Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1595/20.8T8LOU-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
CONSTRUÇÃO DE UM MURO
EMBARGOS DE EXECUTADO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Nº do Documento: RP202203071595/20.8T8LOU-A.P1
Data do Acordão: 03/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As regras sobre a interpretação e integração dos contratos, mormente a relativa à doutrina da impressão do destinatário, impedem se coloque a cargo de uma das partes a obrigação de concorrer na execução de uma obra, sobretudo com base em considerações de ordem económica – custo do muro versus valor do imóvel -, quando o texto negocial coloca a execução da obra totalmente a cargo da outra parte, apenas com obrigações acessórias a cargo da primeira.
II - No caso de um muro de contenção de terras, embora sejam possíveis várias soluções técnicas, nomeadamente uma solução mista que implica o concurso da parte que é dona do térreo sito a nível superior, se apenas uma das partes se vinculou à obrigação de edificação de um muro de contenção de terras, não se tendo a outra parte onerado com aquela solução (salvo a obrigação de drenar e limpar o seu espaço), não pode considerar-se implicarem as legis artis tal solução mista, mas apenas a solução que, cabendo tão-só àquele que à mesma edificação se vinculou, implica a construção em toda a altura do talude cujas terras há que conter.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1595/20.8T8LOU-A.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Veio AA formular execução para prestação de facto (execução de muro de contenção de terras) contra BB e mulher, CC, tendo estes formulado os presentes embargos de executado afirmando terem já procedido à execução do muro acordado sendo que, não obstante no acordo executivo não constar as dimensões desse muro, acordaram as partes que o mesmo teria uma altura média máxima de quatro metros, o que foi edificado pelos embargantes, em toda a extensão. Tal muro comporta os impulsos do talude até ao nível a que se acha executado.
Todavia, ficou acordado que a embargada efetuaria trabalhos de terraplanagem necessários para a contenção/aperto das terras no talude e para a condução de águas, tendo sido acordado que aquela faria uma rampeamento do seu lado a partir do limite superior do muro até à crista do talude, o que não fez, tendo-se limitado a efetuar regos de condução das águas e a colocar mais terra e pedras soltas, de modo que o talude tem derrocado.

A embargada apresentou contestação, afirmando, entre o mais, não ter sido edificado o muro a que se refere o título executivo (muro de contenção das terras do talude que os delimita), não se tratando de simples muro de delimitação de terrenos, muro esse cuja altura é insuficiente e com material não adequado, sem fundações que permitam estabilidade, não sendo apto a evitar a derrocada do talude.
Nunca a embargada anuiu que o muro tivesse apenas quatro metros de altura e sendo que o muro sequer tem tal altura.
Quanto às obrigações assumidas pela embargada, foram apenas de as necessárias para drenagem e escoamento de águas do seu prédio, de forma a evitar infiltrações e escoamentos na crista do talude, o que a embargada fez.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 4.10.2021, a qual julgou os embargos improcedentes, determinando o prosseguimento da execução.
Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1. A exequente apresentou à execução o documento autenticado junto com o requerimento executivo, datado de 02.11.2018, no qual a exequente figura como primeira outorgante e os executados figuram como segundos outorgantes, tendo aí aposto as respetivas assinaturas, com o teor que aqui se dá por reproduzido, sendo, na parte relevante, o seguinte:
“(…)
1 -Os segundos outorgantes comprometem-se a edificar um muro em toda a extensão da confrontação dos referidos prédios, por forma a garantir a contenção das terras do talude que os delimita.
2 - Os segundos outorgantes comprometem-se a edificar o muro, da seguinte forma:
a)No prazo de 60 dias…toda a extensão a poente…;
b) Até 30 de Junho de 2019…a extensão a sul…
(…)
4 – A Primeira outorgante compromete-se, no prazo de 60 dias…a executar as obras necessárias para a drenagem e escoamento das águas do seu prédio, bem como se compromete a limpar e a conservar o mesmo de forma a evitar infiltrações e escoamentos na crista do talude.
(…)”.
2. Na sequência do acordo acima referida, os executados construíram um muro, encostado ao maciço/talude do prédio da exequente, em pedras de granito, com a altura variável entre 1,0 e 3,0 metros, tendo as pedras do coroamento desse muro a largura cerca de 0,30 metros,
3. E tendo a base do muro largura não superior a 80 centímetros.
4. O maciço/talude referido no acordo exequendo tem uma extensão de 63,50 metros e a altura média de 8,30 metros, variando esta entre 6 metros e 10,59 metros.
5. O muro construído pelos executados não é adequado a conter as terras do maciço/talude a que se refere o acordo exequendo, com a altura média referida nos factos provados,
6. Mesmo com a realização, na crista do maciço/talude, de trabalhos de drenagem/escoamento de águas e de limpeza/conservação,
7. Sendo que, para que o muro fosse adequado a conter as terras, mantendo-se a altura do maciço/talude, teria de ser construído com altura equivalente ao do maciço/talude e com técnica/material de construção diferente (sem ser suficiente o mero aumento vertical do muro atual).

Foram dados como não provados os factos seguintes:
a) Aquando do acordo exequendo, a vontade/convicção das partes (ou de alguma delas) era no sentido de que o muro a construir pelos executados teria apenas altura média de 4 metros,
b) Cabendo à exequente proceder ao rampeamento do seu terreno a partir do limite superior do muro a construir pelos executados,
c) Sendo que nunca foi pensada pelas partes a construção de um muro até à altura do maciço/talude.
d) O referido em a) a c) era do conhecimento/convicção da exequente.
e) Os executados construíram o muro com altura superior a 3 metros.
f) O muro construído pelos executados é adequado a conter as terras do maciço/talude a que se refere o acordo exequendo, com a altura média referida nos factos provados.
g) A exequente, quando deduziu execução, estava ciente da não correspondência da sua alegação com a verdade.
h) Os executados, quando deduziram embargos, estavam cientes da não correspondência da sua alegação com a verdade.

Desta sentença recorre o embargante, visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim alinhou em conclusões:
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Por sua vez, a embargada apresentou contra-alegações de recurso, opondo-se à procedência deste, com base nos argumentos que assim deixou sintetizados:
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Os autos correram vistos legais.

Objeto do recurso:
Da alteração da factualidade dada como provada e não provada.
Do muro de contenção e das obras a cargo da embargada.
Do abuso de direito.

Como questão prévia invoca a embargada não terem os embargantes cumprido devidamente o ónus de impugnação quanto à matéria de facto, nomeadamente por a indicação dos meios de prova ter sido efetuada de forma genérica, sem indicação das passagens da gravação em que fundam a sua sindicância.
A este respeito estipula o art. 640.º CPC o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
Na situação dos autos, verificamos que os embargantes se limitarem a transcrever os excertos dos depoimentos que, na sua ótica, interessam à defesa dos factos que consideram provados e não provados, não tendo indicado as exatas circunstâncias de tempo em que, ao longo dos diversos depoimentos, se surpreendem aqueles excertos.
Contudo, como refere Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Ed, p. 169, nota 276, “se, em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus da alegação neste campo. A indicação exata das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes dos depoimentos”.
Face ao que acabámos de expor, verificámos que o recorrente cumpriu o ónus que lhe competia em matéria de impugnação da decisão de facto.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Pretendem os recorrentes se considerem não demonstrados os factos dos pontos 5 a 7 da matéria de facto provada.
Todavia, a prova efetuada aponta nesse sentido e bastaria verificar as fotografias do muro em causa para se verificar que o mesmo se não acha com virtualidade para conter as terras do talude quando se dá como demonstrado o que consta do ponto 4: o maciço tem uma altura média de 8, 30 metros, variando entre os 6 metros e os 10, 59.
Sem necessidade de grandes cogitações a este respeito, recorde-se o que consta do relatório pericial:
Resposta do perito do tribunal: O muro em causa está executado em pedras de granito e tem a altura variável entre 1,0 e 3,0 metros. As pedras do coroamento desse muro têm a largura cerca de 0,30 metros. Não foi possível ao Perito aferir a dimensão do muro na base, para se poder identificar a geometria e dimensões em concreto da secção transversal recta, razão pela qual não é possível responder com rigor ao quesito formulado. Contudo, onde foi possível verificar, entende-se que o muro em causa não está estável, evidenciando deformações aparentes no paramento vertical.
Em audiência de julgamento todos os peritos foram unânimes em afirmar que o muro não é adequado a suportar as terras, o que se revela de todo suficiente para dar como provados aqueles factos, face às fotografias dos autos, à altura do muro e à altura do talude para se considerar que, tendo-se os embargantes vinculado à construção de um muro que garantisse a contenção das terras do talude, o muro que edificaram está, à vista desarmada, longe de preencher tal desiderato.
Não resulta do acordo qualquer solução mista que envolvesse compromisso ou acordo entre as partes sobre rampeamento pela recorrida da altura do talude até chegar a uma qualquer altura (4 metros?) de muro que os recorrentes erigiram, sendo absolutamente falso que essa solução – uma das possíveis – estivesse contemplada na intenção das partes, não se vendo por que razão qualquer dos peritos haveria de partir do pressuposto que o muro cumprisse o seu desiderato acaso aquele rampeamento/inclinação do maciço existisse e não sendo de todo compreensível nem de todo aceitável o que afirmou o perito DD a este respeito. A solução mista é um desfecho possível para lograr a contenção de terras, mas não está comtemplada no acordo exequendo nem foi indiada pelas testemunhas como sendo a intenção das partes e isso basta para afastar qualquer referência à mesma para lograr demonstrar a funcionalidade do muro existente.
Também os trabalhos a que a recorrida se obrigava, de simples drenagem e escoamento de águas e limpeza e conservação do terreno é independente da construção do muro e, como resulta dos depoimentos dos peritos, mesmo a ter existido com rigor não tornava o muro existente mais prestável para a funcionalidade – contenção de terras – que o mesmo está longe de operar.
É assim absolutamente falso que da prova – desde logo do documento exequendo – resulta ter sido acordado pelas partes qualquer rampeamento ou outra solução que envolvesse a comparticipação da recorrida que apenas se vinculou a uma drenagem e limpeza do seu terreno, não resultando nada disso de qualquer depoimento, menos ainda do de EE ou do pai da recorrida (testemunha FF), sendo errado afirmar-se estar demonstrado terem as partes acordado que a execução do muro seria até parte do talude, nomeadamente até à altura atual.
Nem sequer a exequente, no seu depoimento, ou o seu pai já mencionado, aludiram a tal entendimento, sendo que as conversações se efetuaram através de mandatários e sem intervenção direta das partes na definição de alturas de muro ou talude, tendo-se limitado estas a subscrever a obrigação de construção de um muro de contenção de terras, não resultando nunca mencionada qualquer solução mista que o documento exequendo não consente, muito menos o seu ponto 4 que se refere a mera drenagem e limpeza e nunca a rampeamento e nem a altura deste.
Por esse motivo, não é verdade que a recorrida tenha afirmado não ter rampeados apenas por receio da estabilidade do talude, sendo que esse rampeamento nunca foi cogitado e trata-se de uma solução técnica possível que veio a ser aventada pelos peritos, nomeadamente o indicado pelos recorrentes, naturalmente para mitigar a obrigação destes, mas ao arrepio da vinculação negocial que ficou estipulada em documento exequendo.
Também não está demonstrado que a exequente tenha colocado mais terra acima do talude e assim aumentado a instabilidade do mesmo. De resto, essa situação não contende sequer com a obrigação a cargo dos embargantes de construção de um muro de contenção de terras conforme dever a que se vincularam perante aquela.
É assim incompreensível que se debatam pelo rampeamento do talude, mormente a 45 graus quando, na verdade, no acordo exequendo obnubilaram quaisquer especificações técnicas quanto à construção e contributo da outra parte (exceção da drenagem e limpeza) tendo-se genericamente vinculado à construção de um muro que contenha as terras do maciço.
Assim sendo, é absolutamente irrelevante o valor da construção do muro – que os peritos balizam entre cerca de €47.000, 00, e €56.000, 00 – em confronto com o valor de mercado do imóvel dos recorrentes (que se ignora), quando é certo que a construção do muro, no acordo, não ficou na dependência de valores a suportar pelos obrigados à prestação de facto, ignorando-se mesmo se essa construção não aumentará exponencialmente o valor final do mesmo imóvel. Sendo assim, é irrelevante aventar-se com a ausência da vinculação à construção de um muro com a altura do talude em função do seu valor posto que os recorrentes não colocaram essa condição no acordo que firmaram.
Mesmo que a recorrida não tenha construído uma rede de drenagem, efetuou uma vala do lado oposto, mas isso e a limpeza do terreno ou ausência desta não são motivos para impedir os recorrentes de construírem o muro de contenção das terras, não tendo os peritos concluído – muito ao contrário – estarem os embargantes impedidos de construir o muro correto de contenção de terras em função da falta de drenagem ou limpeza na parte superior da crista. Quando muito, a ter ficado por executar aquela obrigação, caberia aos embargantes, por seu lado, promover a ação executiva para aquela prestação de facto, mas não usar esse argumento para referir que o muro não poderia ser construído de outro modo.
Mantêm-se, por isso, os factos dados como provados na sua integralidade.
Consequentemente, também não podem dar-se como provados os factos dados como não provados, uma vez que, como já referido, não resulta do documento firmado e menos ainda das testemunhas inquiridas que as partes tenham acordado como limite máximo do muro uma média de 4 metros ou tenha existido qualquer vinculação da recorrida a efetuar qualquer rampeamento, sendo a solução mista apenas agora aventada como possível solução técnica, mas não pressupondo as partes o concurso de ambas para a solução técnica final, apesar da drenagem e limpeza da crista caberem à recorrida, admitindo esta em depoimento de parte que o que pretendia era a contenção das terras (não sendo verdade que o seu problema fosse apenas o de que lhe não retirassem mais terreno) mesmo que o muro tivesse de ter a altura do talude, mas sendo que as negociações se estabeleceram entre mandatários que omitiram tais especificações técnicas no acordo firmado.
Menos ainda a testemunha FF referiu qualquer acordo no sentido de o muro ser executado até determinada altura com rampeamento do restante pela filha.
Se a convicção do executado foi a de executar um muro com dois metros e meio ou três de altura ou mesmo 4, a verdade é que nenhuma testemunha o referiu com algum conhecimento direto de causa e a verdade é que esse facto não consta do documento firmado pelas partes, resultando daí a obrigação dos recorrentes de executarem um muro de contenção de terras independentemente da altura deste que em lado algum é limitada.
É completamente abusivo afirmar-se ter ficado demonstrado em audiência ter sido negociada uma solução partilhada e equitativa, sendo que a drenagem e limpeza da crista não equivale, como é evidente, ao rampeamento do talude até qualquer altura – e qual ? – por parte da recorrida.
Também não está demonstrado que foi a falta de intervenção da exequente na crista do talude que impediu a construção do muro integral pelos embargantes ou levou a derrocadas, não sendo verdade terem os peritos concluído não ser possível a intervenção do muro dada a instabilidade do talude, posto que a solução de construção de um muro na integralidade da altura do talude é uma das soluções preconizada.
As matérias dos pontos a) a f) não provados são, assim, de manter integralmente.

Fundamentos de direito
Conforme se referiu em primeira instância, a interpretação dos acordos negociais faz-se segundo a regra do art. 236.º CC que firma a doutrina da impressão do destinatário.
O art. 236.º serve para determinar se certo comportamento é uma declaração negocial; qual o sentido jurídico dessa declaração negocial; se a declaração apresenta pontos omissos.
Neste último caso, vale a regra do art. 239.º, sendo que, não se trata de apurar exatamente qual a vontade hipotética e conjectural das partes, mas a vontade hipotética objetiva, segundo a qual as declarações negociais e os demais dados relativos à situação existente, bem como os valores e interesses em presença, devem reconstruir, mediante ponderação objetiva, a vontade justa que as partes teriam se houvessem previsto o ponto omisso.
Nos contratos, está sobretudo envolvida a tutela da legítima confiança das partes e a devida consideração pela lógica imanente ao negócio que, no caso dos contratos onerosos, implica ponderar critérios de racionalidade económica, de maior aproveitamento dos custos, e da redução destes, por forma a conseguir uma prossecução ótima dos fins dos contratos.
Para que haja integração negocial tem de existir uma lacuna, isto é, a solução jurídica deverá estar afastada do contrato.
Não é isso que sucede in casu, quando, não obstante se ter omitido a descrição técnica do concreto muro se escreveu que o mesmo é de suporte de terras, colocando-se a cargo dos embargantes a sua execução.
Por outro lado, não resulta do contexto do negócio que a vontade hipotética das partes fosse a optar pela solução mista, de muro de 3 ou 4 metros de altura com rampeamento do talude pela embargada. É que a cargo desta também se colocaram obrigações, mas não de intervenção direta sobre o talude, mas sim de drenagem/escoamento e limpeza.
Não pode, pois, afirmar-se que existir lacuna na definição do concreto objeto das obrigações assumidas pelas partes, quando é certo que, conhecendo as partes o local da intervenção, colocaram a construção do muro tendo em vista a contenção das terras apenas a cargo de uma delas.
As regras sobre a interpretação dos contratos, mormente a relativa à doutrina da impressão do destinatário, impedem se coloque a cargo da embargante a obrigação de concorrer naquela obra, sobretudo com base em considerações de ordem económica – custo do muro versus valor do imóvel, quando se ignora qual o valor deste último e a valorização que para o mesmo resulta da construção do muro.
Conforme referem Evaristo Mendes e Fernando Sá[1], “cabe realçar que o juiz não pode emitir simplesmente o seu próprio juízo, mas tomar por base o texto e situar-se no contexto do negócio em causa”.
Quanto ao abuso de direito, o mesmo é inteiramente de afastar.
Os factos provados não permitem se considere verificada a figura prevista no art. 334.º CC.
Os recorrentes consideram que a construção do muro até à crista do talude extravasa os limites da boa-fé e do fim económico do direito posto que em momento algum foi essa a convicção das partes, sendo uma solução desproporcional face ao valor de mercado do imóvel do executado.
Ora, cabe mencionar que o que consta como sendo a obrigação a que se vincularam as partes é a construção de um muro de contenção de terras, sem limitação de altura, por um lado, e a simples drenagem e limpeza da crista, por outro.
Não resulta que as partes tivessem querido subordinar a respetiva obrigação a qualquer proporção de valor, ignorando-se e sendo irrelevante, o valor de mercado do terreno onde se edificaria o muro.
Não se trata a construção do muro de um simples ato emulativo que apenas tivesse em vista causar prejuízo aos recorrentes, quando é certo que estes se vincularam voluntaria e livremente àquela construção sem limitação de altura e apenas tendo como limite a própria finalidade da construção e que era a contenção de terras. Ora a finalidade de um muro de contenção de terras não pode senão alcançar-se através da construção da acordo com as legis artis.
O conceito de legis artis é o conjunto de regras técnicas e profissionais que, no domínio da construção civil, o construtor tem obrigação de saber e utilizar para levar a efeito a obra tendo em conta o fim a que se destina.
No caso de um muro de contenção de terras, embora sejam possíveis várias soluções técnicas, nomeadamente uma solução mista que implica o concurso da parte que é dona do térreo sito a nível superior, se apenas uma das partes se vinculou à obrigação de edificação de um muro de contenção de terras, não se tendo a outra parte onerado com aquela solução (salvo a obrigação de drenar e limpar o seu espaço), não pode considerar-se implicarem as legis artis tal solução mista, mas apenas a solução que, cabendo tão-só àquele que à mesma edificação se vinculou, implica a construção em toda a altura do talude cujas terras há que conter.
Sendo assim, não podem reclamar de uma solução a que se vincularam, sem concurso da outra parte, nomeadamente em termos de solução mista, sendo que a ausência de uma rede de drenagem e de uma limpeza do talude sequer é condição suspensiva da execução do muro pelos embargantes, sendo, quando muito, motivo para que os mesmos, se assim o entenderem, requeiram a execução para prestação de tal facto.
Pelo exposto, mantém-se a improcedência de embargos.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Porto, 7.3.2022
Fernanda Almeida
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, p. 551.