Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | PINTO DOS SANTOS | ||
| Descritores: | PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO PLANO DE REVITALIZAÇÃO DE EMPRESA HOMOLOGAÇÃO DO PLANO DE REVITALIZAÇÃO CRÉDITO FISCAL CRÉDITO RECLAMADO PELA SEGURANÇA SOCIAL INEFICÁCIA | ||
| Nº do Documento: | RP20241211464/24.7T8AMT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 12/11/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Face ao disposto arts. 30º nºs 2 e 3, 36º nºs 2 e 3 e 125º da LGT e 3º al. a) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social [aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16.09], os créditos fiscais e da segurança social são indisponíveis, não podendo ser restringidos ou modificados sem o consentimento/autorização das respetivas entidades credoras. II - Tal impossibilidade de restrição ou modificação daqueles créditos, sem consentimento/autorização da AT e da SS, também vigora no âmbito do processo de revitalização, particularmente na aprovação do plano de recuperação, não podendo aí, sem o referido consentimento/autorização, ser, por ex., fixado o pagamento dos referidos créditos em prestações, a redução dos créditos fiscais ao nível dos juros de mora e/ou a suspensão das execuções instauradas pela Segurança Social que se encontrem pendentes para cobrança dos seus créditos. III - A fixação, no plano de recuperação, do pagamento em prestações dos créditos fiscais e/ou da segurança social [ainda que com observância do número de prestações e dos prazos previstos nos arts. 196º do CPPT e 190º da Lei nº 110/2009 (e no 81º do DR 1-A/2011, de 03.01)], sem a concordância/autorização da AT e da SS, constitui uma violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo de tais planos; e igual violação ocorre quando neles se preveja a redução dos créditos fiscais ao nível dos juros de mora ou a suspensão das execuções instauradas pela Segurança Social que se encontrem pendentes para cobrança dos seus créditos. IV - Nestes casos, salvo excecional quadro de estado de necessidade social, a homologação do plano de recuperação não deve ser oficiosamente recusada, antes este deve ser homologado, embora com a expressa declaração da sua ineficácia relativamente aos créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação nº 464/24.7T8AMT.P1 – 2ª Secção Relator: Pinto dos Santos Adjuntos: Des. Alberto Taveira Des. Anabela Miranda * * * Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:1. Relatório: 1.1. Neste processo especial de revitalização, requerido por A..., Lda., foi, em 19.09.2024, proferida a seguinte sentença homologatória: “SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE PLANO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO Síntese da marcha processual com relevo para a decisão final que importa proferir: a) A..., Lda instaurou o presente processo especial de revitalização, nos termos do disposto no artigo 17.º-A, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. ** b) Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 17.º-C, n.º 3, alínea a), do citado diploma legal, por despacho proferido em 8.4.2024. ** c) O Sr. Administrador Provisório juntou lista provisória de créditos que foi publicada 6.5.2024.** d) A devedora veio pedir a exclusão do credor B..., S.A., o que foi decidido por despacho datado de 31.5.2024 determinando-se a exclusão (d)o referido crédito.** e) O prazo normal de conclusão das negociações foi prorrogado, na sequência de requerimento apresentado pelo Sr. Administrador Judicial e pela Devedora.** f) Foi apresentada a versão final do Plano de Revitalização e devidamente publicitada em 16.8.2024. ** g) Em 16.9.2024 o Sr. AJP juntou aos autos o resultado da votação.Durante o período de votações foram rececionados pelo Sr. Administrador Judicial Provisório os votos dos credores que entenderam exercer esse direito de voto mais de 1/3 de um total de créditos com direito de voto, tendo votado favoravelmente o Plano credores que representam 80,48% da totalidade dos créditos com direito de voto. Nos termos do disposto no artigo17.º-F, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não se tratando de um caso de aprovação unânime de um plano de recuperação, “- Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados, se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o plano de recuperação que: a) No caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, seja votado favoravelmente em cada uma das categorias por mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, não se considerando como tal as abstenções, obtendo desta forma: i) O voto favorável de todas as categorias formadas; ii) O voto favorável da maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma dessas categorias seja uma categoria de credores garantidos; iii) Caso não existam categorias de credores garantidos, o voto favorável de uma maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma das categorias seja de credores não subordinados; iv) Em caso de empate, o voto favorável de pelo menos uma categoria de credores não subordinados; b) Nos demais casos, sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 a 6 do artigo 17.º-D, não se considerando as abstenções, recolha cumulativamente: i) O voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos; ii) O voto favorável de mais de 50/prct. dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 a 6 do artigo 17.º-D; ou c) Recolha cumulativamente, não se considerando as abstenções: i) O voto favorável de credores cujos créditos representem mais de 50/prct. da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 a 6 do artigo 17.º-D; ii) O voto favorável de mais de 50/prct. dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 a 6 do artigo 17.º-D. No caso dos autos, decorre da ata de votação que se mostra alcançada a maioria a que se reporta a alínea b) do n.º 5 do art.º 17- F do CIRE. Com efeito, a votação foi efetuada por 92,62% dos créditos com direito de voto, ou seja, votaram mais de 1/ 3 dos credores com direito de voto. Por outro lado, o plano recolheu votos favoráveis de 76,65% e votos contra de 23,35%, ou seja, mereceu o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos. Estão, pois, reunidos os pressupostos de regularidade da votação de acordo com o disposto no citado artigo 17.º-F, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. * De igual modo, não ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano que impeçam a sua homologação.* Não foi solicitada a não homologação do plano por qualquer interessado, cfr. artigo 216.º, ex vi, artigo 222.º-F, n.º 5, in fine.Assim sendo, por não se verificar qualquer desigualdade entre credores que possa ser considerada desfavorecimento, nem ter sido violada qualquer norma procedimental, nada obstando e tendo em conta o disposto nos citados normativos, decide-se homologar por sentença o plano de revitalização de «A..., Lda», porquanto não resulta que o mesmo viole o princípio da igualdade entre credores, não se afigura evidente a violação de qualquer norma imperativa nem ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais, aliás tal nem sequer foi invocado por qualquer credor. Não obstante, o plano homologado é ineficaz relativamente aos créditos da Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social (uma vez que as normas tributárias são subsidiariamente aplicáveis aos créditos da Segurança Social, nos termos dos arts. 3.º, 189.º e 190.º, nºs 1, 2, 6 e 7, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16.09, e atentas as alterações que lhe foram sendo introduzidas) em face do estatuído no artigo 30º da Lei Geral Tributária que estabelece no seu número nº 2 que – o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, nos termos previstos no artigo 17.º-F, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Custas a cargo da devedora, «A..., Lda» nos termos previstos no artigo 222.º-F, n.º 9, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, com taxa de justiça reduzida a ¼, artigo 302.º, segunda parte, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas. Com a presente decisão cessam as funções do Sr. Administrador Judicial Provisório. Fixo o valor da causa no valor da alçada do Tribunal da Relação (artigo 301.º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa). Notifique, registe e publicite – cfr. artigo 222.º-F, n.º 8, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.” [negrito do texto original transcrito]. * 1.2. Inconformada com esta decisão, interpôs a requerente-devedora, A..., Lda., o presente recurso de apelação, cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:* “A) É entendimento perfilhado na Douta Sentença ora recorrida de que a falta de expressa e discricionária autorização por parte da Autoridade Tributária e Segurança Social, é suficiente para impedir a homologação de um plano de recuperação por alegada violação do artigo 30º nº 2 da LGT e, consequentemente, do artigo 215º do CIRE, o que a Recorrente, sempre com o devido e muito respeito, não pode aceitar. B) Com este entendimento, a vontade totalmente discricionária da Autoridade Tributária e da Segurança Social, conforme decorre destes autos, escaparia ao próprio crivo e escrutínio do Tribunal, pois em momento algum a Douta Sentença ora recorrida refere que o teor do plano de recuperação, no que tange à sua proposta de pagamento, pretere algum dispositivo legal. C) É firme entendimento da Recorrente de que o n.º 3 do art.º 30º da LGT não veio (e num Estado de Direito seria no mínimo de estranhar que o fizesse) conferir caráter indisponível ou imperativo ao sentido de voto dos credores públicos, no sentido de deles depender a aprovação e a validade do Plano, transformando-o num voto de qualidade ou num verdadeiro direito de veto, pois a indisponibilidade ou imperatividade da lei vai reportada apenas aos créditos do Estado. D) O âmbito da inderrogabilidade ou imperatividade do regime de regularização de dívidas ao Estado reporta às condições em que a lei ‘autoriza’ a Autoridade Tributária ou a Segurança Social a autorizar o pagamento em prestações, mas não inclui a autorização destas entidades. E) O que se encontra em causa nestes autos é, efetivamente, o voto, a decisão casuística e discricionária dos credores públicos pois é certo que se encontra escrupulosamente respeitado o disposto no artigo 191º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social bem como o artigo 196º do CPPT. F) De igual maneira, o nº 1 do artigo 81º da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 1-A/2011 de 03.01, também se encontra respeitado, pois o valor máximo aí previsto de 150 prestações não foi ultrapassado. G) Desta forma e como bem refere o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2020, relativa ao processo nº 27086/19.1T8LSB.L1-1, pesquisável em www.dgsi.pt, “Ainda que o Plano não tenha obtido o voto favorável da Segurança Social, é admissível a medida de pagamento do respetivo crédito em 150 prestações mensais e sucessivas inserida em Plano de Recuperação aprovado por maioria legal de credores, incluindo pela Autoridade Tributária, desde que dela não resulte a violação do regime legal de redução ou extinção das dívidas à Segurança Social e, assim, do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários.” H) Na verdade, adere ainda a Recorrente ao mesmo Douto Aresto quando deste resulta que “o momento crítico que atualmente se atravessa em termos de atividade económica e produtiva, fruto da pandemia internacional que assola o mundo, impõe também agora, com maior premência do que antes, encarar “com rigor e seriedade a priorização da promoção da recuperação efetiva de empresas que, sendo economicamente viáveis, se encontrem em situação económica difícil ou de insolvência, iminente ou atual.”. I) Importa salientar que qualquer concessão de eficácia relativa a um plano de recuperação, colocando a Segurança Social e a Autoridade Tributária fora dos efeitos relativos à sua homologação plena impedirão, de facto, que qualquer sociedade recuperanda retome a sua atividade, “atirando-a”, inelutavelmente, para a sua liquidação insolvencial. J) Com efeito, no âmbito da execução fiscal o entendimento com a Segurança Social e com a Autoridade Tributária é, na prática, impossível, pelo que facto de já não ter aí aplicabilidade o disposto no artigo 199º nº 13 do CPPT que isenta a sociedade recuperanda de lhe prestar garantias adicionais ou seja, “Os pagamentos em prestações ao abrigo de plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação que decorra do plano ou do acordo não dependem da prestação de quaisquer garantias adicionais.” K) E assim, será exigido o regime regra previsto no nº 6 do mesmo artigo do predito CPPT, no qual a garantia deve ser “prestada pelo valor da dívida exequenda, juros de mora contados até ao termo do prazo de pagamento voluntário ou à data do pedido, quando posterior, com o limite de cinco anos, e custas na totalidade, acrescida de 25/prct. da soma daqueles valores, exceto no caso dos planos prestacionais onde a garantia é prestada pelo valor da dívida exequenda, juros de mora contados até ao termo do prazo do plano de pagamento concedido e custas na totalidade.” L) Como tal exigência é totalmente inviável na maioria esmagadora das situações, o giro empresarial da recuperanda torna-se impossível, pois os processos executivos não se suspendem por falta de garantia - mesmo que exista um acordo prestacional previamente acordado - sendo a sociedade de imediato cerceada de penhoras nos seus depósitos bancários e créditos a receber de clientes, “estrangulando-a” financeiramente. M) A perfilhar-se o entendimento de que a decisão interna, casuística e discricionária da Segurança Social e da Autoridade Tributária contrária à aprovação de um plano de recuperação que cumpre escrupulosamente com a própria legislação a que esta entidade se encontra sujeita é suficiente para, “de per si”, a tal plano não ficar vinculada viola, não só o princípio da tutela jurisdicional efetiva, mas igualmente o princípio da legalidade e da igualdade, ínsitos nos artigos 3º, 13º nº 1 e 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa. N) O Douto Acórdão ora recorrido pretere o disposto no artigo 30º nºs 2 e 3 da LGT e, consequentemente, o artigo 215º do CIRE. Termos em que, ao julgar totalmente procedente o presente recurso de apelação estarão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a produzir a tão habitual e costumada JUSTIÇA!!!!”. O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões: “1. Nos presentes autos foi depositado o plano de revitalização apresentado pela ora recorrente, no dia 16-08-2024, tendo, no dia 20-08-2024, a Autoridade Tributária, representada pelo Ministério Público, manifestado nos autos o seu voto em sentido negativo. Alegou que, tendo o devedor contraído novas dívidas fiscais já após a entrada do processo, os respetivos processos de execução teriam que se encontrar pagos na data do início do prazo para votação, sob pena de se considerar que a Devedora e o seu plano não são viáveis, visto a empresa não conseguir, sequer, cumprir com as suas obrigações fiscais de pagamento corrente. 2. O Tribunal a quo, por sua vez, produziu decisão, no dia 19-09-2024, de homologação do plano apresentado, consignando-se, todavia, que o mesmo seria ineficaz em relação aos créditos tributários, bem como aos créditos da Segurança Social em face do estatuído no artigo 30º da Lei Geral Tributária que estabelece no seu número nº 2 que – o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. 3. Considera o recorrente, em suma, que o n.º 3 do art.º 30º da LGT não veio (e num Estado de Direito seria no mínimo de estranhar que o fizesse) conferir caráter indisponível ou imperativo ao sentido de voto dos credores públicos, no sentido de deles depender a aprovação e a validade do Plano, transformando-o num voto de qualidade ou num verdadeiro direito de veto, salientando ainda que qualquer concessão de eficácia relativa a um plano de recuperação, colocando a Segurança Social e a Autoridade Tributária fora dos efeitos relativos à sua homologação plena impedirão, de facto, que qualquer sociedade recuperanda retome a sua atividade, “atirando-a”, inelutavelmente, para a sua liquidação insolvencial. 4. Tendo sido feita a publicação prevista no art.º 17º-F, nº. 3, veio o Ministério Público, enquanto representante da Autoridade Tributária (AT), juntar votação desfavorável. Nos termos do disposto no artigo 17º-F, nº 7 do CIRE são aplicáveis, com as devidas adaptações, as regras relativas ao plano de insolvência ínsitas nos artigos 194º a 197º, nº1 do arts. 198º, 200º a 202º, 215º e 216º. 5. Nos termos do art. 215º do CIRE o Tribunal pode (e deve) fazer um controlo de legalidade, recu(s)ando oficiosamente a homologação no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou de normas aplicáveis ao seu conteúdo. Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda: «dir-se-á, com efeito, que são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido» (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Reimpressão, 2009, pg 713).” 6. Ora, as normas de direito tributário revestem caracter público e imperativo, pelo que a sua inobservância acarreta uma violação não negligenciável de regras, para efeitos do artigo 215º do CIRE. 7. De acordo com o qua(d)ro legal tributário, o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com o respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributária – cfr. art. 30º da L.G.T. O nº. 3 do art.º 36º da L.G.T., por sua vez, estipula que “(a) administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”. Por fim, o art.º 197º do CPPT fixa a seguinte regra: “A competência para autorização de pagamento em prestações é do órgão da execução fiscal.” 8. Na ausência de voto favorável por parte da AT, cremos que bem andou o Tribunal ao decidir conforme decidiu. Com efeito, e citando aqui o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/10/2013 (processo 8604/12.2TBBRG.G1), disponível em www.dgsi.pt resulta, assim, evidente que créditos fiscais não podem ser perturbados senão mediante a vontade do Estado, manifestada através dos seus legítimos representantes. Considerando que as normas de direito tributário têm carácter público e imperativo, vigorando, nesta sede, os princípios da indisponibilidade e da irrenunciabilidade, é ao Estado que compete, de forma soberana, criar e regular a forma de pagamento dos impostos, não podendo os particulares decidir quando, onde e de que forma efetuar tal pagamento. Donde se conclui como nas alegações de recurso, ou seja, verificando-se que o plano de recuperação aprovado pelos credores viola claramente o princípio da legalidade, o mesmo não deveria ter sido homologado em toda a sua extensão (sublinhado e negrito nosso). 9. Concluindo-se, deste modo, que o plano tal como apresentado se figura contrário a normas imperativas, a questão que se coloca é a de saber como deve o Tribunal decidir em situações como esta: se deve decidir pela não homologação do plano ou, antes, pela sua homologação exceto quanto à parte que viola normas imperativas, ou seja, declarando-o ineficaz quanto aos créditos fiscais e da Segurança Social, como foi decido nestes autos. 10. Cremos que a segunda opção é a mais consentânea com os princípios subjacentes ao Processo Especial de Revitalização, prosseguindo-se, ainda assim, o objetivo que é a recuperação do devedor, evitando-se a sua insolvência. Ou seja, esta solução é a que melhor equilibra os interesses que estão em jogo, sejam: o interesse público de manter a integridade das normas imperativas e o interesse legítimo do devedor em manter-se em atividade e recuperar economicamente. 11. Foi também este o sentido da decisão supra citada no Tribunal da Relação de Guimarães. No mesmo sentido (embora versasse sobre créditos da Segurança Social) se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no processo 697/21.8T8AMT.P1, de 24-01-2022, disponível também em www.dgsi.pt . Pode ler-se ali o seguinte: Portanto, após as alterações introduzidas ao artigo 30.º da LGT, em face das normas imperativas vigentes, deixou de ser legalmente possível homologar um plano de acordo de pagamento/insolvência ou revitalização de empresa que contemple a alteração, redução, extinção ou mesmo a moratória de créditos de natureza tributária, sem que o Estado - a Fazenda Nacional/Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação. Resta saber quais as consequências da violação do plano. Sob este conspecto perfilam-se duas correntes: - uma que considera que um plano em que se verifique tal violação, não pode ser homologado in totum, por existir nulidade causada pela afetação da indisponibilidade dos créditos, quer da Segurança Social, quer da Fazenda Nacional (cfr. entre outros, por ex. Ac. da RC de 1/10/2013, Proc.1786/12.5TBTNV[2]); - outra dominante, do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que plano de insolvência/recuperação/pagamentos (conforme nos encontremos no âmbito de Processo de Insolvência, PER ou PEAP) deve ser homologado, decretando-se que a decisão homologatória é ineficaz em relação aos créditos fiscais e da segurança social, que não serão afetados, atenta a sua indisponibilidade. “A tese da ineficácia relativa é a solução que melhor satisfaz os interesses em jogo e supera a intransigência do legislador fiscal, obviando às drásticas consequências da não homologação do plano, possibilitando a recuperação do insolvente, as mais das vezes, à custa de pesados sacrifícios dos credores privados”. 12. Pelo que conclui o douto aresto: Também nós aderimos a esta última tese, razão pela qual nada temos a censurar à decisão recorrida quando conclui pela homologação do acordo de pagamentos dos devedores, considerando o mesmo, porém, ineficaz no que respeita ao credor Instituto da Segurança Social. 13. Assim, é de concluir que bem andou o Tribunal a quo, tendo decidido conforme as disposições legais aplicáveis, pelo que nenhum reparo deverá merecer a sentença proferida. Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, e fazendo-se assim a necessária justiça.”. * * * 2. Questões a decidir:Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações da recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC] -, as questões a apreciar e decidir [a não ser que surjam outras de conhecimento oficioso] consistem em saber: - Se os créditos da autoridade tributária e da segurança social estão sujeitos a regime imperativo que impede a sua redução ou alteração/modificação, sem expressa autorização dessas entidades e se essa imperatividade se estende ao processo especial de revitalização; - E que consequências advêm da aprovação, por maioria [com os votos contra dos credores AT e SS], do plano de recuperação sem observância desse regime. * * * 3. Factualidade a ter em consideração:Além do exarado na sentença recorrida, designadamente quanto às percentagens e sentido da votação dos credores, importa ter, ainda, em consideração que: a) No Plano de Revitalização estabelece-se o seguinte acerca dos créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social: “CRÉDITOS PRIVILEGIADOS 1 – ESTADO – Fazenda Pública: Plano de Regularização: 1.1.- Propõe-se o pagamento da totalidade dos créditos em regime prestacional, em 42 prestações mensais, iguais e sucessivas, com os termos e fundamentos previstos no artigo 196º nº 5 do CPPT por se considerar demonstrada a “notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para a devedora”, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao da aprovação do presente plano de recuperação; 1.2- A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do DL 73/99 de 16/03, aceitando-se as taxas praticadas para os créditos da Segurança Social, face à renúncia dos demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir; 1.3- Neste sentido, a taxa de juros vincendos a aplicar será a que for aceite pela Fazenda Nacional. 1.4- Não haverá lugar à redução de coimas e custas; 1.5 – Não haverá lugar a qualquer moratória; 1.6 - Requer-se a dispensa da obrigação de substituição do gerente dado que a sua manutenção em funções é vital para assegurar a credibilidade da presente recuperação, mormente e no que tange ao relacionamento com fornecedores e clientes, nos termos do nº 3 al. a) do artigo 196º do CPPT. 1.7 - A revitalizanda fará demonstração do pagamento integral de todas as obrigações fiscais, após o despacho a que se refere o artigo 17º-C, nº 3, a). 1.8 - Assim, considera-se notificada a Administração Fiscal do requerimento a que alude o artigo 196º, n.º 1 do CPPT. 1.9 – Para os efeitos previstos no nº 1 do artigo 17º E do CIRE, determina-se nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário. A suspensão prevista neste normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro, com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das mesmas (nº 5 do artigo 17º-D do CIRE). 1.10 - Dispensa de garantias adicionais nos termos do artigo 199º nº 13 do CPPT, o qual dispõe que: “os pagamentos em prestações ao abrigo do plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação que decorra do plano ou do acordo não dependem da prestação de quaisquer garantias adicionais.” 2 – ESTADO – Segurança Social Plano de Regularização: - A totalidade dos créditos da Segurança Social, reconhecidos na Lista de Créditos, será regularizada através de plano prestacional, em 84 prestações mensais, no âmbito da execução fiscal, vencendo-se a primeira prestação até ao final do mês seguinte ao da votação do plano de revitalização; - Pagamento de juros vencidos e vincendos calculados de acordo com a taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades públicas; - Dispensa de constituição de garantias, nos termos do artigo 199º, nº 13, do CPPT; - As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à segurança social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas, sendo suspensas, nos termos do artigo 194.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, na sequência da presente autorização e até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado”. b) A Autoridade Tributária e a Segurança Social votaram contra [desfavoravelmente] a aprovação do Plano de Viabilização, tendo o mesmo acontecido com a Banco 1..., titular de um crédito comum no montante de 124.931,17€ [cfr. Auto de Abertura e Contagem de Votos e comprovativo dos votos expressos, ambos de 16.09.2024]. c) No requerimento que apresentou em representação da Autoridade Tributária, o Ministério Público radicou a sua discordância relativamente ao plano de recuperação nos seguintes motivos: - “após o início do PER (09/04/2024), terem sido instaurados à Revitalizanda vários processos de execução fiscal relativos a dívida cujo facto tributário é posterior àquele início, nomeadamente: o PEF ... – IRS/DMR de abril 2024, o PEF ... – IRS/DMR de maio 2024, o PEF ... - IRS 2024, vencido em 20/06/2024, o PEF ... - IRS/DMR de junho de 2024, o PEF ... - IVA de maio de 2024, o PEF ... - IRS 2024, vencido em 25/07/2024. - (…) os valores relativos a estes PEF´s terão que se encontrar pagos na data do início do prazo para votação, sob pena de se considerar que a Devedora e o seu plano não são viáveis, visto a empresa não conseguir, sequer, cumprir com as suas obrigações fiscais de pagamento corrente (não se afigura credível que uma empresa que não retomou o pagamento das suas obrigações correntes para com a AT o irá fazer após este processo, em simultâneo com o pagamento do passivo que acumulou, em que a taxa de esforço mensal será substancialmente mais exigente)” [requerimento de 20.08.2024]. d) Tal discordância foi reafirmada no requerimento de 03.09.2024 [após anúncio da não apresentação de nova versão do plano], no qual o Ministério Público deu conta “que a posição da AT é no sentido de voto desfavorável aos termos do plano apresentado, no seguimento da posição já anteriormente manifestada nos autos”. e) Os créditos privilegiados da Autoridade Tributária e da Segurança Social ascendem, respetivamente, a 38.194,66€ [há, ainda, um crédito comum da AT, no valor de 16.160,81] e a 71.425,66€ [cfr. mapa de votação de 16.09.2024]. f) A totalidade dos créditos reconhecidos e aprovados ascende a 1.171.779.56€, sendo todos eles, à exceção dos indicados na alínea anterior, de natureza comum [mesmo mapa de votação. * * * 4. Apreciação jurídica:4.1. Os créditos da autoridade tributária e da segurança social estão sujeitos a regime imperativo que impede a sua redução ou modificação sem expressa autorização dessas entidades, estendendo-se essa imperatividade ao processo especial de revitalização? Está em causa o segmento do Plano de Recuperação que prevê: - que os créditos da Autoridade Tributária serão pagos em 42 prestações mensais, iguais e sucessivas e que a redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do DL 73/99, de 16.03; - e que os créditos da Segurança Social serão pagos em 84 prestações mensais e, bem assim, que as ações executivas pendentes para cobrança de dívida à segurança social serão suspensas e nelas será implementado o plano prestacional. O Plano de recuperação teve o apoio [voto favorável] dos credores representativos da maioria dos créditos reconhecidos e o voto contra da Autoridade Tributária e Segurança Social [bem como da Banco 1..., titular de um crédito comum de 124.931,17€]. A decisão recorrida, embora homologando o Plano, considerou-o, no entanto, ineficaz relativamente aos créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social. Podiam os (demais) credores, contra a vontade destas entidades estaduais, ter fixado o pagamento dos créditos públicos em prestações e estabelecido as aludidas redução dos créditos fiscais [na componente dos juros de mora vencidos e vincendos] e suspensão das ações executivas para cobrança de dívidas instauradas pela segurança social? Como dá conta Miguel Pestana de Vasconcelos [in A evolução do regime dos créditos tributários na falência/insolvência e recuperação de empresas no direito português, constante da obra FALÊNCIA, INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS - I.º congresso de Direito Comercial das Faculdades de Direito da Universidade do Porto, de S. Paulo e de Macau, edição da FDUP, https://sigarra.up.pt/fdup, pgs. 135 e segs. (repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/111880/2/264845.pdf)], a questão começou por se colocar inicialmente – antes da criação do Processo Especial de Revitalização pelos arts. 3º e 4º da Lei nº 16/2012, de 20.04, que aditaram um novo capítulo ao título I do CIRE, que passou a conter os arts. 17º-A e 17º-J, e que entrou em vigor em 20.05.2012 –, quanto à possibilidade ou não de redução ou alteração dos créditos públicos no âmbito dos planos de insolvência, caso essa redução se revelasse necessária para a recuperação da/o empresa/devedor. Segundo este Autor, “A jurisprudência começou por adotar uma posição de bastante abertura a esse propósito, em que ponderou bem os interesses em presença: sendo o sentido do plano de insolvência a recuperação da empresa e/ou do seu titular, e só nesse caso (uma vez que o plano pode ser só de liquidação), a assembleia de credores poderia reduzir os créditos públicos. Os fundamentos eram os seguintes. (…) Em primeiro lugar, temos o art. 197.º CIRE, donde decorre que os créditos tutelados por privilégio ou garantias reais poderiam, se o plano dispusesse de forma expressa nesse sentido, ser atingidos. Como se dizia no acórdão do STJ de 13.01.2009 (Fonseca Ramos): «a expressão na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implicita que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas als. a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência. (…).». (…) Tínhamos depois o art. 196.º n.º 2 CIRE, nos termos do qual plano de insolvência não pode afetar as garantias reais e os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos detidos pelo Banco Central Europeu, por bancos centrais de um Estado membro da União Europeia e por participantes num sistema de pagamentos tal como definido pela alínea a) do artigo 2.º da Diretiva nº 28/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Maio, ou equiparável, em decorrência do funcionamento desse sistema. O que significa, a contrario, que as garantias reais ou privilégios mobiliários gerais acessórios de outros créditos diferentes dos aí previstos podiam ser afetadas pelo plano. (…) Quanto às regras tributárias, elas teriam o seu campo de aplicação na relação contribuinte/Estado, mas já não no âmbito da insolvência, que é um processo completamente diverso. Este aspeto era sublinhado de forma clara no acórdão do STJ de 13.01.2009 (Fonseca Ramos), onde se podia ler: os «arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º 3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, não encontrando apoio no contexto do processo especial como é o processo de insolvência, onde o Estado deve intervir também com o fito de contribuir para uma solução, diríamos, de olhos postos na insolvência, se essa for a vontade dos credores, numa perspetiva ampla de autorregulação de que a desjudicialização do regime consagrado no CIRE é uma das essenciais características.» (…)”. A jurisprudência maioritária perfilhava este entendimento [de que é exemplo o aresto do STJ indicado no excerto transcrito]. Esta situação – possibilidade de redução/modificação dos créditos fiscais e da segurança social no âmbito de um plano necessário à recuperação da empresa devedora, sem o assentimento das entidades titulares destes créditos – manteve-se até 2011. E isto apesar de, já então, o nº 2 do art. 30º da LGT [Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL 398/98, de 17.12] estabelecer a indisponibilidade dos créditos fiscais, norma e regime que eram também aplicáveis aos créditos da segurança social ex vi do disposto no art. 3º al. a) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social [aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16.09], que determina que a LGT é subsidiariamente aplicável quanto à relação jurídica contributiva. Considerava-se, como se disse, que este regime só valia no âmbito da relação tributária [contribuinte/Estado] e não já no campo dos processos de insolvência e de recuperação de empresas, cujo Código constituía legislação especial com regras e finalidades próprias, diferentes das relativas àquela relação tributária stricto sensu. Em 2011, tudo se alterou. Isto porque a Lei do Orçamento do Estado para esse ano – Lei nº 55-A/2010, de 31.12 – aditou ao art. 30º da LGT um novo número – o nº 3 –, estatuindo que “O disposto no número anterior [ou seja, a indisponibilidade dos créditos fiscais/tributários] prevalece sobre qualquer legislação especial” e alterou o art. 125º que passou a dispor que “O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente, aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação (…)”. Como diz o ilustre Professor atrás citado [mesmo estudo, pg. 137], “Parece claro que o que se visava era atingir a posição jurisprudencial que se estribava na especialidade do regime da insolvência. O que levou a que ela se alterasse. De forma ilustrativa lia-se no Acórdão do STJ de 10.05.2012 (Álvaro Rodrigues17) «julgamos que a conclusão a tirar é a de que foi vontade do legislador afastar, de forma expressa, qualquer interpretação no sentido de que o regime especial do C.I.R.E. derroga o regime geral da LGT» (…) «ainda que se entenda que o CIRE constitui lei especial relativamente à Lei Geral Tributária e, com base nessa premissa, se conclua que derroga as disposições tributárias gerais no que tange ao direito falimentar (lex specialis derogat legi generali), a verdade é que a própria lei 55-A/2010 veio alterar o disposto no artº 30º da LGT, aditando-lhe o nº 3, onde se dispõe que a indisponibilidade do crédito tributário a que se refere o nº 2 do aludido preceito legal prevalece sobre qualquer legislação especial”. É verdade que as apontadas alterações legislativas foram adotadas “em incumprimento do memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica, de 17 de maio de 2011, celebrado entre o governo português, a Comissão Europeia, o BCE, e o FMI”, no qual se dispunha, designadamente, que “As autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos, nos casos em que outros credores também aceitem a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à reestruturação voluntária de dívidas.” [ponto 2.19 do memorando]. Apesar do reconhecimento desta dissonância [entre o que o Estado Português se havia obrigado no dito memorando e a alteração legislativa que implementou nos arts. 30º nº 3 e 125º da LGT], o Autor que vimos citando logo acrescenta [pgs. 137-138 do referido estudo] que “A criação do processo especial de revitalização (PER), pese embora o seu objetivo manifesto de permitir a recuperação da empresa, não veio introduzir quaisquer modificações, nem à lei tributária, nem do seu regime decorre uma norma que disponha em contrário” [sobre a mudança de rumo resultante das referidas alterações da LGT, veja-se também Catarina Serra, in O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, 2017, 2ª ediç., Almedina, pgs. 104-105]. No mesmo sentido, refere Maria do Rosário Epifânio [in Manual do Direito da Insolvência, 8ª ediç., Almedina, pgs. 509-510] que “Os créditos fiscais e da segurança social não foram objeto de qualquer tratamento autónomo no âmbito do PER (aliás, à semelhança do plano de insolvência, mas contrariamente ao RERE). Assim, não se prevê qualquer dever de participação nas negociações, contrariamente ao RERE, que consagra expressamente esse dever no art. 14º, nº 3, da Lei nº 8/2018, de 2 de março. Depois, não se regula a possibilidade de os créditos fiscais e da segurança social serem objeto de alteração ou transação no plano de recuperação”. E mais adiante [pg. 511] acrescenta que “A jurisprudência maioritária tem entendido que, face à redação do art. 30º da Lei Geral Tributária, os créditos fiscais e os créditos da segurança social devem considerar-se indisponíveis, pelo que não poderão ser objeto de redução, extinção ou moratória nos planos de recuperação apresentados no âmbito de um PER, sem que o Estado tenha votado favoravelmente”. A Jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores [quase unânime no STJ e nesta Relação do Porto e maioritária nas demais Relações, exceto na Relação de Lisboa] tem vindo a seguir este entendimento da indisponibilidade dos créditos fiscais e da segurança social. A título de exemplo e aludindo apenas a arestos recentes: Acórdão do STJ de 17.10.2023 [proc. 2395/22.6T8STR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj]: “I - Havendo o plano de revitalização, aprovado e judicialmente homologado, previsto o pagamento em prestações do crédito do Instituto de Segurança Social, bem como a suspensão das suas execuções contra a recuperanda, é inegável que o respetivo conteúdo traduz e consubstancia uma efetiva, real e substantiva restrição ao conteúdo desses mesmos créditos. II – Ora, o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade (…)”. Acórdão do STJ de 17.01.2023 [proc. 1311/21.7T8VFX.L1.S1, no mesmo sítio da dgsi]: “I – Havendo o plano de revitalização, aprovado e judicialmente homologado, previsto o pagamento em prestações do crédito do Instituto de Segurança Social, bem como a suspensão das suas execuções contra a recuperanda, é inegável que o respetivo conteúdo traduz e consubstancia uma efetiva, real e substantiva restrição ao conteúdo desses mesmos créditos. II – Ora, o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade (…)”. Acórdão da Relação do Porto de 19.12.2023 [proc. 532/23.2T8AMT.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp]: “II – Com a alteração introduzida naquela norma [art. 30º nº 3 da LGT] pelo artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2011), e com a norma transitória do artigo 125.º, do mesmo diploma legal, o legislador deixou claro o propósito de reforçar a intangibilidade dos créditos tributários, impedindo que os mesmos possam ser afetados apenas com fundamento em normas especiais, nomeadamente as relativas aos processos insolvenciais ou pré-insolvenciais, à margem das regras consagradas nas normas gerais do direito tributário. E fê-lo, manifestamente, com o propósito de blindar os créditos tributários no processo de insolvência, ainda que, deste modo, possa criar entraves à recuperação da empresa. III – Desta forma, mesmo em contraciclo com a evolução que o direito insolvencial vinha registando e contrariando as obrigações assumidas no memorando de entendimento assinado no contexto do plano de assistência financeira ao Estado Português, o legislador afastou, de forma expressa, a regra interpretativa da prevalência da norma especial sobre a norma geral, como permite o artigo 7.º, n.º 3, do CC, assim retirando a base de sustentação da interpretação que vinha sendo maioritariamente seguida pelos tribunais”. Acórdão da Relação do Porto de 24.01.2022 [proc. 697/21.8T8AMT.P1, disponível no mesmo sítio da dgsi]: “I - Nos termos do artigo 30.º, nº 2, da LGT (Lei Geral Tributária), o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. II - Perante o aditamento do nº 3 ao referido artigo 30.º e em face das normas imperativas vigentes, deixou de ser legalmente possível homologar Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) que contemple a alteração, redução, extinção ou dilação temporal do pagamento de créditos de natureza tributária, sem que o Estado - a Fazenda Nacional/Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação”. Acórdão da Relação de Coimbra de 28.09.2022 [proc. 4433/21.0T8LRA-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc]: “O diferimento temporal, sem acordo da Segurança Social, do pagamento dos créditos desta, em prestações, constitui uma moratória não autorizada, que se traduz numa modificação de tais créditos (…)”. Temos, assim, como certo, que, face ao estabelecido nos citados arts. 30º nºs 2 e 3 e 125º da LGT, bem como no art. 36º nºs 2 e 3 da mesma Lei [nos quais se prescreve, respetivamente, que “Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes” e que “A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”] e no art. 3º al. a) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16.09 [segundo o qual a LGT é subsidiariamente aplicável à relação jurídica contributiva do regime da segurança social], os créditos fiscais e da segurança social são indisponíveis, o que significa que não podem ser restringidos ou modificados sem o consentimento/autorização das respetivas entidades credoras [tal como, aliás, o impõem os arts. 196º nºs 1 e 6 do CPPT (que expressamente alude aos processos de insolvência e de revitalização) e 190º da Lei nº 110/2009, que admitem a possibilidade de pagamento em prestações, mas apenas e só com autorização expressa da AT e da SS] e que tal indisponibilidade se impõe também no âmbito do processo de revitalização, particularmente no que concerne à aprovação do plano de recuperação, não podendo aí, sem autorização daquelas entidades, ser, por ex., fixado o pagamento dos referidos créditos em prestações, a redução dos créditos fiscais ao nível dos juros de mora e/ou a suspensão das execuções instauradas pela Segurança Social que se encontrem pendentes para cobrança dos seus créditos. Não colhe, por isso, com o devido respeito, a argumentação da recorrente, constante das conclusões D), E) e F) das suas doutas alegações, quando sustenta, por um lado, que “O âmbito da inderrogabilidade ou imperatividade do regime de regularização de dívidas ao Estado reporta às condições em que a lei ‘autoriza’ a Autoridade Tributária ou a Segurança Social a autorizar o pagamento em prestações, mas não inclui a autorização destas entidades” e, por outro, que “O que se encontra em causa nestes autos é, efetivamente, o voto, a decisão casuística e discricionária dos credores públicos pois é certo que se encontra escrupulosamente respeitado o disposto no artigo 191º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social bem como o artigo 196º do CPPT” e, ainda, “(…) o nº 1 do artigo 81º da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 1-A/2011 de 03.01, também se encontra respeitado, pois o valor máximo aí previsto de 150 prestações não foi ultrapassado”. E isto apesar de tal argumentação encontrar respaldo em recentes Acórdãos da Relação de Lisboa, de que, além do que vem referido nas conclusões G) e H) das alegações [Acórdão de 27.10.2020 (proferido no processo 27086/19.1T8LDSB.L1-1)], são exemplo os Acórdãos de 01.10.2024 [proc. 11271/23.4T8LSB.L1-1], de 20.02.2024 [proc. 8830/23.9T8SNT.L1-1] e de 04.07.2023 [proc. 11886/22.8T8LSB.L1-1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jtrl], nos quais se entendeu que a indisponibilidade dos créditos fiscais e da segurança social só é posta em causa quando, no âmbito do PER, o plano de recuperação “não respeite os requisitos ou limites da extinção ou redução” desses créditos “nos termos em que estas são legalmente autorizadas”, mas não já quando ali apenas se estabelece o seu pagamento faseado [em prestações] com observância dos limites previstos nos arts. 196º do CPPT [Código de Procedimento e Processo Tributário, aprovado pelo DL 433/99, de 26.10] e 81º do DR 1-A/2011, de 03.01 [que Regulamenta o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16.09]. Entendimento que, como decorre do que já atrás dissemos, não acompanhamos, apesar dos motivos de ordem prática que a ele estão subjacentes, por considerarmos que foi intenção inequívoca do legislador [que conhecia as especificidades e objetivos dos processos de insolvência e de revitalização e os problemas que iriam decorrer das alterações que introduziu, em 2011, nos arts. 30º e 125º da LGT] proibir a redução e a modificação [nesta última se compreendendo a moratória decorrente do pagamento em prestações] dos créditos fiscais e da segurança social em qualquer processo, incluindo o de insolvência e o PER, sem o acordo/autorização da Autoridade Tributária e da Segurança Social. 4.2. Que consequências advêm da aprovação, por maioria [com os votos contra dos credores AT e SS], do plano de recuperação que não observou o referido regime imperativo da indisponibilidade dos créditos fiscais e da segurança social? Passando à 2ª questão. Dispõe o nº 7 do art. 17º-F do CIRE – para os casos em que o plano de recuperação é aprovado nos termos dos nºs 5 e 6 do mesmo preceito [ou seja, por maioria e não por unanimidade], como aconteceu in casu – que: “Nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º (…).”. Para aqui releva o art. 215º do CIRE [não já os demais, nomeadamente o art. 196º nº 1 als. a) e c), na medida em que o que nele se diz não se aplica aos créditos fiscais e da segurança social sem autorização dos respetivos titulares, como vimos] que dispõe que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza (…)”. No primeiro caso, estão em causa vícios de procedimento; no segundo, vícios de conteúdo. A lei não define os conceitos de regras procedimentais e de normas sobre o conteúdo [do plano] não negligenciáveis. Tal tarefa tem sido levada a cabo pela doutrina e pela jurisprudência. Segundo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ediç., 2015, pg. 781], “normas procedimentais são, (…), todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar”. Contudo, não são todas as violações de regras procedimentais ou normas relativas ao conteúdo do plano de recuperação que impõem a sua não homologação; tal só acontece com as violações não negligenciáveis. Quanto a estas, os mesmos Autores dizem que “são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido”, acrescentando que, para tal, há que “sindicar se a nulidade observada é suscetível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável” [pg. 782]. Catarina Serra [in Lições de Direito da Insolvência, 2ª ediç., Almedina, pg. 473] considera que “(…) é razoável entender que violação não negligenciável é aquela e apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação – uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em contrário, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro, a violação pode ser negligenciada”. Maria do Rosário Epifânio [in Manual citado, pg. 388] defende que “O vício de procedimento não negligenciável ocorrerá quando, no iter processual conducente à publicidade de um plano (…), houve (…) violação de regras «suscetível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta –, tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”, acrescentando, a propósito do plano de recuperação no PER, que as “violações consideradas menores, que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afetados, não constituirão causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano” [pg. 504]. Para Ana Paula Boularot [in Apontamentos sobre os efeitos do Processo Especial de Recuperação, Revista Julgar, Jan.-Abr. de 2017, pg. 17], são vícios não negligenciáveis “todos aqueles que possam influir com a justa salvaguarda dos interesses em jogo, nomeadamente no que diz respeito à tutela devida à posição dos credores e do devedor, nos diversos domínios em que se manifesta”. No Acórdão da Relação de Coimbra de 11.10.2017 [proc. 6/17.0T8GRD-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc] decidiu-se que “A violação de normas procedimentais corresponde, em bom rigor, a uma irregularidade processual que se consubstancia no facto de ter sido praticado um ato que a lei não admite ou de ter sido omitido um ato ou formalidade prescrito na lei e, nessa medida, o critério para apurar se tal violação é (ou não) negligenciável deve ser semelhante ao critério adotado no artigo 195º do CPC com vista a determinar se a irregularidade tem aptidão necessária para produzir nulidade. Dessa forma, a violação dessas normas será não negligenciável sempre que possa afetar e influir no exame ou na decisão da causa, o que, no âmbito do processo de revitalização, equivale a dizer que tal violação será não negligenciável sempre que ela seja suscetível de afetar, de forma relevante, o processo negocial e o resultado que com ele se pretende atingir: a conclusão de um acordo entre o devedor e os seus credores em resultado das negociações entre eles estabelecidas”. E que “A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável sempre que tal se deva concluir por aplicação do critério supra mencionado (quando se revele aplicável) e, de um modo geral, sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respetivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere. A violação dessas normas será, portanto, não negligenciável sempre que ela possa afetar/prejudicar a salvaguarda dos interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de proteção legal”. Com base nestes ensinamentos, os nossos Tribunais Superiores [o STJ e a Relação do Porto de modo quase unânime e as demais Relações maioritariamente, exceto a de Lisboa que vem trilhando outra via, na sequência do que atrás já se deixou indicado (considera-se na maioria dos arestos desta Relação que, por ex., a fixação do pagamento em prestações dos créditos estaduais sem o consentimento das respetivas entidades credoras não se traduz em violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação)] vêm entendendo que, face à imperatividade do regime da indisponibilidade exposto supra, a fixação, nos planos de recuperação, do pagamento em prestações dos créditos fiscais e/ou da segurança social [ainda que com observância do número de prestações e dos prazos permitidos nos preceitos dos diplomas atrás referenciados], sem a concordância da AT e da SS, constitui uma violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo de tais planos e que igual violação se verifica quando neles se preveja a redução dos créditos fiscais ao nível dos juros de mora ou a suspensão das execuções instauradas pela Segurança Social que se encontrem pendentes para cobrança dos seus créditos [neste sentido, i. a., Acórdãos do STJ de 17.10.2023 (proc. 2395/22.6T8STR.E1.S1), de 17.01.2023 (proc. 1311/21.7T8VFX.L1.S1), de 09.06.2021 (proc. 1412/20.9T8VNF.G1.S1), de 10.05.2018 (proc. 4986/16.5T8VIS.C1.S1), de 17.04.2018 (proc. 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1) e de 24.03.2015 (proc. 664/10.7TYVNG.P1.S1), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e da Relação do Porto de 10.09.2024 (proc. 3677/23.5T8STS.P1), de 19.12.2023 (proc. 532/23.2T8AMT.P1) e de 24.01.2022 (proc. 697/21.8T8AMT.P1 – este relativo a um PEAP), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp (alguns já foram atrás citados)]. Por ser assim, não se mostra correta a afirmação feita na decisão recorrida quando, a dado passo, diz que “(…), não ocorre violação não negligenciável de normas (…) aplicáveis ao conteúdo do plano que impeçam a sua homologação”. Consubstanciando as situações aqui em análise violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação, importa saber os efeitos que daí decorrem para o plano maioritariamente aprovado. Alguma doutrina [e alguma jurisprudência mais antiga] defende que a solução adequada ao referido vício seria a recusa de homologação do plano de recuperação [parece ser este o entendimento de Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, vol. II, 3ª ediç., 2023, Almedina, quando, a pgs. 226-227, escreve que “A violação pelo conteúdo do plano de recuperação do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários deve conduzir à recusa de homologação, pois consideramos que se tratará de uma violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação. Nesses casos, não pode o juiz homologar o plano de recuperação e considerá-lo inoponível à Fazenda Pública ou à Segurança Social ou pretender a redução do próprio plano.”]. Contudo, como refere Ana Paula Boularot [in Apontamentos citados, Julgar, Jan.-Abr. 2017, pg. 22], uma tal solução – que equivaleria a uma espécie de veto das referidas entidades públicas – “poderia implicar a inviabilização de qualquer plano insolvencial em que figurassem como credores aquelas duas entidades, sendo certo que o segmento normativo aludido no artigo 215.º do CIRE não nos conduz necessariamente a uma inutilização global do acordo havido, não sendo admissível face aos princípios imanentes ao CIRE que determinados credores, Fazenda Nacional e Segurança Social, possam fazer sucumbir a recuperação de uma empresa o que contrariaria em absoluto os princípios programáticos resultantes do «memorando de entendimento sobre os condicionalismos específicos de politica económica», de 17 de maio de 2011 (2.ª versão), onde se afirma «(…) as autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos, nos casos em que outros credores também aceitem a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributárias com vista à remoção de impedimentos à reestruturação voluntária de dividas.(…)»”. E acrescenta [pgs. 22-23]: “Neste quadro de prognose de lege ferenda, não repugnará, em termos socioeconómicos, que os Tribunais, enquanto órgãos da administração da justiça, aos quais incumbe, além do mais, no cumprimento dos deveres que lhe são atribuídos constitucionalmente, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (cfr. artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa) e na sua função julgadora, que passa pela exegese do regime legal aplicável, tendo especial atenção o que decorre dos artigos 8.º e 9.º do Código Civil, e sem esquecermos que o sistema jurídico funciona como um todo, interpretando-se as leis umas às outras, possam produzir uma homologação de um plano de insolvência com a menção da sua ineficácia em relação aos créditos fiscais e da segurança social, atenta a indisponibilidade destes, nos termos dos artigos 30.º, n.ºs 2 e 3, e 36.º da LGT e 85.º do CPPT, mantendo, todavia, a sua operância no que tange a todos os demais credores, particulares, nele intervenientes, assim se respeitando o princípio da igualdade no seu expoente de tratar de forma igual o que é igual e (de) forma diversa o que é diferente, na justa medida da sua diferença.”. E tem sido à luz destes enquadramento e ensinamentos que a quase unanimidade dos arestos do STJ e desta Relação do Porto [e a maioria dos das demais Relações, à exceção, como já dissemos, da de Lisboa] vem entendendo que “a solução mais equilibrada e curial, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, bem como os compromissos internacionalmente assumidos, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral”, consiste em fixar a ineficácia relativa à homologação do plano de revitalização no que concerne aos créditos reclamados de que são titulares a Autoridade Tributária e o Instituto da Segurança Social [neste sentido, além de muitos outros, Acórdãos do STJ e desta Relação do Porto atrás citados a propósito e que sufragam o entendimento de que a fixação, no plano de recuperação, do pagamento em prestações dos créditos fiscais e/ou da segurança social, sem a concordância da AT e da SS, constitui violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo de tais planos]. Esta orientação parece colher o apoio, designadamente, de Catarina Serra [in O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, 2ª ediç., 2017, Almedina, pgs 105-106] e de Maria do Rosário Epifânio [in Manual citado, pgs. 511-512] – [a 1ª Autora refere que “Baseando-se na essência contratual do plano de recuperação, o Supremo Tribunal de Justiça e alguns Tribunais da Relação têm vindo a afirmar que o plano de recuperação de recuperação pode e deve ser homologado desde que se preservem os créditos tributários. Para tanto basta que se proceda, segundo uns, à restrição dos efeitos do plano aos créditos não tributários e, segundo outros, presumindo que a vontade hipotética ou conjetural das partes é no sentido de conservar o plano, à redução do plano às cláusulas incidentes sobre estes últimos créditos”; a 2ª Autora diz que “(…) as decisões (maioritárias) de homologação do plano e de ineficácia do mesmo relativamente aos credores públicos têm sido sustentadas na natureza do plano de recuperação, que, ‘assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia’, e também no argumento de que face aos ‘interesses subjacentes jurídicos e sociais imbrincados na recuperação da empresa (…) a solução mais ajustada é a da ineficácia relativa’.”]. É também este o entendimento que perfilhamos, seguindo, assim, a jurisprudência quase unânime do STJ e desta Relação do Porto. Isto, claro está, sem esquecer a possibilidade de, excecionalmente, “em caso de flagrante e injustificada afirmação intransigente, pela autoridade tributária, das prerrogativas dos créditos fiscais, pode(re)m os Tribunais desconsiderá-las, na salvaguarda de interesses públicos, que num patamar de justificados sacrifícios, imponham ao Estado [no respeito pelo paradigma insolvencial vigente, sobretudo após a Reforma de 2012, com a introdução do PER, já que a finalidade da lei insolvencial é agora a recuperação da empresa devedora e não a liquidação], o seu contributo para evitar a destruição e a liquidação da empresa”, sendo que “Nesse hipotético quadro de estado de necessidade social, visando evitar a derrocada de empresas, sobretudo, grandes empregadores, em meio social economicamente débil e carenciado, a justiça, a equidade e os fins sociais pelos quais o Estado deve velar, podem conduzir à atenuação daquele direito de intangibilidade, se e quando a posição do credor público for decisiva para a recuperação da sociedade devedora” [assim, i. a., Acórdão do STJ de 10.05.2018, proc. 4986/16.5T8VIS.C1.S1, já atrás citado; em sentido idêntico, Ana Paula Boularot, nos Apontamentos citados, pg. 24]. Situação excecional que, diga-se, não importa in casu chamar à colação, uma vez que dos autos não resulta factualidade e envolvência que a ela se reconduza. Nesta conformidade, bem andou a decisão recorrida em ter homologado, por sentença, o plano de recuperação, aprovado por maioria, embora declarando-o ineficaz relativamente aos créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social. Consequentemente, improcede a douta apelação. Por ter decaído no recurso, as respetivas custas ficam a cargo da recorrente – arts. 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC. * Síntese conclusiva:* ……………………………… ……………………………… ……………………………… * * * 5. Decisão:Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em: 1º. Julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida. 2º. Condenar, pelo decaimento, a recorrente nas custas deste recurso. Porto, 11/12/2024 Pinto dos Santos Alberto Taveira Anabela Miranda |