não só do articulado da petição inicial perfeitamente legível, mas de todos os elementos que com ele sejam juntos e respeitem ao objecto da demanda.
E não cremos haver dúvidas que as fotografias-- mesmo que se destinassem a ilustrar os defeitos (mesmo que minuciosamente) invocados ou alegados pela autora na petição inicial-- são elementos cuja perfeita legibilidade se exige possa estar ao dispor do réu, logo que lhe são remetidos juntamente com o articulado.

Diz o despacho recorrido -- e é sufragado pela agravada-- que a pouca nitidez das fotografias não acarreta qualquer prejuízo para a boa defesa da ré, uma vez que os defeitos estão bem descritos na petição inicial, sobre eles podendo a ré (na contestação) pronunciar-se integralmente, sem limites.

Não lemos dessa forma o aludido princípio do contraditório.

Primeiro, mesmo não estando em causa o articulado, mas apenas seu mero suporte probatório, o certo é que se as fotografias foram juntas pela autora era porque entendia que algum valor (probatório) tinham. E se tinham para ela, obviamente que não podia olvidar que também podiam ter para a contraparte-- que podia questionar, logo na contestação, o seu conteúdo (as imagem nele contidas), assim toldando, desde já, designadamente, a valoração probatória que futuramente a autora lhes pretenda dar, ou dela pretenda extrair.
E é claro que -- sempre respeitando diferente opinião-- para que a ré pudesse questionar ou contestar o conteúdo das imagens contidas nas fotografias que a autora juntou (para reforçar a sua alegação), fazendo, assim, pleno uso do aludido princípio do contraditório, sempre se impunha que tais imagens fossem perfeitamente perceptíveis. Perceptibilidade que, obviamente, não pode existir nas simples fotocópias de fotografias, ainda por cima a preto e branco!
Só no pressuposto dessa perfeita perceptibilidade é que a ré pode, logo da contestação, chamar a atenção do tribunal-- e, portanto, logo impugnar, em todos os aspectos, toda a alegação vertida da petição inicial-- para este ou aquele aspecto ou pormenor contido nas imagens fotográficas, o que, naturalmente, também pode, desde logo, ter reflexos em sede da própria elaboração da base instrutória.

Segundo, não se pode olvidar o que supra referimos, citando Lebre de Freitas e o TC: o princípio do contraditório visa garantir às partes a participação efectiva no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, etc.) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão; o escopo de tal princípio já não é, como também ficou dito, a mera defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.

O que significa que, no caso sub judice, à ré tem de ser permitido, não só deduzir as suas razões (de facto e de direito) e apresentar as provas que entenda relevantes, mas, também, “controlar as provas do adversário, e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras” (cit. Ac. TC)-- sublinhado nosso.
Ora, é precisamente esse controlo das provas juntas com a petição inicial-- as fotografias-- que a ré pretende, logo na contestação, fazer. E só poderá obter tal desiderato se tais “provas” (fotografias) forem perfeitamente legíveis. O que-- repete-se-- não se verificará tratando-se de meras fotocópias a preto e branco!

Violado foi, por isso, o princípio do contraditório. Pelo que -- nos termos explicitados-- ficou, também, prejudicada a defesa da citanda (ré).
Daí que deva ser deferida a sua pretensão de nulidade da citação: não foram, de facto, observadas “as formalidades prescritas na lei” (artº 198º, nº1 CPC), com prejuízo do seu direito de defesa (nº4).

Acrescente-se, apenas, o que sobre a matéria também escreveu Teixeira de Sousa[3]: “a violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do artº 201º, nº1: dada a importância do contraditório, é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa”.
O que, no caso sub judice também nos levaria ao mesmo resultado.

CONCLUINDO:
. O princípio do contraditório só é correctamente observado se for de molde a que cada uma das partes possa, não apenas, deduzir as suas razões, de facto e de direito e oferecer as suas provas, mas, também, controlar as provas do adversário, discreteando sobre o valor e resultado de umas e de outras.
. Por isso, as cópias dos documentos juntos com a citação e as notificações (ut artº 228º, nº3 CPC) têm que ser legíveis, no sentido do seu conteúdo ser totalmente perceptível para o seu destinatário, assegurando, em conformidade, a efectiva possibilidade de pronúncia àquele contra quem são opostos os meios de prova.
. Assim, também, viola aquele princípio do contraditório a junção com o articulado da petição inicial de meras cópias a preto e branco de fotografias visando ilustrar a factualidade alegada em tal articulado, o que consubstancia a nulidade da respectiva citação (ut artº 198º, nºs 1 e 4 CPC).

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra a deferir a requerida nulidade da citação, com as legais consequências.

Custas pela agravada, com taxa mínima.

Porto, 18 de Junho de 2007
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves

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[1] Mas outros há, também estruturantes, de que são exemplos, v.g., os princípios da igualdade e da cooperação.
[2] Introdução ao Processo Civil, págs. 96 ss.
[3] Estudos Sobre o Novo processo Civil, 2º ed., a pág. 48.