Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
810/09.3TBBGC-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
TEMPESTIVIDADE
Nº do Documento: RP20141120810/09.3TBBGC-B.P1
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º als. a) a c) do Código Civil.
II - Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, ou seja, não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: TRPorto.
Apelação nº 810/09.3TBBGC-B.P1 - 2014.
Relator: Amaral Ferreira (893).
1º Adj.: Des. Deolinda Varão.
2º Adj.: Des. Freitas Vieira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

1. Nos autos de execução que “B…, Ld” instaurou contra C…, penhorado que foi o imóvel pertencente ao executado correspondente ao prédio urbano, composto por casa de dois pisos e logradouro, destinado a habitação, com a área total de 640 m2, sendo 120 m2 de área coberta e 520 m2 de área descoberta, sito em …, Lote ., freguesia …, concelho de Bragança, inscrito na matriz predial respectiva sob o artº 330º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o nº 185/19920320, cumpridas que foram as demais formalidades legais, foi designado para a venda do imóvel, na modalidade de propostas em carta fechada, por preço igual ou superior a 70% do valor do imóvel de € 60.000, o dia 28 de Janeiro de 2013, pelas 14 horas.

2. Tendo, na data designada para o efeito, sido apresentada apenas uma proposta para aquisição do imóvel pelo montante de € 42.757,80, com a qual foi enviado cheque visado no montante de € 12.000, emitido à ordem da agente de execução, foi a mesma considerada válida e aceite, pelo que foi a proponente notificada para, no prazo de quinze dias, proceder ao pagamento da parte restante do preço e dos impostos devidos (IMI e Imposto de Selo), com as cominações previstas no artº 898º do C.P.C., e a agente de execução para, após o depósito das despesas e cumprimento das obrigações fiscais, fazer a adjudicação do imóvel e emitir o competente título de transmissão, nos termos do artº 900º do C.P.C., título de transmissão que foi emitido pela agente de execução com data de 14/2/2014.

3. Através de requerimento que deu entrada em juízo em 13/2/2014, deduziu a sociedade “D…, Ldª”, por apenso à execução, ao abrigo do disposto no artº 871º, nº 3, do C.P.C., reclamação de créditos, requerendo que fosse verificado e reconhecido o crédito que detém sobre o executado no montante de € 10.444,47, acrescido de juros de mora à taxa comercial, vencidos e vincendos desde 13/7/2010, com o fundamento de que, para haver tal crédito, instaurou execução que, com o nº 1479/10.8TBBGC, corria termos no Tribunal recorrido, na qual foi penhorado o imóvel em causa, execução que foi sustada em virtude de sobre o imóvel incidir penhora anterior à ordem dos presentes autos.

4. Conclusos os autos em 8/4/2013, foi proferido o seguinte despacho:
Dispõe o artº 965º, nº 3, do C.P.C., que “o(s) titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados”.
A sociedade D…, Ldª veio, em 13/02/2013, deduzir reclamação do seu crédito, alegando que no âmbito da execução nº 1479/10.8TBBGC, deste Juízo, que moveu contra o ora executado se encontra penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o nº 185/19920320, constituindo tal penhora a garantia real de que goza.
Acontece que a essa data esse mesmo imóvel já havia sido vendido no âmbito dos presentes autos, conforme auto de abertura de propostas junto a fls. 26/27 dos autos principais, o que torna intempestiva a reclamação deduzida.
Pelo exposto, julgo inadmissível a reclamação de créditos deduzida por D…, Ldª”.

5. Inconformada, apelou a credora reclamante D…, Ldª” tendo, nas respectivas alegações, formulado as seguintes conclusões:
1ª: A reclamação de créditos pode ser deduzida espontaneamente por quem tenha obtido penhora sobre os mesmos bens em outra execução, até à transmissão dos bens penhorados.
2ª: A venda judicial é uma operação complexa, constituída por vários actos complementares, desde a apresentação da proposta, à sua aceitação, ao pagamento dos correspondentes impostos e, finalmente, à adjudicação dos bens penhorados e emissão do respectivo título de transmissão.
3ª: A falta de qualquer um desses actos torna o procedimento da venda judicial incompleto, nulo e totalmente ineficaz.
4ª: A transmissão dos bens penhorados não se opera simplesmente com a aceitação da proposta, no acto de abertura das propostas em carta fechada: aquele procedimento só se completa com a adjudicação dos bens e a emissão do respectivo título de transmissão, com base no qual, de resto, é efectuado o respectivo registo predial de aquisição.
5ª: Sem adjudicação não pode ocorrer sequer a entrega de bens ao proponente; sem adjudicação e emissão do correspondente título de transmissão não há, pura e simplesmente, transmissão do bem penhorado.
6ª: No caso sub judice a adjudicação do bem penhorado ocorreu apenas no dia 14/2/2013, data em que a mesma foi decidida pela Srª Agente de Execução e emitido o título de transmissão do supra identificado prédio urbano.
7ª: Por outro lado, a reclamação de créditos apresentada pela ora Apelante foi deduzida por sua vez, através do Citius, no dia 13/2/1013.
8ª: A reclamação de créditos deduzida espontaneamente pela Apelante foi, por isso, apresentada até à transmissão do bem penhorado.
9ª: Consequentemente, devia a mesma ter sido admitida, processada e julgada e graduado o crédito reclamado no lugar que por lei lhe competir.
10ª: A tanto nem sequer obsta a circunstância de já ter sido proferida sentença de graduação de créditos, uma vez que a graduação deve ser refeita, se vier a ser verificado algum crédito que depois da sentença seja reclamado.
11ª: A decisão recorrida erroneamente considerou a reclamação imtempestiva por atender à data da abertura de propostas como data da transmissão do imóvel penhorado nos autos principais, mas o que releva para efeitos de tempestividade da reclamação de créditos é a data em que se completa o processo de venda judicial, com a adjudicação do bem penhorado e com a emissão do respectivo título de transmissão.
12ª: A reclamação de créditos deduzida pela Apelante é tempestiva e uma vez que não foi impugnado o crédito reclamado o mesmo deve ser julgado reconhecido e graduado logo a seguir ao crédito exequendo.
13ª: Ocorreu, com o devido respeito, manifesto erro na determinação das normas legais aplicáveis e na qualificação jurídica dos factos em apreciação, constando, além disso, do processo, documntos que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida, pelo que a decisão impugnada deve ser reformada.
14ª: Foram violados ou mal interpretados os artºs 865º, nº 3, 868º, nº 6, e 900º, nº 1, do C.P.C.
Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, devem Vªs Exªs, Senhores Juízes Desembargadores, julgar a presente apelação procedente e, em consequência, revogar a douta decisão recorrida, caso a mesma não seja reformada, e substituída por outra que admita a reclamação de créditos deduzida, julgue reconhecido o crédito reclamado e proceda à sua graduação logo a seguir ao crédito exequendo. Assim se fará, como sempre, inteira e merecida JUSTIÇA.

6. Não tendo sido oferecidas contra-alegações e proferido despacho a indeferir o pedido de reforma da decisão recorrida, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. Os factos a considerar na decisão da apelação são os que se deixaram relatados, que aqui se dão por reproduzidos.

2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, que neles se apreciam questões e não razões e que não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a questão suscitada é a de saber se a reclamação de créditos deduzida foi tempestiva.

Como se extrai do presente relatório, tendo a reclamação de créditos sido deduzida pela apelante em 13/2/2013, considerou a decisão recorrida, face ao disposto no artº 865º, nº 3, do C.P.C. então vigente, ou seja na redacção anterior à da Lei nº 41/2013, de 26/6, que a mesma era extemporânea porquanto, naquela data, o imóvel já tinha sido vendido «…conforme auto de abertura de propostas junto a fls. 26/27 dos autos principais…».
Ou seja, considerou como tendo a venda ocorrido na data da abertura das propostas, que teve lugar em 28/01/2013.
Contra esse entendimento se insurge a reclamante/apelante, que sustenta que a venda só foi efectuada com a emissão do título de transmissão, que ocorreu a 14/2/2013.
Portanto, a solução da questão suscitada radica em saber em que momento se deve considerar efectuada a venda judicial em processo de execução, sabido que, nos termos do disposto no citado artº 865º, nº 3, do C.P.C., a reclamação de créditos só pode ser deduzida espontaneamente até à transmissão dos bens penhorados.

No caso em apreço está-se perante a venda executiva de um imóvel mediante propostas em carta fechada, modalidade de venda hoje circunscrita aos imóveis e ao estabelecimento comercial de valor superior a 500 UC (artºs 889º e 901º-A, ambos do C.P.C. na redacção aplicável, no mesmo sentido dispondo os artºs 816º e 829º do actualmente vigente C.P.C.), em que a única proposta apresentada foi aceite e considerada válida.
A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º als. a) a c) do Código Civil.
Mas, além dos efeitos obrigacionais e do efeito translativo comuns a qualquer venda, a venda executiva produz ainda outros efeitos tais como o extintivo, registral, represtinatório e efeito sub-rogatório - cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pág 383.
No que respeita ao efeito translativo, a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida - artº 824º, nº 1, do Código Civil.
Na venda negocial a transferência dá-se por mero efeito do contrato, ou seja, a transferência não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço (cfr. artº 886º do Código Civil, que dispõe que “Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”).
Contudo, a situação é diferente na venda executiva, porquanto nela, de acordo com o artº 900º, nº 1, do Código de Processo Civil então vigente, ou seja antes da redacção resultante da Lei nº 41/2013, de 26/6, que, aliás, contém norma idêntica no artº 827º, os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, agente de execução que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, comunica seguidamente a venda ao serviço de registo competente, juntando o respectivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artº 824º do Código Civil.
Face ao disposto nos citados preceitos legais, conclui-se que na venda executiva por propostas em carta fechada a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento integral do preço e a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão e a emissão do respectivo título de transmissão - o instrumento de venda.
No caso dos autos, o que se verifica é que, na data da dedução, pela apelante, da reclamação de créditos, o agente de execução ainda não havia emitido o título de transmissão, que apenas o foi em 14/2/2103, pelo que a venda ainda não se mostrava concretizada.
É que, segundo o citado artº 900º, nº 1, a propriedade da coisa ou do direito não se transfere por mero efeito da venda, como sucede no direito substantivo, dada a sua natureza real e não obrigacional [artºs 408º, nº 1, 874º, e 879º, al. a), e 578º nº 1 todos do Código Civil], mas só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução no caso de venda por propostas em carta fechada (no caso da venda por negociação particular com a outorga do instrumento da venda), para o que se torna necessário que se verifique mostrar-se paga a totalidade do preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão (cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 8ª ed., pág. 371).
No mesmo sentido de pronunciam José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 2003, que sustentam que “O depósito do preço não constitui uma simples conditio juris (condição de eficácia dum negócio já perfeito, mas um elemento constitutivo da venda executiva por proposta em carta fechada. Até ele ter lugar o proponente está ligado ao tribunal por um contrato preliminar (…), constituindo com os elementos já verificados da fatispécie complexa do contrato definitivo em formação, com eficácia semelhante à do contrato-promessa e, como este, susceptível de execução específica (art. 898.º-1) ou de resolução com perda do valor da caução prestada (art. 897-1), a título de indemnização (art. 898-3). Só com a conclusão da venda se produzem os efeitos desta (art. 824 CC)”.
Ora, tendo, no caso em apreço, o título de transmissão sido emitido em 14/2/2013, e com a sua emissão concretizada a venda, é tempestiva a reclamação de créditos deduzida pela apelante em 13/2/2013, ou seja antes da transmissão do bem penhorado.
Sumariando:
“A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º als. a) a c) do Código Civil.
Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, ou seja, não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão”.

III. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação, e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que admita liminarmente a reclamação deduzida.
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Custas pela apelado/executado.
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Porto, 20/11/2014
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
Freitas Vieira