Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
929/24.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: DECISÃO SURPRESA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
CONTRADITÓRIO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP20250306929/24.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – É admissível a dispensa de realização de audiência prévia em situações de conhecimento do mérito na fase intermédia, em ação de valor superior metade da alçada do Tribunal da Relação (art. 595.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil), ao abrigo do disposto nos arts. 6.º e 547.º do Cód. Proc. Civil, quando o conhecimento do mérito assentar em questão suficientemente debatida nos articulados e tal dispensa tiver sido precedida de consulta das partes, sem oposição das mesmas.
II – É de rejeitar o entendimento de que, para se cumprir o princípio do contraditório e para a decisão recorrida não ser uma decisão surpresa, o tribunal tem que anunciar às partes o teor e fundamentos da decisão de mérito que vai proferir, previamente à sua prolação; o que a observância do princípio do contraditório e da proibição das decisões surpresa exige é que as partes tenham a possibilidade de tomar posição quanto à questão em litígio e quanto à tramitação do processo – no caso, quanto à existência dos elementos/verificação dos pressupostos para o conhecimento do mérito na fase intermédia da ação.
III – Só se pode falar de violação do princípio do inquisitório e do princípio da cooperação, designadamente, por omissão do poder-dever de “convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” – art. 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do Cód. Proc. Civil –, quando exista matéria de facto alegada de forma insuficiente ou imprecisa carecida de ser complementada ou concretizada.
IV – A obrigação de convidar a parte a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada pela parte no articulado respetivo não se confunde com qualquer – inexistente e inadmissível – obrigação de convidar a parte a efetuar a alegação de factos que não foram alegados e que seriam necessários para sustentar uma eventual procedência da ação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 929/24.0T8VNG.P1

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Sumário:

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Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

O autor AA intentou ação declarativa, com processo comum, contra BB e CC peticionando a condenação dos réus no pagamento de “€709.977,07 ou montante superior que se vier a apurar, acrescido de juros vencidos e vincendos até integral pagamento, a título de danos sofridos pelo autor”.

Alega, para tanto, que os réus são administradores da sociedade comercial “A..., S.A.”, sobre a qual tem um crédito reconhecido por sentença transitada em julgado e objeto de cobrança coerciva, sucedendo que, no âmbito da ação executiva, foram descobertos factos que evidenciam a violação culposa de disposições legais e contratuais destinadas à proteção dos credores, lesando os seus interesses, designadamente do autor, por terem tornado o património da referida sociedade comercial insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos, apresentando-se o autor como credor para os efeitos do disposto nos arts. 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais.
Citados, os réus contestaram, requerendo a suspensão do processo até ser proferida decisão transitada em julgado nos processos n.º 8271/23.8T8VNG e n.º 956/24.8T8VNG do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia e, defendendo-se por exceção, arguindo a prescrição do invocado direito de indemnização, e também por impugnação, pronunciando-se, além do mais, pela falta de fundamento da ação.
O autor exerceu o contraditório quanto à matéria alegada na contestação (requerimento de 11-04-2024, ref. 38712786).
Em 14-09-2024 (ref. 463158210) o tribunal a quo proferiu despacho que:
– Indeferiu a arguição da ilegalidade do requerimento de ‘resposta à contestação’ apresentado pelo autor em 11-04-2024;
– Indeferiu a suspensão da instância requerida pelos réus;
– Ordenou a notificação das partes nos seguintes termos:
Os autos contêm os elementos necessários à prolação dos despachos a que aludem os arts. 595º e 596º do Código de Processo Civil, ponderando o tribunal conhecer de imediato do mérito da acção.
Assim, uma vez que as excepções e demais questões colocadas pelas partes já foram discutidas nos articulados, afigura-se que tais despachos podem ser proferidos por escrito, sem necessidade de deslocação dos intervenientes ao tribunal, dispensando-se a realização da audiência prévia.
Nestes termos, notifique o autor e os réus para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem acerca da dispensa da audiência prévia, com a cominação de que o seu silêncio será entendido como concordância.
Em 17-09-2024 (ref. 463493375 e ref. 463493378) foi efetuada a notificação eletrónica do referido despacho às partes, nada tendo sido dito pelas mesmas.

Em 14-10-2024 foi proferido despacho saneador que conheceu imediatamente do mérito da causa, julgando a ação improcedente e absolvendo os réus do pedido.

Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:

a) Por decisão transitada em julgado, o Recorrente é credor da sociedade A..., S.A., tendo instaurado a presente ação contra os RR., administradores da sociedade, por considerar que violaram o disposto nos art.º 78 e art.º 79 do CSC, face ao comportamento que tiveram;

b) Por despacho-sentença, sem a realização da audiência prévia, o Tribunal a quo veio julgar a presente ação como improcedente;

c) O Recorrente foi surpreendido com a decisão surpresa que considera ilegal;

d) Com efeito, mesmo invocando o disposto nos art.º 6 e art.º 547 do CPC, ao Tribunal a quo estava impedido de decidir sobre o mérito da causa sem convocar a audiência prévia com vista à discussão da matéria de facto e de direito, atento o disposto no art.º 493 e art.º 3 do CPC;

e) A mera menção “os autos contêm os elementos necessários à prolação dos despachos a que aludem os arts. 595º e 596º do Código de Processo Civil, ponderando o tribunal conhecer de imediato do mérito da acção.”, afigura-se insuficiente para que a parte tenha consciência da pretensão do Tribunal a quo;

f) Houve violação do disposto no art.º 7 do CPC;

g) Por excesso de pronuncia, a decisão é nula atento o disposto no art.º 615, 1 alínea d) do CPC, sendo arguível no âmbito do recurso de decisão final que coloca termo ao processo;

h) Acresce que, existindo insuficiência de matéria de facto alegada pelo Recorrente, cabia ao Tribunal a quo, atento o disposto no art.º 6 e art.º 7 do CPC, na procura da melhor solução de direito, convidar o Recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, de modo a enquadrar o seu pedido;

i) Não o tendo feito, também violou a disposto nos referidos preceitos;

j) Assim, o Tribunal a quo violou o disposto nos art.º 6, art.º 7, art.º 547 e art.º 593, sendo a decisão nula nos termos do art.º 615, n.º 1 e alínea d), todos do CPC.

Conclui que deve ser dado provimento ao recurso, sendo revogada a decisão e prosseguindo o processo os seus termos.

Os réus apresentaram resposta ao recurso, concluindo pela sua improcedência.

O tribunal a quo, por despacho de 14-01-2025, admitiu o recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Objeto do recurso:

Questões a decidir

Atentas as conclusões das alegações de recurso que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil, cumpre apreciar se o saneador-sentença proferido é nulo:

– Por violação do princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa;

– Por violação do princípio da cooperação, por omissão pelo tribunal a quo de convite ao aperfeiçoamento pelo autor da petição inicial, para suprir a insuficiência da matéria de facto.

Acresce a responsabilidade quanto a custas.


III – Fundamentação:

De facto

Os factos a considerar são os que estão descritos no relatório.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito a abordar:
1. Nulidade por violação do princípio do contraditório – decisão surpresa
1.1. Audiência prévia – admissibilidade de dispensa
1.2. Decisão surpresa
2. Omissão de convite ao aperfeiçoamento
3. Responsabilidade pelas custas

1. Nulidade por violação do princípio do contraditório – decisão surpresa

Sustenta o apelante a arguição da nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório, com fundamento quer na omissão da realização da audiência prévia, quer no facto do despacho proferido em 14-09-2024 não “especificar, à partida, a matéria de facto assente e fundamentos de direito para que o Recorrente pudesse cumprir o disposto no art.º 3 do CPC”.

1.1. Audiência prévia – admissibilidade de dispensa

Invoca o apelante que o «(…) Tribunal a quo estava impedido de decidir sobre o mérito da causa sem convocar a audiência prévia com vista à discussão da matéria de facto e de direito, atento o disposto no art.º 493 e art.º 3 do CPC (…)».

Percebe-se que a indicação do art. 493.º se deve a lapso, pretendendo o apelante referir-se ao art. 593.º do Cód. Proc. Civil.

Defende o apelante, sumariamente, que é obrigatória a realização de audiência prévia sempre que o tribunal pretenda conhecer do mérito da causa nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 595.º do Cód. Proc. Civil, não podendo nesses casos ser dispensada a realização da audiência prévia, designadamente, ao abrigo do disposto no art. 593.º do Cód. Proc. Civil. E, com tais fundamentos, invoca a nulidade da decisão recorrida alegando que não foi dado cumprimento ao disposto no art.º 3 e no art. 593.º do Cód. Proc. Civil, não podendo ser dispensada a realização da audiência prévia com fundamento nos arts. 6.º e 547.º do Cód. Proc. Civil, como fez o tribunal a quo.

Não subscrevemos este entendimento.

Da leitura conjugada dos arts. 591.º a 593.º e 595.º do Cód. Proc. Civil o que resulta é que o legislador, considerando que a realização da audiência prévia traz inegáveis benefícios ao processo, consagrou como regra a sua realização, emergindo da análise conjugada das referidas disposições legais e soluções jurídicas nelas consagradas que a decisão de realização da audiência prévia constitui um ato de gestão processual, cabendo desde logo ao juiz, em primeiro lugar, aferir da necessidade e adequação da sua realização e conferindo ainda às partes «(…) o direito potestativo de provocarem o seu agendamento (art. 593.º, n.º 3), tendo nisso interesse (em agir), numa expressão dos princípios dispositivo e do contraditório (art. 3.º).

A audiência prévia é hoje um ato de gestão processual, concedendo-se a quem está em condições de compreender se é adequada ao caso concreto o poder de decidir da sua realização. Não se trata, no entanto, de aceitar um individualismo autocrático do juiz; trata-se de lhe conceder um elevado grau de autonomia na gestão do processo, numa permanente interação com os advogados. (…) A realização da audiência prévia está longe de ser forçosa. No entanto, este ato processual faz parte da infraestrutura do processo comum de declaração, integrando a sua realização o modelo a seguir (preferencialmente) em casa processo individual. (…)» – cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2013, Vol. I, Almedina, pág. 484.

Na interpretação do disposto no art. 593.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, designadamente, no que concerne à necessidade de realização de audiência prévia sempre que o juiz pretenda conhecer imediatamente de todo o mérito da causa, consideramos que esta é de realização necessária «(…) se a questão não tiver sido debatida nos articulados, o que vale dizer que pode ser dispensada no caso oposto (art. 547.º). Esta decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art. 3.º, n.º 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.

Note-se que a al. b) do n.º 1 do art. 591.º não prevê a realização da audiência para o juiz decidir o mérito da causa. Este fim decisório vem, sim, previsto na al. d) do mesmo número – veja-se, ainda, o art. 595.º, n.º 1, al. b). O fim contido na al. b) visa, sim, assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, o qual poderá ser garantido nos termos acima referidos. (…)» – cfr. op. cit., pág. 494.

Concluímos, deste modo, que a relevância capital da realização da audiência prévia, nos casos em que, findos os articulados, se coloque a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da ação, respeita à possibilidade do exercício, pelas partes, do contraditório relativamente ao eventual conhecimento imediato do mérito nomeadamente com a possibilidade de ser feita a discussão de facto e de direito da causa nessa perspetiva (art. 591.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).

O tribunal recorrido, no caso, no despacho de 14-09-2024 (ref. 463158210), proferido antes da prolação da decisão recorrida, deu a devida conta às partes de que, face aos contornos da ação e da contestação explanados pelas partes nesses articulados considerava existirem já nos autos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da ação, e considerava ainda ser desnecessária a realização da audiência prévia por, as questões pertinentes para o conhecimento do mérito já estarem discutidas nos articulados respetivos, sendo tal razão – ou seja, o juízo quanto à desnecessidade da sua convocação por já estar satisfeita a finalidade a que a sua realização se destinaria – o fundamento da decisão de dispensa da sua realização.

E não só deu às partes conhecimento quanto a esse seu entendimento de ser possível conhecer – sem mais diligências, designadamente, de produção do prova – do mérito da ação, como quanto ao seu entendimento de desnecessidade de realização de audiência prévia pelo facto das questões a conhecer, para apreciação do mérito da pretensão deduzida e exceção invocada, já estarem discutidas nos articulados, como também concedeu às partes prazo para, a terem entendimento distinto do tribunal designadamente quanto à desnecessidade da realização da audiência prévia, o manifestarem no prazo de 10 dias.

Com tal despacho, foi dado pelo tribunal a quo pleno cumprimento ao princípio do contraditório, podendo qualquer das partes que discordasse do juízo de desnecessidade da realização da audiência prévia – fosse por pretenderem exercer o contraditório e/ou manifestarem oposição quanto à possibilidade de conhecimento imediato do mérito da casa, fosse por entenderem necessária a realização da audiência por considerarem não estar ainda devidamente efetuada a discussão de facto e de direito nos articulados apresentados – ter manifestado, no prazo concedido, a sua discordância, o que determinaria, nesse caso, a necessidade de realização da audiência prévia por vontade das partes, no escopo e em conformidade com a finalidade prosseguida pelo legislador subjacente ao ‘direito potestativo’ consagrado no art. 593.º, n.º 3, do CPC, nos moldes acima referidos, em cumprimento e observância do princípio do contraditório consagrado no art. 3.º do Cód. Proc. Civil.

As partes, no entanto, nada requereram, pelo que, desde logo considerando o princípio do dispositivo, fica afastada qualquer nulidade decorrente da mera não realização da audiência prévia, que foi dispensada por não ser necessária para assegurar o exercício do contraditório quanto às questões que vieram a ser conhecidas e apreciadas no despacho recorrido – possibilidade de conhecimento do mérito da ação e improcedência desta, face aos termos da causa de pedir delineada na petição inicial e sua subsunção jurídica – sem que qualquer das partes tivesse discordado dessa desnecessidade e/ou requerido a sua realização e/ou manifestado a sua discordância quanto à anunciada possibilidade de conhecimento imediato do mérito da ação.

No sentido da admissibilidade de dispensa de realização de audiência, em situações como a dos presentes autos (conhecimento de mérito na fase intermédia de ação de valor superior metade da alçada do Tribunal da Relação), ao abrigo do disposto nos arts. 6.º e 547.º do Cód. Proc. Civil, quando o conhecimento do mérito assentar em questão suficientemente debatida nos articulados e tenha sido precedido de consulta das partes, vejam-se os Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2018 (processo 3054/17.7T8LSB-A.L1-6) e de 05-05-2015 (processo 1386/13.2TBALQ.L1-7).

1.2. Decisão surpresa

Alega ainda o apelante que a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa.

Como é referido por Paulo Ramos de Faria e Nuno Lemos Jorge, As outras nulidades da sentença cível, Julgar Online, setembro 2024, págs. 24 e 25 [1], «(…) Decisão-surpresa é a decisão proferida em violação da segunda norma enunciada no art. 3.º, n.º 3, de conteúdo proibitivo34: não é lícito ao juiz, “salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Na decisão-surpresa é, pois, inovadoramente, adotada uma “terceira via”35, afastando-se tribunal das soluções que as partes consideraram nos seus atos ou sobre as quais foram convidadas a se pronunciarem 36-37.».

Lidas as alegações de recurso, a fundamentação da arguição da decisão recorrida como uma decisão surpresa consta do seguinte trecho das referidas alegações:

«(…) querendo conhecer imediatamente do mérito da causa, competia ao Tribunal a quo especificar, à partida, a matéria de facto assente e fundamentos de direito para que o Recorrente pudesse cumprir o disposto no art.º 3 do CPC.

Porém, o despacho anterior ao despacho saneador, nada diz.

Apenas se refere o seguinte:

“Os autos contêm os elementos necessários à prolação dos despachos a que aludem os arts. 595º e 596º do Código de Processo Civil, ponderando o tribunal conhecer de imediato do mérito da acção.”

Ora, tal menção é manifestamente vaga e insuficiente, violando o dever de cooperação, conforme o disposto no art.º 7 do CPC. (…)».

Como resulta da análise já acima efetuada em 1.1., foi devidamente facultado às partes, pelo tribunal a quo, o exercício do contraditório quanto à possibilidade de conhecimento imediato do mérito da ação na sua fase intermédia, nos termos previstos e admitidos no art. 595.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil.

Ocorreu aqui, por conseguinte, pleno cumprimento do princípio do contraditório: foi facultada às partes, previamente à prolação de decisão sobre o mérito da causa, a possibilidade de se pronunciarem sobre a verificação dos pressupostos justificativos da possibilidade de prolação de tal decisão, sem necessidade de prosseguimento da ação, como claramente consta do despacho proferido em 14-09-2024, designadamente, na parte em que o juiz a quo informa que considera que «Os autos contêm os elementos necessários à prolação dos despachos a que aludem os arts. 595º e 596º do Código de Processo Civil, ponderando o tribunal conhecer de imediato do mérito da acção» e que «as excepções e demais questões colocadas pelas partes já foram discutidas nos articulados» pelas partes.

Cabia às partes, se entendiam não se verificarem os pressupostos indicados pelo tribunal como fundamento da possibilidade de decisão imediata da causa – fosse por considerarem existir matéria controvertida relevante para a decisão a proferir, que impedia o conhecimento do mérito sem a realização da fase da instrução, fosse por considerarem ser necessária discussão adicional às posições assumidas nos articulados perante o comunicado entendimento da possibilidade de conhecer do mérito da ação –, manifestar tal discordância, no exercício do contraditório que lhes foi devidamente facultado pelo tribunal recorrido.

Não há, assim, qualquer violação do princípio do contraditório pelo tribunal recorrido na prolação, na fase intermédia da ação, de decisão que conhece do mérito da ação, antes tendo o tribunal a quo assegurado devidamente o pleno cumprimento de tal princípio, inclusive no entendimento deste princípio do contraditório como «(…) garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (…)» e como «(…) influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.» – Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 124 e 125.

O entendimento do apelante de que, para se cumprir o princípio do contraditório e para a decisão recorrida não ser uma decisão surpresa, tinha o tribunal a quo que, previamente à prolação da decisão, “especificar (…) a matéria de facto assente e fundamentos de direito” da decisão que iria tomar, é claramente de rejeitar, não obtendo qualquer acolhimento no regime do processo civil vigente.

A decisão a proferir pelo juiz resolve um diferendo entre as partes, no âmbito de um processo em que vigoram os princípios do dispositivo, da igualdade entre as partes e do contraditório. A observância deste último princípio não exige que o tribunal anuncie às partes o teor e fundamentos da decisão de mérito que vai proferir, previamente à sua prolação; o que exige é que as partes tenham a possibilidade de tomar posição quanto à questão em litígio e quanto à tramitação do processo – no caso, quanto à existência dos elementos/verificação dos pressupostos para o conhecimento do mérito na fase intermédia da ação.

As questões a decidir – e que foram apreciadas na decisão recorrida – foram as questões suscitadas pelas partes nos respetivos articulados (petição inicial e contestação) e, inclusive, no requerimento do autor aqui apelante em que exerce o contraditório relativamente à contestação dos réus.

Nessas peças processuais as partes tomaram as respetivas posições quanto ao objeto do processo, tendo-se pronunciado sobre as questões que foram decididas na decisão recorrida.

A decisão de mérito e a sua concreta fundamentação é da competência exclusiva do juiz, não cabendo no exercício do contraditório dar prévio conhecimento às partes do projeto da decisão, para que estas manifestem a sua concordância, discordância e respetiva fundamentação. Proferida a decisão, perante a não concordância da/s parte/s com a fundamentação e/ou decisão proferida, pode/m a/s mesma/s interpor o competente recurso da decisão.

O direito das partes à participação efetiva na evolução da instância, tendo as mesmas a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa, não se confunde nem se traduz na possibilidade de analisar e se pronunciar, previamente à prolação da decisão, sobre a respetiva fundamentação de facto e de direito.

Concluímos, deste modo, pela inexistência de qualquer violação do princípio do contraditório e de qualquer qualificação da decisão recorrida como decisão surpresa, por o tribunal a quo não ter, no despacho proferido em 14-09-2024, “especificado a matéria de facto assente e fundamentos de direito” da ulterior decisão de mérito da causa cuja nulidade, com tais fundamentos, é arguida neste recurso.

2. Omissão de convite ao aperfeiçoamento

Alega o apelante, na al. h) das conclusões que “(…) existindo insuficiência de matéria de facto alegada pelo Recorrente, cabia ao Tribunal a quo, atento o disposto no art.º 6 e art.º 7 do CPC, na procura da melhor solução de direito, convidar o Recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, de modo a enquadrar o seu pedido;” e que, não o tendo feito, violou o disposto no art. 411.º do Cód. Proc. Civil, sendo a decisão nula nos termos do art.º 615, n.º 1 e alínea d), do Cód. Proc. Civil.

Fundamenta tal na arguição de que “(…) ao decidir de forma prematura, o Tribunal a quo prescindiu de avaliar a prova a produzir e dar a oportunidade ao Recorrente de aperfeiçoar se assim fosse o caso.”, e que “competia ao Tribunal a quo, segundo o princípio da cooperação, nos termos do art.º 7 do CPC”, “verificando insuficiência da matéria de facto (…) convidar [o recorrente] a especificar a matéria de facto, com vista a encontrar a melhor solução de direito aplicável.”, concluindo que “[a]o não fazer (…) o Tribunal a quo não cooperou e abdicou de alcançar a justa composição do litígio.

Toda a alegação do apelante quanto à pretensa omissão, pelo tribunal recorrido, de convite ao aperfeiçoamento dos articulados é uma explanação teórica sem qualquer sustentação concreta, uma vez que, desde logo, o apelante não refere onde é que a decisão recorrida fundamentou a decisão de improcedência em “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, nem tão pouco qual é a matéria de facto por si alegada na petição inicial cuja imprecisão na exposição ou concretização era passível de ser corrigida mediante a formulação, pelo tribunal recorrido, do competente convite ao aperfeiçoamento. Como é apodítico, só se pode falar de violação do princípio do inquisitório e do princípio da cooperação, designadamente, por omissão do poder-dever de “convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” – art. 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do Cód. Proc. Civil –, quando exista matéria de facto alegada de forma insuficiente ou imprecisa carecida de ser complementada ou concretizada.

A incapacidade de indicação (identificação) pelo apelante, nas alegações de recurso, da matéria de facto da petição inicial cuja alegação se mostra insuficiente ou imprecisa e carecida de suprimento ou concretização é, por si só, demonstrativa da falta de fundamento da arguida omissão de prolação pelo tribunal recorrido de um devido convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

A obrigação de convidar a parte a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada pela parte no articulado respetivo não se confunde com qualquer – inexistente e inadmissível – obrigação de convidar a parte a efetuar a alegação de factos que não foram alegados e que seriam necessários para sustentar uma eventual procedência da ação.

Não se verifica a arguida nulidade da decisão recorrida por omissão de despacho de convite ao aperfeiçoamento.

3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).

A responsabilidade pelas custas cabe ao apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IVDispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.

Custas a cargo do apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

Notifique.


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Porto, 6/3/2025
(data constante da assinatura eletrónica)
Ana Luísa Loureiro
Isabel Silva
Ana Vieira
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