Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NUNO PIRES SALPICO | ||
Descritores: | OFENSA A ORGANISMO SERVIÇO OU PESSOA COLETIVA ELEMENTOS DO TIPO | ||
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Nº do Documento: | RP202203302129/20.0T9VFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/30/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA (RECURSO DE ASSISTENTE) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - No crime previsto no art.187º do CP estão excluídos os juízos de valor depreciativos do bom nome da pessoa coletiva, e muito embora o seu potencial lesivo, apenas são susceptíveis de tutela cível. Somente a propalação de factos inverídicos associados a pretensas condutas da pessoa coletiva, com um potencial muito mais lesivo sobre a sua credibilidade e confiança, determinam a tutela penal. II - Essa restrição da tutela no art.187º nº1 do CP, associada à exigência probatória que recai sobre a acusação, devendo, para além do mais, provar a falta de fundamento do agente para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos propalados, cumprem o princípio da intervenção mínima do direito penal e torna a tutela aí prevista mais limitada; por contra-ponto aos crimes de injúrias e difamação, cuja tutela se mantem mais ampla, onde à acusação basta a imputação dos juízos de valor depreciativos, cabendo à defesa a prova da boa fé para os reputar verdadeiros cfr.art.180 nº2 al.b) do CP.” | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc.nº2129/20.0T9VFR.P1 *** Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: Nos autos de processo de instrução que correu termos no Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Este, foi proferido despacho de não pronúncia decidindo-se: “Em conformidade com o exposto, ao abrigo do art. 308º, nº. 1, parte final, do Código de Processo Penal, o Tribunal decide: - Não Pronunciar o arguido AA pela prática dos factos e, segundo a qualificação jurídica constantes da Acusação Particular contra o mesmo deduzida nos autos pela Assistente, determinando-se o arquivamento dos presentes autos.” * A assistente “A... Unipessoal, Lda”que anteriormente havia deduzido acusação particular onde havia imputado ao arguido AA a prática do crime de ofensa à pessoa coletiva, na forma agravada, invocando o disposto nos artºs. 187º nº 1 e nº 2 a) do CP, não se conformando com a referida decisão de não pronúncia veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:1. No modesto entendimento da Recorrente, o Dign.º Tribunal “a quo” não poderia ter proferido um despacho de não pronuncia quanto à matéria imputada em sede de acusação particular contra o Arguido, subsumível ao crime de ofensa de pessoa coletiva, nos termos do disposto no artigo 187.º, n.º 1 do Código Penal, sempre agravada no resultado por se ter realizado através de meios que facilitam a respetiva propagação. B. Na publicação pública realizada pelo Arguido, este realiza uma difusão pública infundada e inverídica da realidade dos factos, em clara má-fé, ainda se dirigindo à Recorrente no sentido de dizer que a mesma “engana as pessoas e saca-lhes o dinheiro”, dizendo ainda que “fui enganado e usurparam-me 280.00”, a apelida a Recorrente e os seus funcionários de “intrujas” e “vigaristas”. C. E mais, o Recorrido/Arguido emite ainda um apelo público para as pessoas terem “CUIDADO” com a Recorrente, no sentido de os potenciais clientes se precaverem e terem que ter cautela com a Recorrente porque vão ser enganados. D. De todo o escrito pelo Arguido, resulta de forma absolutamente inequívoca que o mesmo tinha conhecimento da inveracidade dos factos alegados e mesmo assim ainda os divulgou e publicou, querendo propalar tais factos. E. Com todo o devido e merecido respeito, se tais palavras e expressões falsas e infundadas dirigidas contra a Assistente/Recorrente, ofensivas da sua credibilidade, prestígio e confiança, não constituem crime, então a Recorrente não alcança a tipificação criminal subjacente ao artigo 187.º, n.º 1 do CP e o seu âmbito de aplicação. F. Na publicação pública realizada pelo Arguido, este, não tinha qualquer fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros, tão pouco para afirmar e propalar factos absolutamente falsos, todos estes que são altamente ofensivos da credibilidade, prestígio e confiança da Recorrente, pelo que conduta do Arguido é subsumível ao ilícito criminal supra identificado (neste sentido, veja-se, a título meramente exemplificativo o Acórdão proferido por este Insigne Tribunal da Relação do Porto, datado de 19-04-2017, no âmbito do processo n.º 932/14.9PIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt). G. Até porque o facto de o Arguido expor a “sua” suposta versão dos factos não significa que os mesmos se reputem como verdadeiros, tão pouco que existisse fundamento para tal, até porque o Arguido apresenta sempre uma versão que vá ao encontro das suas intenções para afastar a imputação criminal que lhe é dirigida, bem como o Arguido nunca reclamou formalmente contra os serviços prestados pela Assistente (apenas se preocupou em difundir factos falsos, denegrindo ainda a imagem da Recorrente perante clientes, potenciais clientes, fornecedores e público em geral). H. Importando neste momento também fazer uma pequena ressalva, conforme a Recorrente teve o cuidado de verter na sua participação criminal, bem assim na respetiva acusação particular e pedido de indemnização civil, que em virtude da conduta do Arguido, a Recorrente perdeu clientes e teve encomendas canceladas, única e exclusivamente pelos factos falsos que o Arguido verteu no Portal Google e que supra se transcreveram. I. Pelo exposto, e atenda a devida ponderação por parte deste Insigne Tribunal da Relação do Porto, requer-se junto de V.as Ex.as se dignem a revogar a decisão proferida de não pronúncia do Arguido, substituindo-a por outra que o pronuncie pelo crime de Ofensa à Pessoa Coletiva, p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1 do Código Penal, na forma agravada, nos termos do art. 187.º, n.º 2, alínea a) do mesmo diploma legal, para todos os devidos e legais efeitos e com todas as consequências daí advenientes. Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.as Ex.as, sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, deverá ser revogada a Decisão Instrutória ora recorrida e substituída por outra decisão que decida pela pronuncia do Arguido/Recorrido dos factos vertidos em sede de Acusação Particular formulada pela Assistente/Recorrente, com o que, modestamente se entende, V.as Ex.as farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA * O Digno Procurador veio responder ao recurso nos seguintes termos:O Tribunal “a quo” julgou suficientemente indiciados os seguintes factos: “(…)”. Não deu por indiciados os demais factos, designadamente, aqueles que descrevem o tipo subjectivo do crime que o Recorrente entende indiciado. Na verdade, concluiu o Tribunal “a quo”: “Não tendo o arguido representado que estava a propalar ou afirmar factos inverídicos, mas sim estando convicto de que estava a descrever o que, na sua perspectiva teria ocorrido efectivamente, fundamentada na sua actuação (efectuando testes à peça, adquirindo outra que passou a funcionar), sentindo-se vítima na dita transação comercial, por lhe ter sido transmitida uma certeza de funcionamento da peça, pela sua cerificação, o que não acontecia, não se mostra preenchido o tipo legal de crime pelo qual o arguido foi acusado.”. Pois bem, na estruturação do seu recurso, o Recorrente centrou-se sobretudo em considerações sobre o tipo penal incriminador, no que aparentava ser um recurso sobre a matéria de Direito, mas desconsiderou a posição da decisão recorrida sobre os factos indiciados. Isto é, pretendendo uma decisão de pronúncia, nesse caso em particular, o recurso não impugnou a matéria de factos como devida. Não indicou os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, as provas que impunham decisão diversa, não dando assim cumprimento ao ónus que lhe é imposto pelo art. 412.º, n.º 3, als. a), b) e c) e n.º 4 do Código de Proc. Penal. Por estes motivos, deverá a nosso ser rejeitar-se o recurso. II. 2. Da suficiência indiciária: Assim se não entendendo, e à cautela, o Ministério Público considerou em alegações que do teor da acusação particular apenas o segmento relativo ao portal Google (facto 14 dos suficientemente indiciados) poderia resultar em futura condenação, cingindo a sua promoção de pronúncia quanto a esse facto. Quanto ao demais, concorda-se em absoluto com a decisão recorrida e pouco mais se poderá acrescentar porque os juízos de valor não são tutelados pelo tipo penal incriminador. A decisão recorrida, numa aprofundada análise da matéria probatória e, sobretudo, atendendo às declarações do próprio arguido, convenceu-se das razões deste em afirmar que havia sido enganado, em termos porventura deselegantes, mas contidos dentro dos limites típicos porque referentes a uma crença de boa-fé na veracidade das suas imputações. Atento o disposto pelo art. 127,º do Código de Proc. Penal, o recurso não serve, ou não deve servir, por isso, para que as teses nascidas de convicções interiores da Recorrente, não coincidentes com o que foi a convicção do Tribunal a quo, vençam – cfr. Ac. S.T.J. de 8-10-97, Proc. n.º 897/97, apud Simas Santos e Leal-Henriques in “Código de Processo Penal Anotado”, Vol. I, pág. 702. Pois, formulada a convicção do julgador em juízos objectivos e motiváveis, nada se pode apontar à convicção do Tribunal recorrido. No quadro descrito, sendo essenciais as declarações do próprio arguido para ilustrar o que o motivou a agir como agiu, quando as palavras que se lhe imputam, embora deselegantes, são todas elas referentes a uma situação comercial, a livre apreciação da prova é essencial. A postura do arguido, a forma como declarou o que declarou, as insistências sobre este ou aquele ponto, todos estes foram factores seguramente levados em conta pelo Tribunal “a quo” na formação da sua convicção. Mas formou-o precisamente o Tribunal perante o arguido em declarações, e tendo ao seu dispor toda a prova produzida até então nos autos. O Recorrente não é obrigado a partilhar essa convicção, como em certa medida não a partilhou o signatário, mas para abalar essa mesma convicção pouco mais trouxe o Recorrente do que a expressão da sua, o que dita a muito maior probabilidade de insucesso do recurso. Entende assim o Ministério Público, tudo exposto, não secundar o Recorrente nas suas alegações. III. CONCLUSÕES: 1. Pretendendo o Recorrente fosse proferida uma decisão de pronúncia, sem se debruçar sobre os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, as provas que impunham decisão diversa, cingindo-se antes a uma genérica discordância da decisão recorrida, mas não dando cumprimento ao ónus que lhe é imposto pelo art. 412.º, n.º 3, als. a), b) e c) e n.º 4 do Código de Proc. Penal, deve o recurso ser rejeitado. 2. O crime de ofensa a pessoa colectiva não tutela os juízos de valor. No caso dos autos, apenas poderia merecer tutela, não fosse a convicção do Tribunal “a quo” da boa-fé do arguido na afirmação das suas razões, a situação descrita no facto 14 dos factos suficientemente indiciados. 3. O tribunal a quo demonstrou a sua convicção de um modo objectivo e seguro, nos termos do disposto pelo art. 127.º do mesmo Código. A fundamentação foi aprofundada, exaustiva, de elevado grau persuasivo, e sustentada na convicção do julgador sobre as declarações do arguido (neste caso, sobre as motivações do mesmo para afirmar o que afirmou, e por isso, essenciais), tendo o Recorrente se limitado a expressar a sua diversa convicção. Termos em que, improcedendo na íntegra o recurso em apreço, V. Exas. farão a já costumada JUSTIÇA. * Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando, pela improcedência do recurso sustentando em síntese Para além dos argumentos ali extensamente aduzidos, a que que acrescem os alegados nas respostas do Ministério Público (designadamente, no que diz respeito ao incumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto – quanto à não suficiente concretização, pelo recorrente, na sua motivação, dos factos incorretamente apreciados e da alegada ponderação não assertiva feita pelo Tribunal quanto à valoração da prova indiciariamente produzida) e do arguido 1 , há que não perder de vista que o direito penal, na sua essência, tem um carácter fragmentário, de última ratio na proteção dos bens jurídicos comunitários, só devendo ser convocado quando nenhum outro ordenamento jurídico dê suficiente resposta às pretensões do lesado/ofendido. Não é de olvidar que estamos perante um ilícito criminal cuja abrangência de tutela é inferior à inerente aos crimes de difamação e de injúria, e, por isso mesmo, suscetível de uma maior possibilidade de compressão em detrimento de um mais alargado direito de livre expressão de opinião e de formulação de juízos de valor (cfr. artº. 18º nº 2 da CRP)2 , ainda que depreciativos e até revestidos de grosseria e de má educação. 1 Incluindo referências jurisprudenciais. 2 Cfr. “Sobre a tutela penal da honra das entidades coletivas”, Renato Lopes Militão, março de 2016, disponível em: http://julgar.pt/sobre-a-tutela-penal-da-honra-das-entidades-coletivas/ Não nos parecendo que a conduta do arguido tenha dignidade penal e que os direitos do assistente-recorrente tenham necessidade da tutela deste ramo do direito, tal não significa que este não os possa fazer valer noutra sede, se assim o entender. 8. Sobre a matéria em causa, indicamos, a título meramente exemplificativo (e para além dos referidos em anteriores peças processuais), os seguintes acórdãos de Tribunais superiores: Ac. do TRP de 12.5.2021, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/17a149d0f9ed9a4d802586d900512a08?Ope nDocument Ac. do TRP de 27.1.2016, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/1f9058b238f22e1d80257f5e00566c36?Open Document Ac. do TRP de 20.11.2013, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/649d24a355bea32a80257c3600515ae3?Op enDocument Ac. do TRP de 30.10.2013, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/0fab00c6a2ab290380257c2200521381?Ope nDocument Ac. do TRP de 2.10.2013, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/a0f95591b348d6dc80257c070048dd77?Op enDocument Ac. do TRE de 24.9.2013, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/1410c02313b71bcd80257c05004f9853?Open Document Ac. do TRP de 3.4.2013, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/caf62361fc19fce180257b4f003f3a03?Open Document Processo: 2129/20.0T9VFR.P1 Referência: 15518250 Porto - Tribunal da Relação 1ª Secção Campo Mártires da Pátria 4099-012 Porto Telef: 222092600 Fax: 222000715 Mail: porto.tr@tribunais.org.pt Recurso Penal Ac. do TRP de 14.11.2012, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/d095d409aa577c3480257ac4003f87a7?Ope nDocument Ac. do TRP de 11.4.2012, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/67d65d05ad54a93280257a0c004742da?Op enDocument Ac. do TRP de 14.9.2011, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/cc1f69f8ea66c2fd802579250031103c?Open Document Ac. do TRL de 10.10.2007, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/746725bcd836d60480257380003d928f?Ope nDocument 9. De referir, por último, que o Ministério Público nesta instância não está vinculado a qualquer tomada de posição assumida em antecedente fase processual, designadamente quando, no final do inquérito, acompanhou a acusação da assistente agora recorrente, podendo e devendo, fundadamente, alterá-la em fase processual posterior, sendo caso disso, porquanto os seus magistrados, no exercício de funções, regem-se por critérios de legalidade e de objetividade, como decorre da Constituição e da Lei. 10. Em conclusão, e aderindo, no essencial, aos fundamentos do despacho recorrido (bem como às respostas apresentadas), a que acresce o referido no ponto 7, somos de parecer que: a) o despacho de não pronúncia está devidamente fundamentado, de facto e de direito, tendo feito uma correta avaliação e ponderação crítica da prova produzida; b) não houve violação de lei; c) o recurso deverá improceder, mantendo-se o despacho recorrido.. * Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. * II. Objeto do recurso e sua apreciação.O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP. É assim composto: - sobre a verificação dos elementos típicos do art.187º nº1 do CP na forma agravada, devendo o arguido ser pronunciado por esse delito. * Do enquadramento dos factos.Da sentença recorrida constam como factos provados os seguintes: “No termo do Inquérito a que respeitam os presentes autos o Ministério Público proferiu despacho ordenando a notificação da A... Unipessoal, Lda.” para, querendo, deduzir Acusação Particular, nos termos do disposto no art. 285º, nº. 1 do Código de Processo Penal. Nesse seguimento a A... Unipessoal, Lda.” apresentou nos autos a Acusação Particular de fls. 131 e segs., imputando ao arguido AA a prática, em autoria material, de Um Crime de Ofensa a Pessoa Colectiva, p. e p. pelo art. 187º, nº. 1 do Código Penal, na forma agravada, nos termos do disposto no art. 187º, nº. 2, al. a) do mesmo diploma legal. * O MºPº entendeu encontrarem-se reunidos indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos factos constantes da Acusação Particular deduzida, acompanhando-a, como decorre de fls. 128 e de fls. 138. * Notificado da Acusação Particular deduzida, o arguido AA veio requerer a abertura de Instrução, pugnando pela prolação de Decisão Instrutória de Não Pronúncia, tendo invocado, para o efeito, os fundamentos aduzidos a fls. 144 e segs. De facto, o arguido, em síntese, invoca: O arguido refere não ter praticado crime que lhe é imputado. O arguido refere que actuou na veste de legal representante da sociedade “N..., Unipessoal, Lda.” e que o alegado prejuízo referido pela Assistente não se encontra concretizado e materializado em factos, apenas podendo encontrar reparação noutra sede, que não a penal, assim como estão a ser tratados os prejuízos para a sociedade representada pelo arguido. Reportando-se aos emails, refere o arguido: Não corresponde à verdade que o arguido “ameaçou” a assistente com participações junto de entidades fiscalizadoras, tendo o arguido apenas manifestado a intenção de usar dos meios legais ao dispor. O arguido, em tal troca de emails, dirigiu-se aos funcionários da assistente e não a esta. Com efeito, ao ter referido “merda de técnico que aí tem” não se referiu à assistente, mas sim ao técnico que atesta os aparelhos. No email de 29.09 o arguido referiu como sendo “mentirosos” os funcionários e que o negócio foi “na base da falácia da mentira” precisamente por se ter sentido enganado. Os juízos vertidos nos emails correspondem ao facto do arguido se sentir desapossado da quantia que despendeu ao adquirir uma peça defeituosa, não tendo nunca sido ressarcido, sendo obrigado a adquirir outra peça e, bem assim, a ter que recorrer à via judicial para reclamar os prejuízos sofridos. Em abstracto estão em causa crimes de difamação e injúria, só que uma pessoa colectiva não pode ser ofendida de tais ilícitos, pelo que não se encontram preenchidos, nesta parte da acusação, os elementos objectivos do crime imputado. Quanto aos comentários no Portal da Google, diz o arguido: O arguido refere-se ao teor do ponto 32 da Acusação Particular, refutando o ai mencionado, alegando ter denunciado a avaria e os defeitos da unidade ABS junto da Assistente. Segundo o arguido, foi na sequência da inércia e ineficácia na procura de uma solução para a peça avariada e, bem assim, para a reparação dos prejuízos sofridos pelo arguido que se despoletou a situação. Alega o arguido que o invocado não são factos falsos, nem ofensivos da consideração da assistente. Para constituir o crime imputado o afirmado pelo arguido tem que constituir a afirmação ou prolação de factos inverídicos que se mostrem capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança de organismo ou pessoa colectiva. Ora, as afirmações no Portal Google “constituem um juízo pessoal a respeito do negócio celebrado com a assistente, sendo que configuram má educação ou desrespeito na forma de se expressar”. Mas a formulação de tais expressões não deixa de ser meras opiniões e juízos de valor emitidos pelo arguido. Refere o arguido que “não se tratam de propalação de factos inverídicos, mas apenas uma opinião, juízo de valor, indiciariamente desprovida de fundamento real”. Não resulta a alegação da Acusação Particular que o arguido, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmou ou propalou factos inverídicos. Também aqui, defende o arguido, que não se preenche o elemento objectivo do ilícito imputado, pelo que também aqui, os alegados prejuízos da assistente deverão obter eventual reparação noutra sede que não esta. Conclui, o arguido, pugnando pela prolação de Decisão Instrutória de Não Pronúncia. * Na presente fase de Instrução procedeu-se à realização de diligências de Instrução, bem como à realização de Debate Instrutório, como documentam os autos.* Nenhuma nulidade, outra excepção ou questão prévia obsta à decisão. * 2. Fundamentação:2.1. Das finalidades da Instrução: A fase de instrução visa a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” - art. 286º, nº. 1 -”, cabendo ao juiz de instrução praticar todos os actos necessários à realização desta finalidade, para o que dispõe de poderes autónomos de investigação – art. 288º, nº. 4 e 289º, nº. 1, todos do Código de Processo Penal. Realizadas as diligências tidas por úteis e necessárias à descoberta da verdade material, conforme consta do art. 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere um despacho de não pronúncia.”. O critério da suficiência de indícios é o mesmo que subjaz ao da acusação - art. 283º, nº. 2 do Código de Processo Penal, por força do art. 308º, nº. 2 do mesmo diploma que considera como suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança. Por indícios suficientes deve entender-se, assim, o “conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputáveis (...); vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e é o arguido responsável por ele; porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado” – Ac. RC de 31/03/93, CJ, T. II, p. 65. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Vol. I, “(...) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. Ou seja, se no âmbito do julgamento, o julgador tem de fazer um juízo de certeza, já na instrução deve haver um juízo de probabilidade séria, no sentido de que, com toda a probabilidade o arguido será condenado, ou seja, a possibilidade razoável de condenação tem de ser uma possibilidade mais positiva do que negativa, tem de haver uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição, caso contrário deverá elaborar-se despacho de não pronúncia. Contudo, “Não se basta a lei, (...), com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação” - cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 183. Não se visa a demonstração da realidade dos factos, as provas recolhidas nestas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas antes de mera decisão processual quanto à persecução do processo até à fase de julgamento. Como refere António Augusto Tolda Pinto, in ob. cit. a instrução visa a formulação de um juízo de probabilidade para legitimar a sujeição do arguido a julgamento. Cumpre, pois, aferir, após a realização do Debate Instrutório, da suficiência ou insuficiência dos indícios da prática pelo arguido dos factos denunciados e do(s) crime(s) imputado(s). * 2.2. Dos Factos Suficientemente Indiciados:1 - A A... Unipessoal, Lda.” é uma sociedade comercial cuja respectiva actividade consiste no comércio por grosso de peças e acessórios para veículos automóveis. 2 - Neste âmbito, a Assistente, entre outros serviços, vende módulos de ABS usados, com retoma da peça do cliente, caso essa seja sua opção. 3 - Pelo que, e na prossecução do seu objecto comercial, a Assistente foi contactada, no dia 03-09-2020, pelo Arguido, na qualidade de gerente da sociedade comercial “N..., Unipessoal, Lda” (NIPC ..., com sede na ... ...), para a aquisição de um módulo ABS, para um veículo da marca ..., modelo .... 4 - A Assistente apresentou proposta de venda de um módulo ABS, com a características solicitadas pelo Arguido, por €265,00, acrescido de IVA, o que foi aceite e pago pelo mesmo na qualidade de legal representante da identificada “N..." 5 - O referido módulo foi enviado e recebido prontamente pelo Arguido. 6 - No dia 28-09-2020, o Arguido entrou em contacto telefónico com a Assistente, referindo que a peça vendida se encontrava danificada e já nesse momento, iniciou um conjunto de imputações. 7 - No próprio dia 28-09-2020, o Arguido enviou um email à Assistente (email enviado do correio eletrónico ...@gmail.com, às 18:00 horas), reportando-se à compra que foi realizada pela empresa que representa, cujo teor consta de fls. 11 e 11 verso e aqui se dá por reproduzido. 8 - A Assistente respondeu através do email enviado do correio eletrónico ..., às 18:46 horas, o qual consta de fls. 11 dos autos, afirmando “estranharem” o teor do email recebido e cujo demais teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 9 - Posteriormente, e ainda no próprio dia 28-09-2020, foi enviado o email por correio eletrónico ...@gmail.com, às 22:18 horas, cujo teor consta de fls. 10 verso e 11. 10 - No mesmo e-mail (datado de 28-09-2020, às 22:18 horas) o Arguido dirige-se ao funcionário da Assistente, dizendo “… despeça a merda de técnico que ai tem…”, bem como dizendo “…lamento que seja tão incompetente…”, e que “depois teremos outros meios ainda para nos socorrermos da vossa falta de profissionalismo e vigarice…”. 11 - Ainda no referido email, o Arguido escreveu “Também vos posso informar que quem atestou que a merda que me venderam certificada e verificada por vós estava avariada foi a ...…”. 12 - Perante tal, no dia 29-09-2020, pelas 08:44 horas, a Assistente respondeu ao Arguido, tendo em conta o concreto email recebido, nos termos constantes de fls. 10 e 10 verso, cujo teor se dá por reproduzido. 13 - Em resposta, o Arguido remeteu o email enviado no dia 29-09-2020, pelas 10:48 horas, através do correio eletrónico ...@gmail.com, cujo teor aqui se considera reproduzido, onde, além do mais, refere “Quanto à sua colega ela que apresente a tal conversa que o Sr. Menciona que eu insultei a Senhora, além de incompetentes são mentirosos, aliás o negócio começa na base da falácia da mentira, pois são isso mesmo” e ainda “conhece-me lá de algum lado, vigarice sim pois o Sr. BB garantiu-me que a peça tinha sido… transcrição sua (uma peça usada totalmente verificadas pelo nosso Departamento técnico) isso foi o que escreveu e sabe muito bem que é mentira…”. 14 - Arguido, por si e em representação da sociedade “N...”, de forma pública, escreveu um comentário no Portal da Google (cfr. de fls. 13, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido): “Uma estrela pois não existe meia. Represento a empresa que está ai em cima descrita. Colegas do ramo se vierem ler antes de comprar acreditem esses Srs são o que já está aqui descrito por varias vezes noutros comentários, enganam as pessoas e sacam-lhes o dinheiro. Precisei de um ABS para uma viatura e como já está descontinuada de origem fui para internet á procura de empresas que vendessem o produto com alguma segurança e garantia e encontrei estes intrujas, falei com o comercial e o mesmo me aconselhou que tinha dois tipos de produto, um mais barato mas sem qualquer tipo de verificação e outro mais caro mas revisto pelo departamento técnico e se quisesse uma garantia extra pagaria mais 40€ e caso houvesse algum problema o meu cliente estava mais seguro, assim fiz fui pelo melhor e mais caro para garantir um bom serviço ao meu cliente e paguei os 280.00 mais iva, isto dia 9/9/2020, efetuei a compra e o equipamento chegou. Qual foi o meu espanto que quando montei o equipamento na viatura e fui fazer diagnóstico a maquina não comunicava com o ABS e não contava kms, pois este carro conta os kms pelo ABS, isto era o que se passava anteriormente com o ABS velho da viatura, fiquei um pouco perdido e apos vários testes inconclusivos "alguns" e por estar convicto que o equipamento comprado tinha sido testado, verificado em bancada pelos técnicos desta empresa, conforme vem descrito no email que o comercial me mandou aquando da compra pensei que nunca seria da peça que comprei, então andei com verificações testes etc até me dar na bolha e ter comprado outro ABS esse sim de sucata por 74.00 e assim que o coloco na viatura, o erro do painel desapareceu a maquina comunica e inclusive marca kms, então fique estupefacto pois estava convencido que a dita peça tinha sido testada pelos tais técnicos especializados , quero o meu dinheiro de volta, claro que não o vou ter mas destes Srs não quero mais nada que não seja a devolução do numerário pois fui enganado e usurparam-me 280.00 com uma grande falácia de que o produto estava garantido. Entrei em contacto com estes intrujas e os mesmo até me ameaçam com processos em tribunal pois tive a indignidade de lhes chamar "vigaristas"... CUIDADO”. * 2.3. Dos Factos Não Suficientemente Indiciados: - Todos os demais elencados na Acusação Particular deduzida e do despacho de acompanhamento do MºPº constante de fls. 138. * 2.4. Motivação e Crime Imputado: Ao arguido é imputada a prática, em autoria material, de: - Um Crime de Ofensa a Pessoa Colectiva, p. e p. pelo art. 187º, nº. 1 do Código Penal, na forma agravada, nos termos do disposto no art. 187º, nº. 2, al. a) do mesmo diploma legal. O artigo 187º do CP imputado ao arguido, refere, no seu nº. 1, que “Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”. Esta norma visa, de forma específica e particular, proteger as pessoas colectivas, o respectivo bom nome, que se traduz na imagem real que os outros têm da mesma. “O seu prestígio, credibilidade e confiança dependem muito da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva ou instituição” – vide José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I. Coimbra Ed., p. 678. Estamos perante um tipo legal de crime distinto do de Difamação ou de Injúria, previstos e punidos pelos precedentes arts. 180º e 181º do mesmo Código Penal e cujo bem jurídico protegido é a honra individual das pessoas humanas. Neste caso temos um bem jurídico heterogéneo, como nos diz Faria Costa, mas que se pode reconduzir a um denominador comum, que este mesmo autor traduz pela ideia de “bom nome” do ponto de vista da imagem real que os “outros” têm da pessoa colectiva. E como é que se firma, se adquire este bom nome? O Professor que temos vindo a citar presta o seu contributo com o comentário segundo o qual este bom nome será o produto da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva, dependendo, por isso, em grande medida destas mesmas actuações. Por essa razão, a credibilidade, prestígio e confiança em que se traduz o bom nome de uma pessoa colectiva será tanto maior quanto maior for também a crença que a comunidade circundante tenha no valor intrínseco da própria instituição. São três os elementos que compõem o tipo objectivo de ilícito em análise: a) Afirmação ou propalação de factos inverídicos; b) Serem esses factos capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da e na pessoa colectiva; c) Não ter o agente fundamento para, em boa fé, os reputar de verdadeiros. Como já dito, importa realçar que este tipo legal é diverso da difamação ou da injúria, situações que se encontram prevenidas nos artigos 180º e 181º do Código Penal. “Se à primeira vista parecem poder equivaler-se, o certo é que são diferentes; a difamação e a injúria tutelam a honra e a consideração que a cada pessoa deve ser tributado, já pelo artigo 187º protege-se o bom nome de um organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, ou ainda pessoa colectiva, instituição ou corporação. Neste caso o bom nome advirá de, estas entidades, serem tidas como reputadas e/ou prestigiadas, de serem socialmente consideradas como uma entidades credíveis. Pela diversidade própria do âmbito da aplicação destas normas também a forma pela qual o crime se perfaz é diverso; enquanto a difamação ou a injúria se “basta” com a formulação de um juízo, que seja ofensivo da honra, no crime, previsto no artigo 187º do Código Penal, já não relevam a expressão de juízos (opiniões ou considerações atinentes); para o preenchimento do tipo legal importa a afirmação ou a propalação de factos inverídicos (no sentido de que não é verídico, que é falto de exactidão, de autenticidade – cfr. Dicionário do Português actual, Houaiss, Círculo de Leitores)” – vide Acórdão do TRP de 20.11.2103, in www.dgsi.pt. E continua o mesmo Acórdão referindo que “Ora, atendendo ao modo como aquele preceito legal se encontra redigido, não faz falta - nem faria, a nosso ver, qualquer sentido - a remissão para o artigo 182º do Código Penal, que se compreende face à redacção dos artigos 180º “Quem dirigindo-se a terceiro (…)” e 181º “Quem injuriar outra pessoa (…)”, formulação que tem subjacente a oralidade e que por ela se teria de quedar não fosse a equiparação que o artigo 182º do Código Penal vem estabelecer. Outro tanto não se pode dizer da redacção do artigo 187º; aí se estabelece que comete esse crime quem afirmar ou quem propalar factos inverídicos; assim redigido o preceito não se vê como dele se possa retirar que o legislador apenas está a referir-se a afirmações orais e a excluir as que forem feitas por escrito e tendo em conta, até, que estamos cuidando de ofensa a uma entidade colectiva “abstracta” a oralidade nem sequer se encontra subjacente a essa formulação; mas mais, o verbo propalar significa já, tornar público, espalhar, propagar, publicitar, divulgar (sinónimos recolhidos do dicionário Houaiss que já acima referimos); assim mal se entenderia o emprego deste verbo, de significado tão preciso, caso tivesse estado na mente do legislador limitar a forma pela qual se poderiam tornar públicos ou divulgados os factos inverídicos. Isto dito para se concluir que o crime do artigo 187º do Código Penal se perfaz, verificados que estejam todos os demais elementos do tipo, independentemente da forma – oral ou escrita – pela qual os factos sejam propalados”. Como explica Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 980 e segs. “…toda e qualquer pessoa colectiva pode ser vítima de um específico crime contra a honra. (…) O âmbito de protecção desta precisa norma” (art. 187º do CP) “é bem um outro, porque outro é o bem jurídico que, aqui, se protege. E porque outro nada há que impeça que as normas incriminadoras anteriormente analisadas se mostrem, em toda a extensão, aplicáveis”. A Constituição da República Portuguesa consagra, igualmente, o direito à liberdade de expressão e de informar e ser informado, estabelecendo o seu art. 37°, no n°. 1, que todos têm direito a exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, também como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimento ou descriminações. Conclui-se, assim, que a Constituição da República Portuguesa ao tempo que reconhece o direito à integridade moral, ao bom-nome e reputação, reconhece igualmente o direito à palavra e à liberdade de expressão. “O direito de expressão sofre das limitações que a lei penal lhe impõe – cfr. artigo 37º, nº. 3 da Lei Fundamental. A propósito das restrições que a lei fundamental impõe para o direito de expressão, onde caberá, certamente, o direito à crítica de actos ou acções levadas a cabo por pessoas com funções socialmente relevantes, ou pelo menos para uma determinada quota do meio social, escrevem, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira que “do nº. 3 conclui-se, porém, que há certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a punição criminal ou administrativa (sublinhado nosso). Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal. Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom-nome e reputação (cfr. art. 26º). A injúria e a difamação ou o incitamento ou instigação ao crime (que não se deve confundir com a defesa da descriminalização de certos factos) não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de expressão ou de informação” Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Volume I, 4ª edição, 2007, pág. 575. Para o Prof. Manuel da Costa Andrade, o direito à crítica insere-se na “liberdade de expressão o direito que a todos assiste de participar e tomar posição (designadamente sob a forma de crítica) na discussão de todas as coisas e de todas as questões de interesse comunitário” - Cfr. Manuel Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma Perspectiva Jurídico-Criminal”, Coimbra Editora, 1996, pág. 269. O direito à crítica filia-se num direito de cidadania alentado e consolidado na sociedade democrática e alçaprema-se a valor essencial do direito de todos e cada um participarem e intervirem no escrutínio dos actos de gestão e administração em que se consubstancia a actividade pública. Tudo o que é social pode ser participado, porque invasor, em maior ou menor medida, da vida de cada um enquanto elemento e membro de um tecido societário em que lhe foi dado vivenciar. Na crítica ocorrem, ou poderão ocorrer, situações de conflitualidade que sobrepujam, por vezes, os sentimentos e a dignidade pessoal do alvo da crítica e que, numa sensibilidade exacerbada, poderão afectar o que cada um tem para si de valor sócio-pessoal adquirido e projectado na comunidade. Daí que no exercício do direito haja que ponderar os valores em causa e aquilatar dos critérios de oportunidade e necessidade do emprego de determinadas expressões que pela sua aspereza e acinte se potenciem como ab-rogatórias do valor da dignidade pessoal do visado. Conleva aqui uma especial responsabilização do autor da crítica em sopesar os termos empregues no exercício do direito. Existe uma obrigação de evitar expressões gratuitamente ofensivas ou desproporcionadas susceptíveis de pela sua conotação social e pela significação que assumem para o comum das pessoas se tornarem lesivas da dignidade e consideração que a qualquer pessoa são socialmente devidas. Situações há em que a crítica se assume como juízo de apreciação e valoração que envolvem realizações de índole científica, académica, artística, profissional, ou sobre prestações conseguidas no domínio do desporto e do espectáculo. Segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva – isto é: enquanto a valoração e censura criticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores – aqueles juízos caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação. Já porque não atingem a honra pessoal do cientista, artista ou desportista, etc., já porque não atingem com a dignidade penal e a carência da tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Num caso e noutro, a atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do crítico, não havendo, por isso lugar à busca da cobertura de uma qualquer dirimente da ilicitude” – cfr. Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p. 232 e ss. Nestes casos a atipicidade ou inanidade jurídica-penal do juízo crítico não depende do acerto, da valia técnico-científica ou do fundado das apreciações operadas, que por se inscreverem numa tomada de posição de debate num campo de experimentação e de paradigmas variáveis deverão ser entendidas como acções isentas de conteúdo ilícito relevante para a tutela penal. A carga ou ênfase colocada na crítica poderão, inclusive, resvalar para apreciações depreciativas ou pouco abonatórias da pessoa autora da obra ou situação em crítica sem que ainda assim se possa falar de uma necessidade de intervenção do direito penal na protecção dos valores pessoais em jogo. Já não assim quando os juízos críticos desbordam ou empancam num propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa” – vide Acórdão do TRC de 04.02.2008, in www.dgsi.pt. Mas é necessário que a crítica se contenha dentro de limites e de parâmetros de correcção reveladores de um respeito mínimo pela dignidade da pessoa humana. Retomando o pensamento traçado, importa reter que no nosso ordenamento jurídico encontra-se consagrada a liberdade de expressão do pensamento, a qual consiste no direito de exprimir e divulgar o pensamento por qualquer meio, sem impedimentos. “No entanto, esta liberdade (como qualquer outra) deverá terminar, onde começa a liberdade de cada ser humano individualmente considerado. Quando colide com valores individuais, também eles com consagração legal, deve sofrer limitações, pois os valores em confronto são de igual dignidade e merecedores de tutela legal. É assim que os direitos de livre expressão e informação, para além de estarem consagrados no já citado art. 37º da CRP, estão também consagrados no art. 5º do Estatuto dos Jornalistas e, em termos internacionais, no art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no art. 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por seu turno, a CRP consagra o direito à integridade moral e física (art. 25/1) o direito ao bom nome e à reputação (art. 206/1); o C.Penal prevê e pune crimes contra a honra e reserva de vida privada e o Código Civil consagra a tutela do Direito geral da personalidade e prevê a ofensa do crédito e do bom nome. Nesta esteira, o Estatuto do Jornalista, impõe o dever de respeitar o rigor e a objectividade da informação, bem como o respeito pelos limites da Liberdade de Imprensa, nos termos da Constituição e da Lei. São, pois, direitos de igual equivalência e merecedoras de igual respeito, gerando, necessariamente, situações de conflito, difíceis, por vezes, de resolver, pela dificuldade em traçar com nitidez, a linha que separa uma liberdade da outra” – vide Acórdão do TRP de 26.03.2014, in www.dgsi.pt. Cabe lembrar, que tanto a doutrina como a jurisprudência são, desde há muito e de forma unânime, restritivas na avaliação do desvalor da ofensa, considerando “que nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível” - cfr. Prof. Beleza dos Santos, “Algumas Considerações Sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ, Ano 92, p. 167) ou ainda “que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da “intensidade” ou perigo da ofensa” - cfr. Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal”, p. 37- reportando-se as normas citadas ao C. Penal Revisto). Voltando ao ilícito criminal imputado ao arguido importa salientar que “O núcleo do bem jurídico que se quer proteger com a incriminação do artigo 187.º, “Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva” prende-se, com a “a ideia de bom nome” do sujeito passivo, sendo que o que conta, neste contexto, é a imagem real que os “outros” têm da pessoa colectiva, tratando-se de um bem jurídico complexo que engloba a credibilidade, o prestígio e a confiança do organismo, serviço, pessoa colectiva, instituição ou corporação, cujo significado se identifica com o do seu bom nome. O tipo objectivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de “factos inverídicos”, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de “juízos de valor” ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria, reportando-se os factos a acontecimentos da vida real, inseridos num tempo e espaço precisos ou determináveis e não com comentários ou opiniões relativos a um organismo, serviço ou pessoa colectiva, não sendo os mesmos susceptíveis de integrar o tipo de crime em análise” - vide Acórdão do TR de Lisboa de 16.03.2021, in www.dgsi.pt. Daí que, como se afirma no Acórdão do TR do Porto de 06.05.2020, in www.dgsi.pt “Um texto publicado numa rede social da rede digital global, em que são propalados juízos subjetivos, depreciativos e infundamentados, opiniões e expressões idiomáticas a respeito de um município, suscetíveis de ofenderem o prestígio desta pessoa coletiva, não preenche o elemento objetivo “facto inverídico” do tipo legal de crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º, nº. 1 do Código Penal”. No mesmo Acórdão se refere que “… mais que a honra, o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória em apreço é a imagem da pessoa colectiva visada, a valoração que terceiros fazem da pessoa jurídica em questão, o seu bom nome e reputação no mercado, no caso de corporações que especialmente prestem serviços. Ponto é, para a perfeição do crime em causa, que o agente do mesmo afirme ou propale factos inverídicos e que, de todo o modo, estes tenham a potencialidade de atingir negativamente a imagem da pessoa colectiva ofendida; finalmente, necessário se torna que o agente dessa conduta não tenha fundamento para, de boa-fé, entender tais factos como verdadeiros. Este último segmento do tipo legal é de crucial relevância, pois que, mesmo que ocorra atentado à credibilidade, prestígio e confiança da corporação visada e os factos afirmados não tenham correspondência com a verdade, se o agente, sem malícia, estiver convencido da veracidade desses factos, não se acha cometido este crime” (sublinhado nosso). Feito este enquadramento, importa salientar: Relativamente à factualidade considerada indiciada o Tribunal assim a considera tendo em conta o teor dos vários elementos probatórios recolhidos, concretamente os elementos documentais que instroem os autos, em conjugação com as declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas e pelo próprio arguido, este último nesta fase processual. Nos mesmos elementos probatórios se alicerçou a convicção do Tribunal, em conjugação com as regras da experiência comum, para considerar não indiciada a restante factualidade elencada na Acusação Particular deduzida. Procedendo ao enquadramento supra ao caso dos autos, por referência aos factos e crime imputados pela assistente na acusação particular pela mesma deduzida, a par de tudo o que em concreto já ficou analisado, cremos que importa reter: Desde logo, da conjugação da prova recolhida resultou que nas relações comerciais entre a sociedade Assistente e a sociedade representada pelo arguido ocorreu um desentendimento de opiniões: a primeira fornecendo uma peça que alegadamente estaria certificada e beneficiava de garantia e em funcionamento, o segundo afirmando que a dita peça estava avariada e desconforme com o informado e certificado. Cada uma das partes deste negócio manteve, com firmeza, a convicção da veracidade da sua posição. Também foi evidente (desde logo resulta do teor dos emails trocados entre estes sujeitos) que dada a forma indelicada, rude ou mesmo deseducada como o problema detectado foi exposto aos funcionários da assistente pelo arguido, foi recusada a manutenção das conversações no registo pelo qual optou o arguido - cfr. fls. 11 (email datado de 28.09.2020, pelas 18.46 horas). Diga-se que é essa a argumentação usada no dito email pela Assistente. É, pois, evidente que entre arguido e Assistente ocorreu um desentendimento, decorrente da aquisição por parte deste em representação da sociedade que gere, de uma peça auto à assistente, com distintas e opostas interpretações sobre responsabilidades, divergindo, ambos, sobre o estado de funcionamento da dita peça. Assim, enquanto o arguido se insurge pelo facto de ter adquirido uma peça usada, mas cujos estado e funcionamento encontravam-se certificados e com garantia extra subscrita pelo arguido, a qual não estaria a funcionar, mas sim avariada, pela assistente é mantido que a peça encontrava-se em funcionamento, certificada e que o não funcionamento alegado se deveria a qualquer incompatibilidade com o veículo onde foi colocada ou incorrecção nessa instalação, ou seja, imputável apenas ao comprador. Tal resulta evidente da troca de emails entre ambos - cfr. fls. 10 e segs e, bem assim, das declarações das testemunhas inquiridas e do próprio arguido. Foram vários os emails trocados, onde ambas as partes expuseram as suas posições e entendimentos, e mantiveram as suas convicções, sendo que nessa sequência o arguido decide colocar uma exposição da situação, segundo o seu entendimento e a sua versão, no Portal Google, nos termos vertidos na factualidade considerada indiciada supra. Sucede que nas aludidas exposições escritas pelo arguido, quer nos emails trocados, por si redigidos, quer no referido Portal do Google, também da autoria do arguido, como este reconhece, é de salientar que acima de tudo o arguido expõe juízos de valor e convicções pessoais, adjetivando de forma menos correcta essencialmente os funcionários da Assistente, nas suas capacidades, competência e profissionalismo. Contudo, grande parte dos escritos da autoria do arguido consistem em juízos de valor e, essencialmente, no que se refere aos emails, versam sobre a adjetivação dos funcionários da assistente nas suas qualidades (ou falta delas). Daí que, nessa parte, como supra já mencionado, não seja directamente a Assistente a pessoa visada, mas mesmo sendo-o de forma reflexa, pelo facto de serem visados directamente os seus funcionários, o certo é que não descreve o arguido situações fácticas, mas na parte mais acintosa e até vernácula, de incontenção no uso de expressões linguísticas, emite o arguido considerações pessoais, juízos de valor, o que não configura o preenchimento do elemento objectivo do ilícito criminal imputado. Essencialmente na exposição do Portal do Google é que o arguido já descreve a situação vivenciada, fazendo-o na sua perspectiva e visão do sucedido. O que resulta desse texto é que o arguido expõe esta sua versão dos factos, descrevendo a transação comercial efectuada e o que se seguiu, convicto que estava de que lhe assistia razão e, bem assim, da veracidade das suas conclusões, ou seja, convicto de que a peça lhe fora vendida alegadamente certificada, mas não o tendo sido, e contrariamente do afirmado pela assistente, avariada e sem funcionar. Tal convicção do arguido decorre da troca de emails anteriormente ocorrida entre si e a assistente, do teor do dito texto/exposição e das afirmações prestadas pelo arguido nos autos, nas declarações por si prestadas nesta sede de Instrução. Independentemente de ser esta a versão que corresponda à realidade, ou antes a razão encontrar-se do lado da assistente ao manter que a peça por si vendida encontrava-se em funcionamento e até certificada, o certo é que não se descortina que o arguido não estivesse firmemente convicto de que a razão e verdade lhe assistia. Parece-nos evidente que em termos sociais, e até comerciais, a postura do arguido, pelo uso das concretas expressões, se revela altamente censurável e mesmo lamentável. Contudo, em face de todo o exposto, cremos que nada evidencia, contrariamente ao referido no texto acusatório, que o arguido tenha actuado afirmando ou propalando factos inverídicos, sabendo o arguido dessa mesma falsidade. Pelo contrário, do que resulta indiciado é que, com ou sem razão que lhe assista, o arguido estava convencido que a peça adquirida estava avariada e que a certificação afirmada como tendo ocorrido não correspondeu a uma análise do estado e funcionamento da mesma, pois que a dita pela (ABS) não estava a funcionar. É precisamente esta a fragilidade da Acusação Particular. Não tendo o arguido representado que estava a propalar ou afirmar factos inverídicos, mas sim estando convicto de que estava a descrever o que, na sua perspectiva teria ocorrido efectivamente, fundamentada na sua actuação (efectuando testes à peça, adquirindo outra que passou a funcionar), sentindo-se vítima na dita transação comercial, por lhe ter sido transmitida uma certeza de funcionamento da peça, pela sua cerificação, o que não acontecia, não se mostra preenchido o tipo legal de crime pelo qual o arguido foi acusado. Em síntese, é nosso entendimento que não haverá elementos carreados para os autos que nos permitam concluir por uma forte probabilidade de condenação do arguido se sujeito a julgamento pela prática dos factos que lhe são imputados na acusação particular deduzida contra o mesmo nos autos, o que é sinónimo de imposição de prolação de despacho de Não Pronúncia do arguido. 3. Decisão: (…)” * Cumpre apreciar.Apreciando o objecto do recurso, ele centra-se na aferição do mérito da causa respeitante à medição da tipicidade do art.187º nº1 do CP, tendo em conta a conduta do arguido que se indicia, através dos seus comunicados. Importa apurar os termos em que se encontra regulada a tutela legal no referido preceito. Faria Costa substancia o bem jurídico protegido do ente coletivo associado ao bom nome da pessoa coletiva, precisamente composto pelo seu prestígio, credibilidade e confiança, sustentando que estes “dependem muito da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva ou instituição. É claro que aquela valoração – que opera de fora para dentro – está sujeita, por seu turno, à actuação da própria pessoa colectiva.” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p.878, 199, Coimbra). Por sua vez, retomando a citação feita em 1ª instância do acórdão do TR do Porto de 06.05.2020, in www.dgsi.pt “Um texto publicado numa rede social da rede digital global, em que são propalados juízos subjetivos, depreciativos e infundamentados, opiniões e expressões idiomáticas a respeito de um município, suscetíveis de ofenderem o prestígio desta pessoa coletiva, não preenche o elemento objetivo “facto inverídico” do tipo legal de crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º, nº. 1 do Código Penal”. No mesmo Acórdão se refere que “… mais que a honra, o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória em apreço é a imagem da pessoa colectiva visada, a valoração que terceiros fazem da pessoa jurídica em questão, o seu bom nome e reputação no mercado, no caso de corporações que especialmente prestem serviços. Ponto é, para a perfeição do crime em causa, que o agente do mesmo afirme ou propale factos inverídicos e que, de todo o modo, estes tenham a potencialidade de atingir negativamente a imagem da pessoa colectiva ofendida Por sua vez, o Ac. Rel.P de 12/05/2021 in www.dgsi.pt sustentou “A afirmação “Stand Fraudulento” num contexto comunicacional justificativo de uma tal afirmação, que aponta para uma situação de incumprimento contratual, concretamente determinada e que veio a revelar-se verdadeira, não configura a prática de crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal”. Como ente coletivo, a pessoa abstrata não tem sistema afectivo humano, nem a dimensão pessoal da honra, enquanto património axiológico complexo (onde orbitam a lealdade, a retidão, o chamado carácter que se relaciona com o valor dos compromissos e posições assumidas), com projeção individual da dignidade para consigo e para com os outros (aqui a honra toca os conceitos da “consideração” [esta dependendo do valor atribuído por terceiros à pessoa]), como afirmação do seu valor intrínseco, de quem procede “sempre” segundo um dever-ser, de respeito consigo próprio (que se auto-sustenta); de não interferir no património alheio; de respeito pelo interesse público; de respeito com a pessoa do outro [deveres-ser que, no entanto, não deixa de ter dimensão normativa, não constituindo um qualquer código ético à margem do socialmente aceite, com atualidade. Excluindo-se os preceitos obsoletos de uma honra pretérita] que o sujeito pretende cumprir, consistindo um plano de afirmação pessoal e social de que não abdica, assim pretendendo ser reconhecido e identificado perante os outros e perante si próprio, que lhe dá dimensão humana devida e cuja tutela legal pretende salvaguardar. Obviamente que estas dimensões pessoais não estarão em causa no ente coletivo, mas tão só o seu bom nome e a sua imagem no meio social e no mercado, a qual será tutelada ( Neste sentido ver Silva Araújo in “Crimes Contra a Honra”, p.117, Coimbra, 1957.). Porém, a tutela penal do bom nome nas pessoas coletivas, por contraposição à amplitude da tutela da honra das pessoas singulares tem gerado alguma perplexidade na doutrina, precisamente quando, à luz do princípio da intervenção mínima, o tipo previsto no art.187º nº1 d CP constituindo um crime de perigo abstrato-concreto, bastando a idoneidade/capacidade dos factos inverídicos para lesar o bom nome, assim antecipa a tutela legal; enquanto nos crimes de injúria e difamação, sendo delitos de dano, exigem esse resultado, logo, aparentemente, a proteção penal das pessoas abstratas é supostamente mais ampla que a das pessoas singulares ( Neste sentido ver Paulo Pinto Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, 2ª ed..p.585.). Será assim? Para responder a esta questão, importa verificar que no figurino típico do crime previsto no art.187 nº1 do CP operam várias restrições, que, diversamente, parecem cumprir o princípio da intervenção mínima do direito Penal: com efeito, na presente tutela do bom nome do ente coletivo, a ofensa cometida por juízos de valor injuriosos ou difamatórios, em si, não são penalmente tuteláveis (embora possa beneficiar de tutela cível indemnizatória dos direitos de personalidade), somente, como se viu, o impacto que decorra da propalação de factos inverídicos poderão integrar a tutela prevista no art.187º nº1 do CP, sendo que os factos inverídicos, constituirão realidades exteriorizadas do ente coletivo na sua afirmação societária, ou da sua atividade, por isso contém realidades suscetíveis de fixar e chamar a atenção da comunidade. Enquanto, os “meros” juízos de valor depreciativos sobre o bom nome da pessoa coletiva, embora com potencial lesivo, geralmente têm natureza conclusiva e apenas serão alvo da tutela cível cfr.arts.160º, 70º, 72, 483, todos do CC. Insiste-se que a propalação de factos inverídicos associados a pretensas condutas da pessoa coletiva, tem um potencial muito mais lesivo sobre a sua credibilidade e confiança, incidindo sobre concretos procedimentos mensuráveis e racionalizáveis pela comunidade (diversamente sobre o carácter conclusivo dos juízos de valor), sendo somente esta a dimensão penalmente tutelável. Por outro lado, exige-se tipicamente que na conduta do agente, este subjetivamente não tenha fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros (os tais factos inverídicos propalados); ora essa condição subjetiva negativa, integra os fundamentos típicos da imputação jurídica do art.187º nº1 do CP, pertencendo à acusação o respetivo “ónus de prova”; tudo isto, contrariamente aos delitos de difamação e injúrias cfr.art.180 nº2 alínea b) do CP onde a imputada e apurada conduta injuriosa só não será punida, quando o agente na sua defesa provar que teve “fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”, aqui constituindo matéria de defesa, com ónus de prova a cargo desta. Portanto, a exigência probatória que recai sobre a acusação quanto à falta de fundamento do agente para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos propalados, torna a punibilidade do delito previsto no art.187º nº1 do CP mais exigente nas ofensas à pessoa coletiva, assim se cumprindo o princípio da intervenção mínima, e desse modo se equilibram o jogo de interesses com a tutela penal das pessoas singulares, que, bem vistas as coisas, se apresenta como mais ampla. Muito embora se admita nos autos a existência de base indiciária sobre a capacidade lesiva ao prestígio da assistente dos factos propalados pelo arguido, não se indicia, contudo, que os mesmos fossem inverídicos (cujo ónus competia à assistente). Depois, razão tem o Tribunal “A Quo” quando considera a atitude subjectiva do arguido, como desqualificativa da tipicidade do delito. Por mais que impressione a falta de educação e de polimento, assim como a carga dos impropérios que caracteriza a actuação do arguido, essa soma e contundência dos adjetivos que direta ou indiretamente dirigiu à pessoa colectiva, o certo é que a adjetivação e a formulação de juízos de valor depreciativos, como se viu, não integram a tipicidade do delito previsto no art.187º nº1 do CP, e somente a imputação de uma atuação à pessoa colectiva que lese a sua reputação e nome. Assim, a apreciação da tipicidade, centra-se sobre a compra pelo arguido de uma unidade ABS à assistente, para o seu veículo, a qual alegadamente não estaria em boas condições de funcionamento, desde logo, segundo descreve, “por não comunicar com a máquina” (centralina?- o computador de bordo do veículo) e assim não contar os kilómetros. Na aferição da imputação no plano subjectivo do arguido, tal como foi considerado pelo Tribunal “A Quo”, não resulta indiciado que aquele houvesse atuado com dolo, ou seja, que não tivesse fundamento para, em boa fé, estar convencido da veracidade dos factos que imputou. A este propósito, os fundamentos que o arguido expôs na difusão dos factos, concretizam-se no negócio que celebrou com a assistente na aquisição do módulo ABS, nas informações que obteve junto daquela (era uma unidade revista pelo departamento técnico e se quisesse uma garantia extra pagaria mais 40€), e tendo adquirido essa unidade ABS com garantia, no entanto, esse módulo apresentando mau funcionamento, veio o arguido reclamar junto dos funcionários da assistente, a qual imputou o mau funcionamento a uma eventual má montagem ou deficiente conexão com o veículo. Essa reclamação do arguido primeiro ocorreu através de um contacto telefónico e depois por e-mail, o qual veio a merecer resposta da assistente por e-mail, onde refere “estranharem” o teor do email recebido”, havendo sido expedidos outros e-mails (ponto 6 a 12 dos factos indiciados). Resulta que a comunicação entre o arguido e a assistente não foi fácil, porventura não facilitada pela adjetivação do arguido, mas a assistente, deveria dobrar a compreensão perante as reacções de um cliente insatisfeito, e assim ser mais proactiva na resolução do problema. Isso não acontecendo e referindo o arguido que depois comprou uma outra unidade ABS usada, pelo valor de 74€, a qual comunicou com a “máquina”, é com estes fundamentos que o arguido atua e dirige as imputações à assistente no comentário que postou no portal do Google, conforme ponto 14 dos factos indiciados. Ou seja, não resulta que o arguido haja atuado sem fundamento para sustentar os factos que sustentou. Inversamente tinha fundamento para os reputar verdadeiros (ainda que o não fossem completamente), para além de que não se indicia sequer que fossem inverídicas as afirmações do arguido. E perante este seu convencimento, não pode operar a imputação criminal nos termos do art.187º nº1 do CP, tal como considerou o Tribunal “A Quo”, devendo por isso improceder as conclusões do recurso e ser confirmada a decisão impugnada. DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência, decidem confirmar na íntegra o que fora decidido em primeira instância. Notifique. Custas do recurso pela assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UC. Sumário. ………… ………… ………… Porto, 30 de Março 2022. (Elaborado e revisto pelo 1º signatário) Francisco Marcolino Paula Natércia Rocha ______________________ [1] Neste sentido ver Silva Araújo in “Crimes Contra a Honra”, p.117, Coimbra, 1957. [2] Neste sentido ver Paulo Pinto Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, 2ª ed..p.585. |