Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2716/19.9T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTRIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
VEÍCULO IMOBILIZADO EM AUTO-ESTRADA
VELOCIDADE EXCESSIVA
COLISÃO
Nº do Documento: RP202103252716/19.9T8PRD.P1
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O condutor que circula na auto-estrada não está autorizado a presumir que não se deparará em circunstância nenhuma com obstáculos à circulação, permanecendo obrigado a circular com precaução e cuidado, precavido contra situações que embora pouco frequentes podem suceder, como deparar-se com veículo imobilizado na faixa de rodagem em consequência de acidente ou avaria.
II - O espaço livre e visível que releva para o conceito de excesso de velocidade não é o espaço objectivamente disponível, mas o espaço concretamente expectável, previsível, com que era suposto contar, que o condutor devia prever.
III - Na colisão entre um veículo imobilizado na auto-estrada e outro veículo a circular no mesmo sentido, numa recta, de noite e com bom tempo, a culpa deve ser atribuída na proporção de 30% para o primeiro condutor e 70% para o segundo condutor, demonstrando-se que aquele estava imobilizado em virtude de despiste anterior, ocupava a via da direita e não estava ainda sinalizado, e este circulava com as luzes ligadas, embateu sem deixar rastos de travagem e tinha a via da esquerda livre.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO
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Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:2716.19.9T8PRD.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B… – Companhia de Seguros, S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua …, Porto, instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra a sociedade presentemente denominada C…, SA., pessoa colectiva n.º ………, com sede na Avenida …, Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €13.890,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até efectivo pagamento.
Para o efeito alegou que celebrou com D… um contrato de seguro do ramo automóvel relativo ao veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula ..-ML-.., o qual incluiu, além do mais, a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento, e que no dia 11-08-2018, pelas 2h10, ao km 25.260 da A4, sentido este-oeste, quando era conduzido por E…, este veículo esteve envolvido num acidente de viação com o veículo de matrícula CN-….-ZM, conduzido por F…, estando a responsabilidade pela circulação deste veículo transferida para a ré.
Mais alegou que quando circulava nessa via e local, o condutor do veículo por si segurado deparou-se com o outro veículo referido, imobilizado em plena faixa de rodagem depois de se ter despistado, atravessado nas vias e sem qualquer tipo de sinalização luminosa ou triângulo, pelo que aquele condutor, que circulava cumprindo as regras de trânsito, não se apercebeu da presença do outro veículo e embateu com a sua frente na retaguarda deste. Acresce que o condutor do veículo CN-…-ZM apresentava uma TAS de 1,27 g/l. Em resultado do embate o veículo segurado na autora sofreu danos no valor de €28.696,77que determinaram a sua perda total, tendo a autora pago à respectiva proprietária a indemnização de €13.890,00.
A ré contestou, impugnando os factos alegados pela autora e pugnando pela improcedência da acção. Quanto às circunstâncias em que ocorreu o acidente alega que o veículo por si segurado entrou em despiste por razões desconhecidas e foi embater no separador central, imobilizando-se na via da esquerda com as luzes accionadas; logo de seguida foi embatido pelo veículo segurado na autora cujo condutor não terá visto o veículo acidentado na via por circular na faixa de esquerda, sem qualquer razão para o fazer, distraído e a velocidade excessiva para as condições da via já que era noite e não havia iluminação.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condeno a ré a pagar à autora a quantia de €10.417,50, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.
Do assim decidido, a interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Em sede de motivação da sentença recorrida, entendeu o Tribunal, acertadamente, que o veículo matricula ..-ML-.. (adiante apenas ML) circulava na via de rodagem a uma velocidade superior ao limite máximo de velocidade instantânea fixado para o local, que é de 120 km/h.
2. Entre outros, os factos contidos nos factos provados 40 a 42 indicam que o condutor do ML, para além de conduzir em manifesto excesso de velocidade, seguia manifestamente distraído.
3. Violou o condutor do ML os artºs 24º, 25º e 27º do Código da Estrada, sendo o excesso de velocidade o comportamento que mais contribui para a sinistralidade rodoviária, com resultados mais graves e devastadores.
4. Poderia o condutor do ML, em circunstâncias de velocidade prudentes e em condução consciente, desviar-se ou parar o ML perante o obstáculo que constituía a presença do CN acidentado na via de rodagem, com o que o acidente de viação não teria ocorrido.
5. O tempo de reacção do condutor do ML foi consumido, não se tendo sequer configurado qualquer travagem antes do embate, o que realça uma condução imprudente, temerária e irresponsável, face à distância que, em condições normais, deveria ter visualizado o CN, pois a via de rodagem configurava uma recta.
6. O condutor do CN ficou ferido após o despiste, não se tendo apurado se lhe teria sido possível ou não providenciar colocar alguma sinalização da presença do veículo sinistrado na via.
7. Foi o condutor do ML o exclusivo culpado pelo acidente de viação, pelo que não cabe à recorrida o exercício do direito de reembolso contra a recorrente.
8. Devendo a sentença recorrida ser revogada, in totum, decidindo-se a absolvição da recorrente.
9. Sem conceder, atento os factos provados, a sentença sempre merece alteração, no sentido de, caso seja entendido adequado a ocorrência de divisão de responsabilidades entre os intervenientes no acidente de viação, essa responsabilidade recai de forma mais significativa e primordial para o condutor do ML, relativamente ao comportamento do condutor do CN.
10. Devendo, neste entendimento, inverter a divisão plasmada na sentença recorrida, passando a responsabilidade de 75% a recair sobre o condutor do ML e o remanescente sobre o veículo seguro na seguradora representada pela recorrente.
11. De todo o modo, o excesso de velocidade contribuiu decisivamente para o agravamento dos danos – o veículo ML foi considerado uma perda total – devendo aplicar-se o dispositivo do art.º 570º CC, com redução significativa da indemnização que se venha a computar.
12. A decisão recorrida violou lei aplicável na apreciação dos factos provados, nomeadamente os dispositivos estradais contidos nos artºs 24º, 25º e 27º do Código da Estrada, e bem assim, desconsiderou o significado de condução perigosa, aplicável às situações em que o excesso de velocidade contribui para os acidentes de viação.
13. Sem conceder, caso se entenda ser ajustado no presente caso a repartição de responsabilidades entre os intervenientes do acidente de viação, deve ser observada a regra do art.º 570º CC, que a decisão recorrida omite, pois que foi a conduta do próprio lesado, ora condutor do ML, que causou considerável agravamento dos danos, que conduziram à perda total do veículo cujo custo vem a recorrida reclamar reembolso.
Nestes termos e no demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, e a decisão recorrida revogada, nos termos requeridos, com o que se fará Justiça!
A recorrida respondeu a estas alegações, defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado, e apresentou, por sua vez, recurso subordinado, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I – Contra alegações:
A. Não há qualquer facto julgado como assente pela Mma. Juíza do Tribunal “a quo” na sentença, que confirme a referida velocidade de 120 Km/h;
B. Dos factos provados, designadamente os 16), 17), 18), 19), 20), 23), temos que o acidente dos presentes autos ocorre, em plena noite, quando o veículo ML, ao circular pela via da direita da A4 se depara, súbita e inopinadamente, com o veículo ZM imobilizado, após despiste, sem qualquer iluminação ou outra sinalização, em plena faixa de rodagem;
C. Com tal conduta, violou de forma grosseira e objectiva o condutor do veículo ZM o disposto nos artigos 88º, nº 2, 4, e 63º, nº 1, 3, al. a) e 4, todos do Código da Estrada;
D. A Apelante não fez prova de que foi de todo impossível ao condutor do veículo ZM cumprir com as obrigações impostas pelos supra mencionados artigos do Código da Estrada, ónus que sobre si impendia;
E. Não é lógica a alegação de que o condutor do veículo ZM, após a violação grosseira e objectiva dos referidos normativos estradais, não tenha qualquer responsabilidade no que à eclosão do presente sinistro diz respeito;
F. Se o condutor do veículo ZM tivesse cumprido as normas estradais supra referidas, o sinistro aqui em causa nunca se teria verificado;
G. Não é legítimo esperar que um homem médio em condições semelhantes à do condutor do veículo ML tenha presente no seu espírito a possibilidade de a qualquer momento se deparar com um veículo imobilizado, atravessado em plena auto-estrada, sem qualquer sinalização;
H. Não é possível, perante os argumentos da apelante, equacionar uma qualquer inversão das proporções de culpa consideradas para esse efeito na sentença em crise;
I. Não se pode equacionar a redução da indemnização por recurso à aplicação do disposto no art.º 570º do Código Civil, na medida em que a aplicação de tal normativo obriga a que o dano seja causado por um facto praticado tanto pelo lesado como pelo lesante, sendo que o condutor do veículo ML em nada contribuiu para o despiste do veículo ZM, nem tao pouco contribuiu para que o mesmo estivesse em plena faixa de rodagem, imobilizado e sem qualquer sinalização de perigo;
J. Devem ser julgadas totalmente improcedentes todas as conclusões formuladas pela recorrente na sua apelação;
II – Recurso subordinado
K. A apelante concorda em absoluto com o acervo factual julgado como provado e não provado na sentença, não tendo qualquer reparo a fazer ao mesmo, posição que merece também o acolhimento da aqui apelada, tendo em conta o teor do recurso que permite a interposição do presente;
L. O Tribunal “a quo” não andou bem ao julgar a existência de culpa do condutor do veículo ML na eclosão do sinistro dos presentes autos;
M. A conduta do condutor do veículo ZM foi a única que contribuiu para eclosão do acidente;
N. Resulta provado que o condutor do veículo ZM, após o veículo que conduzia se despistar, saiu do mesmo, não tendo tido o zelo, diligência e cuidado de deixar o mesmo sinalizado na via, seja por recurso ao accionamento das luzes de perigo, seja pelo accionamento das luzes de presença, seja pela colocação do triângulo de sinalização de perigo;
O. Tudo o que até agora foi estribado tem perfeito respaldo no acervo factual da sentença, designadamente nos factos provados 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 23);
P. Violou o referido condutor de forma grosseira o disposto nos artigos 88º, nº2, 4 e 63º, nº1, 3, al. a) e 4, todos do Código da Estrada.
Q. Se atentarmos nos argumentos apresentados pela Mma. Juíza do tribunal “a quo”, verificamos que a interpretação que a mesma faz dos arts. 24º e 25º do Código da Estrada, onde sustenta a sua decisão, está em profunda contradição com aquele que tem sido o entendimento dos Tribunais de Recurso, designadamente entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, muito concretamente, no que à aplicação do disposto no art. 24.º do Código da Estrada diz respeito;
R. A culpa é apurada, nos termos do disposto no art. 487º, nº 2 do Código Civil, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso;
S. Perante este princípio e aplicando o mesmo ao acidente dos presentes autos, não é expectável que um homem médio em circunstâncias semelhantes às do condutor do veículo ML, fosse prever ou cogitar a existência de um veículo imobilizado em plena faixa de rodagem, muito menos sem qualquer sinalização.
T. Por outro lado, já não cremos que um homem médio em circunstâncias semelhantes àquelas em que se encontrava o condutor do veículo ZM, tivesse tido a mesma conduta.
U. Conclui-se assim que face aos factos considerados como provados, não pode ser assacada qualquer violação a normativos estradais ao condutor do veículo ML, não sendo a conduta deste de forma alguma ilícita ou culposa, razão pela qual não lhe podia ser atribuída qualquer responsabilidade na eclosão do acidente.
V. Na sentença ora em crise é feita uma incorrecta aplicação e interpretação do disposto nos arts. 24º, 63º e 88º do Código da Estrada e 483º e 487º, nº 2, do Código Civil.
Termos em que, deve a apelação promovida pela seguradora do veículo ZM ser considerada totalmente improcedente por não provada, com as legais consequências. Sem conceder, deve o presente recurso subordinado ser julgado totalmente procedente por provado e, nessa conformidade, deverá o tribunal ad quem revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que considere os termos expostos nas conclusões supra, por ser da mais elementar Justiça.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida qual ou quais dos condutores adoptou comportamentos rodoviários que permitem atribuir-lhe a culpa na produção do acidente e em que medida.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1- A autora é uma pessoa colectiva, constituída sob o tipo de sociedade anónima, com o objecto social de exploração da indústria de seguros do ramo vida e não vida e da indústria de resseguros, com autorização da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões para exercer a actividade seguradora no ramo vida e no ramo não vida.
2- No exercício da sua actividade, a autora, utilizando a marca Seguro Directo, celebrou um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel com D…, a que corresponde a apólice n.º …………, relativo ao veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-ML-...
3- Em virtude da celebração do referido contrato de seguro, foi transferida, para a autora, a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo seguro, bem como foi contratada a cobertura de danos próprios relativamente a este, ao abrigo da cobertura facultativa “choque, colisão e capotamento”.
4- No dia 11 de Agosto de 2018, pelas 2h10, o veículo automóvel ligeiro de passageiros “ML”, esteve envolvido em acidente de viação que desencadeou o accionamento da apólice de seguro acima identificada.
5- O sinistro em apreço ocorreu ao km 25.260 da Auto-estrada A4 (A4), sentido este-oeste, na freguesia de Paredes, distrito do Porto.
6- O veículo acima identificado, na data de ocorrência do sinistro, era conduzido por E….
7- Sendo proprietária do veículo a tomadora de seguro da autora.
8- No referido sinistro, foram intervenientes o veículo “ML” e o veículo de matrícula CN-…-ZM (matrícula espanhola), conduzido por F….
9- O veículo com a matrícula CN-….-ZM é propriedade de G….
10- À data de ocorrência do sinistro, a responsabilidade pela circulação do veículo CN-…-ZM encontrava-se transferida para a ré.
11- O local onde o sinistro ocorreu configura uma recta.
12- Composta por uma faixa de rodagem com duas vias de circulação para cada sentido.
13- Separadas por linha longitudinal descontínua inscrita no pavimento.
14- No momento da ocorrência do sinistro, as condições meteorológicas eram de bom tempo.
15- O pavimento da faixa de rodagem encontrava-se asfaltado e em bom estado de conservação.
16- Nas referidas circunstâncias de tempo e de lugar, circulava o veículo seguro ML na A4, no sentido este-oeste, na via de trânsito do lado direito,
17- Quando, sem que nada o fizesse prever, aproximadamente ao km 25.260,
18- Foi subitamente surpreendido pela presença do veículo CN-…-ZM que se encontrava naquela mesma via de trânsito, totalmente imobilizado,
19- Sem qualquer tipo de sinalização, luminosa ou de triângulo,
20- Encontrando-se o mesmo atravessado em plena faixa de rodagem, após despiste.
21- Nessa sequência, embateu com a sua frente na retaguarda deste veículo,
22- O qual foi projectado para a berma direita da faixa de rodagem,
23- Sendo que, aquando do embate ocorrido, o condutor do veículo CN-…-ZM já não se encontrava no interior do mesmo.
24- Após o embate, o veículo ML permaneceu imobilizado na via de trânsito da esquerda.
25- Ao local foi chamada a GNR do Comando Territorial do Porto, que tomou conta da ocorrência, elaborando a participação de acidente, bem como os Bombeiros e o INEM.
26- Tendo o condutor do veículo seguro ML sido transportado de imediato para o serviço de urgências do Centro Hospitalar …, em Penafiel.
27- Ao condutor do veículo terceiro CN-…-ZM foi efectuada recolha para pesquisa de álcool, tendo o mesmo acusado uma TAS de 1,27 g/l registada.
28- Em resultado do sinistro ocorrido, foram apurados vários danos patrimoniais no veículo seguro.
29- Na sequência de peritagem efectuada pela autora ao veículo seguro ML, foi o mesmo considerado em situação de perda total, uma vez que foram apurados danos estimados no valor de €28.696,77.
30- Tendo o valor do salvado sido estimado em €6.366,00.
31- E o valor da franquia contratual de €844,00.
32- Deduzido o valor do salvado e da franquia, a indemnização a liquidar pela autora foi definida em €13.890,00 (treze mil, oitocentos e noventa euros).
33- Em cumprimento do contrato de seguro celebrado entre as partes, a autora liquidou à tomadora de seguro a quantia acima referida de €13.890,00 (treze mil, oitocentos e noventa euros), conforme comprovativo de pagamento junto sob documento n.º 5 com a p.i.
34- Despendeu a autora com a regularização deste sinistro o montante global de €13.890,00 (treze mil, oitocentos e noventa euros).
35- Em 26 de Setembro de 2019, a autora solicitou à ré o reembolso do valor total despendido com a regularização do sinistro, com fundamento na responsabilidade do condutor do veículo terceiro, seu segurado, conforme comunicação junta com a p.i., sob documento n.º 6.
36- A 29 de Outubro de 2019, veio a ré declinar a sua responsabilidade no sinistro que ora se discute, nos termos do documento n.º 7 junto com a p.i.
37- Até à data, não foi efectuado qualquer pagamento pela ré, a título de reembolso dos valores despendidos pela autora no âmbito do presente sinistro.
Da contestação.
38- Ambos os veículos automóveis circulavam na mesma via de rodagem – Auto-estrada A4 – no sentido … - ….
39- A determinada altura, por razões desconhecidas, o CN entra em despiste, e vai embater no separador central, acabando por se imobilizar na via de rodagem.
40- Posteriormente surge o ML que, aparentemente, não visualiza o CN acidentado na via, indo nele embater.
41- O acidente de viação dá-se de noite, pelas 2h10, e a via de rodagem não tem qualquer iluminação.
42- O croqui policial não assinala qualquer rasto de travagem por parte do condutor do ML antes de este embater no CN.
43- O condutor do CN ficou ferido em consequência do despiste sofrido.
44- A ré endereçou as cartas de não assunção de responsabilidade ao proprietário e condutor do veículo ML, conforme Docs. 1 e 2 Juntos com a contestação e declinou a responsabilidade perante a autora.

IV. O mérito do recurso:
Nos termos do artigo 483º do Código Civil “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Este preceito exige como pressuposto da obrigação de indemnizar a culpa do agente, sob a forma de dolo ou negligência (mera culpa). Segundo Antunes Varela, in Das obrigações em geral, vol. I, 5ª ed., pág. 514, agir com culpa é actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito, o que se verifica quando ele podia e devia ter agido de outro modo. Por outras palavras, a culpa exprime um juízo de reprovação ou de censura normativa da conduta do agente baseado quer em inconsideração, imperícia ou negligência, quer na inobservância de preceitos legais ou regulamentares.
No domínio dos acidentes de viação, a negligência traduz-se as mais das vezes na violação das regras de circulação, que revelam uma actuação desconforme ao dever-ser jurídico tão censurável quanto perigosa é a própria circulação rodoviária. Por regra, em caso de verificação da infracção de uma norma regulamentar não é necessária a prova de que o agente previu ao menos a verificação do evento que essa infracção desencadeia, o que seria necessário para imputar o facto à vontade e assim legitimar a censura ético-jurídica da actuação. Nesse caso, por aplicação de juízos de regras de experiência que fundamentam as presunções naturais, deve considerar-se que o condutor infractor agiu com culpa, a menos que ele demonstre que a contravenção foi alheia à sua vontade.
Perante um acidente de viação existe negligência na condução quando ocorre uma infracção a uma regra de circulação rodoviária. Daí se extrai a culpa do condutor sob forma de negligência desde que pelo menos estejamos perante uma contravenção causal. Como explica Américo Marcelino, in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, pág. 117, citando a opinião de Gomes da Silva, que “uma transgressão é causal de certo evento quando este é daqueles que o legislador previu e quis evitar com a criação da norma incriminadora”. Por outras palavras, sempre que no processo causal do acidente em análise tiver relevo irrecusável o aspecto que a norma estradal desrespeitada pelo agente visa controlar estamos perante uma contravenção causal.
No caso, tendo o acidente ocorrido em Agosto de 2018, a regularidade da actuação rodoviária dos condutores envolvidos na colisão deve ser aferida pelo Código da Estrada aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 151/2017, de 7 de Dezembro, que era a regulamentação rodoviária que nessa data regia a circulação rodoviária.
Dispunha o artigo 24.º do Código da Estrada que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo as características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Já o artigo 72.º, relativo ao trânsito nas auto-estradas, dizia que nas auto-estradas e respectivos acessos, quando devidamente sinalizados, é proibido parar ou estacionar, ainda que fora das faixas de rodagem, salvo nos locais especialmente destinados a esse fim.
Por sua vez o artigo 87.º, relativo à imobilização forçada por avaria ou acidente, estabelecia que em caso de imobilização forçada de um veículo em consequência de avaria ou acidente, o condutor deve proceder imediatamente ao seu regular estacionamento ou, não sendo isso viável, retirar o veículo da faixa de rodagem ou aproximá-lo o mais possível do limite direito desta e promover a sua rápida remoção da via pública. O n.º 3 da norma acrescentava que enquanto o veículo não for devidamente estacionado ou removido, o condutor deve adoptar as medidas necessárias para que os outros se apercebam da sua presença, usando para tanto os dispositivos de sinalização e as luzes avisadoras de perigo.
No que concerne aos dispositivos de iluminação, previa o artigo 60.º que os condutores devem utilizar, entre outras, a luz de estrada (ou máximos), destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância não inferior a 100 metros e a luz de cruzamento (ou médios), destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância até 30 metros.
Especificando as condições dessa utilização, o artigo 61.º estabelecia que desde o anoitecer ao amanhecer os condutores devem utilizar a luzes de cruzamento (ou médios) nos locais cuja iluminação permita ao condutor uma visibilidade não inferior a 100 metros e no cruzamento com outros veículos, pessoas ou animais, quando o veículo transite a menos de 100 m daquele que o precede, e devem utilizar as luzes de estrada (os máximos) nos restantes casos.
Vistas as normas legais atentemos agora nos factos provados que descrevem o acontecimento de vida sob julgamento:
[das condições espaciais:]
- O embate ocorreu no dia 11-08-2018, pelas 2.10 horas, ao km 25.260 da A4, no sentido este-oeste.
- O local é uma recta, composta por uma faixa de rodagem com 2 vias de circulação, separadas por linha descontínua.
- Estava «bom tempo» meteorológico.
- O pavimento era asfaltado e estava em bom estado de conservação.
- No local não existia qualquer iluminação.
[das condições pessoais:]
- O condutor do CN acusou uma TAS de 1,27 g/l.
[da deslocação dos veículos:]
- Os veículos circulavam na A4, no mesmo sentido (… – …).
- A determinada altura, por razões desconhecidas, o CN despistou-se e embateu no separador central, após o que se imobilizou, na via de trânsito do lado direito, atravessado em plena faixa de rodagem.
- O seu condutor ficou ferido e saiu do interior do veículo.
- O veículo ML aproximava-se desse local a circular pela via de trânsito do lado direito.
- O seu condutor foi surpreendido pela presença do veículo CN.
- Cuja posição não estava sinalizada por sinalização luminosa ou triângulo de sinalização.
- O veículo ML foi embater com a sua frente na retaguarda do CN.
- O veículo ML não deixou qualquer rasto de travagem antes do ponto de colisão.
- Na sequência do choque o CN foi projectado para a berma direita da faixa de rodagem e o ML foi imobilizar-se na via da esquerda.
Esta descrição do acidente insere-o no grupo daqueles acidentes que ocorrem quando um veículo se imobiliza na auto-estrada, passando a constituir um obstáculo à circulação e estando na origem da colisão de outro(s) veículo(s) a circular no mesmo sentido com o veículo parado e com cuja presença os outros condutores não contavam e/ou de que não se aperceberam a tempo.
A propósito da não visibilidade do obstáculo e da imprevisibilidade do seu aparecimento, a doutrina e a jurisprudência italianas, como nos dá conta Sinde Monteiro, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131, pág. 49, nota 6, usa a expressão insidia stradale (à letra, “cilada”; igualmente vulgar é a utilização da expressão traboccheto, “armadilha”).
Na verdade, devemos considerar que perante perigos que são tão habituais ou expectáveis que qualquer condutor, usando do normal cuidado e diligência, os pode detectar e adequar a sua condução à presença dos mesmos, caem na esfera de responsabilidade do próprio agente os danos decorrentes da falta ou falha no comportamento que lhe era exigível.
Pelo contrário, o agente não pode ser responsabilizado por um perigo com que não podia ou devia contar, cujo surgimento era em condições normais imprevisível, decorrente de um factor ou obstáculo cujo aparecimento aqui e agora constitui uma surpresa.
O conceito de auto-estrada é o de uma estrada que representa um corredor de circulação mais protegido – separador central, dimensão das bermas, vedação do exterior –, capaz de permitir deslocações mais rápidas – pavimento, rectas e curvas largas – e no qual o condutor paga inclusivamente uma taxa para poder circular. Essa noção cria nos condutores que nela circulam uma expectativa de uma condução mais segura, mais protegida, mais rápida, com menos obstáculos.
Parece pacífico o entendimento de que os condutores da auto-estrada devem cumprir as determinações estradais legalmente estabelecidas, mas não são obrigados a prever o aparecimento súbito de obstáculos na estrada. Ora, não é suposto, nem normal, que numa auto-estrada os condutores sejam confrontados com o aparecimento de um veículo imobilizado na faixa de rodagem, havendo como há uma berma destinada a essa finalidade.
O aparecimento súbito de um obstáculo em plena faixa de rodagem é algo com que não se conta em condições normais (é algo diferente se, por exemplo, há nevoeiro ou outras condições atmosféricas adversas) e, por isso, constitui uma cilada em que pode cair qualquer condutor diligente. Ora este quadro não pode estar arredado da avaliação ético-jurídica para efeitos de formulação do juízo de culpa da actuação do condutor que vindo por trás do veículo imobilizado acaba por ir embater nele.
Afigura-se-nos, contudo, que a ideia de que os condutores não têm de contar com (de conformar a sua actuação em função de) eventos imprevistos, como o aparecimento de obstáculos na faixa de rodagem, sejam eles peões, veículos parados, líquidos que reduzam ou eliminem a aderência ou animais, não pode ser levada longe de mais. Aligeirar o dever dos condutores de serem cautelosos e prudentes e evitarem avaliações temerárias e conduções ousadas é, com todo o devido respeito por opinião contrária, contribuir para os enormes custos humanos que a circulação rodoviária tem no mundo actual e em particular no nosso país.
A auto-estrada não é uma pista automóvel, não é um circuito fechado destinado à circulação de um veículo de cada vez. É uma via, como todas as outras, cuja utilização deve ser regida pelo cuidado, pela precaução, pela atenção, pelo bom senso, pela consciência dos perigos e dos riscos. Sendo certo que é pouco frequente (e por isso menos previsível) que os condutores que circulam nas auto-estradas se deparem com algum daqueles elementos, tal circunstância não é de todo invulgar ou improvável. Os acidentes com a presença deles são bem conhecidos, divulgados nos meios de comunicação e muito frequentemente geradores de impressionantes danos pessoais e materiais pelo número de pessoas e veículos envolvidos.
A afirmação de que o condutor não tem de prever que se vai deparar com a presença de um veículo a obstruir a faixa de rodagem não pode pois afastar a exigência de que ele imprima ao seu veículo uma velocidade que, em caso de necessidade, lhe permita imobilizar-se antes do obstáculo.
Pensar diferentemente é, cremos, olvidar que as regras jurídicas visam essencialmente a imposição de regras de conduta, ajustando a liberdade de cada um ao necessário à coexistência e convivência da colectividade. Nas actividades de risco o objectivo do direito é mesmo o de reduzir esse risco a valores aceitáveis, o que se procura alcançar impondo aos agentes deveres de actuação para diminuir o risco, designadamente responsabilizando-os independentemente de culpa para que a ameaça dessa consequência os leve a adoptar os cuidados indispensáveis para a eliminação ou redução do risco.
A previsibilidade está associada ao desconhecido, à probabilidade de um evento incerto ocorrer, mas o dever de actuação, rectius, a amplitude do dever de actuação, é dependência dos factores que se conhecem e dominam. Não há razão para que numa actividade de risco, numa situação em que as velocidades e as dimensões dos veículos podem causar elevados danos pessoais e materiais, seja permitido ao condutor, perante o desconhecido, confiar sem mais, ao invés de se lhe exigir que seja prudente e cauteloso. Se o condutor não tem visibilidade para além de determinado ponto (v.g. é uma curva, está nevoeiro, chove muito) não deve confiar que para além dele tudo estará livre; pelo contrário, deve ser mais cauteloso, prudente, previdente.
Numa perspectiva simplista e redutora pode parecer que o condutor do veículo que foi embater contra o veículo imobilizado conduzia com excesso de velocidade, ou seja, excedia a velocidade que lhe permitiria, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Mas a norma relativa à velocidade compreende também um elemento de previsibilidade. O que o condutor deve ter em atenção, de molde a adequar a sua velocidade, é a necessidade de executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Por outras palavras, não se trata de fazer parar o veículo sempre e em qualquer circunstância no espaço livre e visível, mas de o fazer parar no espaço livre e visível com que previsivelmente o condutor podia e devia contar. O espaço livre e visível não é o espaço objectivamente disponível, mas o espaço concretamente expectável, previsível, com que era suposto contar, que o condutor devia prever.
Em regra, nenhum veículo pode imobilizar-se na faixa de rodagem da auto-estrada, seja por que motivo for. Todavia, é bem diferente um veículo encontrar-se imobilizado porque, por exemplo, existe uma fila de trânsito e os veículos estão parados à espera de oportunidade para avançarem (v.g. por excesso de trânsito, existência de uma portagem, obras na estrada), porque o veículo avariou e o respectivo condutor não teve a sageza ou a possibilidade de o fazer deslocar para a berma antes de ele cessar o seu movimento ou porque o veículo se despistou (v.g. pela presença de elementos no pavimento como a água ou óleo), embateu com outros elementos estranhos ao ambiente de circulação (v.g. cães que invadem a auto-estrada) ou mesmo na sequência de anterior acidente, em que a imobilização decorre de um evento súbito, imprevisto, violento, perturbador, capaz de afectar o discernimento e a capacidade de actuação do condutor.
O Código da Estrada proíbe os condutores de pararem ou estacionarem nas auto-estradas e respectivos acessos, quando devidamente sinalizados, ainda que fora das faixas de rodagem, salvo nos locais especialmente destinados a esse fim (artigo 72.º). Bem diferente da paragem ou estacionamento, que são actos praticados por livre decisão do condutor, tendo ele a possibilidade de actuar de outro modo, é a paragem por imobilização forçada por avaria ou acidente, a qual naturalmente não se pode proibir por se tratar de um acto involuntário, incontrolável pela vontade do condutor, resultante de caso de força maior.
Daí que o artigo 87.º do Código da Estrada se preocupe sim com as precauções que o condutor deve adoptar na sequência da imobilização forçada em consequência de avaria ou acidente: retirar o veículo da faixa de rodagem ou aproximá-lo o mais possível do limite direito desta e promover a sua rápida remoção da via pública; enquanto isso não sucede, adoptar medidas para que os outros se apercebam da sua presença, usando para tanto os dispositivos de sinalização e as luzes avisadoras de perigo.
Por esse motivo cremos que do ponto de vista da apreciação da culpa não é possível generalizar e afirmar, numa perspectiva, que o veículo pura e simplesmente não pode estar parado na auto-estrada e por isso, só por o estar, o respectivo condutor já se encontra em infracção às regras rodoviárias e a actuar negligentemente, ou, na perspectiva oposta, que estando já imobilizado o veículo representa um obstáculo como qualquer outro pelo que o que importa avaliar é a conduta do outro condutor cujo veículo acaba por ir embater no que se encontrava já imobilizado.
Dito isto centremos agora a atenção de modo específico nos factos provados para vermos o que eles nos revelam.
Em primeiro lugar devemos atentar nas condições espaciais.
Era de noite (duas horas da manhã), não havia iluminação pública no local, mas a estrada desenhava-se em recta, o pavimento estavam bem conservado e estava «bom tempo» (mês de Agosto).
Daqui retiramos que os veículos tinham de circular com a respectiva iluminação ligada. Sendo uma recta, mas desconhecendo-se a sua extensão, não sabemos exactamente a que distância o veículo que seguia atrás podia ter avistado o veículo parado. Nada se provou que justifique que o veículo que embateu circulasse com outras luzes que não os máximos, os quais permitem avistar a não menos de 100 metros, sendo certo que se circulasse com os médios ligados a sua visibilidade seria de cerca de 30 metros.
Retiramos ainda que não havia qualquer elemento atmosférico (chuva, nevoeiro, gelo, neve, granizo, etc.) que devesse ser ponderado pelos condutores como factor de redução de velocidade e/ou de aumento da atenção e/ou concentração da condução.
Não existe qualquer facto provado que revele ou ao menos indicie com a necessária segurança a velocidade instantânea a que circulava o veículo que embateu (ML). A inexistência de rastos de travagem não permite o cálculo dessa velocidade com recurso às fórmulas matemáticas normalmente usadas e a dimensão dos danos nos veículos não são um elemento suficientemente fiável para calcular essa velocidade digamos que «a olho».
No que concerne às circunstâncias pessoais existe o facto de o condutor do veículo embatido (CN) circular com uma taxa de álcool no sangue superior ao máximo permitido por lei. Todavia, uma vez que se desconhecem os motivos pelos quais o seu veículo se despistou e se imobilizou na faixa de rodagem e a colisão do outro veículo ocorreu já com este veículo imobilizado, sendo relevante para a determinação da culpa na produção dos danos, não a sua movimentação (por acção da condução) mas sim a posição imóvel que ocupava na faixa de rodagem, esse factor pessoal é, nas concretas circunstâncias do caso, irrelevante do ponto de vista da formulação do juízo de censura ético-normativa.
No que concerne à movimentação dos veículos é particularmente importante a posição do veículo imobilizado (CN).
Segundo resultou provado, este veículo ficou imobilizado na via de trânsito do lado direito, atravessado em plena faixa de rodagem. Daqui se extrai que tendo a faixa de rodagem no local duas vias de circulação, separadas por linha descontínua, a via da esquerda estaria livre, permitindo que os demais veículos a circular no mesmo sentido contornassem o veículo imobilizado e prosseguissem a sua marcha sem embater neste.
O outro facto muito relevante prende-se com a ausência de sinalização da imobilização.
Resultou provado que o veículo imobilizado não estava assinalado por sinalização luminosa ou triângulo de sinalização. Como vimos, o artigo 87.º do Código da Estrada impõe ao condutor do veículo que se imobiliza na estrada em consequência de um acidente ou de uma avaria que proceda imediatamente à retirada do veículo da faixa de rodagem e, até que isso aconteça, que adopte as medidas necessárias para que os outros se apercebam da sua presença, usando para tanto os dispositivos de sinalização e as luzes avisadoras de perigo.
No caso isso não foi feito, desconhecendo-se porquê. Embora se saiba que em consequência do despiste do veículo o respectivo condutor ficou ferido, desconhece-se se os ferimentos o impediam de adoptar as diligências de alerta para a presença do veículo, da mesma forma que se desconhece o lapso de tempo decorrido entre a imobilização do veículo e a colisão do outro veículo, razão pela qual se entende que se tem de atribuir ao condutor do veículo imobilizado a infracção do dever de cuidado que lhe impõe o Código da Estrada.
Finalmente, deparamo-nos com a circunstância de o veículo ML não ter deixado no pavimento qualquer rasto de travagem. Embora os veículos tendam actualmente a dispor de meios técnicos (v.g. sistema de travagem ABS) que podem fazer com que esses rastos não apareçam ou dificilmente apareçam, não havendo nada que no caso justifique essa falta, cremos dever interpretar a falta como a manifestação de que o condutor do ML não viu ou não reagiu (como devia) à observação do veículo imobilizado. Isso encerra falta de destreza ou falta de atenção às condições de circulação, o que permite um juízo de censura.
Ao condutor do veículo embatido é assim possível imputar a infracção rodoviária de não assinalar a imobilização do seu veículo na faixa de rodagem da auto-estrada.
Ao outro condutor é possível imputar a infracção do excesso de velocidade por não ter ajustado a sua velocidade de modo a poder parar no espaço livre e visível à sua frente porque, com as condições atmosféricas existentes e as luzes do seu veículo, ele tinha condições para ver e precaver a presença do outro e dispunha de uma via de trânsito livre para realizar a manobra de segurança de mudança para outra faixa de rodagem de modo a evitar o veículo imobilizado, contornando-o.
Nesse sentido, entendemos que estamos perante uma situação de concorrência de culpas de ambos os condutores. Na nossa opinião, sopesando os vários factores assinalados, a medida da sua contribuição para a produção do evento e a censurabilidade da ausência do comportamento que seria concretamente exigível, a distribuição dessa culpa deve fazer-se atribuindo 70% da culpa ao condutor do veículo que embateu (ML) e 30% ao veículo que se encontrava imobilizado (CL).
Sendo assim, sendo o valor total dos danos de €13.890,00, a autora, na qualidade de seguradora do ML, deve suportar (não ser ressarcida) o montante de €9.723,00 (70% de €13.890,00) e a ré, na qualidade de seguradora do CL, deve suportar (pagar à autora) o montante de €4.167,00 (30% de €13.890,00).
O recurso principal procede em parte e o recurso subordinado improcede na totalidade.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso principal parcialmente procedente e o recurso subordinado improcedente e, em consequência, alteram a sentença recorrida, reduzindo o capital que a ré é condenada a pagar à autora para a quantia de €4.167,00 (quatro mil, cento e sessenta e sete euros), à qual acrescerão juros de mora contados conforme ali se fixou.
As custas da acção e do recurso principal serão suportadas por autora e ré na proporção de 70% e 30% respectivamente e as custas do recurso subordinado pela recorrente, aqui se condenando as partes a pagar à outra, nessa medida, as custas de parte e eventuais encargos na medida correspondente.
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Porto, 25 de Março de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 607)
Paulo Dias da Silva
João Venade

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]