Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1517/18.6T8OVR-A.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
EXECUÇÃO
PAGAMENTO PARCIAL
MORA
Nº do Documento: RP202111221517/18.6OVR-A.P2
Data do Acordão: 11/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na ausência de acordo das partes ou disposição válida do credor, conforme decorre do artigo 785º, nº 1 do CCivil, quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.
II – Tal imputação de cumprimento vale igualmente quando o pagamento é obtido coercivamente nomeadamente no âmbito de uma acção executiva.
III- O pagamento parcial da quantia exequenda na pendência da acção executiva não obriga o exequente elaborar nova nota de cálculo do capital ainda dívida e subsequente comunicação ao executado, bastando que venha aos autos informar a ocorrência desse pagamento e peça a redução da quantia exequenda em conformidade.
IV - A mora do devedor-embargante espelhada no requerimento executivo não cessa por força do referido pagamento parcial da quantia exequenda, apenas poderá reduzir, nas obrigações pecuniárias, o montante gerador dos juros moratórios ou qualquer outra taxa ou sobretaxa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1517/18.6T8OVR-A.P2-Apelação

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Execução de Ovar
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
A sociedade comercial “B…, pessoa coletiva n.º … … …, com sede na Rua …, n.ºs … a …, em Lisboa, instaurou execução na forma sumária do processo comum para pagamento de quantia certa, fundada em dois contratos denominados “mútuo com hipoteca”, firmados em 19.07.2006, contra C..., residente na Praceta …, n.º.–.º .º., em Vila Franca de Xira, que outorgou aqueles contratos na qualidade de parte devedora, pedindo:
- Quanto ao contrato n.º …………:
- Capital em dívida: €92.585,19 (noventa e dois mil quinhentos e oitenta e cinco euros e dezanove cêntimos);
- Juros de mora contados a partir de 19.08.2011, à taxa contratualizada, acrescida de imposto de selo sobre aqueles juros, até integral pagamento;
- Cláusula penal moratória de 3% ao ano, sobre aquele capital, a contar da mesma data, até integral pagamento;
- Os montantes de €5.196,51, €681,52, €994,65, €125,79 e €5,04 a título de, respetivamente, seguros, juros moratórios sobre seguros, mutuários conta despesas, juros moratórios sobre mutuários conta despesas e imposto sobre despesas.
- Quanto ao contrato n.º …………:
- Capital em dívida: €4.615,55 (quatro mil seiscentos e quinze euros e cinquenta e cinco cêntimos);
- Juros de mora contados a partir de 19.06.2011, à taxa contratualizada, acrescida de imposto de selo sobre aqueles juros, até integral pagamento;
- Cláusula penal moratória de 3% ao ano, sobre aquele capital, a contar da mesma data, até integral pagamento;
- Os montantes de €219,20, €28,33, €0,97, €176,96, €15,26, €7,79 e €55,91 a título de, respetivamente, seguros, juros moratórios sobre seguros, imposto sobre seguros, mutuários conta despesas, juros moratórios sobre mutuários conta despesas, imposto sobre despesas e imposto de selo.
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Em 08.01.2019, veio o executado C... deduzir embargos à execução, alegando, em síntese, e por via de exceção:
- pagamento parcial do crédito exequendo, por ter pago a totalidade das prestações devidas à exequente que se venceram entre 28.04.2006 e o mês de agosto de 2010, no montante global de €22.068,44;
- Excepção de pagamento parcial do crédito exequendo, por ter pago metade das prestações vencidas entre o mês de agosto de 2010 e o mês de maio de 2012, no montante global de €4.058,62;
- Excepção de pagamento parcial do crédito exequendo, em virtude de à exequente ter sido adjudicada metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º …., da freguesia de …, no âmbito do processo de insolvência da outra devedora e co-mutuária, D…, que corre termos no Juízo do Comércio de Aveiro (Juiz 2), com o n.º 106/14.9T8AVR, pelo preço de €41.000,00;
- Inadmissibilidade de cumulação da cláusula pena moratória de 3% com a liquidação dos juros de mora;
- Prescrição dos juros de mora que se venceram entre 19.06.2011 e 26.11.2013, nos termos do disposto no artigo 310.º, alínea d) do Código Civil.
E, por via de impugnação, alega que o cálculo da quantia exequenda está incorreto e é inexigível.
Quanto ao objeto do litígio, confessa que a partir de Outubro de 2010 e até Maio de 2012 só pagou metade das prestações da casa, e após cessou o pagamento das prestações (cf. arts. 15.º e 30.º da petição de.
Termina pedindo a sua absolvição do pedido, julgando-se extinta a execução pelo pagamento.
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A sociedade exequente contestou, impugnando os fundamentos da oposição nos termos alegados pelo embargante e respondeu às exceções por este invocadas.
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Realizada a audiência prévia, procedeu-se à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
Foram admitidas as provas indicadas pelas partes.
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Realizou-se a audiência final, sem que tivesse sido suscitado qualquer incidente, e apreciada nulidade ou irregularidade arguidas pelas partes, conforme se alcança da presente acta.
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A final foi proferida decisão que julgou parcialmente procedentes os embargos do executado, e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução para cobrança das seguintes quantias e nas condições a seguir indicadas:
- Quanto ao contrato n.º …………
A quantia de capital ainda em dívida, após a adjudicação, que a embargada deve liquidar nos autos de execução, no prazo de 10 dias, nos termos do disposto no art. 785.º do Código Civil, abrangente: - dos juros de mora, à taxa contratualizada, sobre aquele capital, a contar da notificação ao embargante do novo cálculo do capital ainda em dívida, bem como imposto de selo sobre aqueles juros;
- da cláusula penal moratória, à taxa de 3% ao ano, sobre aquele capital, a contar da notificação ao embargante do novo cálculo do capital ainda em dívida; e
- das despesas liquidadas no requerimento executivo, e a contar da notificação do novo cálculo.
- Quanto ao contrato n.º ………….
A quantia de capital ainda em dívida, após a adjudicação, que a embargada deve liquidar nos autos de execução, no prazo de 10 dias, nos termos do disposto no art. 785.º do Código Civil, abrangente:
- dos juros de mora, à taxa contratualizada, sobre aquele capital, a contar da notificação ao embargante do novo cálculo do capital ainda em dívida, bem como imposto de selo sobre aqueles juros;
- da cláusula penal moratória, à taxa de 3% ao ano, sobre aquele capital, a contar da notificação ao embargante do novo cálculo do capital ainda em dívida; e
- das despesas liquidadas no requerimento executivo, e a contar da notificação do novo cálculo.
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Não se conformando com o assim decidido veio a exequente interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se face ao pagamento parcial do montante da quantia exequenda, a embargada/exequente teria que proceder ao novo cálculo do capital ainda em dívida e subsequente comunicação ao embargante/executado.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
a) C... e D... celebraram com a Exequente dois contratos, nos termos dos quais esta entregou àqueles, a título de empréstimo, as quantias de €97.500,00 e € 5.000,00, das quais se confessaram devedores à Exequente, conforme instrumentos que se encontram juntos a fls. 3v’ a 19 dos autos principais de execução, dos quais fazem parte integrante os documentos complementares anexos, e cujos dizeres se dão por inteiramente reproduzidos;
b) As partes convencionaram que, pela utilização dos capitais emprestados, seriam devidos juros sobre o capital em dívida de acordo com as taxas de juros contratualmente estabelecidas, juros esses que poderiam ser capitalizados nos termos da lei, e que, em caso de mora, seriam acrescidos de uma sobretaxa a título de cláusula penal, ainda conforme os mesmos instrumentos de contrato; mais convencionaram que os empréstimos seriam pagos pelos devedores em prestações mensais e sucessivas de capital e juros e nas demais condições constantes dos contratos;
c) As quantias emprestadas foram entregues aos devedores;
d) Para garantia do pagamento dos capitais emprestados, dos juros remuneratórios e moratórios devidos no seu reembolso e das despesas judiciais e extrajudiciais, constituíram os devedores, a favor da Exequente, duas hipotecas sobre a fração autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º …., da freguesia do …, que se encontra registada a favor dos referidos C... e D..., na proporção de metade, mediante a inscrição Ap. 2 de 2006/06/12;
e) Aquelas hipotecas encontram-se registadas a favor da Exequente pelas inscrições Ap. 3 de 2006/06/12 e Ap. 4 de 2006/06/12;
f) Os referidos C... e D... não pagaram à Exequente as prestações vencidas em, respetivamente, 19/08/2011 (contrato n.º …………) e 19/06/2011 (contrato n.º ………..), nem pagaram qualquer uma das vencidas após aquelas datas;
g) A devedora D... foi declarada insolvente por sentença, de 23.03.2015, proferida no âmbito do processo n.º 106/14.9T8AVR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Comércio de Aveiro – J2;
h) A sentença de verificação de créditos proferida no apenso C do processo de insolvência n.º 106/14.9T8AVR, é do dia 24 de novembro de 2017, foi notificada às partes a 27 de novembro de 2017 e transitou em julgado no dia 15 de Dezembro de 2017, conforme documento que se encontra junto a fls. 132 a 134v’ destes autos; nessa sentença foi judicialmente reconhecido o crédito da Exequente, emergente dos mesmos contratos que constituem a causa de pedir na execução, pelo montante de €97.200,74 a título de capital, acrescido de juros e despesas contratualizadas, perfazendo o montante global de € 117.153,42;
i) Por carta de 04.06.2018, a Exequente expediu para o executado C..., que recebeu, o documento junto a fls. 93v’ destes autos, comunicando-lhe as datas de incumprimento e valores em dívida, referentes aos dois contratos, para, “no prazo máximo de 8 (oito) dias, proceder ao pagamento dos montantes em dívida acima discriminados, sob pena de se considerarem imediatamente vencidas todas as obrigações emergentes do(s) aludido(s) contrato(s), que se terão por definitivamente incumpridos, com todas as consequências legais e contratuais”, conforme os demais dizeres daquele documento que se dão por integralmente reproduzidos;
j) Após a emissão das notas de débito juntas em anexo ao requerimento executivo, foi adjudicada à Exequente metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º …., da freguesia de …, no âmbito do processo de insolvência da co-devedora D…, que corre termos no Juízo do Comércio de Aveiro (Juiz 2), com o n.º 106/14.9T8AVR, tendo a Exequente oferecido o preço de €41.000,00;
k) Por referência à data da sentença de reclamação de créditos (24 de novembro de 2017) proferida no apenso C do processo de insolvência n.º 106/14.9T8AVR, o montante de capital em dívida é o seguinte:
- Quanto ao contrato n.º …………:
- Capital em dívida: €92.585,19 (noventa e dois mil quinhentos e oitenta e cinco euros e dezanove cêntimos).
- Quanto ao contrato n.º …………:
- Capital em dívida: €4.615,55 (quatro mil seiscentos e quinze euros e cinquenta e cinco cêntimos).
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Factos não provados
Não se provou que:
- Os pagamentos alegados pelo Embargante nos artigos 14º e 15º da petição de embargos, por conta dos dois empréstimos mencionados no requerimento executivo, não foram considerados pela Embargada no cálculo da quantia em dívida.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se face ao pagamento parcial do montante da quantia exequenda, a embargada/exequente teria que proceder ao novo cálculo do capital ainda em dívida e subsequente comunicação ao embargante/executado.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que, tendo-se verificado o recebimento pela embargada de produto da adjudicação[1]– embora de valor insuficiente para liquidar o remanescente das quantias mutuadas ainda por pagar–, e não tendo aquele credor procedido ao novo cálculo do capital ainda em dívida e subsequente comunicação ao embargante, apenas ocorre a mora deste após a comunicação desse novo cálculo, ou seja, o cômputo dos juros de mora e da cláusula penal apenas se deverá contar desde a notificação que vier a ser efetuada ao embargante do valor remanescente em dívida.
Deste entendimento dissente a embargada, alegando que o pagamento parcial da quantia exequenda deve ser imputada sucessivamente nos termos estatuídos no artigo 785.º do CCivil e, não cobrindo aquele pagamento sequer a totalidade do montante de juros, não há que proceder a novo cálculo de capital.
Que dizer?
No caso concreto a embargada instaurou execução para pagamento de quantia certa, através da qual pretende que lhe seja assegurada a satisfação do direito de crédito exequendo, resultante de dois contratos de mútuo.
Como assim, o pagamento coercivo do citado crédito, salvo no caso de existirem normas imperativas em sentido diverso, tem de ser assegurado nos termos em que o seria no âmbito do cumprimento voluntário e pontual.
Efectivamente, não faria sentido que, inexistindo aquelas normas, o credor vítima de incumprimento por parte do devedor fosse penalizado por recorrer aos meios de cobrança coerciva judicialmente disponíveis.
Assim sendo, importa, desde logo, indagar se no processo executivo existe alguma norma que imponha um regime de imputação do cumprimento diverso daquele que vigora para o cumprimento voluntário extrajudicial das obrigações em geral.
Acontece que, com referência à lei actual, a resposta só pode ser negativa.
É certo que o artigo 169.º do Código das Custas Judiciais previa que se o pagamento de custas fosse coercivamente obtido em prestações, os juros de mora deveriam ser sucessivamente reduzidos em função das importâncias que entretanto fossem pagas. E, com base neste preceito, havia doutrina[2] e jurisprudência[3]que defendia ser aplicável, por analogia, o mesmo regime às demais execuções de natureza civil, designadamente quando a penhora recaísse em vencimentos ou outras prestações periódicas, bem como no caso de consignação de rendimentos.
Todavia, actualmente, não vigorando já aquele preceito (cfr. artigo 25.º, n.º 2, al. a) do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02), nem sendo este um processo destinado à cobrança de custas, rege, para o procedimento de liquidação em análise, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26/06.
Ora, a esse propósito, o artigo 716.º, n.º 2, daquele Código, estatui que “[q]uando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis”.
Trata-se de uma norma que corresponde, no essencial, à que já vigorava no regime processual civil imediatamente anterior (artigo 805.º, n.º 2, do Código de Processo Civil então em vigor), e que pretendeu, no fundo, desonerar o exequente da obrigação de liquidação dos juros vincendos, no caso dessa liquidação estar dependente apenas de simples calculo aritmético, como sucedia no regime instituído no Código de Processo Civil de 1939 (artigo 805.º).
Como assinala Eurico Lopes Cardoso[4]“sempre que os juros continuassem a vencer-se depois de proposta a ação executiva–e é o que sucede geralmente-, era pura inutilidade a conta dos juros vencidos que o exequente fazia no requerimento inicial. Tal conta deixava logo de ser exata; já o não era no próprio momento da citação do executado. Por outro lado, não dispensava a conta que a secretaria tinha de fazer a final, relativamente aos juros vencidos depois daquele requerimento”.
Por isso mesmo se instituiu a conta final dos citados juros, que hoje não é feita necessariamente, pela secretaria, mas, mais genericamente, pelo agente de execução.
Importa, porém, enfatizar que essa conta, nem institui um novo regime de imputação do cumprimento, nem estabelece qualquer regra específica para a mora.
Como salienta F. Correia das Neves[5] em relação ao regime processual civil anterior, “(…) do simples facto de os juros se contarem a final não se poderá concluir que eles, necessariamente, hajam de ser lançados até esse momento”.
Para além disso, e como noutro passo já se referiu, inexistindo actualmente qualquer norma imperativa em sentido diverso, também não se pode retirar da norma transcrita qualquer regime de imputação do cumprimento distinto daquele que vigora para as obrigações em geral, quando são voluntaria e extrajudicialmente cumpridas.
Ora, nestas obrigações, podemos distinguir três espécies de imputação do cumprimento: imputação por acordo; imputação pelo devedor; e, imputação legal.[6].
A imputação por acordo é aquela cujo regime, naturalmente, prevalece, em caso de consenso. Até por decorrência do princípio da liberdade contratual (artigo 783.º, n.º 2, do Código Civil).
Na falta de acordo, impera a vontade do devedor até a lei lho consentir; isto é, se não houver limitações legais, designadamente destinadas a tutelar o interesse do credor (artigo 783.º, n.º 1, do Código Civil).
E, no caso de falta ou ineficácia do acordo das partes ou da declaração do devedor, a imputação deve ser feita em conformidade com os critérios legais de natureza supletiva.
Isto, para a hipótese de existirem várias dívidas homogéneas que o devedor não se proponha satisfazer na totalidade.
Mas, havendo uma única dívida, se ela for de capital acompanhada dos respetivos encargos e o devedor não se propuser saldá-la integralmente, o regime não é substancialmente distinto.
Quando assim é, ou seja, “[q]uando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital”, é o que estipula o n.º 1 do artigo 785.º, do Código Civil.
E acrescenta o n.º 2 da mesma disposição que: “A imputação no capital só pode fazer-se em último lugar, salvo se o credor concordar em que se faça antes”.
Portanto, neste tipo de dívidas, o devedor não pode, contra a vontade do credor, imputar o pagamento na dívida de capital, se também está vinculado ao pagamento de outros encargos dessa mesma dívida e a soma entregue não é suficiente para saldar integralmente todas as referidas prestações.
Ou, como refere Antunes Varela[7], “[n]a falta de acordo entre os interessados, e na falta de designação do solvens, a prestação que não chegue para cobrir a dívida e todos os encargos acessórios presumir-se-á feita por conta, sucessivamente, das despesas com a coisa, dos juros moratórios, dos juros contratuais ou compensatórios e do capital.
O solvens pode afastar-se desta ordem, na designação que faça; o que não pode, porém, é imputar a prestação no capital, sem acordo do credor, antes de estarem extintos os encargos acessórios”.
E o mesmo critério deve valer para a ação executiva.
Com efeito, como acima já se referiu, não há qualquer razão para o credor ser penalizado por se prevalecer dos meios de cobrança coerciva que a lei coloca ao seu dispor e, por assim ser, na ausência de consentimento do credor, não pode o tribunal desviar-se do apontado critério, por não existir fundamento legal para o efeito.
Postos estes breves considerandos analisemos, então, o caso concreto.
Está provado nos autos que após a emissão das notas de débito juntas em anexo ao requerimento executivo, foi adjudicada à Exequente metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º …, da freguesia de …, no âmbito do processo de insolvência da co-devedora D…, que corre termos no Juízo do Comércio de Aveiro (Juiz 2), com o n.º 106/14.9T8AVR, tendo a Exequente oferecido o preço de €41.000,00 [cfr. ponto L) da fundamentação factual].
Dúvidas não existem de que perante a referida adjudicação ocorreu um pagamento parcial do crédito devido à exequente, o que motivou, aliás, a redução do pedido exequendo devidamente homologado por sentença proferida em 26/06/2019 no decurso da audiência prévia que teve lugar nos presentes autos.
Acontece que, salvo o devido respeito, o tribunal recorrido labora em manifesto equívoco, quando conclui que com o recebimento pela embargada de produto da adjudicação, o embargante apenas ficaria constituído em mora após aquela ter procedido ao novo cálculo do capital com a subsequente comunicação este.
É que uma coisa é a data da constituição em mora do devedor e outra coisa é o pagamento parcial do crédito, sendo que este pagamento parcial não faz cessar a mora.
Na verdade, o pagamento parcial do capital em dívida, não tendo a virtualidade de extinguir a mora do credor apenas reduz, nas obrigações pecuniárias, o montante gerador dos juros moratórios.
Mas, vejamos mais em detalhe.
A presente ação executiva deu entrada nos autos em 26/07/2018, onde foi peticionado o total de 133.590,06€, sendo 97.200,74€ referente ao total dos capitais em dívida e 36.389,32€ ao total dos juros calculados sobre cada um dos capitais em dívida, cláusula penal, impostos e despesas desde a data de incumprimento até à data de entrada do requerimento executivo.
A adjudicação de metade indivisa do imóvel à Embargada no processo de insolvência da co-mutuária teve lugar em 13/05/2019 (cerca de quatro meses depois da apresentação dos embargos de executado).
Conforme supra se referiu, em acta da audiência prévia aí foi proferida sentença homologatória da redução do pedido exequendo em função dessa adjudicação.
Até à data da referida adjudicação não foram efetuados quaisquer pagamentos à Recorrente, nomeadamente os referidos nos artigos 14º e 15º da petição de embargos (cfr. ponto único do elenco dos factos não provados).
A adjudicação de metade indivisa do imóvel à Recorrente representou o recebimento de €32.800,00 (cfr. requerimentos com as referências nºs 11031332 e apresentados pela embargada).
Do exposto resulta que os juros, cláusula penal e despesas, mesmo à data do requerimento executivo, eram muito superiores à referida quantia de €32.800,00, recebida pela embargada em resultado da referida adjudicação da metade indivisa do imóvel supra descrito, sendo que, ao caso era aplicável o regime acima descrito do artigo 785.º do CCivil, como de resto a embargada o fez notar no requerimento que impetrou para a redução do pedido exequendo e a que o recorrente não se opôs.
Como assim, não se entende a afirmação feita pelo tribunal recorrido de que, face ao recebimento daquela quantia era necessário proceder ao novo cálculo do capital ainda em dívida.
Com efeito se o recebimento da referida quantia nem sequer cobria o valor dos juros, cláusula penal e despesas, torna-se evidente que o capital em dívida continuava o mesmo e, por assim ser, não se vê que motivo poderia justificar um seu novo cálculo.
O que nos parece é que, como acima já referiu, a exigência desse novo cálculo a filia o tribunal recorrido na circunstância de que o cômputo dos juros de mora e da cláusula penal apenas se contará desde a notificação que vier a ser efetuada ao embargante do valor remanescente em dívida, ainda que se venha a concluir que o valor remanescente atualmente em dívida corresponde aos exatos termos que foram peticionados no requerimento executivo.
Ou seja, tal notificação funcionaria como uma “nova mora”.
Não se pode, salvo o devido respeito, sufragar este entendimento.
Perante o recebimento da referida quantia de €32.800,00 à embargada apenas se lhe impunha que procedesse à redução do pedido exequendo como, aliás, o fez, ainda que esse recebimento fosse também parcialmente imputável ao capital em dívida.
E feita aquela redução do pedido exequendo, devidamente homologada por sentença notificada ao embargante, à recorrente nada mais lhe era exigido e, concretamente, como se refere na decisão recorrida, elaboração de uma nova nota de cálculo que reflectisse o produto da adjudicação nas diferentes imputações desse produto às variáveis que compõem o montante em dívida (capital em dívida, juros de mora, cláusula penal moratória, despesas e comissões contratualizadas), nos termos do disposto no artigo 785.º do CCivil.
Como já noutro passo se referiu o referido pagamento parcial da quantia exequenda, não fez, ao contrário do que parece entender o tribunal recorrido, cessar mora do embargante.
Se mora existia como, efectivamente, assim era, ela não cessou com referido pagamento parcial.
O tribunal recorrido parece entender que, com o referido pagamento parcial, era necessário proceder a nova liquidação do remanescente e, portanto, nos termos do artigo 805.º, nº 3 primeira parte do CCivil não existira mora antes disso.
Mas, salvo o devido respeito, não se concorda com esta asserção.
No requerimento executivo foi apresentado um pedido líquido, aliás, se assim não tivesse sido teria de ter sido seguido ritualismo processual ínsito no artigo 716.º, nº 4 do CPCivil, a menos que a liquidação se pudesse fazer por simples cálculo aritmético.
O próprio tribunal recorrido na sua fundamentação factual [cfr. al. h)] assim o reconhece.
Ora, feito o referido pagamento parcial, o remanescente ainda em dívida não necessita de qualquer liquidação nos termos alvitrados pelo tribunal recorrido, pois que a mesma se opera por simples cálculo aritmético.
Acresce que na oposição à execução em momento algum é posta em causa a mora do executado embargante resultante do requerimento executivo, tendo-se, nesse conspecto, limitado a excepcionar a prescrição dos juros convencionados e os moratórios que se venceram entre 19/06/2011 e 26/11/2013 e que o tribunal recorrido, aliás, indeferiu.
Ora, não tendo sido posta em causa a mora do executado embargante em função do título executivo e que a situa em período anterior à citação para a presente execução (fazendo-a coincidir com a resolução dos contratos de mútuo), não pode o tribunal recorrido fazê-la depender da notificação ao executado/embargante de uma qualquer nova liquidação do remanescente ainda em dívida face a um qualquer pagamento parcial ocorrido na pendência da execução.
Por último importa referir que, como já supra se referiu, quando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis (cfr. artigo 716.º, nº 2 do CPCivil).
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Procedem, assim, as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em dar provimento ao recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, julgam os embargos de executado improcedentes por não provados determinando-se o prosseguimento da execução.
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Custas da apelação pelo embargante recorrido (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 22 de Novembro de 2021

Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Relativo à metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º …, da freguesia de ….
[2] Cfr. F. Correia das Neves, Manual dos Juros, Almedina, págs. 344 e 345.
[3] Cfr. Ac. RP de 16/04/2012, Proc. 3328/07.5TVPRT-D.P, consultável em www.dgsi.pt. seguiu o mesmo critério de imputação bem como o Ac. RL de 21/05/2012, Proc. 532/07.4TBRGR-A.L1-1, consultável no mesmo endereço electrónico.
[4] In Manual da Acção Executiva, 3ª Edição (Reimpressão), Almedina, pág. 199.
[5] Obra citada pag. 341.
[6] Cfr. neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª Edição (Reimpressão), Coimbra Editora, págs. 226 a 228.
[7] Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª ed., Almedina, pág. 57, nota 1.