Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3418/23.7T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: REGISTO AUTOMÓVEL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
COMPRA E VENDA
NULIDADE
Nº do Documento: RP202505263418/23.7T8AVR.P1
Data do Acordão: 05/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Provado que a propriedade de veículo automóvel está inscrita na Conservatória do Registo Automóvel a favor de terceiro (que não o seu vendedor), presume-se que é esse terceiro o seu proprietário pelo que cabe ao vendedor alegar e provar que tinha legitimidade para o alienar aos adquirentes.
II - Não o fazendo, estes podem pedir a declaração de nulidade do negócio de compra e venda e a restituição do preço pago, ainda que o vendedor lhes tenha prometido que iria obter os documentos necessários a que aqueles pudessem registar a propriedade do bem adquirido a seu favor, desde que a compra e venda não tenha sido efetivamente convalidada nesses termos ou noutros até à propositura de ação pedindo a nulidade do contrato.
III - Assim ocorrendo não está em causa o simples incumprimento pelo vendedor de uma obrigação acessória de entrega de documentos, mas a venda de bem que se presume ser do titular inscrito no registo automóvel e, por tal, alheio ao transmitente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 3418/23.7T8AVR.P1, Juizo Local de Santa Maria da Feira, Juiz 1

Recorrentes: AA e BB

Recorrido: CC

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: Carlos Gil

Segunda adjunta: Eugénia Maria Moura Maria da Cunha

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 29-09-2023 AA propôs ação a seguir a forma de processo comum contra CC pedindo que fosse julgado nulo o contrato de compra e venda de veículo automóvel com ele celebrado, por se ter tratado de venda de bem alheio. Alegou, em suma, que lhe adquiriu um veículo automóvel pelo preço de 3 750 € que pagou e lhe foi entregue, bem como que recebeu do vendedor um documento comprovativo do seguro obrigatório, o certificado de matrícula e um requerimento para registo do mesmo na Conservatória do Registo Automóvel assinado. Depois disso o autor percebeu que o referido veículo se encontrava registado a favor de terceiro na Conservatória do Registo Automóvel tendo questionado o réu sobre tal facto. O mesmo afirmou ser ele o proprietário do veículo, por o ter adquirido a tal terceiro e comprometeu-se a entregar os documentos que o titular da propriedade inscrito no registo lhe iria enviar para que o autor pudesse inscrever a propriedade do veículo a seu favor. Tendo passado um mês sem que tal promessa fosse cumprida o autor contactou o referido terceiro, inscrito na Conservatória do Registo Automóvel como proprietário do automóvel adquirido, que se recusou a entregar-lhe qualquer documento destinado a permitir o registo de propriedade. Pretende, em consequência da declaração de nulidade do negócio, a restituição do preço pago acrescida dos juros de mora até ao integral pagamento de tal quantia, bem como pediu a condenação do réu no pagamento de 1000 € a título de indemnização por danos não patrimoniais e de 750 € para ressarcimento dos gastos suportados por causa do acima exposto.

2. O Réu foi citado em 17-10-2023 e não apresentou contestação.

3. Em 19-02-2024 foi o autor notificado para esclarecer se o veículo em causa era bem próprio seu ou, não o sendo “requerer o que tiver por conveniente” com vista a assegurar a legitimidade ativa, bem como para aperfeiçoar a petição inicial esclarecendo quem seria o alegado terceiro proprietário do veículo adquirido e porque concluiu que o era, por se ter entendido que “a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não sendo o registo de tal aquisição constitutivo e, sendo assim, a declaração de venda para efeitos de registo, ainda que assinada por terceiro, não prova a identidade do vendedor nem do proprietário”.

4. Em 06-03-2024 o autor juntou aos autos a petição inicial aperfeiçoada em que identificou como proprietária do veículo por si adquirido a sociedade A..., Ldª, reiterando que estando a mesma inscrita como proprietária do referido automóvel na Conservatória do Registo Automóvel, e que o réu lhes vendeu bem que não era seu, sendo tal venda nula. Requereu, ainda, a intervenção principal provocada da sua mulher como autora.

5. Em 12-03-2024 o autor juntou aos autos certidão do registo automóvel comprovativa da inscrição da propriedade do veículo em causa a favor da sociedade A..., Ldª, bem como cópia do pacto social constitutivo da mesma tendo o Tribunal, oficiosamente, requerido certidão do registo comercial dessa sociedade, por despacho de 18-03-2024.

6. Notificado do pedido de intervenção principal e da petição inicial aperfeiçoada bem como dos documentos juntos pelos autores, o réu nada disse.

7. Em 18-06-2024 foi admitida a intervenção principal provocada da mulher do autor, BB tendo sido a mesma citada para os termos da ação e declarado, em 09-09-2024, fazer seus os articulados e requerimentos do marido.

8. Em 18-11-2024 foi proferido despacho em que se julgaram confessados os factos articulados pelos autores “que não dependem de prova documental específica”. E foram as partes notificadas para apresentação de alegações nos termos do artigo 567.º, número 2 do Código de Processo Civil ao que os autores responderam em 02-12-2024, reiterando o alegado na petição inicial.

9. Em 16-12-2024 foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o réu dos pedidos. A fundamentação da sentença é, em suma, a seguinte: foi celebrado entre as partes um contrato de compra a venda de bem móvel que não está sujeito a qualquer forma tendo a transmissão da propriedade do veículo vendido ocorrido por mero efeito do contrato. Não tendo o seu registo caráter constitutivo, mas valendo apenas como mera presunção, ilidível, da propriedade do titular inscrito, não se verifica, nos autos, um dos requisitos para a pretendida nulidade do negócio: o do bem vendido ao autor marido ser alheio. Assim, apenas se pode concluir por um cumprimento defeituoso do contrato por ter ficado por cumprir uma das obrigações que dele decorre para o vendedor: o da entrega de documentos, que se entendeu ser um dever acessório que não foi objeto do pedido.


*

II - O recurso:

É desta sentença que recorrem os autores pretendendo a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.

Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

I. NULIDADE DA SENTENÇA POR CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO, - ARTº615, Nº1 ALINEA C) DO CPC.

II. OS A., ORA RECORRENTES NÃO SE CONFORMAM COM A DECISÃO PROFERIDA.

III. A LEI DETERMINA QUE O SILOGISMO DA DECISÃO ESTEJA CORRETAMENTE ESTRUTURADO E QUE A CONCLUSÃO EXTRAÍDA CORRESPONDA A UM PROCESSO LÓGICO.

IV. ANALISADA A ESTRUTURA DA SENTENÇA EM CRISE E AS CONEXÕES EXISTENTES ENTRE OS MOTIVOS DE FACTO E DE DIREITO A QUE FAZ APELO E O VEREDICTO FINAL, VERIFICA-SE QUE INEXISTE UMA LÓGICA NA ARQUITETURA DO ARESTO.

V. PORQUANTO A DECISÃO PADECE DE NULIDADE.

VI. TODOS OS FACTOS ALEGADOS PELOS A., ORA RECORRENTES, FORAM DADOS COMO PROVADOS.

VII. FICOU PROVADO, PELOS DOCUMENTOS JUNTOS AOS AUTOS, EM PARTICULAR PELOS DOCUMENTOS DO REGISTO AUTOMÓVEL, CERTIFICADO DE MATRICULA E CERTIDÃO PERMANENTE DO REGISTO AUTOMÓVEL - FACTOS DADOS COMO PROVADOS DE 3 A 7 DOS FACTOS PROVADOS-, QUE O AUTOMÓVEL SE ENCONTRAVA REGISTADO A FAVOR DA SOCIEDADE “A..., LDA.” E NÃO DO R.

VIII. QUE O VEÍCULO NÃO ERA UM BEM DO R.

IX. PORQUANTO O TRIBUNAL NÃO PODERIA AFIRMAR COMO AFIRMOU QUE FICOU POR DEMONSTRAR QUE O R. NÃO ERA O LEGITIMO PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO.

X. ESTA OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS GEROU UMA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE OS FACTOS DADOS COMO PROVADOS, A PRÓPRIA FUNDAMENTAÇÃO E CONSEQUENTEMENTE A DECISÃO, CAINDO A DECISÃO NO VICIO ELENCADO NO ARTº615, Nº1, ALÍNEA C), DO CPC, SENDO POR ISSO A SENTENÇA NULA.

XI. OS FUNDAMENTOS DEVERIAM TER CONDUZIDO A UM RESULTADO OPOSTO AO PROFERIDO NO ARESTO.

XII. O TRIBUNAL DE 1ª INSTÂNCIA DEVERIA TER ENQUADRADO A SITUAÇÃO JURÍDICA NA VENDA DE BENS ALHEIOS E AFERIR OS SEUS PRESSUPOSTOS.

XIII. A SENTENÇA É NULA POR CONTRADIÇÃO ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO,

NULIDADE QUE SE INVOCA E QUE SE ENCONTRA ELENCADA NO ARTIGO 615.º, N.º 1, AL. C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC).

XIV. NULIDADE DA SENTENÇA EM CONSEQUÊNCIA DO VICIO ELENCADO NO ARTº615, Nº1 ALÍNEA D), 1º PARTE DO CPC

XV. O TRIBUNAL RECORRIDO NÃO AFERIU DA BOA OU MÁ FÉ DO INTERVENIENTES, QUESTÃO SOBRE A QUAL ESTAVA OBRIGADO A PRONUNCIAR-SE.

XVI. AO ATUAR COMO ATUOU, DEIXOU DE SE PRONUNCIAR SOBRE QUESTÃO QUE DEVESSE APRECIAR, VERIFICANDO-SE NULIDADE DA SENTENÇA POR FORÇA DO ARTº615, Nº1 ALÍNEA D), 1º PARTE DO CPC, QUE SE INVOCA.

XVII. O TRIBUNAL ESTRIBOU A SUA POSIÇÃO NOS ARTIGOS ARTº874 E SEGS., ARTº408 E SEGS. E ARTº219 DO CC E DEDUZIU INDEVIDAMENTE ESTARMOS DIANTE DE UM CONTRATO COM CUMPRIMENTO DEFEITUOSO, PELO FACTO DE NÃO TEREM SIDO ENTREGUES OS DOCUMENTOS RELACIONADOS COM A COISA VENDIDA, ACRESCENTANDO AINDA SUBSISTIR A VIOLAÇÃO DE UM DEVER ACESSÓRIO.

XVIII. O TRIBUNAL REQUERIDO VIOLOU A LEI SUBSTANTIVA, ERROU NA INTERPRETAÇÃO DOS PRECEITOS LEGAIS E DESACERTOU NA DECISÃO.

XIX. O JULGADOR PERPETROU ASSIM O VICIO DE OMISSÃO DE PRONUNCIA (ARTº615, Nº1 ALÍNEA C) DO CPC) NA MEDIDA EM QUE DEIXOU DE SE PRONUNCIAR SOBRE A QUESTÃO DA NULIDADE DO CONTRATO SUSCITADA PELOS A., ORA RECORRENTES, CONDUZINDO À IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO PARA A QUAL SE VISAVA A TUTELA JUDICIAL.

XX. CONTRARIAMENTE, DEVERIA TER ENQUADRADO JURIDICAMENTE A SITUAÇÃO EM APREÇO NA PREVISÃO DO ARTº 904 E SEGS DO CC, QUE CONSAGRA O REGIME JURÍDICO DA VENDA DE BENS ALHEIOS.

XXI. TAL COMO MAIORITARIAMENTE DEFENDE A JURISPRUDÊNCIA: “CELEBRADO ENTRE AS PARTES UM CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE UM VEÍCULO AUTOMÓVEL, A RESPETIVA PROPRIEDADE NÃO CHEGOU A TRANSFERIR-SE PARA O COMPRADOR E, POR ISSO, A VENDA DO BEM REALIZADA PELO VENDEDOR, A FAVOR DAQUELE, QUE ERA PROPRIEDADE DE OUTREM, TRADUZIU-SE NA VENDA DE UMA COISA ALHEIA.” AC.T.R.DE ÉVORA,12.09.2019, RELATOR FRANCISCO XAVIER, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT

XXII. O R. ALIENOU O AUTOMÓVEL SEM TER LEGITIMIDADE OU PODER DE DISPOSIÇÃO, POR NUNCA TER AVERBADO O VEíCULO EM SEU NOME OU PROPRIEDADE, O QUE TEM COMO NECESSÁRIA CONSEQUÊNCIA A NULIDADE DO CONTRATO.

XXIII. REVERTENDO PARA OS AUTOS, DA FACTUALIDADE PROVADA RESULTA QUE NUNCA A PROPRIEDADE DO VEÍCULO ESTEVE REGISTADA A FAVOR DO R., NEM ANTES, NEM DEPOIS DA CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO, SITUAÇÃO QUE AINDA SE MANTEM.

XXIV. TUDO CONJUGADO E SALVO MELHOR ENTENDIMENTO, DEVERIA TER PROCEDIDO A INVOCADA NULIDADE DO CONTRATO CELEBRADO ENTRE OS A. E O R, POR VENDA DE BENS ALHEIOS, COM FUNDAMENTO NO ARTº892º DO CC.

XXV. ACRESCE QUE O TRIBUNAL A QUO TAMBÉM NÃO AFERIU DA LEGITIMIDADE, SENDO ESTA QUESTÃO CENTRAL, COM IMPORTÂNCIA EXTREMA NA DECISÃO, POR SER UM DOS PRESSUPOSTOS PARA APLICAÇÃO DO REGIME DA VENDA DE COISA ALHEIA.

XXVI. SENDO POR TUDO ORA EXPOSTO, NULA A SENTENÇA.

XXVII. DEVENDO A MESMA SER REVOGADA E PROCEDENDO A PRETENSÃO DOS RECORRENTES.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V/ EX.CIA DOUTAMENTE SUPRIRÁ DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO POR PROVADO E PROCEDENTE, E POR VIA DELE, SER REVOGADA A DECISÃO

FAZENDO-SE A HABITUAL JUSTIÇA”.

III – Questões a resolver:

Em face das conclusões dos Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1. Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;

2. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

3. Existência de fundamento para a declaração de nulidade da compra e venda objeto dos autos.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa:

“1) No dia 31/08/2023, o Autor declarou comprar e o Réu declarou vender o veículo automóvel da marca Nissan, com a matrícula ..-JL-.., comprometendo-se o primeiro a pagar a quantia de € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros).

2) A quantia aludida em 1) foi paga através de transferência bancária realizada no dia 31/08/2023.

3) Ainda naquele dia, o Réu entregou ao Autor, em Santa Maria da Feira, o veículo referido em 1), acompanhado dos documentos denominados “Certificado Internacional de Seguro Automóvel”, “Requerimento de Registo Automóvel” e “Certificado de Matrícula”.

4) Em 31/08/2023, o titular do seguro de responsabilidade civil automóvel do veículo com a matrícula ..-JL-.. era o Réu.

5) O documento denominado “Requerimento de Registo Automóvel” tinha aposta uma assinatura manuscrita com o nome “DD”.

6) O veículo com a matrícula ..-JL-.. encontra-se inscrito a favor da sociedade “A..., Lda.” pela apresentação n.º 03789 de 21/11/2022.

7) A gerência da sociedade “A..., Lda.” é exercida por DD.

8) O Réu comunicou ao Autor que era o proprietário do veículo aludido em 1), em virtude de negócio por si celebrado, embora o veículo não se encontrasse registado em seu nome.

9) Na mesma ocasião, o Réu comunicou ao Autor que faltavam uns documentos que o anterior proprietário ia enviar para que pudesse ser realizada a alteração do titular inscrito no registo.

10) Em 31/08/2024, por mensagem remetida via WhatsApp, o Autor solicitou ao Réu que lhe remetesse cópia do seu cartão de cidadão e do documento necessário à efetivação do registo da aquisição do veículo automóvel.

11) Em data não concretamente apurada, o Autor entrou em contacto com o legal representante da sociedade “A..., Lda.” que recusou entregar a documentação necessária à efetivação do registo da aquisição do veículo automóvel a favor do Autor.

12) Na ocasião aludida em 1), o Autor estava convencido de que o veículo aí referido era propriedade do Réu.”


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1. Da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão:

Prevê o artigo 615º número 1 c) que a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

O vício previsto na primeira parte da alínea c) do número 1 do artigo 615º verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, surge um dispositivo que não se coaduna de todo com as premissas, sendo assim um vício lógico na construção da sentença. Na segunda parte da referida alínea prevê-se que o mesmo vício possa decorrer de alguma ambiguidade ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível.

O raciocínio lógico dedutivo expresso na sentença é claro e compreensível e os apelantes demonstram tê-lo compreendido ao longo das suas alegações.

O que os recorrentes defendem é que o Tribunal a quo não podia ter concluído que o bem que adquiriram não era “alheio”, no sentido de que não era do vendedor, em face do registo da propriedade do mesmo a favor de um terceiro na Conservatória do Registo Automóvel. Trata-se, assim, de uma discordância dos apelantes em relação à fundamentação e solução de direito seguidas, defendendo os autores que a ação não podia ter improcedido com o fundamento de que não se demonstrou que o automóvel adquirido era de um terceiro (que não era, portanto, de quem declarou vender-lho).

De tudo o exposto resulta, como aliás acontece com indesejável frequência, que os recorrentes pretendem sustentar a nulidade da sentença em motivações que se prendem com o seu mérito confundido invalidade da sentença com erro de julgamento que entendem ter ocorrido.

Pelo que improcede a invocada nulidade.


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2. Da nulidade por omissão de pronúncia.

Os apelantes defendem que o Tribunal a quo omitiu pronúncia sobre a questão da boa ou má-fé dos outorgantes do contrato objeto dos autos, sobre a qual, segundo eles “estava obrigado a pronunciar-se”.

O dever do juiz de decidir todas as questões que tenham sido submetidas à sua apreciação decorre do previsto no número 2 do artigo 608.º do mesmo Diploma.

Doutrina e jurisprudência têm entendido que apenas os assuntos que integram o “thema decidendum”, são verdadeiras questões que o tribunal tem o dever de conhecer, excluindo o dever de o Tribunal se pronunciar expressamente sobre todos os argumentos invocados pelas partes.

Em acórdão de 16-11-2023 o Supremo Tribunal de Justiça mais uma vez reafirmou tal entendimento ali se podendo ler que: “(…) a nulidade por omissão de pronúncia está diretamente relacionada com o comando previsto no art. 608.º, n.º 2, do CPC, sancionando a sua inobservância. O dever consagrado neste preceito diz respeito ao conhecimento, na sentença ou no acórdão, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentados pelo Autor (ou, eventualmente, pelo Réu/Reconvinte) suscitam quanto à (im)procedência do pedido formulado. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão suscitada pelas partes (sujeitos), e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a questão resolvida pelo Tribunal, identificada por estes mesmos elementos. Só isto releva para a resolução do pleito. E é por isso mesmo que já não importam os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos - embora possa ser conveniente que o Tribunal os considere para que a decisão vença e convença as partes - de que as partes se socorrem quando se apresentam a demandar ou a contradizer, para fazerem valer ou naufragar a causa posta à apreciação do Tribunal. É de salientar ainda que, de entre a questões essenciais a resolver, não constitui nulidade o não conhecimento daquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela decisão de outra.[1]

Da mesma forma que quando o tribunal na fundamentação da sentença lance mão de argumentos não invocados pelas partes não ocorre excesso de pronúncia desde que se não conheçam de pedidos ou questões não levantadas pelas partes, também ao não mencionar expressamente todos os argumentos da ação ou da defesa está o tribunal a omitir qualquer dever.

Ora, no caso dos autos é manifesto que se conheceu do objeto da ação e de todas as questões levantadas pelos autores. Tendo o Tribunal a quo entendido que não podia proceder o pedido por não se verificar um dos fundamentos da nulidade cuja declaração foi pedida – o do bem alienado não ser do vendedor, sendo antes de terceiro -, não tinha já que se pronunciar sobre a eventual verificação de outros requisitos, como sejam a boa ou má-fé dos outorgantes, a que se refere o artigo 892.º do Código Civil. Isso mesmo é afirmado com total clareza na sentença recorrida da seguinte forma: “Falha, por isso, desde logo, o primeiro dos requisitos para estarmos perante uma situação de venda de bens alheios: o bem ser alheio. E torna-se, assim, irrelevante aferir da boa ou má-fé do comprador ou do vendedor.”.

O artigo 615º, número 1 d) do Código de Processo Civil apenas prevê a nulidade da sentença quando a mesma deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

Ora, como decorre do artigo 608º, número 2 do Código de Processo Civil, “(o) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. No caso é manifesto que ficou prejudicado, em face da qualificação jurídica dos factos que o Tribunal a quo fez, o conhecimento da boa ou má-fé dos outorgantes, por prévia decisão de que não ocorria outro dos requisitos para aplicação do regime legal da venda de bens alheios.

Improcede, assim e também[2], a nulidade em epígrafe, por não ocorrer omissão de pronúncia quanto a qualquer das questões a resolver na sentença.


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3- Da verificação dos requisitos para a nulidade do negócio à luz do regime legal da venda de bens alheios.

Quanto à pretensão dos recorrentes de revogação da sentença, a mesma deve proceder, no que tange à declaração da nulidade do negócio celebrado com o réu e a consequente condenação deste na restituição do preço recebido.

De facto, tendo embora o Tribunal a quo discorrido de forma correta sobre os deveres principais e acessórios do vendedor de um automóvel e sobre a natureza não constitutiva do registo de propriedade, tais questões não se revelam como pertinentes para a decisão da questão que é objeto dos autos.

Os autores invocaram que o réu vendeu ao autor marido um bem que não lhe pertencia, estando o comprador, contudo, convencido de que era ele o proprietário do veículo que lhe pagou e recebeu.

Alegaram, ainda, que depois de confrontando com esse facto, o réu disse ter adquirido o automóvel vendido a quem figura no registo automóvel como seu proprietário e que lhes iria enviar os documentos em falta para que pudessem registar o bem a seu favor.

Ora, ao contrário do afirmado na sentença, dos factos provados resulta que o bem que foi adquirido pelos autores não era do vendedor.

Sendo certas as afirmações constantes da sentença de que a transmissão da propriedade do automóvel em causa ocorreu por mero efeito do contrato (cfr. artigo 408.º, número 1 do Código Civil) e de que o registo do mesmo não tem efeito constitutivo, mas meramente declarativo (cfr. artigo 1º do Código do Registo Predial, ex vi artigo 29.º do DL 54/75 de 12 de fevereiro e artigo deste último diploma) tais afirmações não conduzem, contudo, à improcedência da ação.

Resulta do artigo 5.º do DL 54/75 que está sujeito a registo o direito de propriedade sobre automóvel e do artigo 7º do Código do Registo Predial (aplicável por força da remissão do artigo 29.º do referido diploma), retira-se uma presunção “de que o direito inscrito existe e pertence ao titular inscrito”.

Por força do previsto no artigo 350.º, número 2 do Código Civil as presunções legais, como a vinda de referir, podem ser ilididas perante prova em contrário. Do seu número 1 decorre que quem tem a seu favor a presunção escusa de provar o facto a que ela conduz.

Como bem salientado pelo Tribunal a quo um dos requisitos para a aplicação do artigo 892.º do Código Civil, que regula os efeitos da venda de bens alheios, é a de que o vendedor não tenha legitimidade para a realizar. A alegação de que o bem adquirido (quando a ação seja proposta, como é o caso, pelo comprador) não era do vendedor cabe ao autor. Todavia, decorrendo do registo automóvel da propriedade a favor de terceiro a presunção de que o automóvel vendido é desse terceiro (e não do vendedor), o autor não tem que provar essa propriedade, cabendo ao réu provar o contrário, ilidindo a presunção ou alegar e provar a sua legitimidade para a venda.

Não foi o que sucedeu nos autos, não tendo a ação sido contestada o que resultou na prova de todos os factos alegados na petição inicial.

Muito embora os autores tenham alegado também que o vendedor, depois de interpelado, lhes prometeu que obteria a declaração de venda/os documentos necessários a que pudessem registar o veículo a seu favor, a verdade é que tal não veio a ocorrer. Mais, tendo eles mesmos contactado a sociedade inscrita na Conservatória do Registo Automóvel como proprietária do automóvel adquirido, ela recusou emitir qualquer declaração de venda ou outro qualquer documento que permitisse aos autores o registo da propriedade do bem a seu favor.

Ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, tal não consubstancia um mero incumprimento do dever acessório de entrega de documentos.

Apenas assim se poderia entender caso o réu, contestando a ação, viesse alegar e provar a sua propriedade sobre o veículo, ilidindo a presunção de que o mesmo era e é, de facto, de um terceiro a favor de quem se encontra inscrita a sua propriedade.

Os autores podem pedir a declaração de nulidade do negócio de compra e venda e a restituição do preço pago, ainda que o vendedor lhes tenha prometido que iria obter os documentos necessários a que aqueles pudessem registar a propriedade do bem adquirido a seu favor, uma vez que a compra e venda não foi efetivamente convalidada nesses termos ou noutros até à propositura de ação pedindo a nulidade do contrato (cfr. artigo 896º, número 1 a) do Código Civil).

Os autores provaram, portanto, os requisitos de que depende a declaração de nulidade do negócio celebrado com o réu: o de que lhe adquiriram bem de que o mesmo não era proprietário e o de que, na data do negócio, estava o adquirente marido convencido do contrário, ou seja, de que o automóvel era do réu (ponto 12 dos factos provados).

Deste segundo facto decorre a boa-fé do autor enquanto comprador, que é exigida pelo artigo 892.º do Código Civil para a procedência declaração de nulidade do negócio.

O réu, por sua vez, não ilidiu tal presunção e nem convalidou o negócio, nos termos do artigo 895.º do Código Civil de modo a permitir a transmissão da propriedade do automóvel para o comprador.

O Tribunal a quo afirma que a venda ficou perfeita por mero efeito do contrato, verbal, em que o comprador pagou o preço e o vendedor lhe entregou o automóvel vendido. Tal afirmação, mais uma vez correta, não obsta a que se considere tal venda nula. É que o que os autores pretendem é exatamente a declaração de nulidade da venda e não agem no pressuposto de que o negócio foi incumprido total ou parcialmente. Pelo contrário, partindo da celebração efetiva do negócio, pedem a sua invalidação, por ser nulo.

Assiste-lhes razão, já que se presume que o bem que declararam adquirir não era de quem o vendeu e visto que o comprador (marido) estava convicto do contrário, estando, assim de boa-fé.

Quanto ao regime legal e requisitos da declaração de nulidade da venda de bens alheios, são corretas e acompanham-se as considerações do Tribunal a quo em sede de fundamentação de direito da sentença, nomeadamente quanto aos seus efeitos: “O regime consagrado nos artigos 892.º e seguintes do CC ilustra o brocardo nemo plus iuris ad alium transferre potest quem ipse habet, isto é, ninguém pode transferir mais direito do que o próprio tem. A venda de bens alheios pressupõe a sua alienação como se de bens próprios se tratassem, isto é, as partes transacionam presumindo que os bens são do vendedor. Se as partes efetivamente negociarem tratando os bens como alheios, não se coloca a hipótese do artigo 892.º do CC, mas antes situações de representação, ainda que em alguns casos sem poderes, de gestão de negócios representativa ou ainda de bens futuros, por exemplo (cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – Contratos em Especial, Vol. XI, Almedina, Coimbra, 2019, p. 199). Daí que seja “nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar […]” (cfr. artigo 892.º, 1.ª parte, do CC).

De facto, na medida em que a venda de bens alheios traduz uma violação do direito do titular legítimo, há que sancionar esse comportamento. De resto, verifica-se uma impossibilidade jurídica, que seria suscetível de ser enquadrada no artigo 280.º do CC, porquanto não se pode alienar o que não é do próprio, já que tal interferiria com a ordem dominial (cfr. A. Menezes Cordeiro, op. cit., p. 207).

Em suma, é alheia a coisa ou o bem que, no momento da realização do negócio de compra e venda, não pertença ao devedor, sendo que, para que tal ato fique sujeito ao regime de invalidade previsto pelo artigo 892.º do CC, é essencial que o vendedor careça de legitimidade para realizar o mesmo.

Considerando as particularidades do regime invalidade do contrato de compra e venda de bens alheios, temos que se trata de um regime de nulidade atípica ou sui generis, afastando-se, em alguns aspetos, do regime geral do artigo 286.º do CC. Na palavres de MENEZES CORDEIRO, é uma nulidade que cabe na categoria das “nulidades limitadas ou relativas” (cfr. A. Menezes Cordeiro, op. cit., p. 208). Com efeito, a nulidade não pode ser invocada pelo vendedor perante o comprador de boa-fé (cfr. artigo 892.º, 2.ª parte, do CC); nem pode ser invocada pelo comprador de má-fé contra o vendedor de boa-fé (cfr. artigo 892.º, in fine, do CC); não pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, a não ser que ambas as partes estejam de má-fé; e pode ocorrer a convalidação do contrato mediante a aquisição, pelo vendedor, da propriedade da coisa ou da titularidade do direito vendido (cfr. artigo 895.º do CC) (cfr. A. Menezes Cordeiro, op. cit., pp. 207-208).

Sendo nula a venda de bens alheios, o comprador que tiver procedido de boa-fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa (cfr. artigo 894.º, n.º 1, do CC).”

Aplicando os dispositivos que o Tribunal a quo convocou e analisou da forma que se transcreveu, há que fazer proceder a ação, julgando nula a compra e venda objeto dos autos e condenando o réu na restituição do preço pago, devendo os autores, por sua vez, entregar-lhe o bem que lhe adquiriram a non domino, como consequência dessa nulidade, nos termos do disposto no artigo 289.º do Código Civil.

O mesmo sucesso não terão, contudo, os pedidos de indemnização formulados, por não terem sido alegados (e por consequência provados) alguns dos factos de que dependia tal pretensão, sendo eles os danos sofridos pelos autores, que se limitaram a referi-los de forma conclusiva na formulação do pedido, nos seguintes termos:

“21. Ainda a título de danos patrimoniais, pretende o A. ser ressarcido de todos os gastos que teve com a presente situação, no valor nunca inferior a 750.00 € (mil e quinhentos euros).

22. A título de danos não patrimoniais, pela inquietude, ansiedade, receio, gerados deve ainda o A. ser indemnizado num valor nunca inferior a 1.000.00 € (mil euros)”.

Tal formulação genérica e conclusiva teve por consequência a não prova de quaisquer factos que pudessem fundar o pedido de indemnização (cujo enquadramento legal seria feito nos termos dos artigos 898.º e 899.º do Código Civil).

Os autores/recorrentes, aliás, tampouco referem tal pretensão em sede de conclusões de recurso, não impugnando a decisão sobre a matéria de facto e nem esgrimindo qualquer argumento com vista à procedência dessa parte do pedido limitando-se a pugnar pela procedência da invocada nulidade do contrato.

Como tal, na procedência do recurso, a ação procederá apenas em parte, devendo o réu ser condenado a restituir aos autores o valor do preço recebido - € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros) – acrescido de juros desde a citação, como forma de indemnização pela mora, já que a obrigação de restituição só é devida a partir da interpelação ao pagamento, feita por via judicial em 17-10-2023, nos termos dos artigos 804.º, 805.º, número 1, 806.º e 559.º do Código Civil.


*

Não obstante a procedência do recurso, não tendo o réu contra-alegado e nem se podendo afirmar que o mesmo deu causa ao recurso, já que tampouco contestou a ação, as custas do mesmo serão a suportar pelos recorrentes, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código Civil, em que se prevê que não havendo vencimento as custas ficam a cargo de quem do processo tirou proveito.

As custas da ação serão a suportar por ambas as partes réu, na proporção dos respetivos decaimento com base no mesmo dispositivo legal.

V – Decisão:

Julga-se procedente a apelação, revogando-se a sentença nos seguintes termos:

Declara-se nula a compra e venda do veículo automóvel de matrícula ..-JL-.. celebrada em 31-08-2023 entre o autor marido (comprador) e o réu (vendedor), condenando em consequência o réu a pagar ao autor a quantia de 3 750 € acrescida de juros de mora à taxa legal desde 17-10-2023 e até efetivo e integral pagamento.

Custas da ação por ambas as partes nas proporções dos seus decaimentos e do recurso pelos recorrentes.


Porto, 26 de maio de 2025.
Ana Olívia Loureiro
Carlos Gil
Eugénia Cunha
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[1] Acórdão do processo 11826/17.6T8SNT.L1.S1 e em cujo sumário se pode ler: “I -.Conforme jurisprudência consolidada do STJ, as nulidades da sentença/acórdão encontram-se previstas no art. 615.º do CPC e reportam-se a deficiências estruturais da própria decisão, não se confundindo com os erros de julgamento, de facto ou de direito. A decisão não enferma de nulidade se o Tribunal deixar de apreciar qualquer consideração ou argumento invocado pela parte”. Disponível em: STJ 11826/17.6T8SNT.L1.S1.
[2] Acompanham-se a este propósito as pertinentes considerações de Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, página 183, nota de rodapé número 318). “Não se compreende a atração que é revelada em múltiplos recursos de apelação e de revista pela arguição de “nulidades” da sentença da 1ª instância ou do acórdão da Relação e que, com muita frequência apenas têm subjacente o inconformismo em relação à decisão da matéria de facto ou à respetiva integração jurídica. Se essa “técnica” se instalou numa altura em que o prazo para a interposição de recurso apenas se contava a partir da notificação da decisão sobre arguição de nulidades, visando ampliar o prazo para a interposição do recurso e subsequente apresentação das respetivas alegações, agora nenhum benefício se alcança (…).”.