Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
937/21.3T8ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
CONTRATO ADMINISTRATIVO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Nº do Documento: RP20230629937/21.3T8ETR.P1
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o litígio dos autos como objeto um contrato administrativo – que se invoca como causa de pedir, pedindo-se que a ré seja condenada a pagar a retribuição devida pela execução do contrato – estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa.
II - A competência para apreciar litígios emergentes de contratos desta natureza pertence aos tribunais da jurisdição administrativa
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 937/21.3T8ETR.P1 – 3ª Secção (Apelação) - 1511
Acção Comum – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Estarreja – Juiz 2



Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
A..., SA instaurou acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., SA.
Pediu a condenação da ré no pagamento de €6.152,88, acrescido de juros legais vencidos e vincendos desde a data de vencimento da factura emitida até integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em síntese, ter, em 01.04.19, celebrado com a ré contrato para a realização de trabalhos de intervenção/substituição de uma junta de dilatação na Conduta de Ermidas do Sado.
A ré contestou, invocando, além mais, a incompetência material do tribunal, defendendo pertencer essa competência aos tribunais administrativos.
Como fundamento, alegou, em síntese:
- A ré é uma sociedade anónima, cujo capital, exclusivamente público, é da titularidade da C... SGPS, SA, a qual, por sua vez, é detida pela Banco 1..., SA e pela D..., SGPS, SA, as quais, por sua vez, são integralmente detidas pelo Estado – Direcção Geral do Tesouro e Finanças;
- A ré foi criada pelo DL 171/01, de 25.05, especificamente para tomar a concessão que lhe foi atribuída, em regime de exclusivo, da exploração e gestão do Sistema de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos de ..., adiante designado;
- A exploração e a gestão daquele Sistema abrangem a concepção, a construção das obras e equipamentos – vg, a conduta adutora de água de ... – bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção;
- Não fora a sua atribuição à ré (ou eventualmente a outrem), a exploração e gestão do Sistema competiria à Administração Central, posto que se compreende no âmbito da função administrativa, na vertente da prestação de serviços destinada à satisfação de necessidades colectivas ou, eventualmente, parte delas, à Administração Local;
- No âmbito das referidas actividades, a ré contrata, no exercício de funções materialmente administrativas, destinadas à prestação do serviço público – regulado – de abastecimento de água para consumo humano, quer (em alta) aos municípios de Sines e Santigo de Cacém, quer (em baixa) directamente à população da cidade de Vila Nova de Santo André;
- E fá-lo com vista à satisfação de necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, no sentido em que não é exercida em condições normais de mercado;
- Já a actividade da autora descrita no artigo 6.º da petição inicial é exercida em condições de mercado e a prestação do serviço de substituição da junta de dilatação n.º 6 da conduta de Ermidas do Sado está, ou é susceptível de estar, submetida à concorrência de mercado;
- Desde a entrada em vigor do Código dos Contratos Públicos (CCP), a 30.07.08, a ré é uma entidade adjudicante e um contraente público;
- Qualquer que fosse o contrato que tivesse por objecto a prestação de um serviço à ré, nomeadamente o de substituição da junta de dilatação n.º 6 da conduta adutora de ..., sempre estaria submetido à disciplina do Código dos Contratos Públicos;
A autora respondeu, alegando que a questão a decidir, tal como apresentada na petição inicial, é de natureza cível.
De seguida, foi proferida decisão que julgou o tribunal recorrido incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção e, em consequência, absolveu a ré da instância.

A autora recorreu, suscitando, nas suas CONCLUSÕES, a seguinte questão:
- Se o Tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer da presente acção.

A ré não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto I.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação da apelante (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) – é a que se enunciou no ponto I:
- Se o Tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer da presente acção.

A competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção[1].
No artigo 211.º, n.º 1 da CRP consagra-se a competência residual dos tribunais comuns: os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Por seu turno, diz o artigo 212.º, n.º 3 da CRP que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: a) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); b) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
Segundo Vieira de Andrade[3], o referido preceito constitucional, introduzido na revisão de 1989, explica-se historicamente na sequência da intenção de consagrar a ordem judicial administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição especial ou excepcional em face dos tribunais judiciais[4].
Como se diz no Acórdão do STJ de 07.10.04[5], a verdadeira “pedra de toque” para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos reside assim no critério plasmado no citado artigo 212.º, n.º 3 da CRP.
A regra geral da competência residual dos tribunais comuns é reafirmada nos artigos 64.º do CPC e 40.º, n.º 1 da Lei 62/13, de 26.08 (LOST): São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

A competência específica do foro administrativo está fixada, em particular, no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/02, de 19.02.
Reproduzindo a norma do n.º 3 do artigo 212.º da CRP, acima citada, diz o artigo 1.º, n.º 1 do ETAF que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto as questões enunciadas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Entre elas situam-se as questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes (al. e).
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 15.11.11[6], “A reforma do contencioso administrativo alargou o âmbito da jurisdição administrativa. E, pese embora nas diversas alíneas do ETAF (…) não se faça nenhuma alusão a actos de gestão pública, tal não significa que já não haja que ponderar se as situações ali previstas são, ou não, regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
É verdade que o legislador, nas diversas alíneas do artigo 4º do ETAF, e no que concerne às pretensões jurídicas a formular perante a jurisdição administrativa, fez prevalecer, em algumas situações, critérios objectivos ou materiais, atendendo, em outras situações, a um critério subjectivo ou orgânico.”.
Por isso e apesar de, como dissemos, a competência dever ser apreciada nos termos em que a acção é proposta, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, também importa “…ponderar sobre os elementos objectivos e subjectivos da acção, ou seja, em relação aos primeiros, a natureza da providência solicitada, natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde resulta o invocado direito; e, em relação aos segundos, a identidade e a natureza das partes.”[7].
O que distingue o contrato administrativo do contrato de direito privado é a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades de interesse público que esse ente prossiga, bem como as marcas de administratividade e os traços reveladores de uma ambiência de direito público existentes nas relações que neles se estabelecem[8].
Por outro lado, relação jurídica de direito administrativo é a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas[9].
A propósito, a doutrina destaca o critério substantivo para aferir a competência da jurisdição administrativa referindo que foi intenção do novo ETAF abandonar o critério da entidade contratante, e definir as competências dos Tribunais Administrativos apenas em função da natureza e do regime legal específico de cada contrato. Isto porque é perfeitamente possível perceber que um litígio sobre um determinado contrato seja da competência material da jurisdição administrativa, e que o mesmo contrato tenha sido celebrado por pessoas colectivas de direito publico, por entidades publicas sob a forma privada ou por entidades privadas de mão publica. O que mais releva é a sujeição do contrato a normas de direito publico, o que sempre acarreta um esforço do interprete ou do aplicador do Direito na procura desse regime, na certeza, porém, de que estão hoje bem melhor definidas as competências, em matéria contratual, entre a jurisdição administrativa e jurisdição comum (…).”[10].
Essa procura do regime a que o contrato está submetido tem de ser feita através da análise das respectivas cláusulas[11].

Segundo o artigo 1.º do DL 171/01, de 25.05, o sistema para captação, tratamento e distribuição de água, para recolha, tratamento e rejeição de efluentes e para recolha, tratamento e destino final de resíduos sólidos, constituído por imóveis, infra-estruturas e equipamentos, que serve, parcialmente, os municípios de Santiago do Cacém e Sines, passou a ter a designação de sistema de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos de ... (adiante designado por sistema).
No mesmo preceito refere-se que a propriedade dos imóveis, infra-estruturas e equipamentos ali indicados havia sido transmitida para o Estado pelo DL 115/89, de 14.04, tendo a administração dos mesmos sido cometida à delegação da DGRN em ..., que transitou para o Instituto da Água (INAG) por força do disposto no artigo 18.º-A do DL 191/93, de 24.05, acrescentado a este último diploma pelo DL 110/97, de 08.05.
O artigo 2.º do DL 171/01 prevê o alargamento do sistema a outras áreas, mediante reconhecimento de interesse público justificativo, que será reconhecido por despacho do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, sob proposta da sociedade concessionária do sistema, e ouvidos os municípios abrangidos.
Por aquele DL 171/01, foi constituída a sociedade ré, a qual se rege por aquele Diploma, pelos seus estatutos e pela lei comercial (artigo 3.º, n.ºs 1 e 2), sendo os estatutos aprovados e figurando por anexo ao mesmo Diploma (artigo 4.º, n.º 1).
É titular originária das acções da ré a C..., SGPS, SA (artigo 5.º, n.º 1 do DL 171/01).
O exclusivo da exploração e gestão do sistema é adjudicado à ré, em regime de concessão, por um prazo de 30 anos, mediante outorga do contrato de concessão referido no artigo 8.º do DL 181/01 (artigo 6.º, n.ºs 1 e 2).
A exploração e a gestão referidas no n.º 1 daquele preceito abrangem a concepção, a construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção (n.º 3 do mesmo preceito).
Segundo o artigo 7.º, n.º 1 do DL 171/01, a ré instalará os equipamentos que se revelem necessários para o bom funcionamento do sistema e que decorram do contrato de concessão.

Marcello Caetano[12] considera “(…) pessoas colectivas de direito público, além do Estado, aquelas que, sendo criadas por acto do Poder público, existem para a prossecução necessária de interesse públicos e exercem em nome próprio poderes de autoridade.”.
Tendo em conta aquela definição, concluímos que a ré, atenta a forma da sua criação e os interesses públicos que persegue (que resultam das normas do DL 171/01, acima citadas) é uma pessoa colectiva de direito público.

Mas daí não se infere, sem mais, que as relações jurídicas estabelecidas pela ré hajam de ser geridas exclusivamente por normas de direito público e que, consequentemente, os tribunais competentes para dirimir os conflitos emergentes de tais relações jurídicas sejam sempre os tribunais administrativos.

O que nos reconduz à questão da aplicabilidade ao caso concreto da norma da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Relembramos que naquela alínea estão previstas as questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de:
- contratos administrativos;
- contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública.

Tal como a autora a configurou no requerimento inicial, a causa de pedir da presente acção é o incumprimento, por parte da ré, de um contrato que celebrou com a autora, tendo por objecto a realização de trabalhos de intervenção/substituição de uma junta de dilatação numa conduta.
Tal contrato poderá ser qualificado como contrato de prestação de serviço, tal como o define o artigo 1154.º do CC.

Segundo o artigo 1.º, n.º 2 do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo DL 18/08 de 29.01, na redacção do DL 11-B/17, de 31.08 [aplicável ao caso dos autos, atenta a data da celebração do contrato invocado pela autora] o regime da contratação pública estabelecido na parte II do CCP é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no CCP e desde que tais contratos públicos não sejam excluídos do âmbito de aplicação do CCP.
De acordo com o artigo 2.º do CCP, são “Entidades adjudicantes”, além das pessoas colectivas, os “organismos públicos” – entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (n.º 2 do artigo 2.º), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes (artigo 7.º do CCP).
Resulta do exposto que a ré, enquanto concessionária de um serviço público e pessoa colectiva (sociedade anónima) de capitais exclusivamente públicos, conforme ao DL 171/01 que a constituiu, é uma entidade adjudicante e um contraente público (cfr. artigo 3.º do CCP).
Sendo assim, salvo os contratos excluídos (artigo 4.º do CCP) e a contratação excluída (artigo 5.º do CCP), todos os contratos por si celebrados estão sujeitos ao regime da contratação pública estabelecido na parte II do CCP.

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 5/22, de 26.04.22[13], tirado a propósito de um contrato de mandato forense celebrado com uma pessoa colectiva de direito público, com objecto idêntico ao da ré (Águas do Norte, SA), uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:
Compete à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes de contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público.”.

Embora a situação dos autos não esteja abrangida pelo segmento uniformizador daquele AUJ – por o contrato celebrado entre a autora e a ré ser um contrato de prestação de serviço e o contrato sobre que versou o AUJ ser um contrato de mandato forense – entendemos que a fundamentação daquele aresto tem aplicação ao caso dos autos.
Efectivamente, o contrato de mandato forense é um contrato de mandato oneroso, sendo este uma das modalidades do contrato de prestação de serviço (artigo 1155.º do CC), regendo-se o próprio contrato de prestação de serviço pelas disposições do contrato de mandato (artigo 1156.º do mesmo Diploma).
Assim, passamos a seguir de perto a fundamentação daquele AUJ, devidamente adaptada ao contrato de prestação de serviço:

O contrato de prestação de serviço não é um contrato excluído pelo artigo 4.º do CCP e não pode a sua contratação considerar-se excluída pelo artigo 5.º do mesmo Código (segundo o qual o regime da contratação pública não é aplicável aos “contratos cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua formação” – n.º 1 do preceito).
O que, aliás, resulta do artigo 16.º, n.º 2 do CCP, que considera submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objecto dos contratos a seguir indicados, independentemente da sua designação ou natureza; sendo um desses contratos o contrato de aquisição de serviços (al. e).
Havendo aqui que ter presente que a tipificação como contratos administrativos dos contratos de aquisição de bens móveis e serviços, por parte de entes públicos a contraentes particulares, assenta na ideia, transmitida por sucessivas directivas comunitárias, de “uma economia aberta e de livre concorrência” e visa “assegurar a efectiva eliminação das chamadas barreiras «invisíveis» ao mercado interno da contratação pública, bem como condições fundamentais de igualdade dos agentes económicos na participação nos diversos procedimentos de formação dos contratos públicos”; ou seja, visa assegurar a transparência dos processos e a igualdade de tratamento dos operadores económicos, impondo que um número mínimo de candidatos seja convidado a participar nos processos, quer se trate de concursos públicos, concursos limitados, processos por negociação ou diálogos concorrenciais.
Pelo que, sendo aplicável ao contrato de prestação de serviço (celebrado com uma pessoa colectiva pública), o regime da contratação pública, é o mesmo um contrato administrativo.
Pois que, segundo o artigo 280.º, n.º 1, al. a) CCP, reveste a natureza de contrato administrativo todo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, em que pelo menos uma das partes seja um contraente público e que assim seja qualificado, como contrato administrativo, no título II da parte III do CCP.
Tal é o caso dos autos, em que, como já referimos, a ré é um contraente público e o contrato de prestação de serviço é um dos contratos administrativos típicos previstos no CCP.
Contrato a que, em tudo quanto não estiver regulado no presente Código, na demais legislação administrativa ou em lei especial, e não seja suficientemente disciplinado por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo, é subsidiariamente aplicável às relações jurídicas contratuais administrativas, com as necessárias adaptações, o direito civil (artigo 280.º, n.º 4 do CCP.
Ou seja, não é por o conteúdo substantivo dum contrato de prestação de serviço estar regulado essencialmente nas disposições do CC que o mesmo não pode configurar uma relação jurídica de natureza administrativa.
Uma coisa é o conteúdo substantivo do contrato de prestação de serviço e outra coisa, diversa, é saber/dizer onde a apreciação dos litígios emergentes de tal contrato (ou seja, dos litígios que tenham por objecto questões relativas à validade dos respectivos actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução do contrato) é feita.
Tendo o litígio dos presentes autos como objecto um contrato administrativo – que se invoca como causa de pedir, pedindo-se que a ré seja condenada a pagar a retribuição devida pela execução do contrato – estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa, que se inscreve no tipo de relações jurídicas abrangidas pelo artigo 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF.

Face ao disposto naquela norma do ETAF e no artigo 212.º, n.º 3 da CRP, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de tais litígios.

O Tribunal recorrido é, pois, incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção.
A incompetência material do Tribunal é um caso de incompetência absoluta do tribunal (artigo 96.º, n.º 1, al. a) do CPC) – o que constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que origina a absolvição da instância ou a remessa dos autos para o tribunal competente (artigos 97.º, n.º 1, 99.º, nºs 1 e 2, 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, al. e), todos do CPC).
*
IV.
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, e, em consequência:
- Confirma-se o despacho recorrido.

Custas pela apelada.
***

Porto, 29 de Junho de 2023
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
_____________
[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91.
[2] CRP Anotada, 3ª ed., pág. 815.
[3] A Justiça Administrativa, 9ª ed., pág. 103.
[4] No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, pág. 814; João Caupers, Direito Administrativo, pág. 121; Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., págs. 25 e seguintes.
[5] www.dgsi.pt.
[6] www.dgsi.pt.
[7] Citado Acórdão de 15.11.11.
[8] Neste sentido, ver os Acórdãos do STA de 10.03.05 e do Tribunal de Conflitos de 09.06.10, ambos em www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do TCA Norte de 22.04.10, www.dgsi.pt.
[10] Ac. do TCA Sul de 16.06.11, com apoio na doutrina nele citada.
[11] Ac. desta Relação de 06.05.10.
[12] Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., pág. 184.
[13] DRE 118/22, 1ª Série, de 21.06.22.