Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8743/24.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
SIMPLIFICAÇÃO
AGILIZAÇÃO PROCESSUAL E ADEQUAÇÃO FORMAL
Nº do Documento: RP202503068743/24.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando a acção houver de prosseguir (não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
II - Em casos limite, quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão for pacífica na jurisprudência e na doutrina, o juiz poderá, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal, proferir a decisão por escrito sem realizar a audiência prévia.
III - Para que tal possa ocorrer é necessário que a decisão de prescindir da audiência seja fundamentada e precedida do convite expresso às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e da permissão às partes para alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:8743.24.7T8PRT.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente no Porto, instaurou acção judicial com processo declarativo contra A..., Lda. (A...), pessoa colectiva com número único de identificação e de contribuinte fiscal ..., com sede em ..., Gondomar, e BB, com residência profissional no mesmo local, pedindo a condenação dos réus, “solidária e subsidiariamente” (sic), a pagar à autora €61.431,75 de indemnização pelos defeitos, designadamente, patologias, material diverso e obras não executadas, e €10.000,00, de indemnização por danos morais.
Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que contratou com os réus a execução de uma empreitada de obras de reabilitação do prédio onde se integra a fracção urbana que lhe pertence; que no tocante à sua fracção parte dos trabalhos contratados não foi executada e os trabalhos executados apresentam defeitos, sendo necessário proceder à reparação desses defeitos e executar os trabalhos por executar, pelo que a título de custo das reparações e diferenças de preços entre o orçamentado e pago e o executado a autora é credora da quantia de €61.431,75; acresce que toda esta situação causou danos não patrimoniais à autora cujo ressarcimento deve ser fixado em €10.000.
Efectuada a citação foi apresentada contestação. Nesta, para defender a improcedência da acção, para além de impugnarem parte dos factos alegados, os réus arguiram a nulidade da citação do réu BB, a ilegitimidade deste, a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, a caducidade do exercício do direito da autora, a ilegitimidade da autora para peticionar danos referentes aos trabalhos descritos nas fls. 1 e 2 do doc. 21 da petição inicial, o abuso do direito.
A autora foi convidada a pronunciar-se por escrito sobre a matéria das excepções.
Logo após foi proferido despacho saneador, no qual começou por se julgar improcedentes as excepções da nulidade da citação, da ilegitimidade do réu e da autora e da ineptidão da petição inicial.
Após afirmou-se: «uma vez que, a propósito da pronúncia quanto à matéria da excepção da caducidade do seu direito, a autora pronunciou-se quanto à questão da denúncia dos defeitos, e quanto à formulação do pedido de condenação no pagamento de indemnização, e desnecessidade de formular pedido eliminação dos defeitos invocados, e conclusão dos trabalhos em falta, cumpre proferir sentença, nos termos do artigo 595º, n.º 1, b) do CPC, pelo que dispenso a realização da audiência prévia – artigo 593º, n.º 1 e 2, a), também do CPC.»
E de seguida conheceu-se do mérito da causa julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1 - O douto saneador/sentença em crise, após ter fixado o objecto do litigio que aqui se dá por integralmente reproduzido por economia de tempo e espaço e para todos os devidos e legais efeitos, sustenta a decisão no artigo 595º, nº 1 al. b) do CPC, dispensando a realização da audiência prévia - artigo 593º, nº 1 e 2, a), também do CPC.
2 - Entendemos, salvo o devido respeito, que o Tribunal “a quo” não poderia ter proferido a presente decisão sem, previamente, ter notificado as partes para se pronunciarem (por escrito ou oralmente) sobre a dispensa da audiência prévia que nos termos da lei, se apresenta como obrigatória por não figurar nos casos em que pode ser dispensada.
3 - A audiência prévia apenas poderá ser dispensada ao abrigo dos poderes de gestão processual que estão atribuídos ao juiz no sentido de adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litigio em prazo razoável - arts. 6º e 547º do CPC -, devendo essa dispensa ser precedida de audiência das partes - que não ocorreu - configurando nulidade processual por conhecer do mérito da causa sem dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria em discussão.
4 - A situação em que o juiz tencione conhecer do mérito da causa no despacho saneador não está incluída nos casos em que, nos termos previstos no nº 1 do art. 593º do CPC, a audiência prévia pode ser dispensada - cfr. jurisprudência maioritária, designadamente, o Acórdão da Relação do Porto de 24/09/2015, Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 10/07/2018, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 03/03/2020, Ac. Tribunal da Relação de Évora de 10/05/2018, todos em www.dgsi.pt - - entendimento também sufragado pela doutrina (Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73 e 77); Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (cfr. Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 494).
5 - Consequentemente, o saneador sentença em crise é nulo por omissão de apreciação de determinadas questões suscitadas pelas partes - art. 615º, nº 1, d), do CPC – porquanto, estão em causa questões definidas pelo objecto do litigio e relacionadas com o fundo e o mérito da pretensão da Autora que devem ser apreciadas.
6 - Foi omitida uma formalidade imposta por lei que gera nulidade porque, indubitavelmente, influiu no exame ou na decisão da causa - cfr. art. 195º Código de Processo Civil.
7 - A nulidade por excesso de pronúncia verifica-se quando o tribunal conheça de matéria situada para além das “questões temáticas centrais”, integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e excepções.
8 - Resulta de forma clara dos autos, nomeadamente, da contestação apresentada pelos Réus que estes não invocam factos que determinem a decisão em recurso com fundamento no incumprimento do contrato, ocorrendo excesso de pronúncia que determina a nulidade da sentença.
9 - Extrai-se dos factos alegados pela Autora que os RR tiveram um comportamento inequívoco evidenciador da vontade de não cumprir, configurando hipótese de incumprimento definitivo que dispensa interpelação, notificação admonitória ou prova, pelo credor, da insubsistência do seu interesse no cumprimento, na ultrapassagem do prazo absoluto conhecido pelos Réus e acordado entre as partes - articulados 5º, 16º, 20º 71º, 73º, da sua p.i. e supra referidos.
10 - A mora dos Réus converteu-se em incumprimento definitivo, abrindo à Autora/credora a porta para a resolução do contrato, conferindo uma natureza absoluta decorrente dos factos assentes em c) e f) conjugado com o invocado pela Autora nos articulados.
11 - O estado do processo, sem necessidade de mais provas, não permite a apreciação do pedido deduzido, consubstanciada na absolvição dos RR. do pedido, porquanto, a Autora justifica a urgência da reparação do imóvel e remoção dos defeitos, necessitando de recorrer a terceiros para o efeito, conforme refere na sua tréplica.
12 - A Autora sempre pode vir, até à audiência de julgamento, apresentar requerimento de articulado superveniente para prova de outros factos, nomeadamente, os que sustentam a douta decisão de absolvição do pedido, o alegado incumprimento do contrato - cfr. art. 588º do CPC - sendo que, o pedido formulado é indemnizatório.
13 - Violou o douto saneador-sentença em recurso, por errada interpretação e aplicação, nomeadamente, os artigos 3º, nº 3, 6º, nº 1, 591, nº 1, al. b), 593º, 615º, nº 1, al. d, 588º e 662º do CPC e 801º do CC.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo julgado procedente por provado e, consequentemente, a decisão em análise ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos seus ulteriores termos, designadamente, a marcação de audiência prévia.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se no caso era obrigatório realizar audiência prévia e qual a consequência da sua omissão. Na negativa, se para o seu pedido proceder a autora tinha obrigatoriamente de interpelar as rés para repararem os defeitos e dar-lhes a oportunidade de o fazerem.

III. Matéria de Direito:
Nos termos do artigo 591.º do Código de Processo Civil, findos os articulados ou após as diligências ordenadas no despacho pré-saneador se a ele houver lugar, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; e) determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) programar, após audição dos mandatários, os actos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respectivas datas.
Este preceito legal estabelece a regra: realização da audiência prévia.
Os preceitos seguintes ocupam-se das excepções: o artigo 592.º da definição dos casos em que pura e simplesmente a audiência prévia não tem lugar (por isso não há que a realizar, não sendo necessário ou possível dispensá-la); o artigo 593.º da definição dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada (pode não ter lugar, mas para isso necessita de ser dispensada).
A audiência prévia não se realiza (artigo 592.º) sempre que a acção não tenha sido contestada mas a revelia seja inoperante e/ou o processo deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória (e não peremptória) que já tenha sido debatida nos articulados. Nestes casos, é a própria lei processual que não prevê a realização da audiência prévia pelo que a mesma não tem de ser dispensada por despacho.
Em todas as demais situações a lei inclui na tramitação legal da acção a realização da audiência prévia, pelo que, no respeito pelo princípio da legalidade dos actos processuais, em regra a mesma deve ser realizada só podendo deixar de o ser nos casos em que a própria lei permite que ela seja dispensada (artigo 593.º).
A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º [consequentemente, não as que teriam por objecto as finalidades das alíneas a), b) e c)].
A forma expressa e taxativa como estas disposições estão redigidas permite concluir, com segurança, que quando a acção houver de prosseguir (isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º do Código de Processo Civil.
Preside a esta opção a intenção de facultar às partes a última oportunidade de exporem os seus argumentos para convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes. Esta última oportunidade encontra-se, por exemplo, nas acções não contestadas em que a revelia é operante, caso em que não obstante o réu não tenha apresentado contestação lhe é permitido apresentar alegações, nessa ocasião por escrito (artigo 567.º).
Nessa medida, o despacho proferido nos autos, imediatamente após a resposta da autora à matéria das excepções alegadas pelos réus, resposta apresentada por escrito por determinação do tribunal, e imediatamente antes da sentença, no qual o Mmo. Juiz a quo «dispensou» (sic) a realização da audiência prévia, é afinal um despacho ilegal por não estar verificada nenhuma das situações em que lhe era legalmente permitido dispensar a realização desse acto processual.
Não impede essa conclusão a afirmação constante do despacho de que a autora «a propósito da pronúncia quanto à matéria da excepção da caducidade do seu direito» se pronunciou já sobre a «questão da denúncia dos defeitos, e quanto à formulação do pedido de condenação no pagamento de indemnização, e desnecessidade de formular pedido eliminação dos defeitos invocados, e conclusão dos trabalhos em falta».
Em primeiro lugar porque isso não descreve com rigor o conteúdo da resposta da autora. Nessa resposta a autora pronunciou-se sobre a «invocada nulidade da citação e ilegitimidade», a «ineptidão da petição inicial», a «ilegitimidade da autora», a «caducidade» e o «abuso do direito». A autora não se pronunciou sobre a possibilidade de ser apreciado o mérito da acção, nem, aliás, foi informada previamente dessa possibilidade para se pronunciar querendo sobre a matéria atinente.
Depois porque a lei não permite ao juiz que dispense a realização da audiência nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do Código de Processo Civil ou, tão-pouco, que possa entender fazê-lo no uso de um poder discricionário, razão pela qual não interessa a posição que as partes já tomaram ou as matérias sobre que se pronunciaram.
Como sustentam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 691, na nota 5, «daqui resulta com total clareza o propósito legislativo, no sentido de que as acções declarativas não incluídas na previsão do artigo 597.º não podem terminar com decisão de mérito no despacho saneador sem que o mesmo seja proferido no contexto da realização de uma audiência prévia (cf. Paulo Pimenta, ob. Cit., pp. 319-320, nota 728, RL 9-10-14, 2164/12, RL 13-11-14, 673/03, RL 5-5-15, 1396/13 e RP 24-9-15, 128/14).» (sublinhados nossos).
Pode questionar-se se, não obstante, o juiz pode dispensar a realização da audiência, fazendo uso já não de um poder discricionário, como aqui teve lugar de forma ilegal, mas do poder de gestão processual na dimensão do poder de simplificação e agilização processual (artigos 6.º e 547.º).
Na nossa opinião, estamos perante uma situação em que o legislador regulou de forma pensada e pormenorizada a tramitação processual, estabelecendo diferenças entre os actos a praticar consoante a situação verificada e sopesando de forma expressa o caso de o passo que se segue ser apenas o do conhecimento do mérito.
Acresce que a solução legal de impor a realização da audiência serve o objectivo coerente e justificado de levar às últimas consequências o princípio do contraditório, explorando as virtualidades da discussão oral entre os intervenientes dos argumentos pelos quais a decisão deve ser uma ou outra, sendo difícil de conceber um processo equitativo que prescinda dessa discussão oral sem, ao menos, a substituir pela possibilidade de apresentação de alegações escritas.
Podemos, contudo, aceitar que em casos limite, quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre as mesmas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, essa preocupação do legislador possa não fazer sentido e o juiz possa, no uso do seu poder de simplificação e agilização processual e adequação formal proferir a decisão por escrito sem realizar a audiência prévia.
Mesmo nesses casos, entendemos que a decisão de prescindir desse acto processual prescrito na lei deve ser fundamentada e precedida não da manifestação da intenção de o fazer, mas, sobretudo, do convite expresso e prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e da permissão às partes de alegar por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar.
O caso dos autos não se enquadra claramente nessa hipótese porque nem as questões a decidir são simples, nem têm obtido uma resposta consensual na doutrina e da jurisprudência, nem o despacho foi fundamentado no exercício desse poder do juiz, nem, por fim, as partes foram previamente auscultadas sobre a possibilidade de não se realizar a audiência prévia.
Temos assim que foi cometida nos autos uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 196.º do Código de Processo Civil).
Isto mesmo foi decidido no Acórdão desta secção da Relação do Porto de 24-09-2015, em que interviemos como 1.º Adjunto, proferido no processo n.º 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt, e do qual passamos a respigar a seguinte fundamentação complementar:
«Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII pode extrair-se: “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.
No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objecto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando excepções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
Entende Abílio Neto [.] que “a realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (art. 592.º) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no art. 593.º fica ao critério do juiz dispensar a sua realização”.
[…] Ora, como destaca o acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015[4], “não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art. 591º, nº 1, al. b))”.
Assim, e voltando de novo à discussão dos autos, a audiência prévia só poderia ser dispensada no contexto – que, para o efeito, teria de ser expressamente invocado no despacho em que se decidiu pela dispensa da referida formalidade processual e só depois de ouvidas as partes - dos artigos 547º e 6º, nº1, ambos do Código de Processo Civil[.].
Dado que a audiência prévia não foi dispensada nessa específica situação[.], exigia-se a sua realização para assegurar o cumprimento da finalidade imposta pelo n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil.
Segundo o citado acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015, “a convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa (art. 3º, nº 3), pelo que se nos afigura que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados”.
Como explica Lebre de Freitas [.], “quando se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzido(s) (art. 595-1-b), o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim. No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, exceptuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No novo código esta excepção desaparece: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes”.
Paulo Pimenta [.] explica desta forma a necessidade de ser convocada a audiência prévia: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”»
Esta solução a que chegamos foi ainda defendida nesta secção no Acórdão de 12.11.2015, proc. n.º 4507/13.1TBMTS-A.P1, e nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 09.10.2014, no proc. n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2, e de 05.05.2015, no proc. n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, e de 29.10.2015, no proc. n.º 2691/13.3TCLRS.L1-2, todos in www.dgsi.pt.
Na doutrina, além da já citada, também Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol. II, 2015, pág. 190, defende o seguinte: «Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do artº 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo artº 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do artº 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no artº 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no artº 593º (em que o juiz a entenda dispensável). Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também se não realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no artº 567º, por reporte ao artº 56º.»
Refira-se, para evitar equívocos posteriores, que a solução da anulação do processado se impunha ainda por outra razão, qual seja a de não estarem reunidas as condições para conhecer de imediato do mérito porquanto foram alegados factos com enorme relevo para a decisão de mérito a proferir, os quais estão impugnados e não estão (não podiam estar) reflectidos na matéria de facto à qual se aplicou o direito para proferir a sentença recorrida.
Temos em mente a possibilidade de o contrato de empreitada poder ser qualificado como uma empreitada de consumo, rectius, um contrato de empreitada celebrado por consumidor, caso em que a hierarquia dos direitos do dono da obra decorrentes da execução de uma obra com defeitos é bem diferente da que se coloca no regime regra do contrato de empreitada, podendo conduzir, caso se provem os factos alegados, a uma solução diferente da que apressadamente se chegou na decisão recorrida (de notar que o contrato foi celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro).
E temos em mente a circunstância de o pedido, pese embora venha expresso numa quantia única global, se decompor em valores atinentes à reparação de defeitos e valores correspondentes aos trabalhos não executados, situações que geram direitos distintos, com pressupostos diferentes, não valendo para um o que pode valer para outros.
Procede assim o recurso no que concerne à nulidade processual invocada pelos recorrentes, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões.

IV. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, anulam o despacho saneador que conheceu do mérito da causa e determinam que os autos sigam a sua tramitação típica, designadamente, se mais não for necessário, com realização das audiências prévia e de julgamento e oportuna prolação de sentença.
Custas do recurso pelos réus, os quais vão condenados a pagar à recorrente, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 6 de Março de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 880)
Ana Vieira
Álvaro Monteiro

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]