Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0644688
Nº Convencional: JTRP00039957
Relator: CUSTÓDIO SILVA
Descritores: INQUÉRITO
CONSULTA DO PROCESSO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP200701170644688
Data do Acordão: 01/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 245 - FLS 02.
Área Temática: .
Sumário: Não pertence ao juiz de instrução, mas ao Ministério Público, a competência para, na fase de instrução, decidir sobre um pedido para consultar e fotocopiar peças do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão elaborado no processo n.º 4688/06 (4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto)
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1. Relatório
Do despacho de 5 de Abril de 2006 consta o seguinte:
“Veio o arguido B………., por requerimento de fls. 18702/18703 (18759/18760), invocar que desconhece qual o critério que presidiu a que fosse autorizada a consulta e extracção de cópias de partes do processo e fosse negada tal actividade quanto a outras partes do processo.
Invoca que tal posição carece de base legal e consubstancia uma obstrução ao livre e eficaz exercício dos mais elementares direitos de defesa já que não pode ser o Digno Magistrado do Ministério Público a decidir o que é importante para a sua defesa.
Termina requerendo autorização para fotocopiar/consultar a totalidade do processo.
O Digno Magistrado do Ministério Público pronunciou-se referindo que o critério que presidiu à autorização de consulta de parte do processo está devidamente explanado no despacho proferido a fls. 18368/18370, que foi notificado ao arguido.
Por outro lado, os elementos de prova em relação aos quais não foi autorizada a consulta encontram-se em segredo de justiça, porque irão integrar certidões que irão dar origem a outros processos e, quanto a estes, não corre para o arguido qualquer prazo para defesa porque não foi deduzida acusação.
O arguido tem acesso a todos os elementos que lhe dizem respeito e não pode querer ter acesso a elementos que respeitam a outros arguidos e sendo certo que não é ao Ministério Público que cabe aferir o que interessa para a defesa, não é, igualmente, ao arguido que cabe decidir sobre o fornecimento de elementos do processo.
Por fim, refere, não cabe ao J. I. C. decidir, nesta fase, quais os elementos a fornecer ao arguido, sendo certo que o arguido não invoca qualquer fundamento para dirigir ao J. I. C. o seu requerimento.
Promove, pois, o seu indeferimento.
Cumpre apreciar e decidir.
Em relação ao invocado pelo arguido não pode o J. I. C. pronunciar-se.
De facto, o processo encontra-se em fase de inquérito e, nesta fase, quem dirige o processo é o Ministério Público, cabendo ao Digno Magistrado do Ministério Público decidir sobre o requerido, sempre, porém, pautado por critérios de legalidade e objectividade.
Assim, nada se determina quanto ao requerido pelo arguido, já que não nos cabe, nesta fase, decidir da possibilidade de os autos serem consultados na sua totalidade ou só parcialmente”.
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O arguido veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - A M.ma Juiz a quo julgou-se incompetente para decidir a pretensão do arguido de ter acesso à totalidade do processo, obtendo cópia integral do mesmo, por considerar que:
- o processo se encontra em fase de inquérito; e
- nessa fase, quem dirige o processo é o Ministério Público.
2ª - O primeiro argumento não é verdadeiro, uma vez que, com a prolação da acusação o inquérito tem de considerar-se encerrado, atento o disposto nos arts. 262º, n.º 1, e 276º, n.º 1.
3ª - A circunstância de terem sido emitidas certidões autónomas que, diz-se, irão dar origem a outros processos é irrelevante para este efeito, na medida em que permanecem neste processo todos os elementos de que foram ou vierem a ser extraídas certidões e, portanto, tais elementos fazem parte deste processo e deste inquérito em que foi proferida acusação e que o Arguido pode e quer consultar para organizar a sus defesa.
4ª - Este inquérito, que deu origem a esta acusação, neste processo, está, portanto, encerrado.
5ª - O segundo argumento, por seu turno, também não é verdadeiro, desde logo, porque confunde o inquérito com o processo, que são duas realidades ontológicas e conceptuais distintas.
6ª - Depois, e sobretudo, porque o JIC é a única entidade competente para exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito – arts. 17º, 268º e 269º -, por ele devendo ser presididos, praticados ou autorizados todos os actos que directamente se prendem com os direitos fundamentais das pessoas – cfr. o n.º 45 do art. 2º da Lei 43/86.
7ª - O mais básico, elementar e fundamental direito do Arguido é o de ‘preparar a defesa dentro dos prazos para tal estipulados por lei’, como se lê na parte final do n.º 1 do art. 89º.
8ª - Esse direito é corolário da garantia proclamada no n.º 1 do art. 32º e do direito inscrito no n.º 1 do art. 20º, ambos da CRP.
9ª - O direito de consulta dos autos e obtenção de cópias é instrumental desse direito mais amplo de organização da defesa ou do direito mais abrangente a um processo justo e equitativo (art. 20º, n.º 4, CRP).
10ª - Daí que qualquer decisão relacionada com ele, seja qual for a fase em que o processo se desenvolve, interfira com os direitos e garantias essenciais do Arguido e tenha conteúdo e natureza jurisdicional e só possa ser proferido, antes da fase do julgamento, pelo Juiz de Instrução Criminal – cfr., v.g., acs. TC n.ºs 247/96 e 121/97.
11ª - Ao recusar-se a conhecer do pedido formulado pelo Arguido, a M.ma Juiz a quo deixou de se pronunciar sobre questão de que estava obrigada a conhecer, praticando, assim, por omissão, a nulidade prevista na primeira parte da al. c) do n.º 1 do art. 379º, preceito que tem de considerar-se aplicável aos despachos, por força do disposto no art. 4º CPP e nos arts. 20º, n.º 1, e 202º, n.º 2, CRP.
12ª - O douto despacho em mérito ofendeu, assim, o disposto nos arts. 262º, n.º 1, 276º, n.º 1, 17º e 89º, n.º 1, parte final, e 379º, 1, a), adoptando uma interpretação do conjunto deste conjunto normativo inconstitucional, por ofensa do disposto no art. 20º, n.ºs 1 e 4, e 32º, n.º 1, CRP.
13ª - Deve, por isso, declarar-se nula a douta decisão impugnada e, por força do disposto no art. 122º e por ser manifesta a sua influência determinante nas opções que o Arguido terá de adoptar no que concerne ao requerimento de instrução, deve declarar-se nulo todo o processado posterior a ela.
14ª - O arguido tem o direito de consultar tudo quanto, ao longo do inquérito, foi sendo investigado e de avaliar, ele próprio, se o que consta do processo interessa ou não à sua defesa, do mesmo modo que o Ministério Público avaliou se interessava ou não à acusação.
15ª - Nem sequer o próprio Juiz de Instrução Criminal tem poderes para limitar o acesso do Arguido a qualquer parte do processo, após ter sido proferida a acusação e estando em curso o prazo para requerer a instrução.
16ª - Consulta, aliás, que nem sequer depende de despacho, conforme determina a parte final do n.º 1 do art. 89º.
17ª - Interpretada no sentido de que, após ter sido proferida a acusação, o Arguido pode ser impedido de consultar a totalidade do processo para preparar a sua defesa e requerer a instrução, o n.º 1 do art. 89º é inconstitucional, por ofensa do disposto no n.º 1 do art. 32º.
18ª - De acordo com o estabelecido no art. 715º CPC, aplicável, mutatis mutandis, por força da norma contida no art. 4º CPP, o Tribunal da Relação pode e deve substituir-se à decisão do JIC e autorizar que o Recorrente obtenha cópia integral do processo, para efeitos de organizar a sua defesa, tendo em vista requerer a instrução”.
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2. Fundamentação
O objecto do recurso é parametrizado pelas conclusões (resumo das razões do pedido) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, do C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. do S. T. J., de 15 de Dezembro de 2004, C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, t. III/2004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
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Há que, então, definir quais as questões que se colocam para apreciação e que são as seguintes:
1ª - Ocorre a nulidade do despacho sob recurso por o tribunal se ter deixado de pronunciar sobre questão que devesse apreciar, nos termos (aplicáveis) do art. 379º, n.º 1, al. c), do C. de Processo Penal?
2ª - É da competência do juiz de instrução criminal a autorização para consulta de auto e obtenção de certidão por parte do arguido, de acordo com o art. 89º, n.º 1, do C. de Processo Penal?
3ª - Se assim não for, por afirmação de que essa competência é do Ministério Público, padece a correspondente interpretação de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts. 20º, n.ºs 1 e 4, e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa?
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Eis os elementos (de facto) relevantes:
O arguido formulou requerimento em que deu a conhecer a sua pretensão de concessão de autorização para fotocopiar/consultar a totalidade do processo.
No âmbito deste processo, foram proferidos, pelo Ministério Público, despachos de arquivamento, de acusação (em relação a parte dos factos em investigação e que respeitam ao arguido) e de extracção de certidões para constituírem processos autónomos e prosseguirem os inquéritos (relativamente aos demais factos em investigação).
Este requerimento foi dirigido ao juiz de instrução criminal.
O juiz de instrução criminal proferiu despacho no sentido de não ter competência para apreciação desse requerimento (o que se encontra sob recurso).
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Abordemos, aqui chegados, a primeira questão [ocorre a nulidade do despacho sob recurso por o tribunal se ter deixado de pronunciar sobre questão que devesse apreciar, nos termos (aplicáveis) do art. 379º, n.º 1, al. c), do C. de Processo Penal]?
Antes do mais, há que explicitar (ainda que brevemente) as razões que determinaram a conclusiva afirmação, acima feita, sobre a aplicabilidade do art. 379º, n.º 1, al. c), do C. de Processo Penal.
É que, como da letra dessa norma se vê, a mesma dirige-se à sentença, não ao despacho.
Só que não teria qualquer sentido que assim não pudesse ser, exactamente porque, naquela e neste, se está face a acto decisório (identidade de razão), como se define no art. 97º, n.º 1, als. a), b) e c), do C. de Processo Penal, e, nele (em qualquer dos seus segmentos), como é de palmar evidência, podia o tribunal deixar de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
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Entremos, agora, na apreciação da questão em destaque.
A pretensão do arguido, para o que ora releva, era uma só: a da autorização para consultar um determinado processo e extrair cópias do mesmo.
Daí que era sobre ela (então, questão) que a pronúncia do tribunal, levado a cabo pelo despacho sob recurso, devia, em princípio, incidir.
E não incidiu?
É claro que não, mas porque foi entendido que, para tanto, carecia o tribunal de competência (é o arguido, aliás, quem, nas conclusões acima expostas – mais precisamente na 1ª -, peremptoriamente o afirma: “a M.ma Juiz a quo julgou-se incompetente para decidir a pretensão do arguido de ter acesso à totalidade do processo, obtendo cópia integral do mesmo”).
O que determinava, como não podia deixar de ser, em coerência, que essa precisa questão se não podia reconduzir a questão que o tribunal devesse conhecer.
Se assim não fosse (evidencie-se), estar-se-ia, forçosamente, a “impor”, em termos necessariamente prévios, a competência para decidir, o que se teria que haver (toda a gente o tem que reconhecer; e que reconhece, mesmo quando o não quer assumir ...) como um completo absurdo.
Em conclusão, portanto: não se verifica a nulidade do despacho sob recurso por não ter o tribunal conhecido questão que devesse conhecer (art. 379º, n.º 1, al. c), do C. de Processo Penal).
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Curemos da segunda (a essencial, já se disse ...) questão (é da competência do juiz de instrução criminal a autorização para consulta de auto e obtenção de certidão por parte do arguido, de acordo com o art. 89º, n.ºs 1 e 2, do C. de Processo Penal?).
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Dispõe o art. 262º, n.º 1, do C. de Processo Penal:
«O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação».
O inquérito tem, então, um duplo sentido: o de fase processual («é uma fase em sentido lógico, já que é dominado por actos pertinentes a uma mesma ideia, a uma finalidade determinada: a decisão sobre a acusação; é também uma fase em sentido cronológico, enquanto os actos que lhe correspondem e que a caracterizam em sentido lógico são contíguos no tempo; o inquérito, em sentido lógico e cronológico, inicia-se com um despacho do Ministério Público e finda, em sentido lógico, com a decisão que sobre ele tomar o Ministério Público, e, em sentido cronológico, com o requerimento de abertura da fase da instrução ou com a remessa a tribunal de julgamento») e o de actividade processual («o termo inquérito é usado no CPP num sentido mais restrito, compreendendo apenas a actividade de investigação e recolha de provas sobre a existência de um crime e determinação dos seus agentes, que tem lugar na fase processual também designada inquérito»).
É assim que quando o CPP refere que os actos de inquérito significa tão-só as diligências de investigação e de recolha de prova que hão-de servir para a decisão do Ministério Público, mas quando se refere à direcção do inquérito e aos actos do juiz de instrução durante o inquérito está a tomar a palavra num sentido mais amplo, de fase processual. O conjunto dos actos de inquérito constituem o inquérito, enquanto actividade; todos os actos que ocorrem no decurso da fase processual do inquérito e têm por fim a decisão sobre a acusação constituem o inquérito, enquanto fase processual em sentido lógico, e todos os actos praticados entre a decisão do Ministério Público de abrir o inquérito e o requerimento de abertura de instrução ou a remessa do inquérito para o tribunal do julgamento, fazem parte da fase processual denominada inquérito, tomada agora em sentido cronológico» (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., revista e actualizada, 2000, págs. 71 e 72/73).
E no que se refere ao objecto do inquérito, temos que o mesmo, diga-se assim, é o crime (o facto em todos os seus aspectos penalmente relevantes).
Sucede que, durante o inquérito, outros crimes (públicos, necessariamente ...) podem descobrir-se.
Neste caso, se «entre todos existir conexão processualmente relevante (art. 24º), o objecto pode alargar-se aos novos crimes. Se em virtude dos novos crimes e da conexão resultar que o Ministério Público que dirige o inquérito passe a ser incompetente, deverá transmitir os autos ao magistrado ou agente competente (arts. 264º e 266º).
Se os novos crimes indiciados no decurso do inquérito não puderem processualmente ser investigados no mesmo inquérito, o Ministério Público abrirá novo ou novos inquéritos quanto a eles.
O princípio de que a cada crime corresponde, em regra, um processo resulta inequivocamente das normas sobre competência dos tribunais e do Ministério Público (arts. 10º a 31º, 264º e, em especial, 24º, n.º 2, e 29º)» (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., revista e actualizada, 2000, págs. 94 e 96).
Findas as diligências de investigação e recolha de provas sobre o crime, procede-se ao encerramento do inquérito, quer (para o que ora releva) através do despacho de arquivamento (art. 277º, n.ºs 1 e 2, e 280º, n.ºs 1 e 2, do C. de Processo Penal), quer por meio do despacho de acusação (art. 283º, n.º 1, do C. de Processo Penal). «Estes actos encerram o inquérito em sentido lógico, pois a fase do inquérito em sentido cronológico só se encerra com o decurso do prazo após as notificações e o requerimento de abertura de instrução ou a entrada do processo no tribunal do julgamento» (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., revista e actualizada, 2000, págs. 103/104).
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De retorno ao caso, percebe-se (pelos elementos de facto relevantes e acima expostos) o seguinte:
- o inquérito, relativamente a crimes indiciados no seu decurso, e no que se reporta ao arguido, foi encerrado, com despacho de arquivamento e com despacho de acusação;
- e no que se refere aos demais crimes indiciados, não houve encerramento do inquérito.
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Esta realidade não podia, até pelos contornos da definição ou afirmação que se acabou de fazer, radicalmente diversos, merecer o mesmo tratamento ou abordagem, como o demonstra, no que se refere ao aspecto ora em destaque, o art. 89º, n.ºs 1 e 2, do C. de Processo Penal. E de tal maneira as coisas assim eram que se assim não fosse se estaria a criar um autêntico paradoxo, de duplo, alternativo, enfoque: ou se considerava, em absoluto, que se estava face a um inquérito encerrado e se aplicava o n.º 1 desse art. 89º, ou se entendia, também em absoluto, que se estava defronte de um inquérito não encerrado e se aplicava o n.º 2, para mais quando se podiam aplicar ambos, conforme se estivesse, como aqui, face a inquérito encerrado e a inquérito não encerrado. O que não deixaria de redundar numa perfeita esquizofrenia jurídica (permita-se-nos a expressão), que podia, no seu paroxismo, levar a que ou se conferissem os direitos conferidos nesse n.º 1 a quem somente estivesse nas condições de beneficiar dos que eram possibilitados por aquele n.º 2, ou que se permitissem os direitos possibilitados por este n.º 2 a quem somente os podia exercer em conformidade com aquele n.º 1. E mais: arguidos podiam, então, sem ter esta qualidade no que toca a outros crimes, beneficiar de qualquer dos indicados números desse art. 89º.
Tudo é muito mais simples, harmonioso e legítimo (e não fazemos, aqui e agora, qualquer processo de intenções, mas qual a razão pela qual o arguido pretende o que pretende é o que não logramos, sendo objectivos, como sempre seremos, alcançar ...) se tivermos em consideração que, em relação ao inquérito encerrado (o que respeita aos crimes denunciados referentes ao arguido), o arguido tem os direitos (ora em destaque) que tem (art. 89º, n.º 1, do C. de Processo Penal), e no que reporta ao não encerrado terá os que são permitidos pelo art. 89º, n.º 2, do C. de Processo Penal.
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Dito isto (que se disse para que uma maior clareza pudesse sobrevir), não está resolvida, no entanto, a questão em apreço, que se atém à competência para proferir a decisão sobre a pretensão do arguido.
Esta, como se sabe, foi formulada nos termos do art. 89º, n.º 1, do C. de Processo Penal.
Esta norma dispõe:
«Para além da entidade que dirigir o processo, do Ministério Público e daqueles que nele intervierem como auxiliares, o arguido, o assistente e as partes civis podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias, extractos e certidões autorizados por despacho, ou independentemente dele para efeito de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos estipulados pela lei».
Dois aspectos se destacam: o primeiro é o acesso aos autos, digamos assim, dependente de despacho; o segundo é esse mesmo acesso sem necessidade de despacho.
Já que se não equacionou este último aspecto, mas, sim, aquele (mesmo que, na tese do arguido, e da lei, se fosse essa a situação definida, e não é, como se disse ...), temos que a lei não define expressamente a competência para a sua elaboração.
Entendemos, pelo que vamos dizer, e ressalvando o respeito por diverso entendimento (que é só disto que se trata, nada mais ...), que não era necessário que a lei o dissesse.
Na verdade, porque, no caso, e partindo do entendimento do arguido (de que se estava perante inquérito encerrado, mas em sentido lógico, pelo que se viu), sempre estaríamos, ainda, no âmbito do inquérito, em sentido cronológico, como acima se disse.
Ora, a direcção do inquérito é da competência (exclusiva, portanto) do Ministério Público (art. 263º, n.º 1, do C. de Processo Penal).
É certo que esta norma está dirigida, decisivamente, à actividade de investigação e recolha de provas, que, por vezes, “necessita” (imposição legal) da intervenção do juiz de instrução criminal, quer para os consentir, quer para os praticar, ainda que, em regra, sob a sua promoção – v. os arts. 17º, 267º, 268º, n.º 1, als. a) a f), e 269º, n.º 1, als. a) a d), do C. de Processo Penal; e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., revista e actualizada, 2000, pág. 80, quando ensina: «não obstante, os actos de inquérito, em sentido estrito, que a lei reserva à competência do juiz de instrução, não lhe cabe apenas apreciar da admissibilidade desses actos, mas também da sua oportunidade e conveniência; mesmo na interpretação prevalecente e restritiva do art. 32º, n.º 4, da Constituição, é reservada à competência do juiz de instrução a prática dos actos de investigação, ainda que na fase processual do inquérito, que se prendam com os direitos fundamentais; importa distinguir os actos de inquérito e os actos do juiz praticados no decurso do inquérito, já que nem todos os actos do juiz praticados no decurso do inquérito são actos de inquérito e, por isso, não estão sujeitos à promoção do Ministério Público; a este propósito parece-nos importante referir os poderes de investigação autónoma do juiz de instrução, ainda mesmo na fase do inquérito, para efeito de fundamentar a sua decisão sobre medidas de coacção; enquanto actos de investigação tenham essa finalidade podem ser praticados ou ordenados pelo juiz de instrução, oficiosamente ou a requerimento de qualquer sujeito processual interessado».
Mas ela mais permite, como inferência lógica: a afirmação de que a intervenção do juiz de instrução no inquérito é necessariamente excepcional, que, por isso, tinha de ser, na lei, expressamente afirmada e concretamente delimitada, o que não sucede, como se sabe, pelo já dito.
Nestes termos, então, essa competência somente podia ser exercida pelo Ministério Público.
Sucede que, no âmbito dos actos processuais, signanter, no seu conspecto mais específico da publicidade do processo e segredo de justiça, não deixa de haver normas que “incentivam” este entendimento, quando se referem, especificamente, à autoridade judiciária (que pode ser o Ministério Público, no âmbito da sua competência, como resulta do art. 1º, al. b), do C. de Processo Penal) – v. os arts. 86º, n.ºs 3, 5 e 7 e 8, als. a) e b), 88º, n.º 2, als. a) e b), 89º, n.º 3, e 90º, n.º 1, do C. de Processo Penal.
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Debrucemo-nos sobre a terceira questão (a interpretação acabada de afirmar padece de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts. 20º, n.ºs 1 e 4, e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa?).
Cabe dizer, já: não vemos como esta interpretação pode estar inquinada da indicada inconstitucionalidade.
Vejamos, então, porquê.
Pode dizer-se, desde logo, decisivamente, que nos parece desfocada a perspectiva da invocada inconstitucionalidade, pois não pode a mesma assentar em perspectivas essencialmente formais, como são as que se prendem com a afirmação da competência ou da incompetência. Tem de se basear no que se pode ter como substancial, logo, fundamental ou decisivo, e que, aqui, se tem de entrelaçar com o direito, diga-se deste modo, de acesso aos autos, que, como se vê do que rege o art. 89º, n.º 1, do C. de Processo Penal, está legalmente consagrado, na extensão que a lei entendeu como possível (necessário, mesmo), que nada tem a ver, portanto, com a competência ou incompetência, para, em termos de procedimento, afirmar, em termos práticos, pelo reconhecimento, esse mesmo direito [nos expressivos dizeres de Maria João Antunes, O Segredo de Justiça e o Direito de Defesa do Arguido Sujeito a Medida de Coacção, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, págs. 1237/1238, «na impossibilidade de harmonização integral destas finalidades (a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada), o critério residiu na compressão mútua das finalidades em conflito, de modo a que de cada uma se salvasse, em cada situação, o máximo conteúdo possível, optimizando os ganhos e minimizando as perdas axiológicas e funcionais, de forma a atribuir a cada uma a máxima eficácia possível, arredando um critério que assentasse numa validação da finalidade preponderante à custa da de menor hierarquia; finalidades e critério de superação de um conflito inevitável que são, por seu turno, notas necessárias e irrecusáveis do processo penal de um Estado de direito democrático, o qual encontra concretização adequada numa estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação; pois onde se dê guarida a um só dos valores conflituantes, em detrimento de todos os restantes, aí estará um sinal seguro – salvo se estiver em jogo a intocável dignidade da pessoa humana – de uma solução antidemocrática e totalitária; bem se podendo afirmar ... que a realização simultânea das finalidades apontadas ao processo penal e a obtenção do seu equilíbrio, em caso de conflito, constituem o atractivo e a dificuldade deste ramo do direito »].
Isto mesmo, em essência, é reconhecido pelo arguido, quando, neste âmbito, nada mais fez do que invocar o art. 89º, n.º 1, do C. de Processo Penal, para, diga-se assim, aceder, na totalidade, ao processo (correspondente ao inquérito encerrado e aos inquéritos não encerrados).
Dito isto, mais se tem de dizer: aquela interpretação sobre o art. 89º, n.º 1, do C. de Processo Penal, não padece de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts. 20º, n.ºs 1 e 4, e 32º, n.º 1, do C. de Processo Penal.
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Eis, por tudo, a conclusão: o recurso não merece provimento.
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3. Dispositivo
Nega-se provimento ao recurso.
Condena-se o arguido, porque decaiu totalmente, no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (não é efectivamente conhecida a situação económica do arguido; a complexidade do processo não foi significativa) e arbitrando-se a procuradoria em ¼ de 3 UC (para lá do que se disse sobre a situação económica do arguido, o volume e a natureza da actividade desenvolvida foi algo contida) – v. o que dispõem os arts. 513º, n.º 1, 514º, n.º 1, de C. de Processo Penal, 82º, n.º 1, 87º, n.ºs 1, al. b), e 3, e 95º, n.º 1, de C. das Custas Judiciais.

Porto, 17 de Janeiro de 2007
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Olga Maria dos Santos Maurício