Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
231/16.1T8AND.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
Nº do Documento: RP20190429231/16.1T8AND.P1
Data do Acordão: 04/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 694, FLS 140-158)
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
II - Essa especificação deve ser feita nas conclusões e não no corpo das alegações, já que são aquelas que balizam o objecto do recurso.
III - O incumprimento do referido ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
IV - A parte que impugne a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a transcrever os depoimentos e concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais, a par disso terá de fazer a sua análise crítica.
V - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas, razão pela qual não pode o tribunal ad quem, em sede de recurso, conhecer da excepção do não cumprimento do contrato por se tratar de excepção de direito material a invocar pela parte que dele ase pretenda prevalecer.
VI - A existência de vício da coisa, nos termos e para os efeitos do artigo 913.º do C.Civil, assenta na função normal das coisas da mesma categoria e na qualidade normal das coisas da mesma natureza, que respeita á maior ou menor aptidão para realizar a sua função.
VII - Sendo a coisa vendida usada, o acordo incide sobre o objecto com qualidade inferior e idêntico a um bem novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na med
VIII - O desgaste normal das coisas usadas não consubstancia vício da coisa, para efeitos do citado artigo 913.º.
IX - O comprador de coisa defeituosa goza dos seguintes direitos:-anulação do contrato, por erro ou dolo;-redução do preço;-indemnização do interesse contratual negativo, cumulável com a anulação do contrato e com a redução ou minoração do preço;-reparação da coisa ou a sua substituição.
X - Não obstante, a concorrência electiva das pretensões reconhecidas por lei ao comprador não seja absoluta sofrendo, em certos casos, atenuações e a escolha deva ser conforme ao princípio da boa fé e não cair no puro arbítrio do comprador, sem olhar aos legítimos interesses do vendedor, não pode aquele ordenar a reparação e depois exigir o seu custo ao vendedor a menos que esta se tenha recusado a proceder a tal reparação ou, no mínimo, não a tenha efectuado num prazo razoável, para além, obviamente, das situações de manifesta urgência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 231/16.1T8AND.P1-Apelação
Origem- Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Competência Genérica de Anadia
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, S.A, melhor identificada nos autos propôs acção declarativa com processo comum contra C…, Lda., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de 14.841,78 € e juros legais comerciais vincendos desde 10/10/2016 até integral pagamento e, caso a Ré não pague o valor em débito até ao trânsito em julgado da douta sentença, na taxa de juros de 5% ao ano, após o trânsito em julgado da douta decisão, que acrescerá ao juro reclamado na al. a) deste pedido, nos termos do artº.829-A, nº.4, C. Civil.
Alegou para tanto e em síntese que:
- É uma sociedade comercial que tem por objecto social e dedica-se, entre outras coisas, à compra e venda de veículos pesados usados e foi abordada pela R. para lhe para lhe adquirir dois semi-reboques que estavam no parque daquela, em exposição para venda;
- No exercício da sua actividade, a pedido da R., vendeu a esta dois semi-reboques, um marca Samro, matricula VI-…., pelo preço de 9.000,00 € (nove mil euros) e outro marca Guillene, matricula C-….., pelo preço de 5.500,00 € (cinco mil e quinhentos euros), acrescido do IVA à taxa em vigor, ou seja, o que representa o valor global de 17.400,00 € (dezassete mil e quatrocentos euros), a pronto pagamento (2.10.2008);
- A Ré aceitou adquirir à A. os reboques por aquele preço e naquelas condições;
- A A. entregou os dois equipamentos a esta, bem como a factura, onde constava o material vendido, o preço e as condições de pagamento, sem que tivesse existido qualquer reclamação;
- O material vendido pela A. à Ré deveria ter sido pago, no domicílio da A., na data de entrega e data de emissão da factura;
- A R. entregou à A., quando levantou o material, por conta do preço, a quantia de 6.600,00 € (seis mil e seiscentos euros), com o compromisso de no dia seguinte proceder ao pagamento do restante em débito, mas não fez qualquer outro pagamento, estando em dívida a parte do preço dos dois semi-reboques adquiridos a esta, no montante de 10.800,00 €.
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Citada, a Ré apresentou contestação, impugnando os factos alegados pela A. e defendendo-se por excepção, deduziu ainda pedido reconvencional solicitando que seja declarada a nulidade do contrato de venda do semi-reboque com a matrícula C-….. e que a A/Reconvinda seja condenada a pagar-lhe a quantia de 21.236,77 € (vinte e um mil e duzentos e trinta e seis euros e setenta e sete cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legalmente aplicável, até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tanto e em síntese que:
- O legal representante da Ré, acordou com a Autora, adquirir mediante compra e venda, dois semi-reboques, um da marca Samro, matrícula VI-…., pelo preço de 9.000,00 € e um outro da marca Guillene, matrícula C-….., pelo preço de 5.500,00 €, ambos acrescidos do IVA à taxa em vigor, já com inspecção periódica;
- O semi-reboque, marca Guillene matrícula C-….., estava destinado ao transporte de mercadoria e a Ré pretendia transformá-lo para o transporte de madeira, o que era do conhecimento da Autora;
- Quando o legal representante da Ré chegou à sede da Autora para proceder ao levantamento dos semi-reboques, verificou que o semi-reboque marca Sanro, matrícula VI-…., não se encontrava com a inspecção periódica em dia;
- Como o legal representante da Ré, quis então desistir do negócio, o legal representante da Autora propôs ao legal da representante da Ré, que este levasse o semi-reboque com a matrícula C-….., para que procedesse à colocação de fogueiros e às reparações necessárias à transformação pretendida e que efectuasse depois a inspecção periódica, que esta seria por conta da Autora e que esta trataria entretanto da inspecção periódica do semi-reboque com a matrícula VI-…., o que o legal representante da Ré entregando então à Autora um cheque no valor de 17.400,00 €, correspondente ao preço acordado pela compra dos dois semi-reboques;
- A Ré levou então o semi-reboque com a matrícula C-….. e depois adquiriu adaptou a viatura à sua actividade (com colocação de fogueiros, instalação de farolins laterais e delimitadores, reparação e a instalação de luzes, e aplicação de chapa de oliveira e chapa de 8 mm de espessura e reforço o chassis), com o que gastou a quantia de 7.200,00 €;
- Apesar da A. se ter comprometido a tratar da inspecção periódica do semi-reboque com a matrícula VI-…., quando a Ré pretendeu proceder ao seu levantamento, não se encontrava feita, pelo que foi acordado entre ambas que a R. faria a inspecção periódica ao semi-reboque com a matrícula VI-…., e caso fosse reprovada a A. pagaria o material e a mão de obra necessária a nova inspecção;
- A Ré levou o semi-reboque com a matrícula VI-…. à inspecção periódica em 18/10/2008, mas foi reprovada e mandou proceder ao arranjo das anomalias detectadas a fim de poder passar na reinspecção, com o que o que gastou a quantia de 1.155,00 € e após reinspecção, foi aprovada. A Ré gastou na inspecção e reinspecção do semi-reboque com a matrícula VI-…., a quantia de 33,99 € (27,17 € + 6,82 €);
- Por tudo isto a Autora devolveu o cheque no valor de 17.400,00 €, à Ré, que esta lhe havia entregue para pagamento dos dois semi-reboques, tendo a Ré feito uma transferência para a conta da Autora no valor de 6.600,00 €, e ficando de proceder ao pagamento do remanescente assim que o semi-reboque com a matrícula C-….. fosse transferida a sua propriedade para o nome da Ré;
- Porém, após insistência por parte da Ré para que a Autora procedesse à transferência da propriedade do semi-reboque com a matrícula C-….. para o nome da Ré, veio esta a saber que a mesma não era possível, porque quando foi “vendido” pela Autora estava em nome da Massa Insolvente D…, Lda;
- Assim sendo, por se tratar de venda de bem alheio, deve a mesma ser declarada nula e de nenhum efeito, com todas as consequências legais daí resultantes, pelo que a Ré não deve proceder à entrega do preço acordado do semi-reboque com a matrícula C-…...
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A A./Reconvinda respondeu ao pedido reconvencional e ainda deduziu novo pedido, enxertado na resposta, para o caso de ser julgado procedente o pedido de declaração de nulidade do negocio relativamente ao semi-reboque com a matrícula C-….. e pediu a condenação da R. como litigante de má-fé.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida sentença que:
1. Condenou a Ré C…, Lda. a pagar à A. B…, S.A, a quantia de 14.841,78 € (catorze mil oitocentos e quarenta e um euros e setenta e oito cêntimos), acrescido de juros legais comerciais vincendos desde 10/10/2016 até integral pagamento e, caso a Ré não pague o valor em débito até ao trânsito em julgado da douta sentença, na taxa de juros de 5% ao ano, após o trânsito em julgado da douta decisão, que acrescerá ao juro reclamado, nos termos do artº.829-A, nº.4, C. Civil;
2. Julgou improcedente o pedido reconvencional quanto à declaração de nulidade do contrato de venda do semi-reboque com a matrícula C-….., celebrado pela Autora e a Ré;
3. Julgou pedido reconvencional parcialmente procedente quanto à indemnização pedida pela R., e, consequentemente, condenou a A/Reconvinda B…, S.A, a pagar à Ré C…, Lda. a quantia de na quantia de €1.188,99 (mil cento e oitenta e oito euros e noventa e nove cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legalmente aplicável, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1. A solução vertida na sentença recorrida não constitui uma solução justa para o presente caso, motivo pelo qual não se pode concordar com a mesma e se interpõe o presente recurso.
2. Com efeito, as partes celebraram um contrato de compra e venda, tendo como objecto dois reboques, um de “caixa aberta”, apto para o transporte de madeira, a operar de imediato, pelo preço de €9.000 (reboque VI), e um outro de “caixa fechada” que a Ré pretendia transformar para o transporte de madeira, a expensas suas, pelo valor de € 5.500 (reboque C).
3. Sucede que, quando pretendia proceder ao levantamento dos dois reboques, nas instalações da Autora, a Ré é confrontada com a falta de inspecção do reboque VI, que pretendia que estivesse pronto a usar dois dias depois.
4. Desta feita, acertaram que a Ré levasse o reboque C para as suas instalações, em Leiria, enquanto um funcionário da Autora iria fazer a inspecção periódica do outro reboque.
5. Assim ocorreu, eis senão quando, durante aquele transporte, a Ré é surpreendida com um telefonema da Autora a informá-la que o reboque tinha reprovado.
6. Pretendendo desfazer o contrato, o Sr. E…, sócio da Autora, foi convencido pelo Sr. F…, que foi quem sempre representou a Autora perante a Ré, a manter o mesmo, levando o reboque VI à inspecção, mediante o desconto das despesas necessárias à sua aprovação no preço acordado.
7. A Ré efectuou transferência bancária à Autora no valor de €6.600.
8. A Ré procedeu à transformação do reboque C, com o que despendeu a quantia total de € 20.047,78.
9. Porém, os documentos desse reboque nunca lhe foram entregues.
10. Estranhando tal situação, em momento que não se pode precisar, mas depois do reboque transformado e antes de 13 de Novembro de 2008, a legal representante da Ré deslocou-se à conservatória do registo automóvel, onde obteve a informação de que aquele reboque se encontrava registado em nome de “Massa Insolvente de D…, Lda.
11. Essa circunstância deixou-a bastante receosa, temendo nunca poder vir a usar o reboque.
12. Foi interpelada pela Autora no sentido do pagamento do remanescente do preço acordado, sem que se procedesse ao desconto das despesas referidas no ponto 6.
13. Nunca a Autora procedeu à entrega da declaração de venda devidamente assinada.
14. Temerosa, a Ré não procedeu ao pagamento do remanescente do preço, mas nunca pôde usar o reboque C, o qual se encontra “num canto” nas suas instalações.
15. Com efeito, não andou bem o tribunal a quo quando condenou a Ré no pagamento do remanescente do preço em falta, não procedendo a qualquer redução do mesmo, face ao não uso durante todos estes anos por causa imputável à Autora, nem condenou esta a entregar-lhe declaração de venda por ela assinada.
16. Assim, ajuizou como se apenas a Ré tivesse violado a sua obrigação de pagamento do preço, quando, na verdade a Autora, violou a obrigação acessória de entrega dos documentos (nos quais se inclui, naturalmente, a declaração de venda para poder registar o reboque C em seu nome).
17. Tal circunstância permite a invocação da excepção de não cumprimento pela Ré.
18. Assim sendo, o aresto ora em sindicância violou os artigos 428.º, 762.º, n.º 2 e 882.º do Código civil e ainda o artigo 607.º do Código de Processo Civil.
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso e, recorrendo de forma subordinada formulou as seguintes conclusões:
1. O Tribunal A QUO decidiu incorrectamente ao condenar a A. a pagar à R. a quantia de 1.188,99 €, respeitante a uma eventual reparação, inspecção e reinspecção.
2. O Tribunal A QUO considerou provada a seguinte factualidade para a decisão da causa, a saber:
“7. Foi emitida a factura FT1-…., com data de emissão 02/10/2008, com data de vencimento de 02/10/2008, onde constava a menção que todo o material era vendido no estado e local onde se encontrava, sem garantia (conforme fls. 16 que aqui se dá por reproduzida).
8. A Ré aceitou adquirir à A. os reboques por aquele preço, nas condições em que se encontravam.
9. A A. depois de vender os reboques à R. e esta lhos ter adquirido, entregou os dois equipamentos a esta, bem como a factura, onde constava o material vendido, o preço e as condições de pagamento.
10. O material, assim com a factura entregue e as condições de pagamento não sofreram qualquer reclamação.
(…)
14. A 13.10.2008 a Ré levou a galera VI-…. à oficina para proceder a várias reparações, com o que o que gastou a quantia de 1.155,00 € (com polies, molas, roletos, bomba de travões, solda, travão de mão e mão de obra, conforme factura de fls. 42 que se dá por reproduzida)
15. A Ré levou o semi-reboque com a matrícula VI-…. à inspecção periódica em 18/10/2008, mas foi reprovada.
16. Após reinspecção, feita em 21/10/2008, foi aprovada.
17. A Ré gastou na inspecção e reinspecção do semi-reboque com a matrícula VI-…., a quantia de 33,99 € (27,17 € + 6,82 €)”.
3. O Tribunal A QUO considerou não provado o seguinte facto: “2. O legal representante da Ré acordou com a Autora adquirir os dois semi-reboques já com inspecção periódica em dia”.
4. Não foi dado como provado que os semi-reboques quando foram vendidos pela A. à R. tivessem algum defeito.
5. Os reboques foram entregues pela A. à R. em 02/10/2008 e o VI só foi levado à oficina a 13/10/2008, ou sejam 12 dias depois.
6. Quem provocou os danos no semi-reboque VI, para a R. o levar à oficina em 13/10/2008, não sabemos.
7. Sabemos quando ele foi entregue pela A. à R. não tinha qualquer defeito.
8. Sabemos também que a R. nunca comunicou qualquer defeito ou dano à A. Em qualquer semi-reboque.
9. Nada consta nos autos se o semi-reboque VI até 13/10/2008, sofreu alterações e, em caso afirmativo, quais.
10. Não sabemos se os danos que levaram à reparação terão ocorrido entre o dia 02/10/2008 (data da entrega) e 13/10/2008 (data da entrada na oficina).
11. Também não se compreende como o Tribunal A QUO condenou a A. a pagar à R. o valor da inspecção e reinspecção, quando deu como não provado, que os semi-reboques tinham de ser entregues inspeccionados, nem se sabe a causa da inspecção periódica naquela data, nem o motivo de a 1.º inspecção ter sido reprovada.
12. Não resultando dos autos a causa da inspecção periódica do VI, nem da reinspecção, não pode o seu custo ser imputado à A., como fez o Tribunal A QUO, sem saber se ela era contemporânea à data da compra e venda e entrega ou posterior. No processo não existem elementos para tal conclusão.
13. Não se pode concluir, como o fez o Tribunal A QUO, que no caso sub judice, houve uma qualquer cláusula de exclusão da responsabilidade por parte da A.
14. Mesmo que houvesse essa cláusula de exclusividade da responsabilidade, a A. Só poderia ser condenada se se tivesse verificado o incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso.
15. Nos autos não resulta qualquer indício que haja incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato por parte da A.
16. Neste tipo de negócios, vigora o princípio da liberdade contratual.
17. A A. não tem qualquer responsabilidade nos eventuais danos que a R. teve, com a reparação, inspecção e reinspecção, devendo ser absolvida.
18. Deve a A. ser absolvida da quota parte das custas em que foi condenada.
19. A douta decisão recorrida, violou entre outos, o disposto no art.º 405, C. Civil.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir no presente recurso:
Recurso independente
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual.
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Recurso subordinado
a)- saber se a subsunção jurídica do quadro factual que resultou assente nos autos e no que tange ao pedido reconvencional formulado se encontra, ou não, correcta.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria factual que o tribunal recorrido deu como provada:
Factos provados
1. A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto social e dedica-se, entre outras coisas, à compra e venda de veículos pesados usados, com carácter lucrativo, com sede e parque de exposição no …, …, Anadia.
2. A R. é uma empresa que se dedica ao comércio de madeiras.
3. A A. foi abordada pela R., para lhe adquirir dois semi-reboques que estavam no parque daquela, em exposição para venda.
4. A R. deslocou-se ao parque de exposição da A. onde viu os semi-reboques.
5. A R. mostrou interesse em adquirir os dois equipamentos que a A. tinha para venda.
6. A A., no exercício da sua actividade, a pedido da R., vendeu a esta dois semi-reboques, um marca Samro, matricula VI-…., pelo preço de 9.000,00 € (nove mil euros) e outro marca Guillene, matricula C-….., pelo preço de 5.500,00 € (cinco mil e quinhentos euros), preço esse acrescido do IVA à taxa em vigor, ou seja, os dois reboques pelo valor global de 17.400,00 € (dezassete mil e quatrocentos euros).
7. Foi emitida a factura FT1-…., com data de emissão 02/10/2008, com data de vencimento de 02/10/2008, onde constava a menção que todo o material era vendido no estado e local onde se encontrava, sem garantia (conforme fls. 16 que aqui se dá por reproduzida).
8. A Ré aceitou adquirir à A. os reboques por aquele preço, nas condições em que se encontravam.
9. A A. depois de vender os reboques à R. e esta lhos ter adquirido, entregou os dois equipamentos a esta, bem como a factura, onde constava o material vendido, o preço e as condições de pagamento.
10. O material, assim com a factura entregue e as condições de pagamento não sofreram qualquer reclamação.
11. O material vendido pela A. à Ré deveria ter sido pago, no domicílio da A., na data de entrega e data de emissão da factura, i.é, a pronto pagamento.
12. A R. fez uma transferência para a A., por conta do preço, da quantia de 6.600,00 € (seis mil e seiscentos euros) no dia 20.10.2018.
13. A A. instou várias vezes a Ré ao pagamento do valor em falta.
14. A 13.10.2008 a Ré levou a galera VI-…. à oficina para proceder a várias reparações, com o que o que gastou a quantia de 1.155,00 € (com polies, molas, roletos, bomba de travões, solda, travão de mão e mão de obra, conforme factura de fls. 42 que se dá por reproduzida)
15. A Ré levou o semi-reboque com a matrícula VI-…. à inspecção periódica em 18/10/2008, mas foi reprovada.
16. Após reinspecção, feita em 21/10/2008, foi aprovada.
17. A Ré gastou na inspecção e reinspecção do semi-reboque com a matrícula VI-…., a quantia de 33,99 € (27,17 € + 6,82 €).
18. O semi-reboque, marca Guillene e matrícula C-….., estava destinado ao transporte de mercadoria e a Ré pretendia transformá-lo para o transporte de madeira, o que era do conhecimento da Autora.
19. A Ré levou o semi-reboque com a matrícula C-….. e veio depois a adquirir os fogueiros a fim de serem nele aplicados, com o que gastou a quantia de 12.600,00 €, procedeu à instalação nesse semi-reboque de farolins laterais e delimitadores, efectuou a reparação e a instalação de luzes, com o que gastou a quantia de 247,78 €, procedeu ainda à aplicação no mesmo semi-reboque de chapa de oliveira e chapa de 8 mm de espessura e reforçou o chassis, com o que gastou a quantia de 7.200,00 €.
20. Aquando da venda do semi-reboque com a matrícula C-….. à R., este veículo estava registado em nome da Massa Insolvente D…, Lda.
21. O referido semi-reboque foi adquirido pela A. no âmbito de uma venda por negocial no âmbito do Insolvente D…, Lda., o qual lhe foi entregue a 7 de Fevereiro de 2007.
22. A aquisição da propriedade do semi-reboque com a matrícula C-….. foi inscrita no registo automóvel a favor da Autora no dia 13.11.2008.
Factos não provados
Não se provou que:
1. A R. quando levantou o material, entregou nesse mesmo dia à A. a quantia de 6.600 euros, com o compromisso de no dia seguinte proceder ao pagamento do restante em débito.
2. O legal representante da Ré acordou com a Autora adquirir os dois semi-reboques já com inspecção periódica em dia.
3. Quando o legal representante da Ré chegou à sede da Autora para proceder ao levantamento dos semi-reboques, ao verificar que o semi-reboque marca Sanro, matrícula VI-…., não se encontrava com a inspecção periódica em dia, quis então desistir do negócio.
4. O legal representante da Autora propôs ao legal da representante da Ré, que este levasse o semi-reboque com a matrícula C-….., para que procedesse à colocação de fogueiros e às reparações necessárias à transformação pretendida e que efectuasse depois a inspecção periódica, que esta seria por conta da Autora e que a Autora trataria entretanto da inspecção periódica do semi-reboque com a matrícula VI-…..
5. Ao que o legal representante da Autora aceitou, entregando então à Autora um cheque no valor de 17.400,00 €, correspondente ao preço acordado pela compra dos dois semi-reboques e levou então o semi-reboque com a matrícula C-…...
6. Entretanto, a Autora apesar de se ter comprometido com a Ré em tratar da inspecção periódica do semi-reboque com a matrícula VI-…, a mesma não se encontrava feita quando a Ré pretendeu proceder ao seu levantamento.
7. A Ré aceitou, mediante proposta da Autora, fazer ela própria a inspecção periódica ao semi-reboque com a matrícula VI-…., em Leiria, e passar de nome, que podia ser que passasse e caso fosse reprovada a Autora pagaria o material e a mão-de-obra necessária a nova inspecção.
8. Foi depois da Ré levar o semi-reboque com a matrícula VI-…. à inspecção periódica em 18/10/2008, que mandou proceder ao arranjo das anomalias com o que o que gastou a quantia de 1.155,00 €.
9. Por tudo isto a Autora devolveu o cheque no valor de 17.400,00 €, à Ré, que esta lhe havia entregue para pagamento dos dois semi-reboques, na sequencia do que a Ré fez a transferência para a conta da Autora no valor de 6.600,00 €, e ficando de proceder ao pagamento do remanescente assim que o semi-reboque com a matrícula C-….. fosse transferida a sua propriedade para o nome da Ré.
10. Após insistência por parte da Ré para que a Autora procedesse à transferência da propriedade do semi-reboque com a matrícula C-….. para o nome da Ré, esta veio a saber que a mesma não era possível, porque estava em nome da Massa Insolvente D…, Lda.
11. Por não ter sido possível efectuar a transferência de propriedade, a Reconvinte, para além dos gastos havidos com a sua transformação acima referidos, nunca pode utilizar tal semi-reboque na sua actividade.
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III- O DIREITO
Recurso independente
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como se evidencia do requerimento de interposição do recurso a Ré recorrente nele refere que o mesmo abrange quer a matéria de facto quer de direito.
Ora, esta possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto está, como se sabe, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Efectivamente, como emerge do nº 1 do artigo 639.º do CPCivil, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional passível de apelação autónoma fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular.[1]
Como assim, para além do cumprimento do ónus de alegação, o recorrente fica igualmente sujeito ao ónus de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões, em que resuma os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal recorrido.
Além destes, vem-se igualmente autonomizando um ónus de especificação de cada uma das concretas razões de discórdia em relação à decisão sob censura, seja quanto às normas jurídicas (e sua interpretação) aí convocadas, seja, no que à situação sub judice releva, a respeito dos concretos pontos de facto que a apelante considera que foram julgados de forma incorrecta e dos concretos meios de prova que impunham uma diversa decisão relativamente a essa facticidade.
Isso mesmo determina a al. a) do nº 1 do artigo 640.º do CPCivil, na qual se preceitua que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.
Por imposição do segmento normativo transcrito, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem.
Isto posto, procedendo à exegese das alegações apresentadas, afigura-se-nos que não foi observado esse ónus de especificação dos concretos pontos de facto que a apelante considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal de 1ª instância, já que nas respectivas conclusões nenhuma referência lhes é feita.
Questão que se tem colocado é a de saber se tal especificação deve constar, formalmente, das conclusões recursivas ou se se bastará com a sua inclusão no corpo alegatório.
É certo que, aparentemente, a lei adjectiva não consagra norma expressa sobre tal inclusão no quadro conclusivo, como o faz relativamente à impugnação de direito, nos termos do já citado artigo 639.º, n.º 1 e 2.
Porém, conforme vem sendo maioritariamente entendido[2], constituindo a especificação dos concretos pontos de facto um factor de delimitação do objecto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões, por força do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugadamente com o art.º 640.º, n.º 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente o preceituado no n.º 1 do art.º 639.º.
Este posicionamento é, quanto a nós, aquele que se mostra em consonância com a ratio essendi das conclusões recursivas, qual seja a de delimitação do âmbito objectivo e subjectivo do recurso e, correspondentemente, da competência decisória da Relação.
Com efeito, como ressalta do regime plasmado nos artigos 635.º, nº s 3 e 4, 637.º, nº 2, 1ª parte e 639.º, nº 1, todos do CPCivil, da sua natureza lógica de finalização resumida de um discurso, as conclusões têm um papel decisivo, não só no levantamento das questões controversas apresentadas ao tribunal superior como, sobretudo, na fixação do objecto do recurso, logo se compreendendo quão importantes elas são para o tribunal ad quem na definição dos seus poderes de cognição.
Portanto, resumindo: as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objecto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, susceptível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, como resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objecto fático.
Entende-se, por conseguinte, que para uma correta impugnação da matéria de facto, se exige a inclusão da concretização dos pontos de facto ou matéria impugnada, nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso, inclusão essa que, in casu, não se verificou.
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Acresce, por outro lado, que, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se necessário evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
Ora lendo as alegações recursivas a Ré limitou-se a pouco mais do que transcrever excertos das declarações de parte da sua representante legal G… e dos depoimentos das testemunhas H…, I… e J….
Acontece que isso não basta.
A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na verdade, o que se exige é que se analisem esses meios de prova, cotejando-os mesmo com a prova em sentido contrário, relativizando o sentido dessa prova e dizendo porquê, mas também relativizando as provas que convoca para sustentar o seu ponto de vista e de tudo isso extraindo o sentido que lhe merecer acolhimento.
O que se pretende que a parte faça?
Certamente que apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica dessas provas, pelo menos elementar.
A razão pela qual se afirma que a parte deve produzir uma análise crítica mínima é esta: indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, pelo que nada se acrescenta ao que já existe nos autos, nem se mostra a razão por que a resposta a uma dada matéria de facto deve ser diversa da que foi dada pelo juiz.
Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
Não basta pois identificar meios de prova e dizer-se que os mesmos deviam ter sido valorados em certo sentido e em detrimento daqueles que o tribunal valorou.
Com efeito, os depoimentos das testemunhas, que a ora apelante pretende que sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo tribunal recorrido, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são, consabidamente, como acima se deu nota elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal (cfr. artigos 396.º do Cód. Civil e 607.º, nº 5 do CPCivil.
Portanto, se o tribunal recorrido entendeu valorar diferentemente da ora recorrente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, sem mais, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui, pois que, se a Relação deve formar a sua própria e autónoma convicção, a verdade é que, como acima se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta.
De modo simples, impunha-se que Ré recorrente como condição da reapreciação da prova, fizesse evidenciação da existência de um erro grosseiro, material ou formal, na apreciação da prova para, partindo dessa circunstância, abrir-se a porta da renovação da prova a que apela, coisa que manifestamente não fez.
Portanto, o referido ónus não se pode ter por satisfeito com o apego descontextualizado e meramente pontual a frases dos depoimentos de duas testemunhas.
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Resulta, assim, manifesto o incumprimento por banda dos apelantes dos ónus estabelecidos nas als. a) e b) do nº 1 do citado artigo 640.º do CPCivil.
Daí que, em consonância com o disposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 desse normativo, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão peremptória da lei (através do emprego do adjectivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desses ónus.[3]
Deste modo, perante o evidenciado inadimplemento, nenhuma alteração se poderá introduzir na matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada e não provada.
A apelação terá, por conseguinte, de improceder nessa parte.
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Acontece que permanecendo inalterada a matéria factual dada como provada e não provada pelo tribunal recorrido, a apelação terá que improceder no segmento restante, ou seja, no que à matéria jurídica diz respeito.
Com efeito, sob este conspecto o que alega a recorrente é a excepção de não cumprimento do contrato, afirmando que não andou bem o tribunal a quo quando a condenou no pagamento do remanescente do preço em falta, não procedendo a qualquer redução do mesmo, face ao não uso durante todos estes anos do reboque “C” por causa imputável à Autora, nem condenou esta a entregar-lhe declaração de venda por ela assinada, ajuizando como se apenas a Ré tivesse violado a sua obrigação de pagamento do preço, quando, na verdade a Autora, violou a obrigação acessória de entrega dos documentos (nos quais se inclui, naturalmente, a declaração de venda para poder registar o reboque “C” em seu nome).
No que tange aos pedidos da redução do preço e entrega dos documentos nunca o tribunal recorrido podia sobre eles emitir qualquer pronúncia sob pena de nulidade da decisão.
Na verdade, tais pedidos não foram formulados pela Ré na dedução do seu pedido reconvencional, como da contestação se evidencia. Ora, face a tal ausência de formulação, o tribunal recorrido esta impedido de sobre os mesmos emitir qualquer condenação ou absolvição já que, se o tivesse feito, a decisão era nula [cfr. artigo 615.º, nº 1 al. e) do CPCivil].
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Acresce que a eventual excepção de não cumprimento além de não ter arrimo no quadro factual que dos autos resultou assente, sempre se trataria de uma questão nova que nunca foi posta a apreciação do tribunal recorrido.
Acontece que, como supra se consignou, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objecto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[4], em relação ao objecto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[5]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excepcionada quando a lei expressamente determine o contrário[6] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[7]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte activa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às excepções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que a Ré recorrente nunca, na respectiva contestação, aduziu tal questão, sendo que, se trata de questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pela apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.
Com efeito, tal excepção, de direito material e peremptória, tendo natureza disponível, não é de conhecimento oficioso, devendo a respectiva factualidade integradora ser alegada na contestação, sob pena de preclusão (cfr. artigos 571.º, 573.º e 579.º todos do CPCivil).[8]
Destarte, nunca tal questão podia ser conhecida por este tribunal de recurso.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pela Ré recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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2- Recurso subordinado
A única questão que importa apreciar e decidir no âmbito deste recurso consiste em:
a)- saber se a subsunção jurídica do quadro factual que resultou assente nos autos e no que tange ao pedido reconvencional formulado se encontra, ou não, correcta.

Como resulta da decisão recorrida o tribunal a quo condenou a Autora reconvinda a paga à Ré a quantia de € 1.188,99 (mil cento e oitenta e oito euros e noventa e nove cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legalmente aplicável, até efectivo e integral pagamento.
É contra esta condenação que se insurge a Autora reconvinda estribada na circunstância de que o tribunal recorrido não poida concluir como o fez, que os danos da galera VI-…. eram contemporâneos ao momento da venda e entrega do semi-reboque à Ré, quando esta nunca denunciou tais danos, nem resulta dos autos que eles já existiam aquando da venda ou da sua entrega.
Que dizer?
O tribunal recorrido considerou verificar-se uma situação de cumprimento defeituoso quanto à venda da galera VI-…..
Não se pode, salvo o devido respeito, concordar com este entendimento.
O cumprimento defeituoso tem como pressuposta a ideia de que, aquando da entrega da coisa, o comprador desconhecia o vício ou inexactidão da prestação efectuada pela outra parte.
Quando haja cumprimento defeituoso, ou, seja, quando a prestação seja defeituosamente cumprida, o devedor, cuja culpa se presume, responde pelo prejuízo causado ao credor, nomeadamente pela eliminação dos defeitos–cfr. artigos 798.º, 799.º, nº 1, 913.º e 914.º todos do C. Civil.
Em caso de cumprimento defeituoso, a lei impõe, pois, ao devedor a prova de que o mesmo não procede de culpa sua.
A execução defeituosa da prestação contratual, como violação do contrato, é um acto ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
No domínio desta responsabilidade, presume-se, como se disse, a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.
Assim, há-de ser sobre quem invoca a prestação inexacta da outra parte como fonte da responsabilidade que há-de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento (facto ilícito), bem como os prejuízos dele decorrentes (dano)–artigo 342.º, nº 1 C.Civil.[9]
O vício ou defeito da coisa é determinado à data do cumprimento e a ela se reporta. Deve, pois, existir nesse momento, embora eventualmente oculto.
Efectivamente, como escreve Pedro Martinez[10] “o cumprimento defeituoso pressupõe a existência de culpa do devedor e não está na dependência do caso fortuito. Além disso, o defeito advém de uma execução imperfeita”.
Defeitos serão tanto os vícios que tiram valor ou aptidão à obra para o uso ordinário ou previsto no contrato, como as desconformidades com o que as partes estipularam.
Mas será que no caso em apreço se pode falar de defeitos relativamente à galera VI-….?
Importa, desde logo, respigar aquilo que foi alegação da Ré reconvinte a esse respeito aquando da dedução do pedido reconvencional.
Ora, sob este conspecto, a Ré reconvinte alegou que:
“-A Reconvinda comprometeu-se ainda perante a Reconvinte a proceder ao pagamento devido pela inspecção periódica do semi-reboque com a matrícula VI-…., e de todos os materiais e mão-de-obra necessárias à respectiva aprovação;
- A Reconvinte levou o semi-reboque com a matrícula VI-…. à inspecção periódica em 18/10/2008, mas foi reprovada;
- A Reconvinte mandou proceder ao arranjo das anomalias detectadas a fim de poder passar na reinspecção, com o que o que gastou a quantia de 1.155,00;
- A Ré gastou na inspecção e reinspecção do semi-reboque com a matrícula VI-…., a quantia de 33,99 € (6,82 € + 27,17 €);
- Deve assim a Reconvinda à Reconvinte, a quantia de 1.188,99 €” (cfr. artigo 47º a 51º da contestação reconvenção).
E o que se provou neste âmbito?
“- A 13.10.2008 a Ré levou a galera VI-…. à oficina para proceder a várias reparações, com o que o que gastou a quantia de 1.155,00 € (com polies, molas, roletos, bomba de travões, solda, travão de mão e mão de obra);
- A Ré levou o semi-reboque com a matrícula VI-…. à inspecção periódica em 18/10/2008, mas foi reprovada.
- Após reinspecção, feita em 21/10/2008, foi aprovada.
- A Ré gastou na inspecção e reinspecção do semi-reboque com a matrícula VI-…., a quantia de 33,99 € (27,17 € + 6,82 €)” (cfr. pontos 14. a 17. da fundamentação factual).
Importa ainda sublinhar que o tribunal recorrido deu como não provado que “o legal representante da Ré tivesse acordado com a Autora adquirir os dois semi-reboques já com inspecção periódica em dia” (cfr. ponto 2. do elenco dos factos não provados).
Daqui resulta que a versão dos factos apresentada pela Ré no que a esta matéria diz respeito não resultou provada, ou seja, que a Autora se tivesse comprometido perante a Reconvinte a proceder ao pagamento devido pela inspecção periódica do semi-reboque com a matrícula VI-…., e de todos os materiais e mão-de-obra necessárias à respectiva aprovação.
O que está nos autos é apenas que a Ré em 13.10.2008 a Ré levou a galera VI-…. à oficina para proceder a várias reparações, com o que o que gastou a quantia de 1.155,00 € (com polies, molas, roletos, bomba de travões, solda, travão de mão e mão de obra).
Portanto, também não resultou provado, como a Ré havia alegado, que as referidas reparações tivessem sido mandadas efectuar na sequência da reprovação na inspecção do citado veículo, pois que as mesmas ocorreram antes, e que depois de efectuadas o veículo em causa foi aprovado na referida inspecção.
A questão que agora se coloca é se as referidas reparações de que a galera VI-…. foi alvo podem ser considerados defeitos desse veículo, coisa que, aliás, a Ré nem sequer alega.
Vejamos:
O art.º 913º do Código Civil estatui:
1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.
A coisa entregue pelo vendedor na execução do contrato de compra e venda deve estar isenta de vícios físicos, defeitos intrínsecos inerentes ao seu estado material que estejam em desconformidade com o contratualmente estabelecido, ou em desconformidade com o que, legitimamente, for esperado pelo comprador.
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela[11] referem a este propósito que “[o] artigo 913º cria um regime especial (cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...]) para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:
a) Vício que desvalorize a coisa;
b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;
c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
O nº 2 manda atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria (…).”.
No que concerne ao ónus da prova, sendo a existência do defeito um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador, cabe a este a respectiva prova (cfr. n.º 1 do art.º 342.º do Código Civil).[12]
Mas, para além disso, incumbe ao comprador o ónus da prova da gravidade desse defeito, “de molde a afectar o uso ou a acarretar uma desvalorização da coisa”.
Ora, as reparações levadas a cabo na referida galera VI-…. não se podem considerar nos termos sobreditos defeitos, trata-se antes de reparações decorrentes do natural desgaste a que o veículo está sujeito.
Efectivamente, a existência de vício da coisa, nos termos e para os efeitos do citado artigo 913.º do C.Civil, assenta na função normal das coisas da mesma categoria e na qualidade normal das coisas da mesma natureza, que respeita à maior ou menor aptidão para realizar a sua função.
No que tange à qualidade normal, é necessário distinguir entre coisas novas e usadas e, dentro destas, vários tipos, segundo a duração do uso.
É que as coisas inconsumíveis vão-se deteriorando com o uso ou pelo simples decurso do tempo.
A propósito desta matéria, escreve Pedro Romano Martinez[13] “Era usual considerar-se que a responsabilidade por incumprimento defeituoso estaria tacitamente excluído com respeito a coisas usadas, porquanto era de prever que estas tivessem vícios. O devedor só seria responsável no caso de ter garantido determinadas qualidades.
Estes problemas colocavam-se, em especial, a propósito da venda de veículos usados.
Em certos casos, as circunstâncias concretas podem levar a aceitar-se uma exclusão tácita da responsabilidade, mas não é lícito alastrar essa ilação a todas as vendas de objectos usados.
Por outro lado, o defeito não se identifica com a deterioração motivada pelo uso ou pelo decurso do tempo.
O bem usado pressupõe-se com um desgaste normal, em função da utilização (p. ex., número de quilómetros percorridos) ou do tempo (por, ex. número de anos a contar da data de fabrico), mas não tem de ser defeituoso.
Para além do desgaste normal, a coisa usada pode ter um vício oculto.
Assim, se o sistema de travagem do veículo que foi vendido em segunda mão não funciona convenientemente, há um defeito que excede o desgaste normal.
A tendência actual vai no sentido de se admitir a aplicação do regime de cumprimento defeituoso, mesmo às compras e vendas de coisas usadas”.
O mesmo Autor acrescenta, logo seguir[14]: “No sistema jurídico português, a distinção entre coisas novas e usadas não tem consagração legal e não pode ser fundamento para efeitos de excluir a responsabilidade.
Todavia, sendo vendida uma coisa usada, o acordo incide sobre o objecto com qualidade inferior e idêntico a um bem novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal”.
Pois bem.
Perante esta doutrina, com que se concorda, pode afirmar-se que o desgaste normal das coisas usadas não consubstancia vício da coisa, nos termos e para os efeitos do artigo mencionado artigo 913.º.
Ora, é facto notório, que não carece de alegação nem de prova, que as necessidades de reparação identificadas no ponto 14. da fundamentação factual, correspondem, segundo a experiência comum, a exigência de reparações determinadas pelo desgaste normal de um veículo usado .
Era à Ré que incumbia alegar os factos bastantes que permitissem caracterizar as necessidades de reparação, que apontou como correspondendo a vícios da coisa e não a simples resultado do desgaste normal de um veículo usado.
Só que a Ré não alegou, nem provou, como devia, por serem factos constitutivos do seu direito (artigo 342.º, nº1, do C.Civil), que as aludidas deficiências apresentadas excedessem o desgaste normal de um veículo usado.
Acaso tais anomalias impediam o uso do citado veículo?
Repare-se que não vem dado como provados nos autos que foi por causa de tais anomalias que o referido veículo foi reprovado na inspecção a que foi sujeito, pois que as mesmas foram efectuadas antes da referida inspecção.
Mas ainda que assim não fosse, ou seja, que estivéssemos perante defeitos do veículo em causa, sempre a reconvenção teria que improceder neste segmento.
Analisando.
Para proteger o comprador de coisa defeituosa, o referido artigo 913.º, nº 1, do C.Civil, manda observar, com as necessárias adaptações, o prescrito na secção relativa aos vícios de direito (cfr. arts 905.º e segs. do CCivil).
Daí resulta que a lei concede ao comprador os seguintes direitos:
1- Anulação do contrato, por erro ou dolo, verificados os respectivos requisitos de relevância exigidos pelo artigo 251.º (erro sobre o objecto do negócio) e pelo artigo 254.º (dolo);
2- Redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior (artigo 911.º);
3 - Indemnização do interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, cumulável com a anulação do contrato e com a redução ou minoração do preço (artigos 908.º, 909.º e 911.º, ex vi artigo 913.º);
4 - Reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição (artigo 914.º, nº 1,1ª parte), independentemente de culpa do devedor, se este estiver obrigado a garantir ao bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (artigo 921.º, nº1).
Mas o comprador também pode escolher e exercer, autonomamente, o direito de indemnização pelo interesse contratual positivo, decorrente das regras gerais do direito de responsabilidade civil, baseado no cumprimento defeituoso ou inexacto, presumidamente imputável ao vendedor, nos termos dos artigos 798.º, 799.º e 801.º, nº 1, do C.Civil.[15]
Com efeito, o vendedor está obrigado juridicamente a entregar ao comprador a coisa vendida, isenta de defeitos, em conformidade com o contratado.
Tal significa considerar a isenção de vícios (materiais ou jurídicos da coisa) como conteúdo do dever de prestação conferindo ao comprador o direito ao cumprimento exacto e pontual, ou seja, à entrega da coisa sem defeitos.
É o ponto de vista da chamada teoria do cumprimento ou teoria do dever de prestação.
Como escreve o João Calvão da Silva[16] “A concorrência electiva das pretensões reconhecidas por lei ao comprador não é um absoluto: sofre em certos casos atenuações e a escolha deve ser conforme ao princípio da boa fé, e não cair no puro arbítrio do comprador, sem olhar aos legítimos interesses do vendedor (…). A eticização da escolha do comprador através do princípio da boa fé é irrecusável”. E do mesmo autor “se a escolha entre as pretensões cabe ao comprador, essa deve obedecer ao princípio da boa fé e não cair no puro arbítrio. Pelo que, se num caso concreto a opção exercida exceder indubitavelmente os limites impostos pela boa fé …, poderão intervir as regras do abuso do direito”.
Portanto, o cumprimento defeituoso pode não conferir ao credor o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, eliminar os defeitos à custa do devedor.
Assim, o facto de estar demonstrada a avaria do veículo, ou seja, a falta de conformidade do bem vendido ou cumprimento defeituoso do contrato por parte da Autora, não resulta para a Ré/comprador, o direito a ser de imediato indemnizada na quantia necessária à reparação do defeito.
Como refere Pedro Martinez[17], “em matéria de cumprimento defeituoso, nos contratos de compra e venda e de empreitada, vigora o princípio que a indemnização é subsidiária relativamente aos pedidos de eliminação dos defeitos, de substituição da prestação e de redução do preço (artigos 911.º, 914.º, 915.º e 1221.º e segs). Tem, pois, uma função complementar dos outros meios jurídicos”.
E mais adiante, acrescenta: “A indemnização não funciona em alternativa, mas sim como complemento dos restantes meios jurídicos que são postos à disposição do comprador e do dono da obra, sempre que seja efectuada uma prestação defeituosa.
Tanto em matéria de compra e venda como de empreitada, a lei prevê a possibilidade de, para além do contrato ser resolvido, o credor poder exigir a eliminação do defeito, a substituição da prestação e a redução do preço. Ora, qualquer destes três meios tem em vista reconstituir a situação natural. Sendo esta a regra no direito civil (artigos 562º e 566º n.º 1), a indemnização por sucedâneo pecuniário, prevista nos artigos 910º, 915º e 1223º, só se justifica na medida em que os outros meios não se possam efectivar, ou em relação a prejuízos que não tenham ficado totalmente ressarcidos”.
Temos, pois, que segundo o regime do Código Civil, apenas, em casos de urgência ou para evitar maiores danos é admissível que o comprador, por si ou por terceiro, proceda à eliminação dos defeitos, exigindo depois o reembolso das respectivas despesas.
Portanto, o comprador apenas pode ordenar a reparação e depois exigir o seu custo ao vendedor, se este se recusar proceder à reparação ou, no mínimo, não a efectue num prazo razoável, para além, obviamente, das situações de manifesta urgência.
Ora, no caso, não está demonstrado que a Autora se recusou a cumprir a obrigação de reparar, que tenha recusado a aplicação de peças novas ou sequer que estivesse em mora.
Por outro lado, da factualidade provada não resulta que se estivesse perante uma situação de urgência.
Assim, a Ré não tinha o direito de se substituir à Autora/vendedora e mandar proceder a reparação do veículo por terceiro e depois exigir-lhe o custo dessa reparação.
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Procedem, assim, as conclusões formuladas pela Autora recorrente e, com elas, o respectivo recurso subordinado, havendo pois que revogar, sob esse conspecto, a decisão recorrida.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
a)- julgar o recurso independente improcedente por não provado e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida;
b)- julgar o recurso subordinado procedente por provado e, consequentemente, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou a Autora reconvinda B…, S.A, a pagar à Ré C…, Lda. a quantia de na quantia de € 1.188,99 (mil cento e oitenta e oito euros e noventa e nove cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legalmente aplicável, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a desse pedido.
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Custas em ambos os recursos pela Ré apelante e apelada (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 29 de Abril de 2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Sendo que, a este respeito, a casuística do Tribunal Constitucional (v.g. acórdãos nº 132/2002 e 403/2002, publicados, respectivamente, no DR, II série, de 29.05.2002 e de 16.12.2002) vem reiteradamente afirmando não ser incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes, desde que não sejam nem arbitrários nem desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão
[2] Cfr., inter alia, na jurisprudência, acórdãos do STJ de 19.02.2015 (processo 299/05.6TBMGD.P2.S1), de 18.05.2004 (processo nº 05A1334), de 1.03.2007 (processo nº 06S3405), de 13.07.2006 (processo nº 06S1079) e de 8.03.2006 (processo nº 05S3823), acórdãos desta Relação de 13.10.2015 (processo nº 127/12.3TVPRT.P1), de 22.09.2014 (processo nº 258/14.8TJPRT-B.P1) e de 3.06.2014 (processo nº 2438/11.9TBOAZ), acórdãos da Relação de Lisboa de 23.04.2015 (processo nº 3311/3.TBBRR.L2-6), de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdãos da Relação de Coimbra de 19.12.2012 (processo nº 2312/11.9TBLRA.C1), de 17.03.2010 (processo nº 2493/08.9PCCBR.C1) e de 3.06.2008 (processo nº 245-B/2002.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 584, AVEIRO PEREIRA, O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, págs. 11 e seguintes, in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf e ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 133, onde afirma que “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”.
[3] A este propósito, a doutrina, praticamente una voce, tem considerado que o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento-cfr., por todos, Abrantes Geraldes, ob. citada, pág. 134 e Amâncio ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 170; Lopes do Rego, ob. citada, vol. I, pág. 585 e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62. Idêntico entendimento tem sido trilhado na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ de 9.02.2012 (processo nº 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo nº 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo nº 455/07.2TBCCH.E1.S1), de 21.06.2011 (processo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.06.2014 (processo nº 1218/10.3TBBCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Registe-se que sobre esta temática, ainda que no domínio da jurisdição penal, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se (v.g. acórdão nº 259/2002, publicado no Diário da República, II série, de 13.12.2002), decidindo pela compatibilidade constitucional de uma solução legislativa segundo a qual a falta de cumprimento dos ónus que impendem sobre o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir esses vícios.
[4] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.
[5] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.
[6] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.
[7] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
[8] Cfr., no mesmo sentido, Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 334; José J. Abrantes, “a excepção de não cumprimento do contrato…”, 148 e ss.; Lebre de Freitas “CPC, Anotado”, vol. 2º, 314.
[9] Cfr. Ac. STJ, de 23/11/06, Proc. 06B4007 – ITIJ; Pedro R. Martinez, “Cumprimento Defeituoso-Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, pag. 356.
[10] Ob. cit. pag. 214.
[11] Iin “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205.
[12] Cfr. nesse sentido Romano Martinez obra citada pág. 360 e 361.
[13] Obra citada página. 235.
[14] Obra citada página. 236.
[15] Cfr. Calvão da Silva in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, págs. 72, 77 e segs., 94 e 106.
[16] Obra citada página 80.
[17] Obra citada página 347.