Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
714/10.7TVPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE PERFILHAÇÃO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20240408714/10.7TVPRT.P2
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional em sede fiscalização concreta sucessiva e, por isso, sem força obrigatória geral, com os n.ºs 308/2018, de 7.6, e 112/2023, de 19.12, declararam inconstitucional norma do art. 1859.º/2 do CC – a qual estabelece a imprescritibilidade das ações de impugnação da paternidade estabelecida por perfilhação – por violação do princípio da igualdade e da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, consagrados nos arts. 13.º e 36.º/ da Const.
II - Já anteriormente a tais decisões, vinham a doutrina e a jurisprudência entendendo que a ausência da previsão de caducidade do direito de impugnar a perfilhação devia ser limitada pelo instituto do abuso do direito, quando o exercício da faculdade jurídica processual de desconstituir tal vínculo surgisse como gravemente chocante e reprovável ao sentimento jurídico prevalente da comunidade.
III - A considerar-se dever ser aplicado um prazo para a propositura da ação de impugnação da perfilhação – mormente o previsto na norma paralela do art. 1842.º/1 al. a) do CC, relativa à ação de impugnação da paternidade presumida (três anos após conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se pela não paternidade biológica) - tratar-se-á de um prazo de caducidade.
IV - Nos termos do art. 333.º/1 CC, “a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes”.
V - Quer isto dizer que, tratando-se de posições indisponíveis, a não invocação expressa da caducidade não significa que dela se prescinda, sobretudo quando as posições jurídicas em causa transcendem a esfera dos interessados. Nesse caso, o tribunal deve suprir, de ofício, a mencionada exceção.
VI - Tal prazo de caducidade, a ser aplicável às ações de impugnação da perfilhação, não pode considerar-se afetar apenas a posição jurídica do perfilhante de complacência pois a imprescritibilidade da ação de impugnação da perfilhação afrontaria os preceitos fundamentais indicados pelo Tribunal Constitucional se a posição do perfilhado – permanentemente ameaçado, durante toda a sua vida, com o perigo de ver destruída a paternidade legalmente estabelecida – se se visse afrontada por uma ação a propor a todo o tempo pelos demais titulares de interesse moral ou patrimonial na procedência dessa ação, sejam esses os outros filhos do perfilhante ou mesmo o cônjuge deste.
VII – Tendo já sido proferidos pelo Tribunal Constitucional dois acórdãos em sede de fiscalização concreta com aquele sentido, afigura-se-nos curial que se debatam largamente nas ações posteriores onde o tema se coloque todos os argumentos neles expostos e, para isso, necessário se torna que os autos disponham da factualidade determinante para a decisão, num ou noutro sentido, sobre a dita caducidade e/ou sobre o abuso do direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.714/10.7TVPRT.P2

Sumário do acórdão proferido elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

AUTORA: AA, solteira, residente em Rua ..., ... Porto.

Intervenientes principais, do lado ativo da demanda:

 BB

 CC

 DD

 EE

 FF

RÉS: GG, residente no Brasil, por si e como legal representante de sua filha, então menor, HH.

Por via da presente ação declarativa, pretende a A. o seguinte:

Ver reconhecido que a então menor (a ação foi proposta a 7.9.2010), HH, não é filha biológica do pai da A. e dos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º intervenientes, II (doravante II);

Ver impugnada a perfilhação da segunda Ré efetuada por II na ... do Registo Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato da Capital do Estado do Rio de Janeiro, bem como a que fez por declaração testamentária lavrada no testamento público junto como documento 24 (fls. 70 a 72), datado de 5.9.2002.

Ordenada a correção do Registo de Assento de Nascimento n.º ...16/2007 do Consulado Geral de Portugal no ..., Brasil, transcrito pelo registo ...05... nos Registos Centrais, assento em que foi declarante a Ré GG, mãe da menor, deixando de aí constar a menção de que II é pai da Ré e retirados do nome da menor os apelidos ....

Para tanto alegou que seu pai, II, era casado com a primeira interveniente, tendo este casal gerado cinco filhos, a A. os e restantes quatro intervenientes principais, seus irmãos.

II faleceu no Brasil, em 2002, no estado de casado com a primeira interveniente.

Aquando da citação de sua mãe para processo de inventário aberto por óbito de seu pai e instaurado pela Ré menor, representada pela mãe, em Portugal (proc. 155/10.6TBPRT, a A. teve conhecimento da existência de uma certidão emitida pelas autoridades brasileiras na qual II, em junho de 1997, se declarou pai da Ré, nascida em ... desse ano. Em agosto seguinte, a mãe da menor, usando aquele documento, obteve assento de nascimento da filha, no Consulado Geral de Portugal, aí constando como pai II.

Deslocando-se ao Brasil, a A. veio ainda saber que, já em julho do mesmo ano, II havia instaurado ação contra a menor, representada pela mãe, alegando não ser progenitor da criança e requerendo a nulidade do registo quanto à paternidade, tendo a menor, representada pela mãe, respondido processualmente, afirmando concordar com o pedido, devendo o registo ser considerado nulo.

As partes vieram, depois, apresentar desistência desse procedimento e, pouco menos de dois anos após (em março de 1999), II instaurou nova ação, visando o mesmo desiderato, alegando ter efetuado exame de ADN que excluiu a possibilidade de ser pai biológico da menina, tendo vindo novamente a desistir do processo para, em 2001, requerer a sua reabertura, realizando mais dois exames de ADN, os quais igualmente o excluíram da paternidade da segunda Ré, e tendo os respetivos relatórios sido juntos àqueles autos já em 2004, depois da morte do aí demandante que, em testamento de setembro de 2002, indicou entre os filhos sucessores a segunda Ré.

Os tribunais brasileiros já reconheceram a ausência de vínculo biológico entre a segunda Ré, atualmente já maior, mas consideram o falecido pai daquela aludindo a um parentesco sócio-afetivo.

Contestou a primeira Ré, a 24.4.2012, invocando a exceção de caso julgado com a ação ordinária de anulação da paternidade que já teve lugar no ..., com decisão de 20.10.2007 e decisão final, em recurso extraordinário, a 1.9.2011, exceção esta já julgada improcedente por acórdão proferido por esta Relação, a 11.4.2018.

Disse, ainda, que a A. e seus irmãos, logo após terem conhecimento do nascimento da segunda Ré, sempre trataram e aceitaram a menor no seio da família. Mais salientou que os advogados que patrocinam a A., seus irmãos e mãe em processo de inventário que corre termos na 1.ª Vara Cível do ... (aí proposto pela interveniente FF, a 3.8.2005), são os mesmos que foram constituídos pelo interveniente DD no processo de anulação do registo de paternidade por este instaurado no Brasil. Concluiu, por isso, não corresponder à verdade que a A. apenas teve conhecimento dos factos aquando da instauração do processo de inventário ...5/10.6T..., afirmando que todos os intervenientes conheciam as providências judiciais instauradas pelo interveniente DD

Invocou a sua ilegitimidade passiva, defesa já julgada improcedente pelo despacho saneador de 16.1.2017.

Por outro lado, diz que a procedência da ação poderá causar elevado e irreparável prejuízo de natureza moral e afetiva à então menor, merecendo a filiação tutela constitucional e até internacional, aludindo ao disposto nos arts. 18.º, 25.º, 26.º e 69.º da Constituição e 3.º, n.º 1, da Convenção dos Direitos da Criança

Pede a condenação da A. como litigante por má-fé.

Replicou a A., a 23.5.2012, opondo-se à procedência da exceção de caso julgado, relativamente a processo em que não foi parte. Afirma não reconhecer o ordenamento português a perfilhação afetiva, assistindo legitimidade ao herdeiro do perfilhante para impugnar em juízo a perfilhação de quem não é filho biológico do mesmo.

Mais refere a legitimidade da primeira Ré, à luz do disposto no art. 1846.º CC.

Afirma ainda ter agido processualmente ao abrigo das normas aplicáveis, razão por que se opõe à pretendida condenação como litigante por má-fé.

Foi nomeado curador especial à menor que não contestou a ação, tendo vindo o MP suprir tal ausência, mediante contestação que juntou a 19.5.2014, afirmando que a eventual procedência da ação apenas teria efeitos no registo português e na dupla nacionalidade de que, por efeito daquele, beneficia a segunda Ré, uma vez que o ato efetuado no Brasil já foi validade pela Justiça desse país.

Impugnou, por desconhecimento, o facto da falsidade ou não da paternidade biológica, impugnando os documentos juntos pela A. relativamente à prova da exclusão da paternidade do falecido.

A A. exerceu o contraditório, a 3.7.2014.

A representação do MP, por atingimento da maioria da segunda Ré, cessou por despacho de 12.5.2015.

Veio a ser proferido despacho saneador, a 12.5.2015, julgando procedente a exceção de caducidade, o qual foi depois revogado por este Tribunal da Relação, a 12.4.2018, tendo-se aí entendido que a ação instaurada no Brasil pelo interveniente DD visava a anulação da perfilhação por erro, correspondendo à ação prevista no nosso ordenamento do no art. 1860.º do CC, sendo que, nestes autos, se trata de algo distinto: a impugnação da perfilhação. Ademais, tendo-se naquela decisão estrangeira erigido como vínculo filial o vínculo sócio-afetivo, reconhecendo-se que o de cujus não é pai biológico da Ré, o interesse público na reposição da verdade biológica que carateriza a lei portuguesa impede que se reconheça à decisão brasileira a autoridade de caso julgado.

Foi elaborado novo despacho saneador, datado de 17.1.2019 e lavrado em ata desse dia.

Entre as diligências de prova que se procurou levar a efeito, antes de efetuado o julgamento, esteve a realização de testes biológicos e/ou genéticos, propondo mesmo a A. a exumação do cadáver seu pai para tal efeito.

Para tanto, na mesma ata, foi proferido o seguinte despacho:

admito a realização de exame pericial, conforme requerido pelos autores, devendo o mesmo ser solicitado ao INMLCF, autorizando, desde já, a exumação do cadáver do perfilhante II, caso não seja possível obter qualquer conclusão dos exames a realizar na pessoa dos autores identificados no requerimento supra e das rés.

Foi marcada uma primeira data pelo INML, para 28.2.2019, data que foi sucessivamente adiada, nomeadamente por impossibilidade de notificação das Rés, tendo a Ré HH, a 19.9.2019, sido finalmente notificada para comparecer no INML, por telefonema com a secretaria do tribunal, logo aí informando o seguinte:

“que não iria comparecer, que não era obrigada, não quis fornecer o seu atual domicílio, e que quando foi informada por este Tribunal de que também iria ser notificada pela entidade Policial, a mesma referiu que iria buscar a respectiva notificação à esquadra da P.S.P”.

No dia e hora indicada para comparecer no INML, HH alegou doença e juntou atestado médico (data de 3.10.2019).

Por ofício de 9.10.2019, a PSP, a quem foi solicitada igualmente a notificação daquela para comparência no INML, informou os autos do seguinte:

A visada HH, contatada por telefone, informou que se deslocava a esta Polícia, pois já não se encontrava na morada indicada, o que não cumpriu, furtando-se à referida notificação (…).

Designada nova data pelo INML para recolha de amostras às Rés, para 18.12.2019, foi mais uma vez impossível notifica-las para comparência, pelo que veio a ser proferido despacho datado de 23.1.2020, com o seguinte teor:

Notifique, de novo, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, e para os contactos da mesma constante destes autos, HH, para no prazo de 8 dias, dar conhecimento aos autos do contacto telefónico da sua mãe GG, morada atual, e endereço de email da mesma.

Notifique, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, e para os contactos da mesma constante destes autos, HH para no prazo de 8 dias informar se já realizou os exames de sangue em causa nestes autos e em que data e caso não os tenha realizado porque motivo faltou no dia agendado para a realização do mesmo.

Notifique o IML competente, para designar nova data para a realização de exames a HH.

A 28.1.2020, foi proferido o seguinte despacho:

Notifique a data do exame, através do Ilustre Mandatário, e para todos os contactos dos autos.

Por cota do dia seguinte, foi dado conta ao processo pela oficial de justiça que “Em 29-01-2020, tentei por diversas vezes, e a várias horas do dia, o contacto telefónico através do número de telemóvel disponível nos ..., no sentido de dar cumprimento ao ordenado no despacho de fls. 2762, ou seja, para proceder à notificação da Ré HH, relativamente à da data do exame de Investigação de Paternidade que se realizará no próximo dia 12-02-2020 às 11:00 horas, no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP -Delegação do Centro - Serviço de Genética e Biologia Forenses, sito no Largo ..., ... Coimbra.

Tal não se mostrou possível, uma vez que o telemóvel encontra-se sempre com sinal de interrompido.

Assim, nesta data, vou proceder à sua notificação atráves do seu Ilustre Mandatário, e por carta registada para a última morada indicada nos autos como sendo a da Ré”.

A 4.2.2020, foi recebido requerimento daquele mandatário, com o seguinte teor:

“JJ, mandatário da Ré HH, tendo sido notificado do despacho com a referência 411534021, vem por este meio expor e ainda requerer a V/ Exª o seguinte:

Aquando da notificação do despacho ora identificado, contactou a sua constituinte para uma reunião no seu escritório afim de lhe dar conhecimento do andamento do processo e recolher as informações requeridas por este tribunal.

Sucede que no dia e hora agendados, a Ré não compareceu, não tendo dado qualquer justificação da sua ausência, tendo o mandatário da Ré recepcionado neste dia (04/02/2020) uma carta registada com aviso de recepção, na qual e Ré lhe dá conhecimento da revogação de todos os poderes conferidos pelo mandato forense (…)”.

Foi, depois, junto o ofício da PSP, de 19.2.2020, com o seguinte teor:

Seguiu-se marcação de nova data pelo INML, para 22.6.2020.

Veio a ser proferido o despacho de 4.6.2020:

Notifique a ré HH, do dia e hora designado para a realização do exame determinado nos autos, nomeadamente através do OPC competente, do telefone constante de fls. 2907, e do email da mesma, devendo constar do auto de notificação de que esta deve comparecer no dia agendado para a realização do exame, sob pena de faltando serem passados mandados de condução para a realização dos mesmos e que caso a mesma se recuse a realizar tais exames se inverterá o ónus de prova no âmbito desta ação.

Notificada daquele despacho pela PSP de Coimbra, onde residia, por mail de 23.6.2020, a Ré HH juntou novo atestado médico para a data de 22.6.2020.

Foi proferido o despacho de 2.7.2020:

Atenta a justificação apresentada pela ré, julga-se justificada a falta à data agendada para a realização dos exames em causa nestes autos.

Solicite à entidade competente a marcação de novos exames, devendo a ré ser notificada nos moldes já anteriormente ordenados, e ainda com a cominação que não se admitirão mais faltas ao exame em causa, se tal acontecer, mesmo sendo apresentada eventual justificação, serão passados de imediato mandados de condução a serem executados pela entidade policial competente.

Notifique, para as moradas dos autos, email e através do OPC competente.

Pelo INML, foi designado o dia 20.7.2020, tendo sido solicitada notificação ao OPC de Coimbra e remetida carta para a segunda Ré, para o respetivo domicílio, em Coimbra.

Não tendo comparecido no INML, dia 20.7.2020, após notificada da data e despacho que antecede, pela PSP, a 16.7.2020, no dia 21.7.2020, HH juntou declaração de presença numa consulta, num hospital privado de Coimbra (hospital ...), sem indicação da impossibilidade de comparecer no INML, razão por que foi considerada injustificada a falta por despacho de 1.9.2020, que ordenou a marcação de nova data pelo INML e a passagem de mandados de condução para a segunda Ré, a executar pela Polícia.

O INML, delegação do Centro, designou a data de 26.10.2020 para o efeito.

Foram passados mandados de condução, datados de 23.9.2020, para cumprimento a 26.10 seguinte, pelas 10:30, os quais não foram cumpridos pela PSP que verificou a presença de pessoas na habitação da Ré que, contudo, não abriram a porta, nem esta atendeu o telemóvel (por cujo número tem vindo a ser contactada nos autos), tendo sido renovado o despacho anterior (destafeita, com data de 4.11.2020).

Pelo INML foi designado o dia 23.11.2020 e passados mandados de condução da segunda Ré, com data de 10.11.2020, remetidos à PSP de Coimbra.

A 23.11.2020, o INML remeteu aos autos declaração aí manuscrita, nesse dia, pela segunda Ré, HH, com o seguinte teor:

Foi realizado julgamento, iniciado a 9.11.2021 e terminado no dia 15 seguinte.

Foi proferida sentença, datada de 28.3.2023, a qual julgou a ação procedente, terminando com o seguinte dispositivo:

- Declara-se que a ré HH, não é filha biológica do referido II;

- Declara-se impugnada a perfilhação que o referido II, fez da Ré menor perante o funcionário da ... do Registo Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato da Capital do Estado do Rio e Janeiro, bem como a que fez por declaração testamentária lavrada no testamento público junto como documento 24.

- Ordena-se a correção do Registo de Assento de Nascimento n.º ...16/2007 do Consulado Geral de Portugal no ..., Brasil, transcrito pelo registo ...05... nos Registos Centrais, registo de assento de nascimento em que foi declarante GG mãe da menor, residente no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, com todas as legais consequências, nomeadamente a de do dito Assento de nascimento deixar de constar a menção de que II é pai da Ré, e a de retirar do nome desta os apelidos ..., os apelidos do referido II;

- Julga-se improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé.

Desta sentença recorre a segunda Ré, visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim esgrimiu em conclusões:

1. A Recorrente vem impugnar a decisão do Tribunal “a quo” que julgou totalmente procedente a ação e condenou a Ré, ora Recorrida;

2. Vem também a Recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente aos factos infra consignados pretendendo que reapreciada a prova documental e seja alterada essa decisão, o que faz nos termos do art.º 640º, n º 1, alíneas a), b) e c) e para os efeitos do art.º 662º, nº 1, todos do C.P.C.;

3. A Recorrente vem Apelar sobre a matéria de direito, tendo sido violada a norma do Artigo 625.º do C. P.C pois não se cumpriu a decisão transitada em julgado em primeiro lugar;

4. Não foi devidamente apreciada a Veneranda Decisão do TR do Porto relativa à excepção de caso julgado;

5. Perante mui douta Sentença verifica-se a autoridade de caso julgado;

6. A Recorrente perante a matéria de facto que impugna entende que se mantém os fundamentos para condenação por litigância de má fé;

7. A Sentença Recorrida incorre em violação de normas constitucionais.

8. Nomeadamente, ao aplicar os artigo 1859.º n.º2 do C. C. violou as normas constantes da CRP nos seus artigos 13.º, 36.º n.º 4, 67.º e 69.º;

9. Viola, ainda, a Sentença Recorrida, as normas constantes ao direito e uso do nome, Artigo 72.º do C. C e 25.º e 26.º da CRP;

10. Quanto à decisão da matéria de facto, foram dados como provados os factos transcritos da mui douta Sentença de 1 a 21;

11. Foram dados como não provados os factos e incorrectamente julgados os pontos seguintes:

12. “Que a A. e os seus irmãos, chamados à presente ação, após terem obtido conhecimento do nascimento da irmã HH fruto da relação extra- conjugal mantida entre o seu pai (e o da menor HH e GG, ora R., sempre trataram e aceitaram a menor no seio da família, admitindo e reconhecendo-a como sendo filha de II e, consequentemente, sua irmã. “

13. Verifica-se, com estranheza, não ter sido dada qualquer valoração à Contestação apresentada pela mãe da ora Requerente, GG, e à Documentação por ela apresentada.

14. Relativamente ao facto considerado não provado e acima transcrito, conforme se esclareceu na contestação apresentada, no documento 15, junto aos autos de Revisão e confirmação de Sentença estrangeira n.º ...8/14...., que correu termos pelo Tribunal da Relação do Porto, e junto aos presentes autos, comprova-se pelas alegações apresentadas pela Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro e verificadas as provas apresentadas pela mãe no Processo cautelar ...1-7, intentado por DD, à qual foi apensa a 07/10/2004, uma acção ordinária de anulação da paternidade, que correu termos pela 2.ª Vara de Família do Forum Regional da ... 15. “As fotografias também juntas por ocasião da contestação, demonstram a forte ligação entre pai e filha, assim como também demonstram a boa relação familiar entre a menor e os seus irmãos – DENTRE OS QUAIS O PRÓPRIO AUTOR, quando o pai ainda vivia.

16. Observe-se que a Requerida aparece no colo do próprio Autor às fls. 331, e, depois, com a irmã e madrinha FF e toda a família do pai, a partir de fls. 340, demonstrando que sempre foi aceita por todos, a quem tem por FAMILIA PATERNA desde o nascimento.”

17. Não foi devidamente valorada a prova nos autos, pois, em nosso modesto entender, de todo o processo n.º ...1-7, intentado por DD, que correu termos pela 2.ª Vara de Família do Fórum Regional da ..., tendo sido a decisão reconhecida e confirmada pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto;

18. Aqui se demonstra que existia entre a Ré aqui Recorrente e parte da família, nomeadamente a aqui Autora, mantinham uma relação efectiva considerando-a como parte a sua família e vice versa;

19. Tribunal a quo, considerou erradamente, não provado o facto de a Autora e os restantes chamados desconhecerem a existência de HH e de que esta era sua irmã, sendo dessa forma tratada pelo pai II e pela restante família que com elas conviviam.

20. “Que a presente ação poderá provocar um elevado e irreparável dano de natureza moral e afetiva junto da menor HH que sempre teve não só no seu pai II como também nos seus irmãos já identificados com quem cresceu, as referências de estabilidade e segurança afetivas.”

21. Na data da proposição da presente acção, na altura a Ré HH com 13 anos, a mesma somente conhecia como seu entorno familiar a mãe, o falecido II seu pai, e a família de ambos;

22. Foi ainda celebrado entre a mãe da ora Recorrente e II o acordo de posse e guarda da menor HH que, datado de 8/03/2001, consta de fls. 372 e 373 dos autos do já identificado processo ...1-7 mencionado pela A. no artigo 41 da pi (Cfr. Doc. 5);

23. Nos autos e junto com a contestação apresentada pela Ré GG, que novamente se refere, não ter sido dado qualquer valor probatório, se afirma existir regulação do pode paternal, sendo que “desde 1999 a menor residia na companhia do pai (doc. 15 da Contestação) e a mãe permitia até mesmo que o pai viaje livremente para o exterior com a criança”.

24. Mencionado na Contestação apresentada por GG, um contrato de prestação de serviços educacionais celebrado pela irmã e aqui interveniente principal provocada, que consta do documento n.º 6, junto com a mesma a fls.   EE e AA;

25. Desnecessário será dizer que perante tais factos é claro que, a mui douta sentença não poderia desviar-se de outra decisão, não pela verificação de que esta família, principalmente o seu pai, II, seriam a estrutura e as referência de estabilidade, de protecção e de segurança afectivas;

26. Que a A. omite factos relevantes e altera outros, movendo-se apenas por motivos meramente financeiros já que terá de dividir a herança por óbito de II com a sua irmã HH, assim desrespeitando, de forma lamentável, a última vontade de seu pai.

27. Nos factos dados como provados supramencionados, de 7 a 11, afirma-se que a ora Autora, AA, após ter tido conhecimento do Processo de inventário ...5/10.6T..., a correr termos na ... dos Juízos Cíveis do Porto, intentado pela mãe GG, em representação da Recorrente, verificou a existência de certidão emitida pela ... do Registo Civil das Pessoas Naturais da Capital do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, na qual se certifica que o pai da A., o referido II, declarou, perante a funcionária dessa Repartição, que era pai da ora Ré HH, que nascera no dia 25 de abril de 1997, às 22H21 na Clínica ..., na cidade ....

28. Considera a Sentença que Perante tal informação, a ora Autora, deslocou-se ao Brasil e ai verificou a existência dos factos assentes 11, a) a z).

29. Ao tomar conhecimento dos factos considerados provados 11 de a) a z), não teve conhecimento da Acção n.º ...1-7, intentado por DD, que correu termos pela 2.ª Vara de Família do Fórum Regional da ..., intentada a 18/09/2002 e que em 07/10/2004 por apenso intentou acção ordinária de anulação da paternidade?

30. Que na referida acção ordinária, em 28/06/2007 foi proferida Sentença que julgou improcedente o pedido?

31. Que a 20/07/2007 foi interposto recurso de apelação, acordando os Desembargadores da ... Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade, em conhecer o recurso instaurado por DD e negar-lhe provimento?

32. É mais que evidente que tinha conhecimento da existência da referida acção, contudo, pretendeu claramente ocultar essa informação aos presentes autos, quando após recurso para o Supremo Tribunal Federal que julgou improcedente o recurso de apelação, e transitada em julgada a mesma, a 13/09/2011, não foram informados os autos por ser contrária à pretensão aqui apresentada;

33. A ora Autora de forma censurável com o intuito de serpentear as normas jurídicas, por motivos meramente financeiros e de forma a que a ora Ré, HH não tenha direito na divisão da herança por óbito do seu pai, II;

34. Nos termos expostos deve ser revista a prova documental indicada e alterada a decisão sobre a matéria de facto;

35. Em consonância com a alteração da decisão sobre a matéria de facto, julgando-se a ação procedente, deverá sempre a Autora ser absolvida da condenação como litigante de má fé.

36. Quanto à DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO;

37. Proferida a Sentença verificamos a violação do artigo 625.º, n.º 1, do C.P.C, uma vez que, com a presente Decisão passarão a existir duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, devendo cumprir-se somente a que transitou em julgado em primeiro lugar,

38. A primeira acção foi julgada de acordo com a legislação nacional brasileira ali vigente e não contém decisão contrária aos princípios de ordem pública;

39. O Acórdão Proferido, em 28/04/2015, pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, 2.ª Secção, no Processo de Revisão/Confirmação de Sentença n....8/14...., com transito em julgado em 03/06/2015, e que a final decidiu pela concessão da revisão e confirmação a sentença proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na ação de anulação de paternidade instaurada pelo aqui interveniente DD em 7 de Outubro de 2004 contra a, então, menor HH com o pedido seguinte:

40. "ISTO POSTO, pede seja admitida a presente ação ordinária e ordenada a citação da ré, na pessoa de sua Representante Legal, no endereço acima, para, querendo, contesta-la, aguardando também a intimação do Ministério Público para acompanha- la até ao final, quando espera seja julgado procedente o pedido, para anular em parte o registro de nascimento da ré, por erro, na parte pertinente à filiação paterna, excluindo-se o nome do pai do autor do assentamento.”

41. Na referida Sentença com Processo número ...9-5 no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 7.10.2004 e correu termos sob o Juízo de Direito da ... de Família do Fórum Regional da ..., Brasil, e em que em 28 de Junho de 2007 foi a final proferida sentença a julgá-la improcedente;

42. “por não ter havido erro na perfilhação sócioafetiva que II fizera, em vida e por testamento, de HH”

43. Decisão essa confirmada pela ... Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em sede de recurso dela interposto e, bem assim, depois também confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de recurso especial extraordinário, tendo transitado em julgado a 13/19/2011.

44. Na presente acção de impugnação de perfilhação veio a A. AA, melhor identificada nos autos intentar contra GG, ai melhor identificada, por si e como legal representante da sua filha, então menor, com ela convivente HH e desde logo suscitando a título principal, a intervenção provocada, como associados seus irmãos, expondo as razões de facto e de direito em que faz assentar o pedido, que a final formula, de que, na procedência da ação, seja a final proferida decisão;

45. a reconhecer que a menor HH não é filha biológica de II, como tal declarando impugnada a perfilhação que o referido II, fez da Ré menor perante o funcionário da ... do Registo Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato da Capital do Estado do Rio de Janeiro, bem como a que fez por declaração testamentária lavrada no testamento público junto como documento 24 com a petição inicial;

46. a ordenar, consequentemente, a correção do Registo de Assento de Nascimento no ...16/2007 do Consulado Geral de Portugal no ..., Brasil, transcrito pelo registo ...05... nos Registos Centrais, registo de assento de nascimento em que foi declarante GG mãe da menor, então residente no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, mas atualmente residente em Portugal, com as legais consequências, nomeadamente a de do dito Assento de nascimento deixar de constar a menção de que II é pai da Ré, e a de retirar do nome desta os apelidos ....

47. Suscitada a excepção de caso julgado pela Ré, na sua Contestação, em 17 de Agosto de 2015, veio a Ré HH juntar aos autos (fls. 1485/1503) certidão do acórdão proferido nesta Relação, em 28 de Abril de 2015, no Processo de Revisão/Confirmação de Sentença no ...8/14...., com nota do transito em julgado, em 3 de Junho de 2015, e que a final decidiu pela concessão da revisão e confirmação a sentença proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na ação de anulação de paternidade instaurada pelo aqui interveniente DD em 7 de Outubro de 2004 contra a menor HH.;

48. Foi proferida Decisão Saneadora na qual se absolveram as Rés da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2, 619.º e 621.º todos do Código Civil.;

49. Em discordância com a supra decisão, Recorreu a Autora, assim como os restantes intervenientes principais.

50. O Venerando Tribunal da Relação do Porto decidiu, em suma, da seguinte forma:

51. Perante a lei portuguesa, a acção instaurada por DD corresponde à acção de anulação por erro, prevista no art. 1860.°.

52. Nos presentes autos estamos em presença de uma acção de impugnação da perfilhação.

53. Os fundamentos de uma e de outra são diferentes, sendo diferentes as causas de pedir e os pedidos formulados.

54. Na acção em que foi proferida a sentença que foi revista e confirmada por acórdão de 28.04.2015, afirmou-se que "é incontroverso, perante as provas acostadas nos autos, que o de cujus não é o pai biológico da ré"; que as atitudes do falecido demonstram a sua vontade de sobrepor a paternidade sócio-afetiva em detrimento da biológica; que tal vontade não pode ser descontinuada; que o interesse do Autor não se pode sobrepor ao da vontade do pai da ré e ao melhor interesse da criança, que é ter a sua paternidade preservada. Com esses fundamentos foi o pedido julgado improcedente. Perante a lei portuguesa outra teria que ser a decisão, atenta a prevalência do interesse público na coincidência da filiação com a realidade biológica da procriação. Ora, sendo o perfilhante cidadão português, à constituição da filiação é aplicável a lei portuguesa (art. 56°, no 1, do C. Civil), a qual não permite que a "paternidade sócio-afetiva" se sobreponha à paternidade biológica. Além da falta de identidade entre os pedidos e a causa de pedir - requisitos do caso julgado (art. 581°, nos 1 a 4, do CPC) - o interesse público na reposição da verdade biológica, que caracteriza a lei portuguesa - sendo no caso esta a aplicável - impede que se atribua à sentença proferida no ... em 28.06.2007 e revista nesta Relação por acórdão de 28.04.2015, a autoridade de caso julgado, impeditiva de prossecução dos presentes autos. Em consonância com o exposto, terá que ser revogada a sentença recorrida, ordenando-se a prossecução dos autos.

Pelos fundamentos expostos:

1. Condena-se a Ré nas custas do incidente anómalo acima referido;

2. Julga-se a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida e ordenando o prosseguimento dos autos.”

55. Vista agora mui douta Decisão proferida na mui douta Sentença de que se recorre, verifica-se a existência, de facto, de duas decisões contraditórias nos termos do artigo 625.º, n.º 1 do C. P.C.

56. Não se trata, agora, de uma excepção de caso julgado, a qual foi posta em causa e assente no Acórdão da Relação do Porto, pois ordenou-se na Sentença recorrida a absolvição da instância em conformidade com o disposto nos artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea i).;

57. Na presente apelação pretende, sim, ver-se analisada a questão na perspetiva do efeito da autoridade do caso julgado constituído pela decisão anterior, ou seja, a Decisão dos Tribunais Brasileiros, supramencionada devidamente Reconhecida e confirmada pelos Tribunais Portugueses, que deve julgar a acção improcedente e absolver as Rés do pedido;

58. Conforme Acórdão do STJ, de 1309/2018:

A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581.º do Código de Processo Civil.;

59. No acórdão que reconheceu e confirmou a Sentença proferida pelos Tribunal Brasileiros, “a sentença que a A. pretende ver confirmada não declarou a perfilhação da menor como filha do referido II"; aquela sentença "declarou improcedente o pedido, ou seja,;

60. “… espera seja julgado procedente o pedido, para anular em parte o registro de nascimento da ré, por erro, na parte pertinente à filiação paterna, excluindo-se o nome do pai do autor do assentamento.”

61. Decidiu-se no acórdão da Relação do Porto, interposto na presente, não existir correspondência entre as causas de pedir e os pedidos formulados,

62. Conforme Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 11/06/2019:

Poder-se-á dizer, em suma, que quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão); o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão).

63. Com a excepção de caso Julgado que pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir,contrariamente, o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensa a identidade de pedido e da causa de pedir.

64. Aqui a questão tem a ver com o conteúdo e alcance do caso julgado material, na sua vertente positiva, quando na acção de reconhecimento de Sentença estrangeira, e devidamente transitada em julgado, decide reconhecer a Sentença dos Tribunais Brasileiros, que mesmo decidindo que a aqui Recorrente não é filha biológica do falecido pertenço pai, provado que ficou que existe um vinculo sócio-afectivo não permite avançar a acção no restante peticionado, no final ao reconhecer tal Sentença permitiu ao ordenamento jurídico português receber a ora Recorrente como filha de cidadão português e com tremenda decisão registar-se junto dos Registos e Notariado como filha de cidadão português e com isso adquirir a nacionalidade Portuguesa.;

65. Está verificada a violação do artigo 625.º n.º 1 do C. P.C, havendo casos julgados contraditório, e para além da problemática supramencionada, em consequência, torna a mui douta Decisão inaplicável na forma em que está decidida;

66. Relativamente à decisão de inexistência de vinculo biológico entre a ora Ré/Recorrente e o falecido II, quer a Mui douta Decisão, quer a Decisão proferida pelos Tribunal Brasileiros e reconhecida e confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto estão em anuência, tendo apreciado o Venerandos Juizes Desembargadores desta forma:

67. “é incontroverso, diante das as acostadas nos autos, que o de cujus não é o pai biológico da Ré. Entretanto as atitudes do falecido ao desistir de acções semelhantes conforme fls.63 (09/06/1998) prove fls. 114 (18/01/2000), e ao incluir a Ré em seu testamento, lavrado em 05/09/2002, conforme fls. 272/273, demonstra a sua vontade de sobrepor a paternidade sócio-afectiva em detrimento da biológica”

68. Em ambas Decisões têm como assente que II não é pai biológico de HH;

69. A aplicabilidade desta concreta factualidade está enferma de várias problemáticas.;

70. A declaração de impugnação da perfilhação efectuada no Brasil, a mesma não pode jamais ser declarada,

71. Decidiram os Tribunais superiores Brasileiros que, aquela perfilhação foi efectuada com base não na verdade biológica, mas pelos laços sócio-afectivos entre ambos, Requerida a anulação da perfilhação e dos consequentes registos de nascimento, constando como pai, II, à mesma não foi dado provimento, pelo motivo de que, contrariamente ao ordenamento jurídico português, o brasileiro contempla a filiação tendo como vinculo a paternidade sócio-afectiva, que no nosso entender já tem vindo a ser aplicada pelos nossos Tribunais, e bem, como adiante de verificará.

72. A mui douta decisão recorrida in fine não se poderá aplicar, não se podendo alterar o ordenamento jurídico de outro país.

73. Caso o que pretenda seja que a mui douta sentença, ora Recorrida, produza efeitos no território Português, violará todas as regras e normas que integram o respeito pelo direito de personalidade, de dignidade da pessoa humana e do direito ao nome, isto porque,

74. A Recorrente em Portugal não é filha de II nem poderá utilizar o seu nome e num outro país apresentando a documentação brasileira será sua filha e como sobrenome de II,

75. Existindo um grave conflito de normas que cria uma complexidade de situações difíceis de ultrapassar, diz-nos o Direito Internacional Privado que nestes casos, que se enquadra o caso em concreto, e uma vez que não existe uma norma de conflito tipificada no ordenamento jurídico, sendo necessário recorrer ao principio da proporcionalidade, fazendo uma ponderação entre normas em conflito extraindo do princípio da proporcionalidade em sentido estrito a fórmula de peso, elaborada por Robert Alexy.

76. A magna importância da protecção que visa a norma que estabelece a perfilhação sócio-afectiva, protegendo a vontade do pertenço pai e os vínculos afectivos e familiares, e os do pertenço filho, desde que ambos não ignorem a verdade biológica tem a primazia sobre outros interesses que possam estar subjacentes.

77. Em matéria de direito decidiu mal o Tribunal “a quo” na aplicação das normas;

78. O Tribunal a quo ao aplicar as normas conforme transcrito esteve deveras incorrecto, tendo em conta a evolução quer Jurisprudencial que tem decidido de forma diversa quer Doutrinal que vem repensando o conceito de “Filiação de base afectiva”, o que com todo o respeito deveria ser analisada sendo que o Tribunal a quo de trata de um Tribunal de Família e Menores,

79. Além da paternidade por presunção, o reconhecimento da paternidade de filho nascido ou concebido fora do casamento faz-se por perfilhação ou por decisão judicial em acção de investigação – cfr. 1847.º do C. C;

80. Somente poderão impugnar a paternidade de folhas nascidos no casamento, o pai, a mãe e o filho.

81. A perfilhação esta traduz-se numa declaração pessoal, unilateral e incondicional que deve corresponder ao exercício de uma declaração de vontade livre e esclarecida correspondente à verdade biológica cujo vínculo jurídico reconhece – artigo 1849.º.

82. Podendo fazer-se por mera declaração prestada perante funcionário do registo civil de que o menor é filho do declarante, por mero juízo, por testamento ou através de escritura pública (artigo 1853.º do CC). ;

83. A perfilhação pode, no entanto, ser desfeita mediante dois fundamentos e efeitos (1859.º e 1860.º) - por impugnação quando não corresponder à verdade;

84. A acção pode ser intentada a todo o tempo, pelo perfilhante, pelo perfilhado ainda que haja consentido na perfilhação, por qualquer outra pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência. ;

85. Na presente acção traduz-se na impugnação da perfilhação por parte dos filhos/herdeiros do falecido II, fundamentando, em suma, que a perfilhação da ora Recorrente não tem qualquer correspondência com a verdade biológica.;

86. As várias dimensões da filiação são consagradas na Constituição da República Portuguesa, que reconhece por um lado o direito à família biológica que se traduz no direito a não ser sem justificação afastado da família biológica e o direito à identidade biológica e genética (artigo 36.º).

Mas a mesma Lei fundamental reconhece igualmente o direito à família, não necessariamente biológica, conforme artigo 67.º.

87. II, que bem sabendo, conforme mui doutamente se deu como provado que, HH não era sua filha biológica, mas decidiu, quer declarando perante funcionário da Conservatória de Registo Civil no Brasil, quer no testamento público, que era o pai daquela por pretender proceder à sua "perfilhação socioafetiva";

88. No que diz respeito à norma do artigo 1859.º n.º 2 do C.C quer a jurisprudência quer a Doutrina têm avançado quanto à questão da discriminação quanto à filiação atribuída por meio da perfilhação comparadamente aos filhos concebidos na constância do casamento;

89. Acórdão do TC n.º 308/2018 no qual se Julgou inconstitucional, por violação do direito da igualdade e da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento consagrados nos artigos 13.º e 36.º, n.º 4 da CRP, a norma extraída do n.º 2 do artigo 1859.º do C. C. que estabelece que a impugnação da perfilhação pode ser intentada pelo perfilhante a todo o tempo;

90. Ac. Do Tribunal Constitucional 411/2017: “impõe-se a conclusão de que a norma extraída do n.º 2 do artigo 1859.º do C. C., que estabelece que a acção de impugnação da perfilhação pode ser intentada pelo perfilhante a todo o tempo, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e da proibição de discriminação dos filhos fora do casamento. “A manutenção da norma nestes termos a imprescritibilidade da ação de impugnação de perfilhação intentada pelo perfilhante é liminarmente proibida pelo principio da igualdade, na vertente da proibição da discriminação de filhos nascidos fora do casamento. Todo o regime, na sua encarnação originária, repousava num preconceito contra os filhos «ilegítimos» e tinha por finalidade mais ou menos ostensiva discriminá-los (ou – o que é dizer o mesmo pela via oposta – de privilégio dos filhos «legítimos»

91. Afirma Guilherme de Oliveira:

“…a garantia da necessária estabilidade em homenagem à segurança e paz jurídicas, o desejo de evitar a perturbação causada pela revelação tardia da verdade e de respeitar as situações adquiridas, e a supremacia dos interesses do filho na manutenção do estado são valores proeminentes da doutrina moderna que no nosso regime de impugnação previsto no art. 1859.º do CC, despreza. No caso de se ter consolidado, ao cabo de alguns anos, uma família – o direito de impugnar deveria ser deixado incondicionalmente ao filho maior; num prazo seguinte à maioridade; o filho menor, a mãe, o perfilhante e aquele que se arroga-se a paternidade real teriam um direito condicionado, exercitável nos casos excecionais em que a estabilidade do vinculo constituísse uma exigência demasiada para o titular, uma violência bem maior do que o dano que a procedência traria ao filho.”

92. No nosso entender a aplicação da norma 1852.º, n.º 2 do Código Civil de forma diferenciada da constante no artigo 1842.º n.º 1, al a), b) e c), ou seja ao diferenciar duas categorias de pessoas, as que nascem na constância do casamento das que nas fora dele viola os preceitos dos artigos 13.º e 36.º /4 da CRP.;

93. Violando o princípio da igualdade – 13.º – e da proibição de não discriminação de filhos nascidos fora do casamento;

94. O art. 36.º n.º 4 da CRP que prevê que os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objeto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação;

95. A violação do direito constitucional à família consagrado no artigo 67.º da CRP que assegura que a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e a efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros;

96. e finalmente por violação da protecção constitucional da Infância – Artigo 69.º CRP. 97. Deverá entender-se que a impugnação da perfilhação fique condicionada pela não existência duma realidade familiar concreta e consolidada.

98. Somente provando que não existe qualquer relação entre perfilhante e perfilhado se poderá recorrer a este instituto, não podendo de modo algum terceiros, que não perfilhante, perfilhado, a mãe e o pai biológico poderiam ter legitimidade para intentar uma acção de impugnação da perfilhação.

99. E sempre dentro dos mesmos prazos de caducidade elencados no artigo 1842.º do C.C;

100. Ficou devidamente provado a vontade de II em manter a paternidade da ora Recorrente, pois pese embora, os vários testes de ADN que excluíam a paternidade, e as várias vezes que recorreu ao tribunal para anulação de paternidade por perfilhação, sempre recuou além de reafirmar de forma veemente no testamento público a sua vontade de manter o vinculo com a, então menor, demonstrando o afecto e carinho pela mesma, além da preocupação com o seu futuro que ficou salvaguardado. – pelo que existia uma forte relação;

101. Pelo exposto deve a presente acção ser considerada totalmente improcedente;

102. Violação das normas relativas ao direito ao nome:

103. Da Decisão de retirar do nome desta apelidos ..., os apelidos do referido II;

104. no que diz respeito a retirar do nome o apelido ..., tal decisão terá, manifestamente, consequências irreversíveis na vida social, pessoal e psicológica.

105. não deve ser alterado o apelido da Recorrente, pois,

106. Até aos seus 18 anos, nem desconfiava da existência de dúvidas relativas à sua paternidade, tendo tido sempre grande orgulho na utilização do nome do seu pai pessoa que sempre conheceu como pai;

107. Agora, com 26 anos de idade, é com muita dor que percebe a possibilidade de perda do nome que faz parte de si, que lembra o homem que, tem a certeza, a amou incondicionalmente.

108. Como aos 26 anos se deixe de ter o nosso nome, o nome pelo qual sempre nos identificámos e que seria uma das mais intrínsecas características pessoais?

109. Também é dito por Guilherme Oliveira, “[…] o perfilhado também pode ter uma família estável, beneficiar da convivência com o perfilhante e ter a sua integração no sistema de parentesco bem definida pelo apelido que recebeu e que passou aos seus próprios cônjuge e filhos; a impugnação também pode causar um dano grande a esta família […]”.

“[…] O direito à identidade e à integridade pessoais, e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, contêm a faculdade básica de procurar o reconhecimento público da ‘localização social’do indivíduo; este lugar, que investe o cidadão num conjunto de direitos e obrigações, num estado jurídico, exprime-se usualmente pelo nome e pelos apelidos de família.”

110. O direito ao nome é um direito da personalidade, reconhecido por lei (art. 72.º do CC) e com relevo quer no art.25.º quer no artigo 26.º ambos da Constituição da República Portuguesa:

111. Criou a sua “identidade pessoal”, designadamente quanto ao apelido adoptado no momento da perfilhação, tendo formado a convicção real e, digna de tutela, de que o apelido que tem, é na verdade, pertencente à única figura paterna, que sempre conheceu, o réu perfilhante, não existindo na sua esfera qualquer vislumbre de outra hipótese de pertenço pai.

112. Conclui-se que deveria ser dada à Requerente a possibilidade que, em mera hipótese, caso o presente recurso não venha a dar-lhe razão, de escolher se pretende ou não manter o apelido e não ser-lhe imposta tal decisão.

113. Somente desta forma não violaria a mui douta decisão o disposto nos artigos 25.º e 26.º da CRP, e respeita ainda o precito do artigo 72.º n.º 1 do C. C.

114. Em conformidade com o exposto, deve anular-se a decisão da primeira instância, substituindo-a por outra que julgue improcedente a presente acção.

115. Ao decidir como decidiu, violou a douta sentença recorrida várias normas legais supramencionadas.

Contra-alegaram a A. e demais intervenientes, opondo-se à procedência do recurso.

Objeto do recurso:

- Da impugnação da matéria de facto;

- Da tempestividade da ação de impugnação da perfilhação e da caducidade do direito da A.;

- Do caso julgado;

- Do direito ao nome.

FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto provada

Em primeira instância, deu-se como provada a seguinte factualidade.

1. Em 21 de Setembro de 1949, na ..., ..., concelho ..., Distrito do Porto, o então nubente II, casou com a então nubente BB.

2. Esse casamento, foi celebrado no regime de separação de bens, nos termos da escritura ante nupcial.

3. Desse casamento nasceram, cinco filhos, a saber:

AA, a ora A. (doc. 3)

CC (doc. 4)

DD (doc. 5)

EE (doc. 6)

FF (doc. 7)

4. O referido II, faleceu, no ..., no dia 20 de setembro de 2002, sendo que este óbito se encontra registado pelo Assento de óbito nº...4/2002, na competente conservatória do Registo Civil, (doc.8).

5. Quando o referido II, faleceu, a ../../2002, encontrava-se casado com a referida Srª D. BB e tinha 73 anos, pois nascera no dia ../../1928.

6. O referido II, nasceu cidadão português e morreu com a mesma nacionalidade.

7. A A. teve conhecimento que sua mãe, BB fora citada para o processo de inventário ...5/10.6T... a correr termos na 3ª Secção do 3º Juízo dos Juízes Cíveis do Porto.

8. A A. verificou que se tratava de um processo de inventário intentado pela ora Ré HH, representada por sua mãe GG.

9. Por esse processo de inventário a ora Ré, representada por sua mãe, pretende partilhar a herança aberta com o óbito do pai da A. o referido II, alegando, para além do mais, a aí requerente e aqui Ré, ser filha deste.

10. A Ré HH representada por sua mãe GG, para prova do facto alegado - que é filha do pai da ora A. – e justificativo da legitimidade para requerer esse inventário, juntou, para além do mais, uma certidão emitida pela ... do Registo Civil das Pessoas Naturais da Capital do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, na qual se certifica que o pai da A., o referido II, declarou, perante a funcionária dessa Repartição, que era pai da ora Ré HH, que nascera no dia 25 de Abril de 1997, às 22H21 na Clínica ..., na cidade ....

11. Perante esta situação a A. deslocou-se ao Brasil e, aí chegada verificou a existência dos seguintes factos:

a. Em 6 de Junho de 1997 o referido II, declarou, na ... do Registo Civil das Pessoas Naturais da Capital do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, que era pai da ora Ré HH, que nascera no dia 25 de Abril de 1997, às 22H21 na Clínica ..., na cidade ....

b. Com a declaração referida no artigo anterior o referido II perfilhou a ora Ré menor a que foi posto o nome de HH.

c. Posteriormente, GG, a mãe da menor, HH, a ora Ré, foi, em ../../1997, ao Consulado Geral do Rio de Janeiro, declarar o nascimento da sua filha, usando, para solicitar tal registo, a certidão emitida pela ... do Registo Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

d. Em 22 de Julho de 1997, o referido II intentou na comarca da Capital do Estado de ... no Brasil ação que foi autuada a 4 de agosto desse mesmo ano contra a ora menor representada, tal como nesta ação, por sua mãe, processo a que foi dado o número ...5-7, (doc. 13)

e. Nessa ação o referido II disse:

“O Autor manteve relacionamento amoroso extraconjugal com a representante legal da Ré, no período anterior à conceção, desde algum tempo. Embora tenha havido um período de rutura, em período próximo ao dia da conceção, o Autor alegrou-se com a notícia da gravidez e do iminente nascimento da Ré.

O Autor prestou toda a assistência moral, emocional e financeira à mãe da Ré durante todo o período da gravidez, sendo certo que, logo após o nascimento, registrou-a como sua filha.

Ocorre que, por ironia do destino, após o registro da Ré e ante alguma dúvida que se manifestava por parte do pai quanto ao período da conceção, houve finalmente a confissão da representante legal da menos que a filha tinha sido gerada como fruto de um rápido encontro com um ex-namorado chamado KK.

Viu-se o Autor ante um grande dilema: manter o registro da menor, por quem já se afeiçoara, além de grande estima pela mãe da criança e participar de um ato ilegal, sem contar com a frustração para a Ré de não conhecer sua ascendência legítima, privando-a do pai biológico de quem poderia tornar-se muito próxima no futuro, ou desfazer o ato jurídico para o qual tinha colaborado de boa fé, mantendo-se em paz com seus princípios éticos e morais.

Optou o Autor pelo que lhe ditava a consciência, ou seja: o desfazimento do ato nulo, já que não era o pai biológico da menor. As tentativas amigáveis de solução do impasse encontraram injustificada resistência da mãe da menor, obrigando a propositura da presente ação.” (doc. 13)

f. Nessa ação o referido II pedia:

“Isto posto, e contando com a equidade sempre presente nas decisões proferidas por V. Exa., com a oitiva do ilustre representante do Ministério Público, requer se digne V. Exa de:

i. mandar citar a Ré para, querendo, contestar o pedido;

ii. julgar procedente o pedido, decretando a nulidade do registro civil quanto à paternidade, oficiando o competente Cartório do Registro Civil, determinando sejam excluídos os nomes do pai e dos avós paternos, com as cominações de estilo.

g. A menor HH, representada por sua mãe GG veio ao processo a queos pontos anteriores aludem dizendo:

“HH, representada por sua mãe GG, vem, respeitosamente, dizer a V. Exa. que CONCORDA COM O PEDIDO INICIAL, devendo ser decretada a nulidade do registro civil quanto à paternidade, oficiando-se o competente Cartório do Registro Civil, determinando sejam excluídos os nomes do pai e dos avós paternos.” (Doc 14).

h. Em 2 de Setembro de 1998 o referido II e a referida HH representada por sua mãe GG apresentaram um requerimento ao processo em que diziam:

“II e HH, representada por sua mãe GG, nos autos da Ação Ordinária de Nulidade de Registro Civil, tendo em vista a composição amigável do litígio, vêm, respeitosamente, à presença de V. Exa., requerer a desistência do processo.

Pelo exposto, após ouvido o representante do Ministério Público, e tendo em vista que permanecem preservados integralmente os direitos do menor, requerem seja homologada a presente desistência, arquivando-se o processo.” (Doc. 15)

i. Em 18 de Março de 1999, o referido II intentou na comarca da Capital do Estado de ... no Brasil ação que foi autuada a 23 desse mesmo mês e ano contra a ora menor representada, tal como nesta ação, por sua mãe, processo a que foi dado o número ...5-8. (Doc.16)

j. Nessa ação o referido II juntou exame de ADN comprovativo que a referida HH, que tinha pelo referido II sido adotada não era filha biológica dele. (Doc. 17)

k. O resultado desse teste de ADN elaborado a 13-10-1998, foi: “O suposto pai, II, (o referido II), está excluído como pai biológico da menor HH (a referida HH). Em 04 (quatro) dos 09 (nove) lociindependentes, analisados com os marcadores moleculares descritos, o suposto pai II não compartilha os alelos presentes na menor HH”. (doc. 17).

l. Em 18 de Janeiro de 2000, o referido II declarou desistir do processo tendo a menor HH, representada por sua mãe GG, aceite tal desistência. (doc. 18), depois de em 18 de junho de 1999 terem requerido uma suspensão por 3 meses, pedido que renovaram em 21-09-1999, (docs. 19 A e19 B).

m. Desistência que foi homologada por decisão do juiz do processo em 08 de fevereiro de 2000. (doc. 20)

n. Em 3 de Setembro de 2001 o referido II veio ao processo ...5-7 solicitar nos termos do requerimento que apresentou o desarquivamento e vista do processo. (doc. 21).

o. Com vista a preparar essa ação, que renovava o pedido formulado na acção n.º ...5-7, o referido II acompanhado da referida GG e da filha desta a ora Ré HH, realizaram (para além do teste de ADN realizado em 13-10-1998 no Laboratório Genealógica – Diagnósticos Moleculares, (doc. 16), dois exames de ADN, um no Laboratório Progenética e outro no Departamento de Bioquímica Médica no Instituto de ciências Biomédicas na Universidade ..., no seu laboratório, o Laboratório ....

p. O falecido II, acompanhado da Ré HH e da mãe desta, deslocou-se, no dia 1 de Outubro de 2001, ao Laboratório da Progenética onde foram recolhidos aos três material genético, tendo sido a análise feita pela comparação dos marcadores moleculares (STR:Short Tandem Repeats): Csf1po, TPOX, TH01, VWA, FESFPS, F13AO1, D16S539, D7S2820, D13S317,CD4, LPL, FGA, D3S, 1358, D5S818, D18S51, todos eles empregados na análise por PCR foram analisados em gel de pliacrilamida corado em prata.

q. No Laboratório Progenética, dos 15 locais genéticos analisados por PCR 9 (TPOX, F13AO1, FESPS, D7S820, D13S317, CD4, LPL, FGA, ID18S51) não têm alelos compartilhados entre o referido II e a referida HH.

r. O Laboratório de Progenética, tal como já tinha concluído o Laboratório Genealógica Diagnósticos Moleculares (doc. 16), conclui em 22 de outubro de 2001, que, baseado no resultado dos testes obtido por análise DNA, conclui-se que: “II não pode ser o pai biológico de HH”, (doc. 22).

s. Em 28 de setembro de 2001, os três referidos II, GG e HH, deslocaram-se ao referido Laboratório ..., com vista a doarem amostras de material biológico para a realização do exame de tipagem de DNA.

t. Realizados os exames, cujo objetivo foi o de determinar o polimorfismo DNA cromosômico de cada individuo através da análise de PCR (“reação em cadeia de Polmerase”).

u. O DNA foi extraída através da técnica de feno-cloroformio e amplificado por PCR.

v. Os “locos” que este laboratório investigou foram CD4, FESFPS, D5S818, CSF1PO, TPOX, D16S539, D13S317, FGA e D3S1358.

w. Dos 10 “locos” testados 6 indicam exclusão de paternidade.

x. O Laboratório ... do Departamento de Bioquímica Médica do Instituto de Ciências Biomédicas ..., face aos resultados do teste concluiu: “sabendo-se que pais e filhos, obrigatoriamente, compartilham alelos em 100% dos locos investigados concluímos que II não é o pai biológico de HH.” (Doc. 23).

y. O exame referido no artigo anterior foi efetuado pelos referidos II, HH e GG, em 5de dezembro de 2001 e junto aos autos em 30 de agosto de 2004, tendo sido enviado diretamente pelo Laboratório referido para o Tribunal.

z. O referido II foi acometido de carcinoma do qual veio a falecer, no dia 20 de setembro de 2002, (docs 8 e 9) tendo, contudo, outorgado, no dia 5 de setembro de 2002, perante a Tabeliã do 24º Oficio de Notas do Serviço Notarial da cidade ..., testamento público. (doc. 24).

12. Em 18 de Setembro de 2002, DD, filho, tal como a ora A. de quem é irmão, de II e de BB, intentou no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro uma medida cautelar de produção antecipada de prova, a que inicialmente foi dado o nº ...76 e que, posteriormente, passou a ter o nº ...1-7. (docs. 25, 28 e 29, 31, 32, 33, 34 e 35).

13. Cautelarmente, ainda em vida do referido II tinha sido, pelo Serviço de Imunoquímica e Histoquímica da ..., pelo Sr. Professor LL recolhido material genético do falecido II (Doc. 30).

14. A Ré HH, representada pela sua mãe a referida GG juntou, nesses autos, procuração a favor de advogado, (doc. 36).

15. A aí e ora Ré, tendo sido citada para a ação de medida cautelar de produção antecipada de prova, não pôs, em causa a validade dos exames laboratoriais feitos e atrás juntos, (bem como juntos na referida ação) tendo-se somente limitado a recusar a sua deslocação a laboratório médico alegando o direito ao segredo da vida privada, para além de ter alegado a ilegitimidade do referido DD em peticionar (doc. 37).

16. Em 7 de Outubro de 2004 o referido DD fez intentar no Tribunal do Estado do Rio de Janeiro uma ação ordinária em que requeria a anulação do registo civil da referida HH, de molde a excluir-se do nome desta a parte referente à filiação paterna (doc. 38).

17. Nessa ação foi proferida, em 28 de junho de 2007, sentença. (doc. 39).

18. Dessa decisão houve recurso de apelação. (docs. 40 e 41)

19. Houve três testes de ADN realizados por entidades diferentes e autónomas tendo todos o mesmo resultado – que o referido II, pai da ora A., não é o pai biológico da ora Ré HH,

20. A Ré HH veio intentar nos Tribunais Portugueses, designadamente nos juízos Cíveis do Porto, processo de inventário por óbito do referido II, o qual corre termos na 3ª Secção do 3.º Juízo sob o nº 155/10.6TVPRT.

21. Foi determinado nos autos a realização de exames de ADN pela entidade competente para tal, INML, os quais as rés se recusaram a realizar, apesar de devidamente notificadas de que com tal recusa se inverteria o ónus de prova.

Factos não provados:

1. Que a A. e os seus irmãos, chamados à presente ação, após terem obtido conhecimento do nascimento da irmã HH fruto da relação extra- conjugal mantida entre o seu pai (e o da menor HH e GG, ora R., sempre trataram e aceitaram a menor no seio da família, admitindo e reconhecendo-a como sendo filha de II e, consequentemente, sua irmã.

2. Que a presente ação poderá provocar um elevado e irreparável dano de natureza moral e afetiva junto da menor HH que sempre teve não só no seu pai II como também nos seus irmãos já identificados com quem cresceu, as referências de estabilidade e segurança afetivas.

3. Que a A. omite factos relevantes e altera outros, movendo-se apenas por motivos meramente financeiros já que terá de dividir a herança por óbito de II com a sua irmã HH, assim desrespeitando, de forma lamentável, a última vontade de seu pai.


*

A segunda Ré impugna a decisão de facto por entender dever ser dado como provado existir entre si e parte da família, nomeadamente a aqui A. e seus irmãos, uma relação afetiva, sendo a recorrente também considerada com irmã pelos demais. Mais refere que, erradamente, o tribunal considerou não provado o facto de a A. e demais irmãos desconhecerem a existência de HH e de que esta é filha de II. Acrescenta não ser verosímil que os AA. não soubessem da existência de HH, uma vez que “a mesma era frequentadora da residência do pai II e bem acolhida por toda a família”

Este vetor recursivo prende-se com o que que constava já na contestação apresentada, segundo a qual não é verdade que a A. apenas tenha tido conhecimento da existência da então menor com o processo de inventário proposto em Portugal, por óbito do falecido II.

Estão assim em causa, não apenas o facto não provado 1, mas igualmente o facto provado em 11 do qual parece resultar – de acordo com a alegação da A. – ter a mesma tido conhecimento da existência da Ré e da perfilhação desta pelo pai daquela, apenas aquando do processo de inventário instaurado em Portugal em 2010, processo 155/10.6TVPRT, conforme explicitou a requerente, a 31.1.2024.

Convidada a recorrente a esclarecer tal questão, veio a mesma expressamente mencionar:

«(…) vem, a ora Recorrente, esclarecer que nas suas conclusões de 27 a 34 de recurso pretende, efectivamente impugnar a matéria de facto constante nos pontos 7 a 11 dada como provada na Sentença e visa com isso ver como não provado o facto de a Autora ter tido conhecimento da existência da menor apenas em 2010.»

Acrescem ainda os factos igualmente alegados na contestação, segundo os quais, pelo menos em 2005, aquando da instauração de inventário, no Brasil, por óbito de II, já todos os intervenientes sabiam da existência da segunda Ré e da ausência de vínculo biológico entre esta e aquele. Além disso, diz a Ré que todos os intervenientes não poderiam deixar de saber dos processos instaurados pelo demandante DD, mesmo antes do óbito do pai, tendo em vista a impugnação do registo da paternidade da Ré exatamente pela ausência de vínculo biológico.

Está aqui em causa, afinal, apurar de uma pretensa caducidade do direito da A. e demais intervenientes, seus irmãos e mãe.

Cotejando a contestação, verificamos não ter a Ré invocado de forma expressa, nem assim a caraterizando, a exceção de caducidade.

Todavia, alegou factos nos quais pode basear-se tal exceção ao argumentar terem os demandantes tido conhecimento da existência da perfilhação muito antes de 2010, mormente quando referiu que sempre a A. e demais irmãos trataram a menor como sua irmã, acrescentando que os advogados[1] que patrocinaram a A., seus irmãos e mãe em processo de inventário que corre termos na 1.ª Vara Cível do ...,  processo aí proposto pela interveniente FF, a 3.8.2005 – doc. de fls. 864 e ss. – no qual foram juntas procurações outorgadas pela A. e demais intervenientes datadas de 4.8.2005 – docs. de fls. 864 e ss – são os mesmos que, já em setembro de 2002, haviam iniciado o procedimento, em nome do interveniente DD, tendo em vista a anulação do registo de paternidade da segunda Ré.

Com efeito, a fls. 79, com data de 18.9.2002 (II faleceria dois dias após), os advogados brasileiros MM e NN., assinaram requerimento de medida cautelar de produção antecipada de prova (recolha de ADN para realização de exames hematológicos), articulado no qual em representação do interveniente DD afirmaram o seguinte:

3.Há cerca de quatro anos [a recorrente nasceu a ../../1997] soube da existência da ré, que seria fruto de um relacionamento episódico de II, que disse ser ela legítima, exibindo, na oportunidade, o registro de nascimento lavrado no cartório da ..., no livro ...91..., sob o n.º ...93, de 6.6.97.

Mais afirma que, mercê da doença que afligiu o pai, a família, no mês p. passado, veio de Portugal para compartilhar de seus últimos dias.

5. Em razão dessa reunião familiar[2], veio à tona a questão da paternidade da ré (…).

Recorde-se que a ação subsequente a esta providência estava ainda pendente quando a presente ação foi instaurada (a presente ação deu entrada a 7.9.2010, ou seja, quando a segunda Ré contava já 13 anos de idade) e só em 2011 veio a ser julgada definitivamente por decisão do Supremo Tribunal ..., de 1.9.2011, decisão esta constante de fls. 164 a 168 dos autos de revisão de sentença estrangeira apresentados pela primeira Ré, em representação da segunda, a 30.10.2014. Este processo de revisão culminou com acórdão, proferido por este Tribunal da Relação, a 28.4.2015 (autos de RSE ...8/14...., desta secção) que concedeu revisão e confirmou a sentença proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, datada de 28.6.2007, o qual se baseou no critério da paternidade sócio-afetiva para considerar improcedente a ação de anulação do registo de paternidade instaurada por DD a 7.10.2004 (fls. 103 e ss.) e precedida pelo requerimento cautelar por aquele apresentado, dois dias antes do decesso do pai, tendo em vista a recolha de prova científica relativa à demonstração da inexistência de vínculo biológico.

A ser assim e na ótica da recorrente, os AA. teriam, desde há muito, conhecimento da paternidade reconhecida pelo pai a favor da segunda Ré e das circunstâncias em que tal teria sucedido.

Por via disso, já em sede de recurso, valendo-se da jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, considera a recorrente ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, da proibição de discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, do direito à família e da proteção da infância, a norma do art. 1859.º/2 do Código Civil que admite que a impugnação da perfilhação possa ocorrer a todo o tempo, sem dependência de qualquer prazo.

Referimo-nos aos acórdãos proferidos em sede fiscalização concreta sucessiva e, por isso, sem força obrigatória geral, com os n.ºs 308/2018, de 7.6, e 112/2023, de 19.12, os quais consideraram inconstitucional aquela norma – que estabelece a imprescritibilidade das ações de impugnação da paternidade estabelecida por perfilhação – por violação do princípio da igualdade e da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, consagrados nos arts. 13.º e 36.º/da Const.

Ambos os acórdãos contam com votos de vencido (dois, no primeiro, e um, no segundo) que, se bem os compreendemos, se baseiam na preferência legal pela verdade biológica e na margem de que o legislador ordinário dispõe para conformar, como entender, os prazos de caducidade em ambas as ações de impugnação (da paternidade presumida e da perfilhação).

No segundo aresto, convoca-se a doutrina de Guilherme de Oliveira que, em 2019, explicava, de forma simples e compreensível, que a impugnação da paternidade presumida, para a qual a lei estabelece prazos curtos (três anos para o pai, a contar do conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade – art. 1842.º/1ª) CC), baseia-se no culto da realidade sociológico-jurídica da filiação, servindo a defesa da estabilidade da família baseada no matrimónio, em prejuízo do filho perfilhado (ou, nas palavras do primeiro daqueles acórdãos, com base no preconceito e na discriminação dos chamados filhos ilegítimos) que, na realidade, “também pode ter uma família estável, beneficiar da convivência com o perfilhante e ter a sua integração no sistema de parentesco bem definida pelo apelido que recebeu e passou aos seus próprios cônjuge e filhos”, sendo que as relações familiares atuais merecem proteção constitucional “qualquer que seja a sua origem” (Estabelecimento da Filiação, Lisboa, pp. 175-76).

Em 1983 (em Critério Jurídico da Paternidade, p. 439), o mesmo jurista já considerava que a ausência da previsão de caducidade do direito de impugnar a perfilhação devia ser limitada pelo instituto do abuso do direito, quando o exercício da faculdade jurídica processual de desconstituir tal vínculo surgisse como gravemente chocante e reprovável ao sentimento jurídico prevalente da comunidade[3].

O recurso a tal figura para paralisar os efeitos do predomínio da verdade biológica sobre a verdade sócio-afetiva ou a posse de estado tem sido admitido pela jurisprudência, cfr, ac. RC, de 29.5.2012, Proc. 1791/08.6TBAVR.C1; ac. STJ, de 16.4.2013, Proc. 1791/08.6TBAVR.C1.S1; ac. RL, de 25.10.2015, Proc. 13823/13.1T2SNT.L1-2.

A considerar-se dever ser aplicado um prazo para a propositura da ação de impugnação da perfilhação (que a recorrente considera dever ser o extraído da norma paralela do art. 1842.º relativa à ação de impugnação da paternidade presumida, nos termos do art. 1826.º, na sequência, aliás, do primeiro daqueles dois arestos proferidos pelo Tribunal Constitucional), tratar-se-á de um prazo de caducidade.

Ora, nos termos do art. 333.º/1 CC, “a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes”.

Quer isto dizer que, tratando-se de posições indisponíveis, a não invocação expressa da caducidade não significa que dela se prescinda, sobretudo quando as posições jurídicas em causa transcendem a esfera dos interessados. Nesse caso, o tribunal deve suprir, de ofício, a mencionada exceção.

Assim sucede nas ações relativas ao estado das pessoas, mormente quando está em causa o estabelecimento da filiação.

Ora, a acolher-se a posição sufragada pelo Tribunal Constitucional quanto à inconstitucionalidade da norma do art. 1859.º/2 CC, o que é independente da legitimidade ativa para este tipo de ações, cabe apurar se foram recolhidos elementos de prova quanto à época em que os autores – na sua qualidade de detentores de um interesse moral ou patrimonial próprio - tiveram conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se pela não paternidade por parte do perfilhante.

Abre-se aqui um parêntesis para considerar que aquele prazo de caducidade, a ser aplicável às ações de impugnação da perfilhação, não pode considerar-se afetar apenas a posição jurídica do perfilhante de complacência. Sob pena de a norma continuar a violar aqueles princípios constitucionais, também a imprescritibilidade da ação de impugnação da perfilhação afrontaria os preceitos fundamentais indicados pelo Tribunal Constitucional se a posição do perfilhado – permanentemente ameaçado, durante toda a sua vida, com o perigo de ver destruída a paternidade legalmente estabelecida – se visse afrontada por uma ação a propor a todo o tempo pelos demais titulares de interesse moral ou patrimonial na procedência dessa ação, sejam esses os outros filhos do perfilhante ou mesmo o cônjuge deste e sendo certo ser já questionável esta ampla legitimidade processual ativa para a impugnação da perfilhação, “arrimada a um biologismo estrito, em detrimento da ponderação dos valores da estabilidade afetiva e da posse de estado do filho”, podendo nós imaginar o “impugnante como sendo alguém que se quer livrar de uma obrigação de alimentos, concorrer a uma herança, suprimir a circunstância agravante do parentesco (…); tudo permitido (in casu, ao perfilhante ou a um qualquer dos demais interessados) em nome de um biologismo estrito que prevalece sobre os vínculos afetivos gerados na família do perfilhado e o interesse do filho perfilhado em manter o status, apesar de o vínculo da filiação tenha sido gerado por meio de uma simples declaração de ciência. O que vai ao arrepio da consagração de prazos de caducidade na impugnação da paternidade do marido da mãe (art. 1842.º) e na ação de investigação da paternidade (art. 1817.º CC)”[4].

Sobretudo, quando ocorre, como se vê dos autos, que o próprio perfilhante instaurou no Brasil, mais do que uma vez, ações tendo em vista a destruição do vínculo legal por si estabelecido relativamente à filha perfilhada, vindo delas a desistir posteriormente e decidindo, derradeiramente, em testamento por si efetuado cerca de duas semanas antes do seu decesso (doc. de fls. 70 a 72) e quando a menor contava já cinco anos de idade, efetuar deixas testamentárias à mesma e aí a indicando como sua filha.

Nessa ótica, razões de honestidade intelectual impõem que se apurem todos os factos necessários ao conhecimento da caducidade (e ao abuso do direito) que, como vimos, deve ser suprida ex officio.

É que, tendo já sido proferidos pelo Tribunal Constitucional dois acórdãos em sede de fiscalização concreta, o que se nos afigura curial é que se debatam largamente nas ações posteriores onde o tema se coloque todos os argumentos neles expostos e, para isso, necessário se torna que os autos dispunham da factualidade determinante para a decisão, num ou noutro sentido, sobre a dita caducidade.

Ademais, sendo o abuso do direito de conhecimento oficioso – salvaguardado o exercício do contraditório – os factos alegados pela Ré poderão ser também relevantes nessa ótica o que impõe uma ampla indagação probatória sobre todos os factos alegados na contestação.

Ora, cotejando os factos dados como provados e os factos dados como não provados e, bem assim, a motivação da decisão de facto, verificamos que nada é mencionado quanto aos factos alegados na contestação relativamente ao conhecimento pelos AA., que não apenas pela A., da existência da menor (e dúvidas sobre a paternidade biológica), e desde quando, e o certo é que resulta dos autos documentação que pode e deve ser apreciada, mormente a relativa ao processo de inventário instaurado no Brasil para partilha de bens por óbito do de cujus, em 3.8.2005 (fls. 854) no qual intervieram todos os que aqui figuram do lado ativo da demanda.

Com efeito, a decisão recorrida assentou unicamente na demonstração – que se nos afigura indubitável, não apenas pela omissão da colaboração da Ré na realização de exames de sangue, mas desde logo pelo que consta da sentença brasileira já revista e até nos arts. 88.º e 89.º da contestação aqui apresentada[5] – da ausência de vínculo biológico entre II e HH, mas em momento algum apreciou os factos ou a prova tendo por referência decisão sobre caducidade que, como vimos, é concitável. Sequer o abuso do direito - que, em face da contestação, também é digno de ser ponderado, atentas as posições doutrinárias e jurisprudências que a este respeito o invocam - é mencionado ou apreciado, mormente em sede factual.

Sendo assim, não só se obnubilam factos que foram invocados, como se deixaram de apreciar documentos que, pelo seu conteúdo, devem ser avaliados tendo em conta aquelas alegações.

Avulta, desde logo, o facto alegado de os AA., irmãos da demandante, terem aceite desde sempre a criança no seio da família.

A sentença não indica a razão pela qual deu este facto como não provado.

Neste tocante, afigura-nos ser insuficiente o teor das alegações da Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro no processo aí intentado pelo interveniente DD, uma vez que se trata de conteúdo de peça judicial e não de verdadeira prova quanto ao conteúdo do que terá sido o relacionamento entre a Ré e os AA., mormente a viúva de II.

Porém, impõe-se que se aprecie toda a prova – documental e testemunhal – e se explicite a razão por que da mesma se considera não resultar saberem todos os autores da existência da Ré e da ausência de vínculo biológico entre esta e o falecido II, mais de três anos antes da propositura da ação, sobretudo quando se observa que:

a) - ao tempo do testamento, datado de 5.9.2002, quer a A., quer os seus irmãos, quer mesmo a mãe, ora viúva, residiriam no Brasil, mais propriamente no ... (fls. 70 e 71), pois, nessa altura, segundo declarações prestadas pelo testador, a própria interveniente sua viúva residia e tinha o mesmo domicílio que o testador, na Avenida ..., ..., ..., ... (fls. 71);

b) - a 8.3.2001, entre a Ré progenitora e o falecido II, então residente naquele mesmo domicílio, foi outorgado o doc. de fls. 871 e 872, dirigido à Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro, com o seguinte teor:

Posse e guarda

da menor HH (…)
1- A menor é filha dos requerentes (…).
2- Desde 1999, reside na companhia do pai.
3- A mãe reconhece não dispor de todo o tempo que gostaria de passar com a filha menor, assim como para dar-lhe a atenção que merece.
4- A mãe, ora Requerente, reconhece que o pai tem não só disponibilidade de tempo, mas também competência e amor para dar à menor, assim como condições financeiras para proporcionar-lhe a melhor educação.
5- Para que tal ocorra, a mãe abre mão do pátrio poder que possui juntamente com o pai sobre a menor, ficando esta única e exclusivamente responsável pela filha, podendo com ela viajar livremente, inclusive para o exterior.
6- O pai, por sua vez, garantirá o pleno direito de visita à menor, sempre que assim o desejar a mãe.
As partes acordam (…), para o bem estar da menor, esta deve permanecer na companhia do pai, o qual terá, além do pátrio poder, a posse a guarda da mesma, até à sua maioridade

c) - nessa altura, já o perfilhante havia instaurado procedimentos vários, desde julho de 1997, dos quais que depois desistiu, tendo em vista a remoção da sua paternidade relativamente à então menor, conforme resulta provado supra em 11.d) a y);

d) - o próprio interveniente DD afirma em articulado processual saber da existência da Ré desde, pelo menos, 1998 (ponto 3 do doc. de fls. 73);

e) - o testamento do falecido alude expressamente à existência desta filha do testador e esse documento terá sido conhecido pelos AA., antes de 2005, altura em que foi instaurado o processo de inventário no Brasil;

f) - em 23.1.2003, a interveniente FF subscreveu um contrato de prestação de serviços educacionais com a Escola ..., relativamente à então menor, aqui segunda Ré, tendo preenchido o parent questionnaire, a 7.11.2002, onde se indica como irmã daquela e como pai, II (já falecido) – este, com o mesmo citado domicílio -, e como irmãs e irmãos a aqui A. e demais irmãos, aí consignando HH está numa fase emocional delicada, pois perdeu o pai há um mês atrás. Está tendo o acompanhamento de sua mãe, sua irmã FF e família[6](doc. de fls. 873 e ss.);

g) - em 2005, todos os aqui AA. outorgaram procurações com vista a inventário por óbito do perfilhante, mencionando-se expressamente no requerimento de inventário o testamento em causa onde o testador alude àquela filha;

h) - nas procurações juntas àquele processo de inventário, todos os aqui AA. se indicam como residindo no ..., Brasil (fls. 864 a 869);

i) - a requerente do inventário, a interveniente FF, em requerimento de 3.8.2005, que terá dado início ao processo de inventário, afirma que “no decurso deste inventário serão tratadas questões atinentes à paternidade da menor” (fls. 885), acrescentando: “Todavia, como havia exames de paternidade por DNA indicando que o inventariado não era pai biológico da menor, foi proposta uma ação de anulação do registo, pelo herdeiro e filho (…). Portanto, a decisão que vier a ser proferida no aludido feito, por repercutir no número de herdeiros e influir numa eventual sentença homologatória da partilha, é questão prejudicial (…)” – fls. 856.

Verificamos, finalmente, que as testemunhas ouvidas em audiência, OO, filho do irmão mais velho de II, e PP, que foi advogado das empresas da família, não foram questionados sobre qualquer tema relativo ao conhecimento pela A. (e demais intervenientes) dos factos relativos à paternidade e, assim, não se vê como pode ter-se dado como provado o que consta do ponto 11, quanto ao conhecimento pela aqui A. (nada se diz quanto aos demais intervenientes) dos factos em apreço.

(j) Por sua vez, em julgamento, a segunda Ré, HH, aludiu à convivência que tinham, em família, ela, o perfilhante e os irmãos, até aos seus cinco anos, altura em que faleceu II, acrescentando ter crescido em casa do pai, com a companhia da interveniente FF, que para ali se mudou, o que está em consonância com o documento supra mencionado em b).

Estas circunstâncias, maxime o teor dos documentos que observámos supra, tornam premente a recolha de declarações de parte aos AA., nos termos dos arts. 411.º e 466.º do CPC, e o seu confronto em audiência com tais documentos (e as circunstâncias acabadas de enunciar em a) a j), em ordem a esclarecer o tempo e o modo pelo qual tomaram efetivamente conhecimento da existência da criança e do facto de a mesma não ser filha biológica do perfilhante.

Tal indagação probatória torna-se necessária para apuramento do alegado na contestação, mais concretamente, nos artigos 50.º, 61.º, 63.º e, ainda, do alegado no art. 11.º da pi.

Para tanto, deverão obter-se, previamente, documentos certificados da pendência do processo de inventário instaurado no Brasil, em 2005, o que deverá ser providenciado pelo tribunal de primeira instância junto das Rés, e bem assim, ser notificada a segunda Ré para juntar aos autos as fotografias a que se refere no seu recurso, seguindo-se a tomada de declarações aos AA. sobre o seu conhecimento, e desde quando, acerca da perfilhação e da ausência de vínculo biológico, entre a segunda Ré e II, com confronto dos mesmos com o teor de todos estes documentos.

Assim, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2 b) e c) do CPC, urge anular a decisão de primeira instância, para efeitos de ampliação dos factos e recolha da prova acabada de mencionar (documentos e declarações de parte dos AA.), após o que, em sede de sentença e tendo em conta os factos então apurados, deverá ser apreciada a eventual caducidade do direito de ação por parte dos AA. e do abuso de direito de ação.

A precedência lógica da apreciação destes factos e do respetivo direito aplicável, torna inútil o conhecimento do recurso no tocante aos demais aspetos nele visados.

DISPOSITIVO

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, anular a sentença recorrida e ordenar a produção de prova nos termos e para os efeitos acabados de enunciar.

Custas pelos recorridos.




Porto, 8.4.2024
Fernanda Almeida
José Eusébio Almeida
Teresa Fonseca

____________________
[1] MM, NN, QQ, RR e as estagiárias SS e TT.
[2] Ambos os sublinhados foram agora introduzidos.
[3] Tudo isto, sem prejuízo do direito à reparação dos danos que pode assistir ao indevidamente perfilhado, pois “nem sempre o esclarecimento da verdade biológica compensa os danos sociais e individuais causados” (Guilherme de Oliveira, citado por Carolina de Sousa Brito, in A IMPUGNAÇÃO DA PERFILHAÇÃO: O (DES)RESPEITO PELO DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL – ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 308/2018 [PROC. N.º 411/17], Lex Familiae, Ano 20, N.º 39 (2023), p. 83 e ss. . Sobre o tema, veja-se Maria Licínia Vieira Girão, Dissertação de Mestrado apresentada em 2021, à FDUC, EM NOME DO FILHO, A VERDADE BIOLÓGICA COMO UM DIREITO (IN)CONSTITUCIONAL AS INCONGRUÊNCIAS DOS ARTIGOS 1807º, 1817º, 1, 1842º E 1859º,2 DO CÓDIGO CIVIL, p. 67 e ss.: «também haverá casos em que o filho sofre prejuízos com a impugnação, que além de poderem ser afetivos, podem ainda ser materiais. No direito comparado encontramos modelos em que estes casos são de alguma forma protegidos. Guilherme de Oliveira e Pereira Coelho referem, por exemplo, a lei francesa que, em 1972, “veio determinar a exclusão da legitimidade ativa do perfilhante nos casos em que o filho gozou da posse de estado correspondente durante dez anos (art. 339º da lei de 3-1-72); e alguns tribunais, embora tenham admitido sempre a impugnação, oneraram o perfilhante de má-fé com a obrigação de indemnizar os prejuízos que a alteração do estado causa ao filho”. No caso português, não estando expressamente na lei os casos em que se pode considerar que havendo prejuízos resultantes de uma perfilhação falsa têm de existir ressarcimentos, o certo é que a doutrina tem vindo a fundamentar a algumas hipóteses em que o filho deveria ser reparado pelos danos causados. Defendem Guilherme Oliveira e Pereira Coelho que a limitação “à reparação do dano da privação de alimentos, consistiria em reconhecer que o perfilhante assumiu uma obrigação de alimentos quando perfilhou (art. 2014º - CC) e que a indemnização deve compensar a falta dos pagamentos futuros”. Outro modo de fundamentar uma reparação “levaria a dizer que o exercício do direito de impugnar que a lei confere deve dar lugar a indemnização nos casos em que se puder invocar o abuso do direito (art. 334º - CC). Pese a aparente garantia de que, mesmo tendo exercido uma perfilhação falsa, o homem ao impugná-la, a todo o tempo, não fica sobre a ameaça de uma responsabilidade civil, o certo é que a jurisprudência dá sinais de que em algumas situações poderá haver lugar a indemnizações ao filho. Posicionamo-nos nesta linha, desde logo porque o ato deliberado e voluntário de perfilhar uma criança que não sua traz consigo responsabilidades. Além das declarações falsas (que podem constituir responsabilidade penal por falsificação do estado civil – art. 248º CP), no caso de uma perfilhação que se protele no tempo o filho sofre danos que poderão ser irreparáveis. Desconhecendo a falsidade da perfilhação fica impedido de investigar a sua verdadeira paternidade. Por outro lado, pode ficar privado de alimentos futuros, ter criado laços afetivos com o perfilhante, passar a identificar-se pelo apelido que dele recebeu e, inclusive, tê-lo transmitido aos seus descendentes ou mesmo criar legítimas expetativas quanto a possíveis heranças. E se a jurisprudência fundamenta a legitimidade da existência de prazos que limitam a investigação da paternidade e maternidade referindo-se, por exemplo, à “segurança jurídica”, “proteção da família” e aos “caça fortunas”, neste caso também poderão estar em causa estes valores, ou o facto de o perfilhante a determinada altura não querer que o perfilhado não seja, por exemplo, seu herdeiro, para proteger filhos biológicos». Disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/94680/1/Maria%20Lic%c3%adnia%20Gir%c3%a3o%20-%20EM%20NOME%20DO%20FILHO.pdf
[4] Remédio Marques, in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Coord. Clara Sottomayor 2.ª Ed., pp. 811-812.
[5] 88 - A perfilhação que II efectuou da menor HH é fruto apenas dos sentimentos de carinho, afecto e amor que aquele nutria pela menina. 89 - E ser pai não significa apenas ser a pessoa que gera e que tenha vínculo genético com a criança mas é, antes de tudo, a pessoa que ama, cria, educa, protege, alimenta uma criança, enfim a pessoa que realmente exerce as funções próprias de pai, sendo este considerado como tal por esta criança, de acordo com o seu superior interesse.
[6] Sublinhado nosso.