Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1915/17.2T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
VIOLAÇÃO DE DEVERES
RECUSA
Nº do Documento: RP202401161915/17.2T8STS.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Num processo judicial, o incumprimento de qualquer ónus ou dever jurídico, ainda que imputável (censuravelmente) ao mandatário, repercute os seus efeitos na parte, que vê por aquele vê afectada a sua posição/pretensão.
II - Qualquer actuação do mandatário, por acção ou omissão (incumprimento de ónus ou dever jurídico), repercute os seus efeitos directamente na esfera jurídica do mandante representado, relevando, no processo, como comportamento (acto e/ou omissão) da parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1915/17.2T8STS.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
Lina Castro Baptista
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelante (insolvente): AA.
Juízo de comércio de Santo Tirso (lugar de provimento de Juiz 7) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
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Decorrido, sobre a admissão liminar do pedido de exoneração formulado pela devedora (então se determinando ficar a insolvente sujeita às obrigações estabelecidas no nº 4, do art. 239º, do CIRE, designadamente, que durante o período da cessão entregasse ao fiduciário, então nomeado, o rendimento disponível que viesse a auferir, considerando-se disponível todo o rendimento que ultrapassasse o valor correspondente ao salário mínimo nacional), o período da cessão, apresentou o fiduciário relatório final desfavorável à concessão da exoneração (por verificado o incumprimento da obrigação da devedora prescrita na alínea a) do nº 4 do art. 239º do CIRE).
Cumprido o contraditório, apresentou-se a devedora a reconhecer (pela pena da mandatária por si constituída) não ter entregue atempadamente os documentos necessários à elaboração do relatório por parte do fiduciário, impetrando lhe fosse facultada a possibilidade de colmatar a falta.
Deferida tal pretensão, foi notificada a devedora (através de mandatário e ainda por comunicação enviada directamente para a sua morada constante dos autos) para, em dez dias, juntar documentos comprovativos do envio ao fiduciário das informações e documentos solicitados (relativos aos seus rendimentos e situação profissional), com a cominação de a omissão ser susceptível de determinar a recusa da exoneração do passivo restante.
Mantendo-se a devedora em situação de revelia, foi proferida decisão que, considerando ter a insolvente violado, com negligência grave, os deveres impostos pelo art. 239º, nº 4, a) do CIRE, recusou conceder-lhe a exoneração do passivo restante.
Inconformada, apela a insolvente, impetrando a revogação da decisão e substituição por outra que lhe conceda a exoneração do passivo restante, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I- Emerge o presente recurso da discordância do recorrente em relação ao Douto despacho de recusa de exoneração do passivo restante.
II- Porquanto, a aqui Recorrente não pode aceitar que lhe tenha sido imputado a violação dos deveres que lhe foram impostos nos termos do artigo 239º do CIRE.
III- Isto porque, iniciado o período de cessão, a aqui recorrente veio, sempre que o Tribunal o pedia, entregando todos os comprovativos dos seus rendimentos à sua advogada mandatada e constituída no processo de insolvência.
IV- Mesmo quando recebeu a referida comunicação do tribunal, em 10/05/2022, a aqui recorrente confrontou a sua advogada, ao qual a mesma garantiu-lhe já ter entregue tudo ao Sr. Fiduciário.
V- Aliás, quando, em 15/03/2023, a sua mandatária enviou um requerimento a admitir a falta de apresentação atempada dos documentos solicitados pelo Sr. Fiduciário para a elaboração do relatório anual, a aqui recorrente ficou convicta de que juntamente com esse requerimento a mandatária tivesse enviado os documentos que lhe haviam sido entregues pela aqui recorrente.
VI- A aqui recorrente sempre teve interesse em entregar todos os documentos devidos, e sempre o fez à sua mandatária.
VII- E a aqui recorrente confiava na atuação e na palavra daquela, que lhe garantia sempre que enviava os documentos.
VIII- Não pode, portanto, existir, conforme invocado pelo despacho de que se recorre, dolo nem negligência grave, pelo menos, não da parte da aqui recorrente.
IX- A existir dolo ou negligência grave na sua atuação, foi da sua advogada que não procedeu com a diligência devida.
X- A aqui recorrente não violou os deveres que lhe foram impostos pelo artigo 239º do CIRE, apenas confiou que a sua mandatária faria o envio que tanto prometia fazer dos documentos que a recorrente sempre lhe entregou.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Da delimitação do objecto do recurso.
Considerando a decisão recorrida e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), a questão a decidir consiste (singelamente) em apreciar se o incumprimento constatado nos autos (que fundou a recusa da concessão da exoneração) pode imputar-se à devedora (como considerado na decisão apeada) ou antes deve imputar-se exclusivamente à sua mandatária (o que impedirá concluir que a devedora incumpriu, culposamente, qualquer dos deveres que sobre si impendem, nos termos do nº 4 do art. 239º do CIRE).
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
A decisão recorrida considerou relevante, para apreciação da questão, a seguinte factualidade:
1- Por despacho datado de 07.09.2017 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela devedora, fixando-se como rendimento indisponível o equivalente a um salário mínimo nacional, encerrando-se o processo de insolvência e iniciando-se, então, o período de cessão.
2- Por relatório de 29.03.2019 o fiduciário deu conta de a devedora ter declarado verbalmente não ter cedido rendimento disponível, por os rendimentos auferidos no 1º ano serem inferiores ao rendimento indisponível para cessão.
3- Por relatório de 12.08.2021 o fiduciário deu conta de a devedora não ter prestado qualquer informação quanto aos seus rendimentos durante os 2º e 3º anos de cessão (desde setembro de 2018 a agosto de 2020), tampouco cedendo qualquer rendimento.
4- Por relatório de 13.09.2021 o fiduciário deu conta de a devedora não ter prestado qualquer informação quanto aos seus rendimentos durante o 4º ano de cessão (desde setembro de 2020 a agosto de 2021), tampouco cedendo qualquer rendimento.
5- Por relatório de 02.05.2022 o fiduciário deu conta de a devedora não ter prestado qualquer informação quanto aos seus rendimentos durante o 5º ano de cessão (desde setembro de 2021 a março de 2022), tampouco cedendo qualquer rendimento.
6- Por despacho de 10.05.2022 foi notificada a devedora, pessoalmente e através de mandatário, para, em 10 dias, entregar ao fiduciário os referidos elementos, sob pena da sua omissão ser suscetível de determinar a rejeição do pedido de exoneração do passivo restante.
7- Apesar de devidamente notificada pelo Tribunal, a devedora não informou sobre os seus rendimentos e situação profissional desde o 2º ano de cessão, nem justificou o seu incumprimento no prazo concedido para o efeito.
8- Nessa sequência, a 28.10.2022, o fiduciário apresentou parecer desfavorável à concessão da exoneração do passivo restante.
9- Foi cumprido o disposto no art. 244.º, nº 1, do CIRE.
10- Por requerimento de 15.03.2023, a devedora reconhece que ‘não apresentou atempadamente os documentos para a elaboração o Relatório Anual do Fiduciário a apresentar pelo Ex.mo Sr. Administrador da Insolvência. Penitencia-se pois por tal situação originada no essencial por algum desconhecimento, mal entendidos e lapsos dos quais assume a total responsabilidade. Não tendo ainda sido proferido despacho final da exoneração do passivo, vem requerer que lhe seja dada a possibilidade de colmatar a sua falta, sendo-lhe dada a oportunidade apresentar junto do Sr. Administrador da Insolvência, os documentos em falta a para a execução e posterior do Relatório Anual do Fiduciário’.
11- Por despacho de 26.05.2023 foi concedida uma última oportunidade à devedora, notificando-se a mesma (através de mandatário e diretamente para a sua morada constante dos autos e moradas a averiguar nas bases de dados) para em 10 dias juntar aos autos documentos comprovativos do envio ao Sr.(a) Fiduciário(a) das informações e documentos solicitados, relativos aos seus rendimentos e comprovativos da sua situação profissional e que se encontravam em falta, sob pena da sua omissão ser suscetível de determinar a recusa da exoneração do passivo restante, nos termos do art. 243.º e 244.º CIRE.
12- Notificada, a devedora nada veio dizer, não informando sobre os seus rendimentos e situação profissional, nem justificando o seu incumprimento.
13- Até ao presente momento a devedora não cedeu qualquer rendimento disponível nem prestou qualquer informação ao fiduciário ou ao Tribunal sobre os seus rendimentos e situação profissional desde o 2º ano de cessão até ao último ano de cessão, nem apresentou qualquer justificação para o seu incumprimento.
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Fundamentação jurídica
Não questiona a apelante que, objectivamente, ocorra causa de recusa da concessão da exoneração do passivo restante (a não entrega de qualquer rendimento disponível ao fiduciário e a não prestação de informação sobre rendimentos auferidos e sobre a situação profissional desde o segundo ano de cessão, a que acresce a falta de justificação para tanto), apenas argumentando que tal(is) falha(s), da exclusiva responsabilidade da sua mandatária, lhe não pode ser imputada (subjectivamente).
Patente a inconcludência do argumento.
Para lá de se tratar de questão nova (inovadoramente colocada pela apelante no recurso – e a demanda do tribunal superior, salvo questões de oficioso conhecimento que integram sempre o objecto do recurso, circunscreve-se às questões que tenham sido anteriormente colocadas à apreciação do tribunal de categoria inferior em vista da sua reapreciação e reponderação, não se identificando o recurso com uma originária petição de Justiça como a demanda, tratando-se de uma contestação concreta dirigida contra uma decisão judicial - o objecto do recurso é constituído pela decisão judicial)[1], insusceptível de ser suscitada perante este tribunal de recurso (patente não se tratar de questão de oficioso conhecimento), o que obstaria ao conhecimento do recurso, sempre será de considerar que - além de não poder concluir-se da factualidade a ponderar que a devedora sempre entregou à mandatária (para que esta os entregasse ao fiduciário) os elementos documentais comprovativos dos seus rendimentos e situação profissional e que, quando a confrontava, a sua mandatária lhe garantia ter entregue os elementos ao fiduciário (factualidade que não foi alegada em vista de ser apreciada e valorizada pelo tribunal recorrido e que, inovadoramente, é alegada no recurso) - qualquer falta imputável à mandatária teria directa repercussão na esfera jurídica da devedora insolvente mandante (sem prejuízo do que tal incumprimento pudesse significar na relação entre ambas, nomeadamente gerando obrigação de indemnização – uma situação de perda de chance decorrente da violação de deveres profissionais que causam a recusa da concessão da exoneração, impedindo a mandante de obter a libertação dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste que, provavelmente, obteria caso tais deveres houvessem sido observados).
Na verdade, ainda que a falha fosse de imputar à mandatária (por ter recebido da apelante as informação e documentos pertinentes e não os ter entregue ao fiduciário), sempre tal omissão (tal falta de resposta às solicitações e às notificações) se teria de repercutir na esfera jurídica da parte (da devedora) – num processo judicial, o incumprimento de qualquer ónus ou dever jurídico[2], ainda que imputável (censuravelmente) ao mandatário, repercute-se na parte, que por aquela falta ou omissão vê afectada a sua posição/pretensão.
Porque a representa no processo (através do mandato que conferiu à advogada a devedora atribui-lhe poderes para a representar em todos os actos e termos do processo - art. 44º do CPC -, o que constitui verdadeira representação voluntária, nos termos do art. 262º do CC, pois o mandatário actua em nome do mandante, vinculando-o juridicamente), a actuação processual do mandatário vale como se provinda directamente da parte representada – qualquer actuação do mandatário, por acção ou omissão (incumprimento de ónus ou dever jurídico – no caso, omissão do dever de informar e entregar documentos solicitados relativos aos rendimentos auferidos e comprovativos da sua situação profissional, mesmo depois de expressa notificação para tanto), repercute os seus efeitos directamente na esfera jurídica do mandante representado, relevando, no processo, como comportamento (acto e/ou omissão) da parte.
Não pode recusar-se, pois, como considerado na decisão apelada, ser o incumprimento imputável à devedora insolvente.
Improcede, pois, a apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CP) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Porto, 16/01/2024
João Ramos Lopes
Rui Moreira
Lina Baptista

(por exclusiva opção do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 395; Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pp. 31 e 119 e 120; Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (Regime do Decreto-Lei nº 303/2007), p. 53; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 71 e p. 74.
[2] Os conceitos (ónus e dever jurídico) são distintos: enquanto o ónus ( uma ‘peça curiosíssima da joalharia conceitual jurídica que abunda desde há muito na vitrine do processo’ , como refere A. Varela, RLJ, ano 126º, p. 14) se traduz na imposição jurídica de uma pessoa proceder de certo modo para conseguir ou manter uma certa vantagem própria ou, pelo menos, evitar uma desvantagem ou a perda de um direito (v. g., o ónus de contestar, o ónus de impugnar, o ónus de provar), o dever jurídico consiste na necessidade imposta pelo direito objectivo de serem observados determinados comportamentos com vista a salvaguardar interesses alheios, exigindo-se o seu acatamento ou cumprimento em ordem a respeitar direito subjectivo alheio (o dever de cumprir pontualmente a prestação, o dever processual de agir de boa fé, o dever processual de cooperação, etc.).