Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16989/22.6T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
PANDEMIA
COVID-19
FACTOS NOTÓRIOS
Nº do Documento: RP2023110916989/22.6T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – São factos notórios a existência da pandemia Covid-19 e o ela ter causado períodos de confinamento e de encerramento de serviços e estabelecimentos abertos ao público, mas não são factos notórios a medida, dimensão ou importância como a pandemia, os confinamentos e encerramentos, as alterações comportamentais das pessoas na frequência e aproveitamento dos espaços públicos, influenciaram negativamente as actividades de cada um dos ramos de comércio.
II - A pandemia é a razão de saúde pública que explica e justifica as alterações, mas é necessário saber quais foram estas e as respectivas consequências para concluir que, sendo elas derivadas de uma causa alheia aos contraentes e por eles não prevista nem previsível no momento da contratação, assumem a dimensão da anormalidade, da perturbação significativa da economia do contrato, que preside ao instituto da alteração anormal das circunstâncias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:16989.22.6T8PRT.A.P1
*
SUMÁRIO:
………………………………
………………………………
………………………………

ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa titulada por uma letra de câmbio no valor de €125.621,91, com data de vencimento de 09/11/2021, instaurada por A..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em ..., Maia, veio o executado AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente no Porto, deduzir embargos de executado, terminando a respectiva petição inicial nos seguintes termos:
«seja o executado absolvido da instância por não ter incumprido o contrato e não existir motivo para a sua resolução e o preenchimento da letra, e ainda:
- requer-se que V. Exa. se digne a proferir decisão no sentido de que, de forma justa e equitativa, seja o contrato cumprido, visto que estamos perante a alteração superveniente das circunstâncias prevista no artigo 437.º do CPC, mas com a prorrogação do prazo final de 60 meses para pelo menos mais 60 meses, ou, só se tal não for possível;
- requer o executado a resolução do presente contrato, entregando o valor de 25.000,00€ que lhe foi mutuado, o valor que usufruiu de desconto (proporcional ao café por si adquirido até à data da resolução do contrato) e todos os bens da exequente que se encontram em sua posse, não tendo mais nenhum valor a entregar e desvinculando-se para sempre destas suas obrigações.»
Para o efeito alegou, em súmula, que uma das máquinas de café já foi devolvida e o toldo não corresponde aos critérios da Câmara para ser emitida licença, o que foi comunicado requerendo-se a sua troca, o que até hoje não aconteceu. Alegou ainda que o contrato foi celebrado para dois estabelecimentos comerciais, mas um deles teve de ser fechado, tendo o executado continuado a cumprir o contrato no café que se manteve em funcionamento; porém com a pandemia covid-19, foi obrigado a fechar 2 meses em 2020 e 3 meses em 2021, após o que reabriu com as restrições legais que limitaram muito rendimentos e consumos de café durante aquela época, situação que o executado expôs à exequente requerendo o prolongamento do prazo do contrato, o que não foi aceite apesar de o comercial da exequente, responsável pela apresentação da proposta e negociação, ter criado no executado a certeza de que, se por algum motivo não conseguisse cumprir com a quantidades contratada, se poderia sempre alargar o prazo contratual. Mais alegou que não houve incumprimento definitivo do contrato, a interpelação da exequente de 2021 não especifica o incumprimento que despoleta a resolução contratual e a exequente actua com abuso do direito.
A embargada foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência dos embargos e alegando para o efeito que não tem conhecimento da entrega de qualquer máquina de café, que não houve qualquer alteração anormal das circunstâncias porque o executado sempre comprou quantidades muito inferiores às que estavam contratadas e trespassou um dos estabelecimentos sem se assegurar que o trespassário continuaria a consumir, razão pela qual, depois de muito ter tentado que o executado começasse a cumprir o contrato, através de interpelações admonitórias de 21/07/2020 e de 27/07/2021, a exequente teve de proceder à resolução contratual por incumprimento ao abrigo das cláusulas 4ª, 5ª e 6ª do contrato, o que comunicou ao executado por carta registada de 18/10/2021. Refutou ainda que esteja a actuar em abuso do direito.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo os embargos sido julgados improcedentes e ordenado o prosseguimento da execução.
Do assim decidido, o embargante interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. O presente recurso é interposto por não se concordar com a sentença que julgou os embargos improcedentes e, em consequência, determinou que a execução prosseguisse os seus ulteriores termos.
B. Este tem por objecto matéria de direito e matéria de facto para demonstração da errada interpretação e aplicação do direito no tocante à decisão proferida na 1.ª instância nos termos dos artigos 607.º, n.º 4, e 615º, n.º 1, alínea c) e d) do Código de Processo Civil.
C. A matéria de facto com a reapreciação da prova testemunhal gravada em sede de julgamento e da prova documental, com inerente alteração da factualidade provada e ainda, em matéria de direito, para a demonstração da errada interpretação do direito substantivo tudo tendo em conta: - Da convicção formada pelo tribunal quanto aos factos dados como provados e não provados nomeadamente quanto aos depoimentos dos intervenientes, conjugado com a prova documental junta aos autos; - Da recusa da audição de uma testemunha arrolada pelo recorrente; - A imputação dos valores a serem pagos; - A aplicação ou não do instituto da alteração superveniente das circunstâncias: a questão da mora.
D. Para um melhor entendimento factual resume-se o caso sub judice: as partes celebraram um contrato de parceria comercial em 24 de Maio de 2018 para os dois estabelecimentos comerciais do recorrente: Cafetaria B... e Café C....
E. O contrato consistia no consumo exclusivo do café da recorrida, nos dois estabelecimentos, no total de 3600kg, por 60 meses (5 anos), com o mínimo de 60 kg mensal, com um desconto de 11.30 € o kg, liquidado com entrega de equipamento no valor de 15.300,00 €, transferência bancária de 25.000,00 € e 376,68 € de valor residual das máquinas.
F. Acresce ainda a publicidade à marca da recorrida.
G. Todavia, encerra-se o Café B..., e temos a pandemia no início do ano de 2020 que afectou gravemente o sector do recorrente: a restauração.
H. Apesar dessas circunstâncias e de sempre ter cumprido com as restantes obrigações a recorrida interpela em 2020 e depois 2021 o recorrente da resolução do contrato por incumprimento, preenchendo a letra em branco que servia de garantia ao contrato, e que é o título executivo da presente execução.
I. O tribunal a quo, com o devido respeito, entendeu que este comportamento é conforme a boa-fé e o Direito e que não se aplica aqui o instituto da alteração superveniente das circunstâncias, 437.º, n.º 2 do CC, por estar anteriormente o recorrente em mora, com o que não pode o recorrente concordar alicerçado na prova documental e testemunhal trazida aos autos e correcta aplicação do Direito.
J. Questão prévia: junção de documento a título excepcional segundo o artigo 651.º do CPC – o recorrente acreditou desde sempre que a justificação para a falta de conhecimento da carta por si enviada em resposta à primeira interpelação, explicando os motivos do incumprimento provisório, e pedindo o prolongamento do prazo de cumprimento do contrato, foi por não ter sido recebida e não por não ter sido enviada.
K. O que não se compreende, pois, em juízo a Exma. Magistrada referiu-se ao texto da carta, aceitou a existência da mesma, ouviu inclusive o envio registado da mesma em declarações de parte e nunca o questionou, veja-se a gravação n.º 31 20230508104123_16298412_2871477, na audiência de julgamento de dia 8.5.23, 9h30, minutos 21:57 a 22:16 e 23:49 a 24:12.
L. Todavia, aquando da leitura da sentença, percebe pelo ponto 3.2.5. dos factos não provados e pelo parágrafo 11 da Motivação que não se considerou provado sequer o envio.
M. Ora, este facto, tornou-se novidade e foi decisivo para a sentença que agora se recorre, pela sua pertinência no enquadramento da alteração superveniente das circunstâncias e, atendendo, que deveria o tribunal, pelo poder do inquisitório, e o poder-dever do juiz, ter inquirido para a junção daquele documento em tempo, para apurar de forma justa a verdade e aplicar correctamente o Direito, requer-se a aceitação do comprovativo de envio da carta identificada como doc. n.º 2 da peça dos embargos de executado com ref. CITIUS 33787758.
N. E neste sentido os Ac.: Tribunal da Relação de Coimbra de 18.11.14, proc. 628/13.9TBGRD.C1, rel. Teles Pereira: “(…) I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional (…) VI – Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do artigo 32 651º, nº 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.”, e do Tribunal da Relação do Porto de 23.4.2020, p. 6775/19.6T8PRT-A.P1, rel. Filipe Caroço: “(…) III - A ratio legis da norma do art.º 644º, nº 2, al. d), do Código de Processo Civil, estende-se também aos despachos que, oficiosamente, determinem a produção de um meio de prova (não indicado pelas partes). V - O tribunal deve ordenar oficiosamente diligências de prova se se convencer da sua necessidade para o apuramento da verdade e justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é lícito conhecer, contanto que essa sua intervenção, no caso concreto, não constitua uma forma de supressão de omissão gravemente negligente das partes no cumprimento do dever de requerer as provas no momento próprio e violação dos princípios da igualdade e da auto-responsabilidade das partes. (…)”.
O. Impugnação de matéria de facto com interesse para a impugnação de Direito: a alteração superveniente das circunstâncias e o abuso de direito.
P. O facto 3.1.16 dado como provado e o não provado 3.2.3 entram em contradição, verificando-se a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC.
Q. A ideia chave é a de que os consumos celebrados foram para dois estabelecimentos e um deles deixou de consumir e de estar na propriedade e gestão do recorrente.
R. É dado como provado o trespasse, mas não o encerramento, o que se torna confuso e incoerente e não se retirando daí a devida conclusão: diminuição de consumo do café acordado.
S. E isto deveria vir nos factos provados e na motivação da sentença, veja-se o testemunho do sr. BB, director comercial da recorrida, que confirma o trespasse e fim de consumo pelo Café C..., naquela audiência de julgamento de dia 8.5.23, às 9h30, gravação nº 20230508094930_16298412_2871477, minutos 04:18 e 05:59 a 06:22 e ainda confere que sendo para dois estabelecimentos, seria fazível aquele contrato – o que, a contrario, reconhece não ser possível – minutos 04:14 a 04:25.
T. Por outro lado, ficou claro em tribunal que existiu quebra de consumo de café durante os anos de 2020, 2021 e 2022, devido às contingências para o controlo da COVID-19, dando-se como provado os factos 3.1.19 e 3.1.20, a prova documental junta na contestação da recorrida, no doc. 1, peça CITIUS com ref. 34170725 e prova testemunhal da declaração de parte do recorrente, e das testemunhas CC, administrativa e funcionária da recorrida e DD, vizinha e cliente do recorrente, que vem mal identificada na sentença no parágrafo 13 da Motivação - a quebra de consumo de café e as dificuldades vivenciadas durante os anos de 2020 e 2022.
U. Concretamente, identificação das passagens da audiência de julgamento de dia 8.5.23, 9h30: Declaração de parte do recorrente, gravação n.º 20230508104123_16298412_2871477, minutos 35:07 a 35:20; Testemunha CC – Gravação n.º 20230508101545_ 16298412_2871477, minutos 12:25 a 12:46. Testemunha DD - Gravação n.º 20230508103123_16298412_2871477 – minutos 04:22 a 05:44.
V. Todavia, apesar destes factos dados como provados conclui a sentença, no Direito, nos parágrafos 26 a 28:” que a incapacidade em fazer face ao cumprimento das prestações devidas em razão do mutuo celebrado e que constitui o titulo executivo se verificou antes da enorme constrição da economia motivada pelas medidas adoptadas para controlar a pandemia (D.L. 1-A/2020 e demais legislação contemporânea), a limitação de transferência de divisas era, ou podia ser, conhecida da embargante à data da celebração do mútuo, não tendo por fundamento a pandemia. Assim, sendo o incumprimento anterior à pandemia, a embargante não pode opor ao embargado a alteração das circunstâncias decorrentes da mesma- artº 438º, do C.C., pelo que o contrato se tem por validamente resolvido. Improcede, pois, o alegado.”.
W. Ora, para existir uma aplicação justa, equitativa, sem abuso do Direito, na averiguação do incumprimento anterior, teria sempre de se fazer três correcções: aqueles valores nunca seriam consumidos por um só café, devendo ser reduzidos, não existiu tempo suficiente para compreender se o contrato poderia ser cumprido e os momentos escolhidos para as interpelações – 2020 e 2021 – não são inocentes.
X. A liberdade contratual é alheia a amarras, artigo 405.º do CC, mas também é pautada por princípios norteadores sob pena de esquecermos o bom senso e a boa-fé – exemplo dos artigos 227.º e 334.º do CC, tendo sido estas normas violadas pelo tribunal de primeira instância ao não olhar para a situação e contrato em discussão.
Y. E isto é claro na nossa jurisprudência no Sumário do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 4.4.17, p. 896/13.6TBCTB.C1, rel. Vítor Amaral: “(…) 7. - O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objectivas de comportamento – de correcção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objectivos, postulando certos modos de actuação em relação, seja na fase pré-contratual, seja ao longo de toda a execução do contrato, incluindo na extinção e liquidação da relação, designadamente para exercício do direito de denúncia do contrato de concessão comercial.(…)”.
Z. Em audiência de julgamento foi recusada a audição da testemunha EE, por se entender poder ser parte, visto ser esposa, casada em regime de comunhão de adquiridos e gerir o café, de acordo com o artigo 496.º do CPC.
AA. Todavia, olvida-se o tribunal a quo de que estamos a discutir um contrato que foi celebrado entre o recorrente e a recorrida, em que a testemunha não é parte, não correndo, nem sendo obrigatório correr, contra ela a execução.
BB. Uma coisa são as consequências da execução se prosseguir para ambos os cônjuges, onde poderá ser parte, outra, a discussão das circunstâncias do contrato, onde não é 36 parte, mas sim testemunha, por ter ouvido alguma das informações prestadas pelos comerciais da recorrida e, essencialmente, por conhecer o recorrente e conseguir trazer a tribunal uma justificação para o seu comportamento que foi entendido como displicente, onde até se questionou a sua escolaridade, e que contribuiu para a decisão que lhe é desfavorável.
CC. Como se pode ler no 12.º parágrafo da Motivação da sentença e em audiência de julgamento de dia 8.5.23, às 9h30, nas declarações de parte, gravação n.º 20230508104123_16298412_2871477, minutos 22:22 a 22:30, 28:46 a 29:13.
DD. Quanto à recusa da audição da testemunha na audiência de julgamento de dia 8.5.23, 9h30, gravação 20230508101253_16298412_2871477, início até 00:53.
EE. Pelo que, sob pena de não conseguir ser ouvida por não ser parte, ou testemunha, e com informação importante para a correcta decisão da causa, deveria o tribunal aceitar o seu depoimento, o que ao não se realizar, fez com que se violasse o artigo 495.º do CC.
FF. Quanto aos valores a serem pedidos pela recorrida a sentença não se pronunciou relativamente ao pedido alternativo dos embargos de executado, requerendo uma modificação dos valores peticionados, caso a execução prosseguisse, violando o artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
GG. Vejamos que o desconto no café, no valor de maquinaria e equipamento, totalizando 15.300, 00 €, está garantido pela reserva de propriedade dos mesmos até final de contrato, tal como no ponto 3 da Cláusula Terceira do contrato de parceria 37 comercial – cf. doc. n.º 2 do requerimento executivo aos embargos de executado, ref.ª. Citius 33458628.
HH. Uma das hipóteses apresentadas pelo recorrente foi a devolução da maquinaria descontando-se esse valor ao total a ser pago, indo de acordo até ao que é dito no ponto 9 da interpelação da recorrida de 18.10.21 - cf. doc. N.º 4 do requerimento executivo, ref.ª Citius 33458628 – veja-se o pedido: (…) ou, só se tal não for possível,:- Requer o Executado a resolução do presente contrato, entregando o valor de 25.000, 00 € que lhe foi mutuado, o valor que usufruiu de desconto (proporcional ao café por si adquirido até à data da resolução do contrato) e todos os bens que são da Exequente e que se encontram em sua posse, não tendo mais nenhum valor a entregar e desvinculando-se para sempre destas suas obrigações. “(peça n.º 33787758 CITIUS).
II. Ora, a sentença é completamente omissa, declarando que deverá a execução prosseguir, e nada é dito quanto à redução do valor a ser executado ou do pedido alternativo,
JJ. A equidade e justiça deverão sempre reger as decisões judiciais e estar presentes e, especificamente, no regime da alteração superveniente das circunstâncias do artigo 437.º do CC: “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”.
KK. Se a presente situação não é um caso claro onde se deverá aplicar estes juízos de equidade depois de se dar como provado que as condicionantes do COVID-19 são aptas a ser consideradas como alteração superveniente das circunstâncias, não sabemos qual será.
LL. E neste sentido, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 1.10.14, p. 2656/04.6TVLSB-A.L2-6, rel. Vítor Amaral, sumário: (…) “4. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a colmatar as incertezas do material probatório, bem como a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio ou na mera superação da falta de prova de factos que pudessem ser provados.
MM. Olhando para toda a situação apresentada: a prova acarretada nos autos, os factos dados como provados e já referidos, quanto ao término de consumo por um dos cafés, as condicionantes do COVID que afectaram o negócio, as datas das interpelações, o silêncio e inflexibilidade da recorrida, o curto tempo decorrido do contrato, a se considerar procedente a execução, nunca deveria ser pela totalidade da execução.
NN. Aqui deveria o tribunal a quo proceder ao desconto daquele valor da maquinaria mediante a sua entrega e obrigando o recorrente, no limite, a devolver o desconto do café, cumprindo-se os juízos de equidade gerais e ainda do artigo 437.º do CC.
OO. Finalmente, o que menos se compreende e que, de facto, surpreende nesta decisão, é que após dada como provada a situação da alteração superveniente das circunstâncias, não aplica o seu regime por entender que existia anteriormente mora.
PP. O artigo 805.º, n.º 1 do CC diz-nos que só existe mora após interpelação ao devedor (ao não deixar correr os 5 anos do prazo do contrato, esta exigência mantém-se e não se aplica nenhuma das excepções desta norma), assim, comprovando-se que a primeira interpelação foi em 2020 (recusando que as facturas com valores de consumíveis possam valer como tal), a mora verifica-se exactamente aquando da alteração superveniente das circunstâncias: 2020.
QQ. Assim, há um erro do tribunal de 1ª instância de aplicação do Direito ao afastar o instituto por o recorrente já estar anteriormente em mora, pois o não estava, e ao decidir desta forma viola os artigos 437.º, 438.º e 805.º, n.º 1 do CC.
RR. E neste sentido o Ac. do Tribunal da Relação de do Porto de 4.11.19, p. 7402/16.9YIPRT.P1, Eugénia Cunha, sumário: (…) “I - Verifica-se mora do devedor na situação em que a prestação, possível, não foi realizada no tempo devido, por facto imputável ao devedor. II - A determinação do tempo de cumprimento é de primordial importância, para determinar o momento de constituição em mora, que marca o desencadear das consequências que lhe estão associadas. III - Tais momentos estão assinalados no art. 805º, do Código Civil, que regula o “tempo do cumprimento”, consagrando, como regra a despoletar a mora, o princípio da essencialidade da interpelação - em que a constituição em mora não opera de per si, mas está dependente da iniciativa do credor (mora ex persona) - (nº1) e prevendo excepções - situações em que a mora debitoris surge por si, independentemente daquela iniciativa (mora ex re) - (nº2), ressalvando, destas situações que, em princípio, desencadeariam a mora ex re, as hipóteses de iliquidez do crédito (não se gerando mora do devedor em função da falta de liquidez da obrigação, por o credor não adoptar o comportamento necessário ao cumprimento). IV - Interpelado judicialmente, pela citação, o devedor para pagar uma quantia certa e determinada dá-se a sua constituição desde em mora - mora ex persona.(…)”.
SS. Pelo exposto, a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alínea c) e d) do CPC e 227.º, 334.º, 437.º, 495.º, 805.º, n.º 1 do CC.
Termos em que se requer que V.Exas. se dignem a nos demais termos de Direito que doutamente suprirão, dar como provado o presente recurso e: Declarar a nulidade da sentença proferida na 1.ª instância nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alínea c) e d) do Código de Processo Civil; Declarar a descida da decisão à 1ª instância para aquela declarar a procedência dos embargos de executado e aplicar o instituto do artigo 437.º do CC, pronunciando-se sobre os pedidos apresentados, aplicando-se correctamente o Direito e evitando a violação dos artigos 227.º, 334.º, 437.º, 495.º, 805.º, n.º 1 do CC.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se pode ser admitido o recurso da decisão de recusa de produção de um depoimento.
ii. Se é admissível a junção de um documento com as alegações de recurso.
iii. Se a sentença recorrida enferma de nulidades.
iv. Se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve ser admitida.
v. A sanação de deficiências da fundamentação de facto.
vi. Se os pressupostos da figura da alteração anormal das circunstâncias estão preenchidos.
vii. Se está demonstrado o incumprimento definitivo do contrato.
viii. Qual é o direito da exequente sobre as máquinas e equipamentos entregues ao executado.
ix. Se está demonstrado que o preenchimento do título executivo é abusivo por o respectivo valor não corresponder exactamente aos direitos emergentes do incumprimento do contrato por parte do executado.

III. 1ª questão prévia: da não admissão de um depoimento:
Embora sem daí extrair consequências ao nível do processo (a anulação da sentença e a reabertura da audiência para produção do meio de prova recusado e prática subsequentes dos ulteriores termos do processo), nas conclusões Z a EE o recorrente insurge-se contra o facto de não ter sido permitida a produção do depoimento da testemunha por si arrolada EE.
Esta questão não pode, contudo, ser objecto do presente recurso e aqui apreciada.
Com efeito, a decisão de não permitir que determinada pessoa preste depoimento na qualidade de testemunha (ou noutra qualidade qualquer) é uma decisão de rejeição de um meio de prova.
Dessa decisão cabia, portanto, nos termos da parte final da alínea d), do n.º 2, do artigo 644.º do Código de Processo Civil, recurso de apelação autónomo, não podendo tal decisão ser impugnada somente no recurso da decisão final (n.º 3 da mesma norma, à contrário).
Acresce que a parte que requereu a produção do meio de prova recusado dispunha do prazo de 15 dias para interpor apelação autónoma dessa decisão (artigo 638.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Tal prazo mostrava-se esgotado há muito quando foi interposto recurso da sentença final.
Nesse sentido, esta questão não pode ser e não será apreciada no presente recurso

IV. 2ª questão prévia: da junção de documento com as alegações de recurso:
Com as alegações de recurso o recorrente apresentou um documento constituído pelo talão de aceitação pelos CTT de correspondência dirigida pelo executado a FF, mandatário da exequente, no dia 08-11-2021, e respectivo comprovativo de pagamento, referindo que só com a motivação da decisão sobre a matéria de facto se tornou necessário esse documento já que até esse momento ninguém questionava o envio da carta correspondente.
A junção de documentos com as alegações de recurso está regulada nos artigos 425.º e 651.º do Código de Processo Civil, os quais fixam os casos em que essa junção é permitida às partes.
Nos termos da primeira destas disposições legais, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Nos termos da segunda, as partes apenas podem juntar documentos às alegações naquela situação e ainda o caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
A primeira situação que torna admissível a junção reporta-se aos documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes. São supervenientes os documentos produzidos depois do encerramento da discussão na primeira instância e, bem assim, aqueles cuja existência, apenas foi conhecida pelo apresentante depois desse momento, apesar de terem sido produzidos anteriormente. No caso esta possibilidade não se coloca porque o documento não é nem objectiva nem subjectivamente superveniente.
Quanto à segunda situação que pode permitir a junção, a solução depende do que se deve entender por junção tornada necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
A jurisprudência e a doutrina sempre convergiram na ideia de que a previsão normativa se reporta às situações em que a 1.ª instância conhece oficiosamente de uma questão que não estava suscitada ou tratada pelas partes, toma em consideração meio de prova inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou se baseia em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado (por todos, Antunes Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 115,º, pág. 95 e segs., e Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1ª edição, pág. 517).
O que releva é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência.
Ora, no caso, cremos estar perante uma dessas situações.
Na petição inicial dos embargos o embargante alegou no artigo 17.º ter informado a embargada das circunstâncias pelas quais não estava a adquirir as quantidades de café contratadas, mencionado a carta em questão. Na contestação, a embargada nada disse de específico em relação a essa carta, limitando-se a impugnar, conjuntamente com outros artigos, o artigo 17.º da petição inicial e bem assim a «impugnar» esse documento. Por outras palavras, a embargada não alegou que a carta não lhe tivesse sido enviada ou não a tivesse recebido.
Por outro lado, na motivação da decisão sobre os factos que julgou não provados o tribunal a quo limitou-se a assinalar que «não resulta dos autos comprovativo da recepção (ou envio) do manuscrito junto como doc. 2 ao requerimento de embargos à embargada» sem explicar porque estava a levantar essa questão quando a mesma não vinha colocada nos articulados, sendo certo que se entendia que esse documento era necessário devia previamente informar as partes dessa sua posição, dando oportunidade a ambas as partes para esclarecerem a sua posição em relação a esse facto instrumental e à parte interessada na sua demonstração para juntar o documento.
Nessa circunstância a recorrente não tinha como prever antecipadamente que o tribunal, ao contrário da própria parte interessada, consideraria esse documento indispensável para prova do envio da carta. Por esse motivo, está verificada a situação excepcional da segunda parte do n.º 1 do artigo 651.º do Código de Processo Civil que consente a junção de documentos com as alegações de recurso, razão pela qual se admite essa junção.

V. Nulidades da decisão recorrida:
O recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Na tese do recorrente existe uma contradição entre um facto julgado provado [um dos estabelecimentos foi trespassado, não tendo o trespassário continuado a consumir café fornecido pela embargada] e um facto julgado não provado [um dos estabelecimentos comerciais, o Café C..., teve de ser fechado], daí resultando a apontada nulidade.
Nos termos da disposição citada pelo recorrente, a decisão é nula quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Por isso, com todo o devido respeito, a tese do recorrente é duplamente incorrecta.
Em primeiro lugar porque a contradição entre factos não gera a nulidade da sentença. Quando muito, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, pode conduzir à anulação da decisão[1] quando a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto seja contraditória e não constem do processo todos os elementos de prova produzidos que permitam a alterar essa decisão. Se constarem, nem sequer se anula a decisão, cabendo ao tribunal de recurso eliminar a contradição, modificando a decisão.
Em segundo lugar porque a apontada contradição não existe. A não prova de um facto não determina a prova do facto inverso ou contrário; ela apenas acarreta a consequência de tudo de passar como se esse facto não tivesse sido sequer alegado. Por isso, em regra, um facto julgado não provado não pode gerar contradição ou incompatibilidade com qualquer facto julgado provado. Essa contradição só é possível nas situações excepcionais em que estejamos perante o mesmo facto ou perante um facto que seja consequência directa e necessária do outro.
Os factos em questão são, aliás, perfeitamente compatíveis entre si e o seu sentido perfeitamente inteligível. Uma coisa é o estabelecimento ter sido trespassado a um terceiro que passou a ser o titular e explorador do mesmo (ou seja, não foi encerrado pelo embargante, foi alienado por este) e outra coisa é o estabelecimento ter sido encerrado, ou seja, fechado, deixado de funcionar. Se foi julgado provado que foi trespassado faz todo o sentido que tenha sido julgado não provado que foi encerrado, sendo certo que o que importa é a actuação do embargante e por isso não tem relevo a hipótese de ele ter sido encerrado pelo trespassário depois do trespasse.
Depois o recorrente defende que a sentença é nula nos termos da alínea d) da mesma norma legal porque nela o juiz não se pronunciou sobre o pedido alternativo do embargante de modificação dos valores exigíveis pela embargada.
Efectivamente, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Será o caso? A nosso ver e salvo melhor opinião, não.
Com todo o devido respeito, o recorrente confunde as coisas. Os embargos não são uma acção em sentido próprio e não têm pedido; os embargos são o meio de oposição à execução e por isso o seu objecto é a extinção total ou parcial da execução. Os embargos de executado são, em bom rigor, um processo de natureza declarativa que corre por apenso ao processo de execução e que tem por objectivo o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto da acção executiva.
O seu objectivo, no caso de o executado querer pôr em causa o direito de crédito invocado pelo exequente, é a declaração da sua não existência, através da invocação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos, com a amplitude de que disporia se estivesse a defender-se numa acção declarativa. Os seus fundamentos podem ter natureza processual – relativos à instância executiva – ou substantiva – relativos ao direito propriamente dito – desde que que tenham a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir a instância processual (executiva) ou o direito (em execução).
Nessa medida aquilo de que cumpre conhecer da sentença que julga os embargos não é dos «pedidos» indevidamente formulados na conclusão dos embargos, mas sim dos fundamentos alegados na petição inicial de embargos através dos quais o embargante reclama a extinção total ou parcial da execução.
No caso, que fundamentos são esses? A alteração anormal das circunstâncias e o abuso do direito. Sobre esses fundamentos o juiz a quo pronunciou-se de forma clara na sentença, recusando o preenchimento dos pressupostos dos dois institutos e consequentemente rejeitando que por efeito dos mesmos o contrato pudesse ser modificado e, consequentemente, modificadas as prestações exigíveis pela contratante exequente.
As pretensões do embargante (os «pedidos» com que conclui a petição inicial) não valem por si mesmas, sem fundamento jurídico que as suporte, e esse fundamento, de acordo com o alegado pelo embargante, são aqueles institutos, bem como o clausulado do próprio contrato (a questão das máquinas entregues), razão pela qual, bem ou mal, a sentença recorrida pronunciou-se sobre as questões de que devia conhecer, não sendo nula.
Improcede assim a arguição da nulidade da sentença.

VI. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O recorrente diz pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Todavia, embora se depreenda que terá sido essa a sua intenção, é fácil de mostrar que não cumpriu os requisitos específicos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Conforme temos vindo a escrever demasiadas vezes, tantas vezes a falha é cometida apesar da jurisprudência consolidada sobre o assunto, para haver impugnação da decisão sobre a matéria de facto não basta que o recorrente diga que deduz essa impugnação. É sim indispensável que o recorrente manifeste a vontade de que a decisão relativa à matéria de facto seja alterada e, para o efeito, sustente que essa decisão está errada, que os meios de prova foram avaliados de forma incorrecta, que foi produzida prova em função da qual determinado facto deve ser julgado de modo diferente, e, por fim, especifique a decisão que pretende que sobre ele seja proferida.
Havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, rectius, manifestada a pretensão acima descrita, coloca-se então a questão de saber se estão cumpridos os respectivos requisitos, o que inclui a questão de saber onde devem eles mostrar-se cumpridos.
Estipula, com efeito, o artigo 640.º do Código de Processo Civil que para impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Para cumprir essa exigência, o recorrente deve individualizar os factos que estão mal julgados, especificar os meios de prova concretos que impõem a modificação da decisão, indicar a decisão a proferir e, tratando-se de depoimentos de testemunhas gravados, precisar as passagens do depoimento que tal hão-de permitir.
A individualização dos factos pode ser feita de vários modos, mas, no mínimo, o modo como o recorrente enuncia a sua escolha tem de ser tal que não sobrem dúvidas razoáveis sobre o facto cuja decisão é impugnada, uma vez que não cabe à Relação decidir ela mesma face às alegações apresentadas qual ou quais os factos cujo julgamento pode reapreciar e cuja decisão pode alterar, vigorando nesse particular sem reservas o princípio do dispositivo.
Também o requisito na indicação da decisão a proferir não é cumprido se apenas se mencionar que a decisão é errada e deve ser alterada. É indispensável indicar como deve então ser decidido o facto, qual a decisão que o tribunal deve proferir, qual a redacção que deve ser dada ao respectivo enunciado de facto.
Por outro lado, as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir (artigo 639.º do Código de Processo Civil).
Constitui jurisprudência firme que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das alegações de recurso, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se estas forem de conhecimento oficioso e contenderem com o objecto do recurso (artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil).
A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas, e não propriamente do corpo das alegações (ainda que estas possam servir para interpretar aquelas) que se devam interpretar e balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado.
Diga-se ainda que o Supremo Tribunal de Justiça tem uma posição clara e firme quanto a quais e qual ao local onde os requisitos específicos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto devem ser cumpridos para que se possa falar em cumprimento válido (nas conclusões das alegações) e quanto à consequência do seu incumprimento (a imediata rejeição do recurso, nessa parte, sem qualquer convite ao aperfeiçoamento) – cf., entre muitos outros, os Acórdãos de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, de 18.02.2016, proc. n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03.03.2016, proc. n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12.05.2016, proc. n.º 324/10.9TTALM.L1.S1, de 07.07.2016, proc. n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, de 27.10.2016, proc. n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 13.10.2016, proc. n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, de 22.02.2017, proc. n.º 1512/07.0TBCSC.L1.S1, de 22.03.2018, proc. n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1, de 16.05.2018, proc. nº 2833/16.7T8VFX.L1.S1, de 05.09.2018, proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, de 31.10.2018, proc. n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1, de 22.11.2018, proc. n.º 2337/06.6TBTVD.L1.S2, de 19.12.2018, proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1.S1, de 13.01.2022, proc. n.º 417/18.4T8PNF.P1.S1, de 18.01.2022, proc. n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1, todos in www.dgsi.pt –.
A posição do Supremo Tribunal de Justiça, que é igualmente a nossa, é a de que para cumprir minimamente os requisitos específicos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e permitir que essa seja uma das questões a apreciar pelo tribunal de recurso, o recorrente tem de indicar, nas conclusões das alegações de recurso, pelo menos, os concretos pontos da matéria de facto cuja decisão pretende ver modificada e o sentido da decisão que deve ser proferida sobre eles (os restantes requisitos podem estar cumpridos apenas no corpo das alegações). A ausência dessas indicações nas conclusões das alegações é motivo de rejeição imediata da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Tendo estas ideias presentes cremos dever concluir que no caso as conclusões das alegações de recurso não cumprem minimamente as exigências acabadas de assinalar.
Com efeito, ao longo das suas alegações o recorrente mostra essencialmente a sua divergência em relação às conclusões que o tribunal a quo retirou na fundamentação de direito da sentença recorrida. Em nenhuma conclusão das alegações de recurso encontramos individualizado qual o facto concreto que o recorrente pretende que seja julgado provado, qual a respectiva redacção que propõe.
Percebe-se que a sua argumentação gira em torno da circunstância de ter ficado apenas com um estabelecimento comercial para comercializar o café da autora e de o consumo de café ter diminuído na época do Covid-19.
Porém, encontra-se provado nos pontos 16, 19 e 20, precisamente que um dos seus dois estabelecimentos foi trespassado, não tendo o trespassário continuado a consumir café da embargada, que o outro estabelecimento teve de ser fechado por dois meses em 2020 e três meses em 2021 por motivos relacionados com a pandemia e que quando reabriu houve redução do consumo de café durante aquela época.
Daí que não se retire das conclusões das alegações (nem aliás do corpo das mesmas) que outro facto pretende o recorrente que seja julgado provado ou mesmo se pretende ao invés que algum dos provados seja julgado não provado. Aliás, se virmos a petição inicial dos embargos foram esses mesmos factos que o embargante alegou e não outros (!).
Em suma, não se mostram cumpridos os requisitos mínimos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que o recorrente tinha de ter observado nas suas alegações: não se indicam (nem se deixam adivinhar) os factos concretos cuja decisão se pretende ver alterada, nem a decisão que sobre eles deve ser proferida (o que e como deve ser decidido).
Por esse motivo, impõe-se a rejeição da impugnação de tal decisão, o que aqui se decide.

VII. Das deficiências da matéria de facto:
A fundamentação de facto da sentença, para além de não se encontrar na devida ordem cronológica, padece de deficiências que comprometem a sua leitura e interpretação.
Tais deficiências são passíveis de sanação oficiosa nos termos do artigo 662.º, n.º 1, alínea c), à contrário, do Código de Processo Civil, visto que recaem sobre o teor de documentos juntos aos autos e não impugnados pelas partes.
Assim, no ponto 5 não se especifica a data da carta quando essa data é fundamental para efeitos de determinação do momento da resolução do contrato, o que, na tese do embargante, contende com a apreciação de outro dos fundamentos dos embargos.
A redacção do ponto deve assim passar a incluir a data (18-10-2021) que se encontra no próprio documento junto com o requerimento executivo como doc. 4.
Por outro lado, no ponto 17 juntam-se duas cartas de datas distintas, mas o texto que se reproduz é de apenas uma delas, no caso a primeira, dando-se a entender que a segunda tem a mesma redacção, o que não é verdade, de acordo com os documentos juntos com a contestação sob os nºs 2 e 5.
Desse modo, o referido ponto deve ser decomposto em dois, o primeiro reproduzindo a primeira carta, e o segundo reproduzindo a segunda carta.
Estas modificações são introduzidas de seguida na fundamentação de facto.

VIII. Fundamentação de facto:
1. A exequente deu à execução como título executivo uma letra de câmbio, no valor de €125.621,91 (cento e vinte e cinco mil seiscentos e vinte e um euros e noventa e um cêntimo), emitida e vencida em 09/11/2021.
2. Tal letra de câmbio foi sacada pela exequente e aceite pelo executado e representa o valor devido à exequente em consequência de incumprimento contratual/resolução de contrato comercial firmado entre aquela e o executado.
5. Por carta registada, com a aviso de recepção, dirigida ao executado, datada de 18-10-2021, junta com o requerimento executivo como doc. 4 e aqui dada como reproduzida, a exequente declarou:
Na qualidade de mandatário da “A..., Lda.”, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua ..., .... ... ... - Maia, venho pela presente, comunicar a V Exa quanto segue:
1. Através do contrato supra identificado, celebrado em 24/05/2018, V Exª obrigou-se, para além do mais, a adquirir à M/ Constituinte, a quantidade mínima de 3.600 (três mil e seiscentos) Kg de café, fraccionados pelo período de 60 meses, em quantidades mensais mínimas de 60 (sessenta) Kg de café, marca ..., Lote “...” (conforme consta das Cláusulas Primeira e Quarta, do supra identificado contrato);
2. Acontece que: no ano de 2018 e no período correspondente a 8 meses, V Exª apenas adquiriu 182 Kg de café, quando a quantidade mínima era (e é) de 480 Kg de café; no ano 2019, V. Exª apenas adquiriu 205 Kg de café; no ano 2020, V. Exª apenas adquiriu 115 Kg de café, quando em tais períodos, a quantidade mínima era (e é) de 720 Kg de café, por cada ano; no ano 2021, e no período de correspondente a 9 meses, V Exª apenas adquiriu 65 Kg de café, quando em tal período, a quantidade mínima era (e é) de 540 Kg de café;
3. Assim, e nos períodos supra-referidos no número anterior, a quantidade de café por V. Exª adquirida foi de 567 Kg;
4. Atenta a Cláusula Quarta, Cláusula Quinta e Cláusula Sexta, do supra identificado contrato, ocorreu incumprimento contratual de V Exª que fundamenta a resolução do mesmo contrato, que pela presente via vos é comunicada;
5. Em consequência de tal resolução, e conforme estipulado na Cláusula Sexta, nº 1, a M/ Constituinte tem direito de receber “o valor do café em falta, de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo”;
6. Desta forma, e dado que a quantidade mínima de café a adquirir por V Exª era (e é) de 3.600 Kg. e V. Exª apenas adquiriu 567 Kg. ocorre um diferencial de 3.033 Kg de café, com o que, o valor devido à M/ Constituinte, é de €69.061,41 (3.033 Kg x €22.77/Kg), ao qual acresce IVA, à taxa de 23%, do valor de €15.884,12, o que dá um total de €84.945,53;
7. Por outro lado, e conforme Cláusula Terceira, nº 1, do aludido contrato, foi concedido a V. Exª “um desconto de €11,30 por cada Kg.”, a que V. Exª se vinculou (3.600 Kg), a ser pago, através do fornecimento de diverso equipamento e material (discriminado na referida cláusula), no estado de novo, e do valor global de € 40.676,38 sendo que, e conforme alínea a), €25.000,00 por transferência bancária e €15.300,00 em equipamento, conforme alínea b) e €376.38, conforme alínea c);
8. Atento o incumprimento do contrato sob referência, por parte de V Exª. e tendo em conta o constante da Cláusula Terceira, nº 3, o material e equipamento entregue a V. Exª, mantém-se propriedade da M/ Constituinte, até emissão do documento previsto na alínea c) do nº 1, da mesma Cláusula, sendo V. Exª “responsável pela sua utilização, conservação e reparação, a expensas próprias sem qualquer direito de retenção ou compensação, obrigando-se a não as deslocar e autorizar o seu levantamento;
9. Dado que V. Exª não procedeu à entrega do material e equipamento, a M/ Constituinte, tem direito a receber, o valor de €40.676,38;
10. Assim, o valor em divida à M/ Constituinte, é, nesta data, de €125.621,91 (€84.945,53 + €40.676,38);
11. Conforme é do absoluto conhecimento de V. Exª, foi entregue à M/ Constituinte uma letra de câmbio, em branco, cujas condições de preenchimento, são também do absoluto conhecimento de V Exª;
12. A referida letra de câmbio mostra-se aceite por V Exª;
13. Pela presente, comunico a V. Exa que tem o prazo de 10 dias, a contar da data de recepção da presente, para proceder ao pagamento à M/ Constituinte, do referido valor de €125.621,91, pagamento esse, que deverá ser feito, por depósito ou transferência para o IBAN ...;
14. Caso tal pagamento não sobrevenha, a M/ Constituinte irá proceder ao preenchimento da letra de câmbio, que tem na sua posse, e, com base nela, irá instaurar a competente acção executiva, com penhora imediata de bens (imóveis e móveis), propriedade de V. Exª.
6. A missiva id. em 5. foi efectivamente recebida pelo executado.
7. O executado assinou o documento de autorização para preenchimento da letra de câmbio, em caso de incumprimento contratual/resolução, e pelo valor global da dívida, à aqui exequente.
8. O contrato denominado de “parceria comercial”, foi realizado pelo embargante e pela aqui embargada na data de 24 de Maio de 2018.
9. Nele foram contratualizadas entre outras obrigações, a venda de 3.600 kg de café, fraccionados em 60 meses, isto é, 60 kg de café por mês.
11. Conforme alínea B da “parceria comercial”, as obrigações de aquisição foram definidas pelas expectativas do embargante.
12. A embargada comprometeu-se, e entregou ao embargante, um valor global de €40.676,38, conforme cláusula 3, referente:
Designação Descrição Montante Qt. Mensal Qt. Total
… ... (kg) 0.00 60.00 3.600
Cheque transf. bancária 25.000,00 0.00 1
Máq. café ... 0.00 0.00 2
Moinho café ... 0.00 0,00 2
Depurador de filtro 0.00 0.00 2
Máq. de lavar louça ... 0.00 0.00 2
Reclame 0.00 0.00 2
Guarda-Sol 180 cm (Un.) 0.00 0.00 2
Estores 0.00 0.00 4
Mesas de exterior castanhas 0.00 0.00 5
Cadeiras de exterior castanhas 0.00 0.00 10
13. O montante supra, reporta-se ao desconto antecipado, relativamente à quantidade de café que o Embargante se propôs a comprar.
14. Caso o embargante tivesse proposto adquirir menos quantidade de café, a Embargada não entregaria àquele o referido valor.
3.1.15. O executado adquiriu as seguintes quantidades de café:
Mês Cliente Estab. Vendas Contrato Desvio Desvio %
5 5.00 60.00 -55,00 -91,67
6 25.00 60.00 -35.00 -58,33
7 20.00 60 00 -40.00 -66,67
8 15.00 60.00 -45.00 -75,00
9 30.00 60 00 -30.00 -50,00
10 42.00 60.00 -18.00 -30,00
11 25.00 60 00 -35.00 -58,33
12 20.00 60.00 -40.00 -66,67
2018 Resumo Anual 182.00 420.00 -238.00 -56,67
1 30.00 60 00 -30.00 -50,00
2 20.00 60.00 -40.00 -66,87
3 10.00 60.00 -50.00 -83,33
5 20.00 60 00 -40.00 -66,67
6 10.00 60.00 -50.00 -83,33
7 20.00 60.00 -40.00 -66,67
8 5.00 60.00 -55.00 -91,67
9 15.00 60.00 -45.00 -75,00
10 25,00 60.00 -35.00 -58,33
11 25.00 60.00 -35.00 -58,33
12 25.00 60 00 -35.00 -58,33
2019 Resumo Anual 205.00 720,00 -515.00 -71,53
1 15.00 60.00 - 45.00 -75,00
2 10.00 60.00 -50.00 -83,33
3 10.00 60.00 -50.00 -83,33
5 5.00 60.00 -55.00 -91,67
6 10.00 60.00 -50,00 -83,33
7 5.00 60.00 -55.00 -91,67
8 15 00 60.00 -45.00 -75,00
9 10 00 60.00 -50,00 -63,33
10 10.00 60.00 -50.00 -83,33
11 15.00 60.00 -45.00 -75,00
12 10.00 60.00 -50.00 -83,33
2020 Resumo Anual 115.00 720.00 -605.00 -84,03
1 5.00 60.00 -55.00 -91,67
3 5.00 60.00 -55.00 -91,67
4 10.00 60.00 -50.00 -83,33
5 15 00 60.00 -45.00 -75,00
6 10.00 60.00 -50.00 -83,33
7 10.00 60.00 -50.00 -83,33
8 5.00 60.00 -55.00 -91,67
9 5.00 60.00 -55.00 -91,67
2021 Resumo Anual 65.00 720.00 -655.00 -90,97

2018/0083 Resumo do Contrato 587.00 3.600.00 -3.033.00 -84.25
Euro/kg Contrato = 11,30 A executar = 34.269,85.
Euro/kg Financeiro = 6,40 A executar = 21.062,50.
Euro/kg Não Financeiro = 4,35 A executar = 13.207,35.
16. Um dos estabelecimentos foi trespassado, não tendo o trespassário continuado a consumir café fornecido pela embargada.
17.A. Por carta datada de 21/07/2020 a embargada comunicou ao embargado:
Como é certamente do s/ conhecimento, o Contrato nº ... celebrado entre ambas as partes a 24 de Maio de 2018, não está a ser cumprido por V. Exa.
Neste sentido, solicitámos que no prazo máximo de 10 dias úteis, contabilizados a partir da recepção desta carta, retomem o consumo das quantidades acordadas contratualmente, em regime de exclusividade com a A..., sob pena de recurso aos competentes meios judiciais e pedido de levantamento do sigilo fiscal à Autoridade Tributária por incumprimento contratual, com vista à reclamação de todos os valores, acrescidos de juros à taxa comercial em vigor.
17.B. Por carta datada de 27/07/2021 a embargada comunicou ao embargado:
Assunto: Contrato nº ...
Indemnização devida a incumprimento contratual
Resolução do contrato
Como será certamente do vosso conhecimento encontra-se em incumprimento o contrato celebrado a 24 de Maio de 2018 entre V. Exas. e a A... Lda. por omissão de aquisição da quantidade mínima contratada e exclusividade.
Assim, informamos V. Exas. que dispõe do prazo de 8 dias para procederem à aquisição do café em falta e manterem as aquisições acordadas findo o prazo, sem que a aquisição seja efectuada, consideramos definitivamente incumprido o contrato, por facto imputável a V. Exas., sendo o mesmo resolvido e, neste caso é devido à A... Lda. valor indemnizatório contratualmente fixado no montante de 85.365,64€ acrescido de IVA e de juros à taxa legal.
Findo o prazo concedido, sem que se mostre adquirido o café em falta ou pago, procederemos à cobrança coerciva.
18. No estabelecimento comercial do executado, pertencente à Exequente, existe, pelo menos: uma máquina de café, uma máquina de lavar chávenas, um moinho de café, quatro mesas, oito cadeiras e um toldo.
19. O executado manteve a exploração da Cafetaria B..., que na decorrência da pandemia do covid-19, teve de ser fechada por dois meses em 2020 e três meses em 2021.
20. Quando reabriu foi com todas as restrições impostas pelo governo, o que limitou os rendimentos e consumos de café durante aquela época.

IX. Matéria de Direito:
A] Alteração anormal das circunstâncias:
Nos termos do artigo 437.º do Código Civil, se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
Segundo Menezes Cordeiro, in Da Alteração Das Circunstâncias, Separata dos Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, 1987, tradicionalmente, para salvaguarda dos princípios da segurança e da estabilidade do tráfico jurídico, funcionava a máxima do respeito integral e escrupuloso do acordo levado ao contrato, que se costuma traduzir por pacta sunt servanda. No entanto, à medida que a boa fé foi impregnando os conceitos civilistas do direito, constatou-se que este princípio não respondia cabalmente às necessidades de Justiça do próprio sistema legal em momentos conturbados, de crise ou catástrofe. Graças sobretudo à doutrina alemã, começam a ganhar contornos na doutrina novos conceitos limitadores do rigor daquele princípio. Desde a teoria de pressuposição de Windscheid, a doutrina da clausula rebus sic stantibus, a teoria de imprevisão, ou a teoria da base negocial na formulação de Oertmann ou de Lehmann, até às construções baseadas no risco ou na interpretação dos contratos, várias foram as saídas encontradas para repor o equilíbrio de prestações inerente a cada negócio jurídico concreto.
Através do mecanismo da alteração anormal das circunstâncias, o sistema legal visa evitar que um contraente fique súbita e imprevistamente vinculado a uma prestação que na altura em que deva ser cumprida não tem já contrapartida na prestação da outra parte na medida da correlação existente no momento da celebração do negócio. Todas aquelas doutrinas concluem no sentido de o contraente ficar desobrigado ou passar a estar obrigado em moldes diferentes e correspondentes à correlação prestacional adequada às novas circunstâncias.
O primeiro requisito da figura da alteração anormal das circunstâncias é precisamente o de haver uma alteração das circunstâncias que se verificavam no momento da celebração do contrato e essa alteração ser anormal, inesperada, excessiva, geradora de uma profunda mutação no equilíbrio das prestações. O instituto reclama que a alteração relevante se reporte a acontecimentos que, para além de supervenientes, sejam extraordinários, graves e imprevisíveis.
Na alteração anormal das circunstâncias, a parte toma a sua decisão negocial tendo em conta as circunstâncias que se verificam no momento da celebração contrato e que conhece, mas as circunstâncias alteram-se posteriormente por factos supervenientes e de um modo excluído dos riscos próprios do contrato e gravemente atentatório dos princípios da boa fé.
Para Oliveira Ascensão, in Onerosidade excessiva por "alteração das circunstâncias", Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, III, «a discrepância entre o negócio e as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar pode ser originária [ou] superveniente. Se logo na celebração do negócio as partes se baseiam numa situação que não é real, temos um erro, na subespécie de um erro sobre a base do negócio. (…) O facto gerador … é para o art. 437/1 a “alteração das circunstâncias”. Essa alteração atinge a base do negócio, portanto aquelas circunstâncias em que as partes fundaram (comummente, quanto a nós) a decisão de contratar. A alteração das circunstâncias é por seu lado produto dum facto superveniente.»
Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 1082, pensa do mesmo modo ao afirmar: «A questão pode equacionar-se em termos cronológicos: haverá erro quando, no fecho do contrato, ocorresse já, por desconhecimento das partes, a discrepância entre os factores figurados pelos contratantes e os realmente existentes. ... Como critério delimitador do erro relativo a certas circunstâncias já existentes ou a surgir no futuro, mediante alteração dos factores pré-existentes e a figura, dele diferenciada, da alteração das circunstâncias, propõe-se o da previsibilidade. Quando, na celebração do contrato, se assente em circunstâncias não correspondentes à realidade ou quando elas, sendo-o, se venham, em termos previsíveis, a modificar, sem que, nisso, se haja atentado, há erro. Caso contrário, ocorre uma alteração verdadeira das circunstâncias. A previsibilidade deve ser aferida em abstracto, pelas possibilidades reinantes na sociedade onde o problema se ponha, de acordo com as características do caso concreto. Como se calcula, ninguém ousará afirmar que em 1948 se poderia prever a evolução dos clubes desportivos verificada até hoje quanto às respectivas necessidades em termos de instalações desportivas e de receitas para o exercício da sua actividade».
Mota Pinto, in Teoria Geral do Facto Jurídico, 3.ª edição, pág. 494, ao fazer o confronto do erro-vício com outras figuras refere-se à figura designada por pressuposição (Voraussetzzung) nos seguintes termos: «Podemos caracterizar a pressuposição como a convicção por parte do declarante, decisiva para a sua vontade de efectuar o negócio, de que certa circunstância se verificará no futuro ou de que se manterá um certo estado de coisas. A alteração anormal das circunstâncias pressupostas constitui, nos termos do art. 437º, fundamento de resolução ou modificação do contrato, quando a manutenção do conteúdo contrarie a boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.»
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2015, relatado por Fonseca Ramos no proc. n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, in www.dgsi.pt, se afirma o seguinte: «Os requisitos de aplicação do art. 437º, nº 1, do Código Civil, na lição do Professor Menezes Leitão – “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 124 e segs., são: “1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; 2) O carácter anormal dessa alteração; 3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; 4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; 5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato. Relativamente ao primeiro pressuposto, dele resulta que apenas são relevantes as alterações das circunstâncias efectivamente existentes à data da celebração do contrato, e que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes (a denominada “base do negócio objectiva”). Não relevam assim, para efeitos desta norma, os casos de falsa representação das partes quanto às circunstâncias presentes ou futuras, que apenas colocam um problema de erro, nem circunstâncias que, apesar de efectivamente existentes, não se apresentem como causais em relação à celebração do contrato.» [sublinhados nossos].
Tendo isto presente é fácil de ver que de forma alguma a situação demonstrada pelo embargante se reconduz à figura da alteração anormal das circunstâncias.
O embargante limita-se com efeito a usar o bordão da pandemia Covid-19, mas não tem, como era necessário, o cuidado de precisar os termos concretos em que a pandemia e as restrições de natureza legal e/ou administrativa estabelecidas para controlo da mesma se repercutiram na sua actividade.
Uma vez que ela foi transversal à sociedade, às pessoas e às empresas, são factos notórios quer a existência da pandemia Covid-19 quer a noção de que ela conduziu a períodos de confinamento e de encerramento de serviços e estabelecimentos abertos ao público.
Todavia, já não são factos notórios a medida, dimensão ou importância como a pandemia, os confinamentos e encerramentos, as alterações comportamentais das pessoas na frequência e aproveitamento dos espaços públicos, influenciaram negativamente as actividades comerciais dos vários ramos de comércio.
A pandemia não terá afectado todos por igual; nalguns casos afectou mais que noutros; nalguns casos pura e simplesmente não afectou e houve mesmo caso altamente beneficiados pela pandemia (v.g. aqueles que se ocuparam da produção da parafernália de bens e objectos que de repente todos passaram a usar, por vezes de forma totalmente irracional ou excessiva, ou aqueles que se ocuparam da realização de testes em massa ou que passaram a prestar serviços até aí pouco usados, os quais obtiveram verdadeiras fortunas com a pandemia).
É por isso que mesmo sendo do domínio comum que os estabelecimentos de restauração, cafetaria e hotelaria terão sido dos mais afectados, uma vez que as pessoas reduziram os seus contactos sociais e a presença em espaços que teriam de partilhar com outras pessoas, não basta invocar a pandemia para justificar a existência de uma alteração anormal das circunstâncias.
A pandemia é apenas a razão de saúde pública que explica e justifica as alterações, mas é necessário saber quais foram estas e quais as respectivas consequências para concluir que, sendo elas derivadas de uma causa alheia aos contraentes e por eles não prevista nem previsível no momento da contratação, assumem a dimensão da anormalidade, da perturbação significativa da economia do contrato, que preside ao instituto.
O que está provado e corresponde aliás ao que foi alegado pelo embargante é que por causa da pandemia do covid-19 o seu estabelecimento de comercialização de café «teve de ser fechada por dois meses em 2020 e três meses em 2021» - donde se extrai que nesse período não teve vendas nem receitas – e que «reabriu com todas as restrições impostas pelo governo, o que limitou os rendimentos e consumos de café durante aquela época» - donde se extrai que o embargante sofreu redução das vendas e dos rendimentos comerciais do estabelecimento -.
Era necessário alegar e demonstrar, o que não foi feito, ainda o significado económico para o embargante dos períodos de encerramento da actividade e a medida da redução dos consumos nos períodos após a reabertura. Repare-se, por exemplo, que segundo a listagem de compras de café que o embargante fazia à embargada já antes da pandemia aquele adquiria café em quantidades muito inferiores às previstas no contrato, o que pode induzir (pode não ter sido assim, mas tal teria de ser alegado e provado) que o volume de negócios do estabelecimento do embargante referente à comercialização de café já antes da pandemia era diminuto ou, pelo menos, insuficiente para perfazer as compras a que o embargante se vinculou pelo contrato.
A necessidade dessa demonstração torna-se óbvia quando se presta atenção ao próprio mecanismo do instituto. Através dele o que se procura é a recuperar o equilíbrio das prestações que foi quebrado pela alteração superveniente das circunstâncias que presidiram à contratação, o que só é possível sabendo-se a medida da quebra causada pela alteração. Essa medida não tem, naturalmente, de ser determinada com exactidão e pormenor, mas também não pode ser aferida por mero palpite ou presunção natural apoiada em facto nenhum, para além dos factos notórios acima indicados.
De referir que para o efeito é irrelevante a circunstância de o embargante ter trespassado um dos estabelecimentos comerciais que possuía à data da celebração do contrato e para cuja actividade destinava o café a adquirir à embargada.
O trespasse é um acto voluntário que resulta de uma decisão económica do embargante. Antes de tomar essa decisão o embargante devia avaliar os encargos contratuais e financeiros para cujo cumprimento a actividade desse estabelecimento podia ser importante ou essencial. Ao tomar essa decisão sem acautelar previamente a sua repercussão sobre as possibilidades de cumprir o contrato celebrado com a embargada (v.g. negociando previamente com esta a redução do contrato ou a prorrogação do respectivo prazo ou fazendo o trespasse com a condição de o trespassário continuar a adquirir café ao abrigo do contrato existente) o embargante criou para si mesmo uma dificuldade acrescida de efectuar esse cumprimento que lhe é imputável e não o desresponsabiliza pelo respectivo incumprimento (cf. artigos 798.º, 799.º e 801.º do Código Civil).
Em conclusão, os factos alegados pelo embargante para servirem de fundamento à aplicação do instituto da alteração anormal das circunstâncias ao abrigo do artigo 437.º do Código Civil, são insuficientes para preencher a figura jurídica prevista neste preceito e permitir a modificação do contrato com base na mesma.
Improcede nesta parte o recurso.
B] Do incumprimento definitivo do contrato:
O recorrente parece (?) questionar nas alegações de recurso que tivesse ocorrido o incumprimento definitivo do contrato ou mesmo que estivesse em mora.
Prescreve o nº 2 do artigo 804.º do Código Civil que o devedor se considera constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido. Já de acordo com o artigo 805.º do mesmo diploma, tendo a obrigação prazo certo, o devedor fica constituído em mora, independentemente de interpelação judicial ou extrajudicial para cumprir, tão logo que se atinge o prazo fixado para o cumprimento.
A mora, que não é ainda uma falta definitiva de realização da prestação debitória, mas um simples retardamento ou dilação no cumprimento da obrigação, apenas constituirá o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
Segundo o artigo 406.º do Código Civil o contrato só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei. A resolução do contrato é, precisamente um dos casos admitidos na lei para a modificação ou extinção do contrato. A resolução dos contratos é permitida desde que fundada em lei ou em convenção (artigo 432°, n° 1, do Código Civil). E pode fazer-se por acordo, por declaração à outra parte ou, ainda, judicialmente.
Como escreveu J. Baptista Machado, in Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, págs. 348/349, «o direito de resolução é um direito potestativo extintivo e depende de um fundamento - tem de verificar-se um facto que crie esse direito, ou melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo. Tal facto ou fundamento é o facto do incumprimento ou situação de inadimplência.». O direito de resolução fundado na lei está, pois, sempre condicionado a uma situação de inadimplência.
A mora é uma espécie de antecâmara do incumprimento definitivo. Estabelece o artigo 808.º do Código Civil que se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
Este preceito legal enuncia claramente duas possibilidades de a mora se converter em incumprimento definitivo: a) em consequência da perda objectiva de interesse na prestação; b) em consequência da ultrapassagem do novo prazo razoável fixado pelo credor para o devedor cumprir finalmente a prestação em falta. Não se trata, porém, de duas situações cumulativas ou que devam funcionar em conjunto. Pelo contrário, estes dois modos de conversão da mora em incumprimento definitivo são alternativos e independentes entre si, ainda que possam ocorrer ambos em simultâneo.
Mas ambos têm um pressuposto comum necessário: que o devedor esteja em mora, que a sua obrigação esteja vencida. A perda do interesse do credor, ainda que objectiva, verificada antes de ele poder exigir do devedor a realização da sua prestação não é juridicamente relevante. Ela só releva nos termos da lei se o devedor já se encontrar em mora, consistindo então numa espécie de inversão do risco de perda do interesse no negócio - antes da mora corria por conta do credor, depois da mora passa a correr por conta do devedor relapso -.
O incumprimento definitivo pode ainda decorrer das seguintes situações: a) ocorrer a impossibilidade da prestação por destruição da coisa ou pela sua alienação a terceiro, sem qualquer reserva (artigo 801º do Código Civil); b) decorrer o prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que equivale àquela perda de interesse; c) haver recusa peremptória do devedor em cumprir, comunicada ao credor, caso em que não se justifica a necessidade de nova interpelação ou de fixação de prazo suplementar.
Nos termos da cláusula 1.ª do contrato, o embargante obrigou-se «a adquirir, em regime de exclusividade [à embargada] para consumo no seu estabelecimento … a quantidade mínima de 3.600 (três mil e seiscentos) kg de café, fraccionados pelo período de 60 (sessenta) meses, … em quantidades mensais mínimas e sucessivas de 60 (sessenta) kg de café marca ..., lote “...”, … vencendo-se a primeira na presente data e as restantes em iguais dias dos meses seguintes»
O contrato estipula por isso um prazo certo para a aquisição do café: em cada mês do calendário civil, leia-se, até ao último dia desse mês, o embargante devia adquirir, pelo menos, 60 kg. de café, de modo a atingir no final do prazo do contrato, pelo menos, 3.600 kg (60 x 60).
Por conseguinte, ultrapassado o último dia de cada mês, o embargante incorreu em mora quanto ao cumprimento da sua obrigação de aquisição relativa a esse mês, sem necessidade de qualquer interpelação. E, tendo a embargada, fixado, por duas vezes, aliás, um prazo suplementar e admonitório para ser cumprida a obrigação relativamente à qual já havia mora, é inequívoco que por virtude da interpelação admonitória a mora foi convertida em incumprimento definitivo do contrato (excluída desta discussão, naturalmente, a influência da alegada, mas não demonstrada, alteração anormal das circunstâncias).
Improcede assim esta questão suscitada no recurso.
C] Das máquinas e equipamentos entregues ao abrigo do contrato:
O recorrente questiona a dada altura a inclusão na quantia exequenda de um valor relativo às máquinas e equipamentos que lhe foram entregues ao abrigo do contrato sustentando que os mesmos «estão garantidos pela reserva de propriedade» havendo da sua parte disponibilidade para os devolver.
Com todo o devido respeito a questão é pertinente embora o seu enquadramento jurídico não seja o correcto.
Vejamos o que estipula o contrato a este respeito.
Nos termos das cláusulas do contrato, o recorrente obrigou-se a adquirir à recorrida uma quantidade global de café, dividida pela quantidade mínima mensal de 60 kg. de café; obrigou-se também a consumir no seu estabelecimento comercial exclusivamente esse café fornecido pela recorrida. O recorrente vinculou-se, portanto, a uma prestação positiva de aquisição de café à recorrida e a uma prestação negativa de não negociar e contratar com qualquer outra empresa concorrente daquela a aquisição de café para comercializar no se estabelecimento.
Em contrapartida, a recorrida obrigou-se não apenas a fornecer-lhe essa quantidade de café, como ainda a entregar-lhe uma quantia em dinheiro e alguns equipamentos destinados à transformação do café em bebida (máquinas de café, moinhos e depuradores) e à sua comercialização (café, máquinas de lavar, mesas e cadeiras de esplanada, guarda-sol) e ainda alguns bens destinados exclusivamente à publicitação da sua marca (reclame, toldo) e cujo interesse é exclusivamente da fornecedora, ainda que no contrato eles apareçam como objecto de «entrega» à cliente para efeitos de contabilização do respectivo valor.
Este contrato tem uma configuração comum no mercado da venda de café aos estabelecimentos do canal D..., cuja utilização massiva levou a que não estejamos perante um verdadeiro mercado de comercialização de café mas efectivamente perante um mercado das contrapartidas financeiras que as empresas grossistas do sector, consoante a sua capacidade e dimensão, estão disponíveis para suportar para obter a vinculação dos pontos de venda à sua marca (quanto dinheiro dão ao cliente e que equipamentos lhe “entregam” para estes venderem ao público ao bebidas de café, sendo certo que uma parte desses equipamentos serve, total ou parcialmente, para fazer publicidade à marca através das imagens e símbolos neles apostos e, por isso, só têm interesse para o cliente enquanto este estiver vinculado à marca, o que obriga os clientes, em qualquer negociação, a terem em conta o custo desses bens e assim contribuindo para a perpetuação desse modo de funcionamento do mercado desejado pelas empresas).
O contrato, não pode deixar de ser dito, possui uma redacção que decorre de cláusulas pré-elaboradas, não sujeitas a negociação e claramente parciais e tendenciosas, servindo exclusivamente os interesses da fornecedora. A falta de cuidado na inclusão de algumas cláusulas (no caso, por exemplo, consta uma cláusula como se o cliente fosse uma pessoa colectiva quando se trata de uma pessoa singular: cl. 4.ª, ponto 3) e o cuidado colocado na escolha de expressões equívocas que dificultam a compreensão do que se quis mesmo contratar dão uma imagem confrangedora do processo de contratação e da organização da aqui exequente. O embargante não suscitou, contudo, qualquer questão sobre esse processo e a validade das cláusulas, pelo que, não sendo ele um consumidor, está excluído do poder de cognição deste tribunal o muito que haveria que tratar a esse respeito.
Existe no contrato uma única cláusula que se refere às máquinas e equipamentos a que nos estamos a referir. Trata-se da cláusula 3.ª que se encontra redigida da seguinte forma:
«No pressuposto único do cumprimento integral escrupuloso e atempado das obrigações no seu conjunto a que a Segunda Outorgante se vincula, nos termos das cláusulas precedentes, a Primeira Outorgante obriga-se a conceder-lhe - sendo esta a única obrigação correspondente às obrigações a Segunda Outorgante se vincula - um desconto de € 11.30 … por cada Kg de café a que esta se vinculou no valor global de € 40.676.38 … a ser pago… da seguinte forma:
a) 25.000 € … a ser pago por transferência para a conta … que dá a respectiva quitação pelo presente instrumento.
b) 15.300.00€ correspondente à afetação de 2 Máquinas de Café ..., 2 Moinhos de Café ..., 2 Depuradores, 2 Máquinas de Lavar, 2 Toldos, 1 Reclame de Fachada e 1 Reclame de Dupla Face, 4 Estores, 5 Mesas Exteriores de Esplanada, 10 Cadeiras Exteriores de Esplanada, 2 Guarda Sois de 180 x 180, já escolhidos e adjudicados, a entregar após solicitação.
c) € 376.38 … correspondente ao valor residual dos equipamentos previstos na alínea anterior IVA incluído à taxa legal a facturar com o cumprimento integral e efectivo do presente acordo.
(…) 3. Os bens descritos são propriedade da Primeira Outorgante até emissão do documento previsto na alínea c), o que a Segunda reconhece sendo esta responsável pela sua utilização, conservação o reparação, a expensas próprias sem qualquer direito de retenção ou compensação, obrigando-se a não as deslocar e autorizar o seu levantamento.»
Se bem interpretamos esta cláusula, o que na mesma se estabelece é que os bens são propriedade da embargada durante todo o contrato, eles apenas são «afetados» (!) aos estabelecimentos comerciais do embargante para efeitos da comercialização do café adquirido à embargada. A sua entrega não corresponde, pois, a uma qualquer forma de transferência da propriedade para o cliente, apenas à disponibilização ao cliente do seu uso.
Na alínea c) do ponto 2 da cláusula fala-se em valor residual, desconhecendo-se o que isso seja exactamente porque nem o contrato é um contrato de locação financeira onde essa expressão corresponde a uma figura jurídica específica, nem a embargada é uma sociedade financeira autorizada a celebrar contratos onde essa figura existe (!).
Mas, conjugando essa alínea com o ponto 3 da cláusula, parece poder deduzir-se que os bens eram entregues ao cliente para ele usar, conservando-se o respectivo direito de propriedade na titularidade da embargada, e, no final do contrato, se este fosse cumprido integralmente, a embargada emitiria a factura de venda dos mesmos pelo “valor residual”, o qual se considerava pago, transferindo os bens para a propriedade do embargante.
Sendo assim, como parece ser, então temos de concluir que sendo os bens propriedade da embargada e não se verificando a condição da transferência da respectiva propriedade para o embargante no final do contrato (o seu cumprimento integral), o que a embargante pode exigir do embargado é a restituição das máquinas e equipamentos, em virtude de ser ela a titular daquele direito.
Se essa entrega não for feita, a embargante poderá então pedir a indemnização pela não entrega do equipamento. Mas, enquanto não exercer, se necessário por via judicial, esse direito, a embargante não pode «converter» unilateralmente o seu direito (a uma prestação de facto: a entrega dos bens) noutro direito de diferente natureza (a uma prestação pecuniária por equivalente: a entrega do valor que no contrato é atribuído aos bens).
Logo, estando a autorização de preenchimento da livrança indexada às consequências emergentes do incumprimento do contrato, não às consequências da violação do direito de propriedade da fornecedora de café sobre bens afectos à economia do contrato, a exequente não dispõe de autorização para preencher a letra de câmbio dada à execução com o valor desses bens, devendo a quantia exequenda ser reduzida, com este fundamento, na quantia de €15.676,38.
De referir, se dúvidas houvesse, que na carta de resolução do contrato a embargada afirma precisamente que os bens e equipamentos lhe pertencem e terão de lhe ser entregues.
Não obstante, de imediato considera que os mesmos não lhe foram entregues e declara-se credora do montante que inclui uma parcela correspondente ao valor dos equipamentos, sem previamente ter interpelado o embargado, conforme teria de fazer, para efectuar a sua restituição e lhe ter fixado um prazo para o efeito, sob pena de incorrer em violação do seu direito de propriedade e no dever de indemnizar os danos causados desse modo.
D] Do abuso do direito:
O recorrente invoca ainda o instituto do abuso do direito, sustentando que a exigência da exequente é abusiva, que a execução nunca poderia ser pela quantia exequenda.
De novo o recorrente suscita uma questão com inteira pertinência para a sua defesa, mas equivoca-se formulação da questão e na qualificação jurídica dos factos que lhe dão suporte.
O que se deve perguntar é se a quantia exequenda corresponde ao valor que o pacto de preenchimento da letra permitia que fosse colocado nesta, rectius, se a quantia exequenda corresponde ao valor indemnizatório que a exequente pode exigir do executado em virtude do incumprimento do contrato.
Nessa medida, o que é necessário é analisar o contrato, descortinar as consequências do respectivo incumprimento e estabelecer a respectiva relação com o valor com que o título de crédito foi preenchido. Se houver desconformidade, o preenchimento é abusivo e a execução não pode prosseguir em relação à parte em excesso, não por recurso ao instituto do abuso do direito propriamente dito, mas por recurso ao abuso do preenchimento do título.
Como quer que seja, afigura-se-nos que ainda que da forma deficiente assinalada, está colocada a questão da exigibilidade da totalidade da quantia exequenda e, nessa medida, é-nos permitido conhecer da correspondência do preenchimento da letra à autorização dada para o efeito, rectius, se a exequente pode, ao abrigo do contrato, reclamar do executado o valor da indemnização correspondente à quantia exequenda.
Com o requerimento executivo foi junta a carta que corresponde à autorização de preenchimento da letra de câmbio e cuja redacção deficiente e pouco cuidada não pode deixar de alertar para as deficiências do processo negocial que a gerou.
Nessa carta diz-se essencialmente que a letra se encontra em branco quanto à «data de vencimento, o local de pagamento e o seu montante» e será preenchida pela exequente «quando considerar oportuno (sic!), e o seu montante será o que esta determinar … das obrigações não cumpridas e respectiva cláusula penal emergentes do contrato» … «incluindo juros comerciais, à taxa máxima legal, despesas e encargos com a letra».
Resulta da carta de resolução do contrato que acompanha aquele requerimento executivo, que o valor de €125.621,91 que ao preenchê-la a exequente apôs na letra, se decompõe nas seguintes verbas:
A] €84.945,53, correspondentes ao preço pelo qual o executado deveria adquirir a quantidade de café prevista no contrato e não adquirida [(3.600 kg. - 567 kg. =) 3.033 kg. x €22.77/kg = €69.061,41 + (23% IVA =) €15.884,12].
B] €40.676,38, correspondentes ao intitulado desconto antecipado de €11,30 por cada um dos 3.600 kg, mediante transferência bancária de €25.000,00 e entrega de equipamento avaliado em €15.300,00 e €376.38.
Para justificar a exigibilidade destes montantes a exequente referiu na carta:
i. Que através do contrato, em 24/05/2018 o executado obrigou-se a adquirir pelo menos 3.600 kg de café, ao longo de 60 meses, em quantidades mensais mínimas de 60 kg.
ii. Que no ano de 2018 adquiriu 182 kg; no ano 2019, 205 Kg; no ano 2020, 115 kg; no ano 2021, 65 kg de café; num total de 567 kg.
iii. Que atentas as cláusulas 4ª, 5ª e 6ª do contrato, isso traduz-se num incumprimento que permite a resolução do mesmo contrato, comunicada nessa ocasião.
iv. Que em consequência da resolução, nos termos da Cláusula 6ª, nº 1, tem o direito de receber o valor do café em falta, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do pagamento.
v. Que nos termos da Cláusula 3ª, nº 3, o material e equipamento entregue continua a pertencer-lhe.
vi. Que como o executado não entregou o material e equipamento, tem direito a receber o valor de €40.676,38;
Como vimos, a exequente considerou que em virtude da resolução do contrato com fundamento no incumprimento do executado, tem o direito, nos termos acordados, de exigir o preço do café previsto no contrato e que o executado não chegou a adquirir e a restituição do desconto antecipado.
O aspecto do material e equipamento já atrás foi abordado de forma específica.
Quanto ao mais, vejamos o que diz mesmo o contrato.
As cláusulas 1ª, 2ª e 3ª definem os deveres de prestação assumidos pelas partes (a aquisição do café, a comercialização em regime de exclusividade, o “desconto antecipado”). As cláusulas 4ª e 5ª ocupam-se de definir situações em que o contrato se terá por incumprido e poderá ser resolvido pela parte não inadimplente. A cláusula 6ª é a única que se ocupa das consequências da resolução do contrato por incumprimento.
A sua redacção é a seguinte:
«1. Consequência do incumprimento, total ou parcial da presente Parceria, por motivo imputável, objectiva ou subjectivamente à Segunda Outorgante, considera-se perdido o beneficio do prazo concedido para aquisição do café, tendo a Primeira Outorgante o direito a receber de imediato o valor do café em falta, de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo.
2. Nesta situação cessa qualquer obrigação da Primeira a qualquer desconto a conceder ou contrapartida que à data do incumprimento não esteja vencida ou estando fica excepcionada.»
Como se vê, esta cláusula apenas estipula que havendo incumprimento total ou parcial do contrato por motivo imputável ao executado este perde o benefício do prazo que o contrato estipula a seu favor para adquirir a quantidade mínima total de café a que se obrigou.
Por outras palavras, conforme o clausulado, havendo incumprimento do contrato (a cláusula não o refere, mas parece dever entender-se: incumprimento definitivo, situação que no caso ocorreu por via da interpelação admonitória, conforme antes assinalado), a exequente passou a poder exigir do cliente que de imediato e a pronto lhe adquira a quantidade de café correspondente à diferença entre o café adquirido e o café que devia ser adquirido, pagando o respectivo preço, a valores correntes e sem qualquer desconto.
Até aí o executado dispunha do prazo de cinco anos para adquirir os 3.600 kg de café; tendo incumprido o contrato esse prazo foi eliminado e a obrigação de compra da totalidade do café passou a ser-lhe exigível de imediato, pela totalidade.
Sendo assim, a exequente equivocou-se no preenchimento do título, pressupondo erradamente que o contrato lhe atribui de imediato o direito a receber o equivalente ao preço corrente do café em falta.
Não é assim, contudo. O que ela pode exigir da contraparte é que adquira de imediato e de uma só vez a quantidade de café necessária para completar a prevista no contrato (3.600 kg) e pague o respectivo preço. Por outras palavras, o executado tem de pagar o preço, mas recebendo o café que está a pagar, pelo que o seu património fica enriquecido na medida do valor comercial do café recebido; já a exequente recebe o preço, mas tem de entregar o café, perdendo o respectivo valor comercial.
Se esse dever de prestação de facto emergente do incumprimento do contrato não for cumprido, a parte não inadimplente poderá exigir a indemnização dos danos que esse incumprimento lhe causar. Mas esse dano não equivale ao montante do preço dessa quantidade de café, equivale ao lucro que a exequente obteria com a comercialização desse café e que perde se a compra não lhe for feita, lucro que, evidentemente, não equivale ao preço pelo qual iria vender o café ao cliente e com o qual erradamente preencheu o título de crédito.
Nessa medida, o valor de €84.945,53 que faz parte do montante com que a letra foi preenchida não é exigível ao executado porque da cláusula do contrato que prevê as consequências do incumprimento do contrato o que resulta é um dever de prestação distinto e cujo incumprimento, a sobrevir (primeiramente a exequente necessita de reclamar do executado que faça a compra que o contrato estipula, o que na carta de resolução do contrato não fez porque se considerou já credora do preço do café não adquirido mas contratado), gerará um direito de indemnização que não só não equivale nem corresponde àquele montante, como terá de ser demonstrado.
Estamos, pois, perante um preenchimento incorrecto do título que consubstancia uma violação dos termos da autorização concedida para esse preenchimento e, nessa medida, se traduz num abuso do direito ao preenchimento, passível de aqui ser conhecido e declarado.
Onde nos parece que o preenchimento está correcto é no valor da quantia em dinheiro entregue ao executado ao abrigo do contrato e a título de «desconto antecipado».
Com efeito, resulta claro do contrato que essa entrega tinha como pressuposto o cumprimento do contrato. A cláusula 3ª diz mesmo que ela é feita «no pressuposto único do cumprimento integral, escrupuloso e atempado das obrigações no seu conjunto a que a segunda outorgante se vincula, nos termos das cláusulas precedentes». A cláusula 6ª, n.º 2, estabelece igualmente que caso se verifique o incumprimento do contrato «cessa qualquer obrigação da Primeira a qualquer desconto a conceder ou contrapartida que à data do incumprimento não esteja vencida ou estando fica excepcionada.»
Desse modo, face ao incumprimento do contrato pelo executado, a exequente podia de facto exigir de imediato e independentemente de qualquer outro direito, a restituição dos €25.000,00 entregues ao abrigo do contrato, razão pela qual podia preencher a livrança com esse montante por ele ser directamente exigível.
Além disso, conforme assinalado, podia exigir a restituição das máquinas e equipamentos e a concretização da compra da quantidade de café necessária para perfazer os 3.600 kg, mas como estes são direitos a prestações de facto deles não resultava directamente e sem o prévio incumprimento dos correspondentes deveres ou sujeições, qualquer direito de prestação pecuniária pelo qual a exequente já pudesse preencher a letra de câmbio.
Em suma, por via da figura do abuso do direito, na modalidade do abuso no preenchimento da letra dada à execução, a quantia exequenda deve ser reduzida ao montante de €25.000,00 e juros sobre a data de vencimento.

X. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, julgam os embargos de executado parcialmente procedentes, reduzindo a quantia exequenda para o capital de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a que acrescem juros de mora contados sobre esse montante desde a data de vencimento aposta no título.
Custas dos embargos e do recurso por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
*
Porto, 9 de Novembro de 2023.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 780)
Manuela Machado
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
__________________
[1] Não se confundem a nulidade da sentença que decorre de vícios próprios desta (os previstos no artigo 615.º e apenas estes) e a anulação da decisão como consequência de vícios processuais que impliquem que tenha de ser proferida uma nova sentença (v.g. necessidade de ampliação da matéria de facto ou de produção de um novo meio de prova).