Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3156/22.8T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DE MÉRITO NO DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: RP202406063156/22.8T8GDM.P1
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Encontrando-se controvertidos factos que, uma vez provados, podem levar à procedência do pedido, é prematuro formular um juízo de manifesta improcedência da ação na fase intermédia do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 3156/22.8T8GDM.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 3
Recorrente(s) A..., L.da
Recorrido(a/s) AA
I
Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

A..., L.da, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra AA, pedindo a condenação da ré a:
a) Desmontar a construção ilegal constituída por o alpendre abarracado que construiu no logradouro do local arrendado, e retirar o tubo de água que ligou à canalização que tinha sido colocada pela senhoria aqui autora para esta ter água quente;
b) Indemnizar a autora pelos prejuízos resultante da não realização da obra de desmontagem do alpendre abarracado que impede o licenciamento e emissão da licença de utilização do primeiro andar do prédio onde se inclui o rés-do-chão arrendado à ré. Tal prejuízo traduz-se no valor da renda no valor de 850 € mensais, desde agosto de 2022, inclusive, que a ré deve pagar à autora até a realização da referida obra, cujo montante deve ser fixado em posterior incidente de liquidação;
c) A cortar o mato do jardim que faz parte do local arrendado que a ré deixou criar e crescer no mesmo e manter esse mato minimamente cortado para no máximo ficar com altura que permita o arejamento do interior do local arrendado.
d) Permitir que a autora visite o alpendre abarracado que a ré construiu, para nele a autora verificar as condições em que o mesmo se encontra, até ao momento em que o mesmo seja desmontado.
e) A deixar a autora, sua senhoria, ter acesso à fossa do prédio que se situa no logradouro que lhe foi arrendado, para a autora poder ver as condições em que a mesma fossa se encontra, para poder fazer a sua manutenção, reparações ou quaisquer obras que se mostrem necessárias para o fim a que se destina, ou outras que decida fazer como sua proprietária, bem como condenar a ré a não impedir as mesmas obras.
Para tanto, alegou, além do mais, que a ré, atualmente sua inquilina (por a autora ter adquirido o imóvel onde se encontra a habitação – R/C e logradouro – arrendada à ré), efetuou – sem o consentimento nem conhecimento da autora – um ramal na canalização de água, dirigindo-o para um alpendre que a inquilina havia erigido no logradouro do locado, sem o consentimento, pelo menos escrito, do senhorio. A edilidade ordenou a demolição deste alpendre, devendo ser a ré, que o construiu, a proceder a tal demolição dessa construção ilegal, a qual impede o licenciamento e emissão de utilização do 1º andar do prédio, o que impede a autora de o vender ou arrendar. A ré não mantém o coberto vegetal do logradouro tratado e impede o acesso da autora ao alpendre (para verificar as condições em que se encontra) e à fossa do prédio, para manutenção e reparações.

Citada, a ré apresentou contestação, excecionando a ineptidão da petição inicial, negando a colocação do tubo de água ou que tenha impedido a autora de aceder ao logradouro, e sustentando que a edificação do alpendre foi feita com autorização do senhorio. Entende que a ordem de demolição resulta do facto de a autora, no processo de licenciamento, não ter feito constar o alpendre do projeto de arquitetura. Alega ser falso que impeça a autora de visitar o alpendre ou de aceder à fossa e que não cuide do coberto vegetal. Pede a condenação da autora como litigante de má-fé.
Deduziu ainda reconvenção, à qual atribuiu o valor de € 2.500,00, pedindo a condenação da “autora a:
c) (…) proceder ao licenciamento do alpendre, fazendo o mesmo constar das peças desenhadas do projeto de arquitetura, bem como a adotando todos os procedimentos e a praticar todos os atos necessários ao referido licenciamento.
A autora replicou, mantendo a sua posição.
Foi a autora convidada a aperfeiçoar a petição inicial, tendo a ré exercido o seu direito de contraditório sobre o conteúdo da petição aperfeiçoada.

Na fase intermédia da ação, o tribunal a quo julgou “a ação parcialmente improcedente”, concluindo nos seguintes termos:
(…) absolvo a ré AA dos pedidos deduzidos sob as alíneas a), b), d) e e) e absolvo a autora A..., L.da, do pedido reconvencional.

Em despacho ulterior, o tribunal a quo homologou a desistência do pedido formulado na alínea c) do petitório que conclui a petição inicial.
Também em despacho subsequente, o tribunal a quo julgou “improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé”.

Inconformada, a autora apelou do saneador-sentença, concluindo, no essencial:
Em relação ao pedido da alínea a)
1.ª – Do que se alegou quanto à notificação judicial avulsa referida na conclusão 5. pode concluir-se que não tem fundamento a argumentação da decisão recorrida de que a autora não alegou qualquer facto do qual resulte ter intimidado a ré a cumprir a ordem camarária referida na conclusão 3. e esta nada tenha feito. (…)
4.ª – Na decisão recorrida, argumenta-se que a autora não concretiza em que consiste o desrespeito das regras construtivas na obra de construção do alpendre.
Embora nos pareça que essa conclusão da autora se fundamenta suficientemente na forma como alpendre foi construído e nos materiais utilizados para tanto (conforme está exposto número 8 da petição inicial aperfeiçoada), afigura-se à recorrente que é irrelevante essa matéria pois o que verdadeiramente conta é o despacho camarário que ordenou a demolição ou desmontagem do alpendre.
5.ª – Se a ré não cumpriu a decisão do Tribunal, que venha, como se espera, a condenar a ré a desmontar o alpendre, pode a autora instaurar execução para prestação de facto, requerendo aí a prestação de desmontagem do alpendre por outrem.
Nesse caso, terá a ré de tolerar a desmontagem do alpendre, conforme dispõe o artigo 1038.º, e), citado. (…)
7.ª – Quanto ao pedido de condenação da ré a retirar o tubo referido nas conclusões 7. e 8., há que dizer que, desmontado ou demolido que seja o alpendre, esse tubo deixa de ter razão de existir.
Quanto ao pedido da alínea b)
8.ª – Entendo o recorrente que os factos por si alegados a que se refere os antecedentes conclusões 7. e 8. são suficientes para delas se concluir a existência de danos patrimoniais a que respeita o pedido de indemnização formulado (…)
9.ª – O pedido de indemnização que se discute fundamenta-se no incumprimento da obrigação da ré demolir ou desmontar o alpendre. (…)
10.ª – Diz-se na decisão recorrida que não está junto aos autos a licença de utilização de todo o prédio (que, como resulta da certidão do departamento de atendimento municipal da Câmara Municipal ..., referida na conclusão 3., não está constituída em regime de propriedade horizontal), pelo que não tem cabimento aludir-se à licença de utilização do primeiro andar, cuja falta, segundo a autora, está a impedir a venda ou arrendamento da fração do primeiro andar.
Como se disse na conclusão 6., o licenciamento camarária de utilização do primeiro andar depende do licenciamento da construção de todo o prédio, incluindo o alpendre construído pela ré e marido, uma vez que o prédio não está construído em regime de propriedade horizontal. Ou seja (como se alegou na petição inicial aperfeiçoado n.º 15) a construção ilegal do dito alpendre impede o licenciamento e emissão de licença de utilização do primeiro andar remodelado e, consequentemente, a sua venda ou arrendamento pela autora.
11.ª – Acrescenta-se na decisão recorrida que a autora não junta como se concretizou a venda do prédio que lhe foi feita sem licença de utilização do mesmo, nem sequer indica como é possível, que apesar disso, o imóvel esteja arrendado à ré.
A esse propósito tem de se dizer que a licença de utilização do primeiro andar depois de remodelado é diferente da anterior licença de utilização do prédio.
E quanto ao arrendamento do rés-do-chão feito, que teve início em 1/01/1972, deverá dizer-se que nessa altura não era exigida a apresentação ou menção no texto do contrato de arrendamento da licença de utilização do locado, como decorre do artigo 9.º do RAU, aprovado por Decreto-Lei n.º321-B/90, ter entrado em vigor no dia 1/01/1992, por força do preceituado do n.º 2. do artigo 2.º. desse decreto-lei que aprovou o RAU, aplicando-se apenas aos contratos celebrados para futuro, por dispor sobre condições de validade substancial e formal do arrendamento (ver artigo 12.º, n.º2 do Código Civil).
12.ª – Diz-se na decisão recorrida que a autora não alegou factos dos quais resulte que colocou o imóvel no mercado de arrendamento e que este foi impossível devido à ausência de tal licença de utilização.
A esse argumento contrapõe-se que não faz sentido que a autora tivesse já colocado o 1.º andar no mercado de arrendamento porque este é impossível legalmente sem a licença de utilização do 1.º andar remodelado.
Quanto aos pedidos das alíneas d) e e)
13.ª - Estão alegados na petição inicial aperfeiçoada, na parte que se resume na conclusão 12. e 13. factos suficientes para fundamentar esses pedidos.
14.ª - A matéria de facto alegada pela autora, ora recorrente, em que se baseiam os pedidos das alíneas a), b), d) e e) estão impugnados pela ré na sua contestação, como se refere no despacho saneador recorrido.
Trata-se, pois, de matéria de facto controvertida.
15.ª – Por tudo o que se acaba de ser exposto, entende a autora, aqui recorrente, que o estado do processo não permite, sem necessidade de mais prova a apreciação do mérito da causa quanto aos pedidos das alíneas a), b), d) e e), e julgá-los, como se julgou, improcedentes, deles absolvendo a ré, ora recorrida.
16.ª – Ao decidir doutro modo violou-se no despacho saneador recorrido o disposto no artigo 595.º, n.º1, b), do Código de Processo Civil.

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida, na parte em que teve vencimento de causa.
Deduziu, ainda, recurso subordinado.
A autora apresentou alegações de resposta ao recurso subordinado.

Por despacho de 20-02-2024 (ref. 457162607) o tribunal a quo admitiu o recurso interposto pela autora, atribuindo-lhe efeito devolutivo, e indeferiu o recurso subordinado, por o decaimento da ré/reconvinte não exceder a metade da alçada do tribunal.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a decidir:

Face às conclusões das alegações de recurso da autora/apelante (que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil), cumpre apreciar o mérito da decisão de manifesta improcedência da ação proferida pelo tribunal recorrido.
Acresce a responsabilidade pelas custas.
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III – Fundamentação:

De facto

A apreciação do mérito do recurso implica que se tenha em consideração a seguinte factualidade alegada como fundamento da ação intentada:

Alegação da autora efetuada na petição inicial

1 – Na petição inicial aperfeiçoada, a autora alegou, além do mais:
1 – A autora é atual proprietária e senhoria da ré, uma vez que adquiriu a habitação que está arrendada à mesma no dia 19-7-2019, tendo-lhe comunicado tal aquisição (…).
2 – A ré tinha celebrado com o anterior proprietário e senhorio contrato de arrendamento destinado a habitação, com início em 1-1-1972, do andar sito no rés-do-chão da Rua ..., ..., com jardim e logradouro (…).
3 – Em tal contrato de arrendamento ficou clausulado que a inquilina, aqui ré, não podia dar-lhe outro destino que não fosse a habitação, isto sem o consentimento por escrito do senhorio, bem como ficou clausulado que as reparações e limpezas que não fossem na parte externa do locado seriam da responsabilidade da inquilina (… ).
4 – Em tal contrato ficou acordado que a inquilina só poderia fazer benfeitorias mediante consentimento por escrito do senhorio (…).
2 – Na petição inicial aperfeiçoada, a autora alegou, ainda:
5 – No passado mês de maio de 2022, às escondidas da autora e sua senhoria, a ré colocou um tubo de água novo, que não existia até então, e ligou-o à canalização que tinha sido colocada pela senhoria aqui autora para aquela ter água quente, sendo que tal canalização segue para dentro do telheiro ou alpendre abarracado que a ré e o seu marido construíram sem o consentimento, pelo menos por escrito, do senhorio. (…).
6 – A ré nunca comunicou e muito menos pediu o consentimento à autora sua senhoria para fazer qualquer ligação ou colocação do dito tubo de água e colocar água dentro do alpendre abarracado.
3 – Na petição inicial aperfeiçoada, a autora alegou, ainda:
7 – Por outro lado, a ré construiu, o dito alpendre abarracado sem qualquer licenciamento camarário no logradouro do local arrendado. (…).
8 – Esse alpendre esta construído de forma pouco segura e sem respeito pelas devidas regras construtivas porque, por aquilo que se pode ver no exterior. Com efeito o alpendre foi construído em parte com paredes em tijolo, sem qualquer acabamento, e noutra parte em meras chapas metálicas. O telhado foi construído com placas de plástico e fibrocimento, que a autora julga ter amianto. As paredes esta cheias de fissuras e existem buracos entre as paredes do prédio e as placas de plástico do telhado. Para segurar o alpendre abarracado foi cravado na parede do rés-do-chão uma estrutura metálica, em princípio, aparafusada a essa parede, sem o mínimo de regras de construção, já que provocaram fissuras nas paredes.
9 – Tal construção do alpendre abarracado foi realizada pela ré e o marido uns anos após a celebração do contrato de arrendamento referido (…).
4 – Na petição inicial aperfeiçoada, a autora alegou, ainda:
11 – A autora foi notificada pela Câmara Municipal ... para desmontar esse alpendre abarracado. Não o fez porque não pode desmontar o que não foi construído por ela e que não lhe pertence (cf. doc. n.º 7).
12 – Pelo que deve ser a ré a desmontar essa construção ilegal, bem como deve retirar o tubo de água que colocou referido em 5.º e 6.º. (…)
14 – Tratando-se de uma edificação construída no rés do chão e 1.º andar, o licenciamento e a emissão da licença camarária de utilização do 1.º andar depende do licenciamento da construção de todo o prédio (…).
15 – Por ser assim, essa construção ilegal o dito alpendre abarracado impede o licenciamento e emissão da licença de utilização do primeiro andar do prédio, aquele que fica por cima do que está arrendado, e consequentemente, a venda pela autora desse primeiro andar ou o arrendamento do mesmo.
5 – Na petição inicial aperfeiçoada, a autora alegou, ainda:
16 – Tal situação provoca um grande prejuízo à autora, já que a renda de um andar moradia, com jardim e logradouro, sendo um T2+1, naquela zona, como é caso do dito primeiro andar, ascende no mínimo a 850 € mensais.
17 – A ré não trata do jardim que faz parte do arrendado, pois nem sequer corta o mato que aí nasce, que já chega ao primeiro andar do prédio. Esse mato não só desfeia o prédio, como não deixa entrar luz no arrendado, não permitindo um arejamento do mesmo, provocando condensação no interior da habitação. Tudo aliado ao facto da ré manter constantemente as janelas fechadas e muitas vezes as persianas corridas (…).
6 – Na petição inicial aperfeiçoada, a autora alegou, ainda:
18 – A ré impede qualquer acesso ao alpendre abarracado por parte dos representantes da autora de forma a verificar as condições em que o mesmo se encontra (…).
19 – A ré impede ou proíbe cabalmente o acesso pelo representante da autora à fossa do prédio que se situa no logradouro a ela arrendado, para poderem ver as condições em que a mesma se encontra, também para o autora poder fazer a sua manutenção, reparações ou quaisquer obras que se mostrem necessárias para o fim a que se destina, ou outras que decida fazer como sua proprietária (…).
20 – No dia 6-6-2022 a autora deu entrada de uma notificação judicial avulsa que foi notificada à ré no passado dia 21-6-2022 (cf. doc. n.º 9 e 10), pelo qual notificaram a ré do seguinte:
“(…) fazendo-a ciente de que:
a) deve desmontar, no prazo máximo de um mês, a construção ilegal constituída por o alpendre abarracado que construiu no logradouro do local arrendado, e também, no mesmo prazo, retirar o tubo de água que ligou à canalização que tinha sido colocada pela senhoria aqui requerente para esta ter água quente, sendo que tal canalização segue para dentro do telheiro abarracado;
b) Caso a requerida nada faça no prazo fixado, a requerente irá instaurar ação em Tribunal a pedir a desmontagem desse alpendre abarracado, e irá também pedir uma indemnização pelo facto dessa obra impedir o licenciamento do primeiro andar que está devoluto cuja falta impede o seu arrendamento ou venda;
c) Deve, no mesmo prazo, cortar o mato do jardim que faz parte do local arrendado que a requerida deixou criar no jardim e que neste momento já chega ao primeiro andar do prédio.
d) Como a requerente pretende visitar o alpendre abarracado que a requerida construiu, para nele verificar as condições em que o mesmo se encontra, deve a requerida informar em que dia e hora poderá a requerente visitá-lo para esse fim.
e) Deve a requerida deixar a requerente, sua senhoria, ter acesso à fossa do prédio que se situa no logradouro que lhe foi arrendado, para a requerente poder ver as condições em que a mesma fossa se encontra, para poder fazer a sua manutenção, reparações ou quaisquer obras que se mostrem necessárias para o fim a que se destina, ou outras que decida fazer como sua proprietária (…)”.

Subsunção dos factos ao direito

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Do mérito do recurso interposto pela autora
1.1. Julgamento de manifesta improcedência
1.1.1. Pedido de remoção de alpendre e de tubo de água
1.1.2. Pedido de indemnização pela omissão do dever de remoção de alpendre
1.1.3. Pedido de acesso ao logradouro
2. Responsabilidade pelas custas

1. Do mérito do recurso interposto pela autora

1.1. Julgamento de manifesta improcedência

Não obstante subsistirem algumas alegações de facto por provar, não há que remeter um processo para julgamento quando, independentemente da prova produzida sobre os factos dela carecidos − isto é, qualquer que seja a solução plausível de direito considerada −, a sorte da ação seja sempre de improcedência. Fazer a ação prosseguir para a fase de instrução seria um ato inútil, proibido por lei − sobre esta solução, cfr. o Ac. do TRP de 19-02-2004, proc. 0325347.
Foi este o entendimento do tribunal a quo. Cumpre apreciar se tal entendimento é correto.

1.1.1. Pedido de remoção de alpendre e de tubo de água

O tribunal a quo julgou manifestamente improcedente o primeiro pedido formulado pela autora – alínea a) –, com a seguinte fundamentação:
Quanto ao pedido deduzido sob a alínea a), alega a autora a factualidade constante dos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 9.º, 11.º e 12.º, sustentando-o de direito no art. 1038.º, al. e), do Cód. Civil, o qual prevê que o locatário é obrigado a tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública.
A autora invoca esta disposição para sustentar o seu pedido de que este Tribunal condene a ré a cumprir uma ordem de demolição que a Câmara Municipal dirigiu à autora na qualidade de proprietária do imóvel, por considerar que, não tendo sido ela a erigir a construção mandada demolir (mas sim a ré) deve ser esta a executar tal ordem. Ora, além de se pretender contornar uma ordem emanada de um entidade administrativa cujo incumprimento constitui um ilícito, a autora não alega qualquer facto do qual resulte ter intimado a ré a cumprir tal ordem e que esta tenha negado ou nada tenha feito, sendo que a disposição alude à obrigação do arrendatário de permitir a realização de obras.
A autora invoca ainda o desrespeito pela ré de regras construtivas, sendo que, convidada a fazê-lo, não concretiza e não alega de forma expressa que o seu pedido se alicerça na falta de autorização do senhorio, pois até admite que este possa ter autorizado ou tolerado ou que tenha dado autorização não escrita (art. 4.º da pi aperfeiçoada). Invoca ainda a falta de licença de construção, ao mesmo tempo que afirma que a ré nunca poderia obter tal licença atento o caráter precário da construção e que deduz/supõe ser necessária tal licença (art. 14.º da pi aperfeiçoada).
Já o pedido de remoção do tubo prende-se com a demolição do alpendre, como a autora reconhece (art. 24.º, al. a) da pi aperfeiçoada).

Esta fundamentação é manifestamente frágil. No que respeita à instalação alegadamente não autorizada de um tubo de água (prolongamento da canalização), não explica o tribunal a quo a razão pela qual não assiste à autora o direito de obter a sua remoção. O mesmo é dizer que inexiste em absoluto uma falta de fundamentação para o juízo de manifesta improcedência.
No que concerne à remoção do alpendre, afigura-se-nos apodítico que não é lícito realizar obra em propriedade alheia. A obra que a autora imputa à ré constitui-se como um ilícito civil (art. 1305.º do Cód. Civil). O mesmo é dizer que a ré tem a obrigação de reparar os danos que, assim, alegadamente causou, designadamente por meio da remoção do alpendre, operando uma restauração natural (art. 566.º, n.º 1, do Cód. Civil). Demonstrando-se que estamos perante uma benfeitoria, considerando que a possuidora é a autora (a ré é uma detentora) e que, alegadamente, o alpendre não foi locado à demandada, é, ainda, equacionável a aplicação do disposto nos arts. 1273.º a 1275.º do Cód. Civil. Todas estas são soluções perfeitamente plausíveis para a questão de direito.
Perante a alegação da autora, é à ré que cabe alegar e demonstrar a licitude da sua conduta. Para tanto, pode alegar e provar que a falta de consentimento escrito procede de ato do senhorio ou que este autorizou a obra (atuando este senhorio agora em abuso do direito). No entanto, esta ordem de exceções não se mostra já provada – não se podendo aceitar a afirmada ignorância da autora como admissão do facto, uma vez que não é a esta que a ré atribui a autoria pessoal da autorização para a construção do alpendre (veja-se o alegado pela ré no art. 150.º da contestação).
Resta acrescentar que, ainda que determinada ocupação do locado tenha sido autorizada pelo senhorio, se tal utilização tiver de cessar, designadamente por ser ilegal, deve o inquilino assim proceder, removendo, se necessário, a estrutura que consubstancia tal utilização (v.g., art. 1071.º do Cód. Civil). De resto, qualquer autorização do senhorio respeitante à utilização do locado só é válida e eficaz na medida em que não contrarie norma imperativa, designadamente, respeitante ao ordenamento urbano (art. 280.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).
Do exposto se extrai que, à luz dos factos alegados, e independentemente da ordem emitida pela Câmara Municipal, a autora, enquanto senhoria e proprietária, tem o direito de reagir contra a alegada agressão da sua propriedade por terceiro, incluindo a inquilina, exigindo a remoção da edificação danosa. Assim consiga provar o que alega e contra ela não proceda exceção provada pela ré.
Concluímos, deste modo, que a ação deve prosseguir para conhecimento deste pedido, procedendo, nesta parte, a apelação, se necessário oferecendo-se às partes a oportunidade para se pronunciarem sobre o enquadramento jurídico adotado pelo tribunal, se ainda o não tiverem feito – arts. 3.º, n.º 3, e 5.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.

1.1.2. Pedido de indemnização pela omissão do dever de remoção de alpendre

O tribunal a quo julgou manifestamente improcedente o segundo pedido formulado na al. b) do petitório pela autora, com a seguinte fundamentação:
O pedido indemnizatório deduzido sob a alínea b) continua a não estar alicerçado em factos concretos. Apesar de ter sido notificada para o efeito, a autora não juntou a licença de utilização de todo o prédio que, como resulta da certidão que juntou, não está constituído em propriedade horizontal, pelo que não tem cabimento aludir-se a licença de utilização do primeiro andar, até porque, sendo esse um documento essencial na compra e venda, não justifica como é que se concretizou a venda sem esse documento que alega estar a impedir a venda ou arrendamento da fração. Não alega factos dos quais resulte que colocou o imóvel no mercado de arrendamento e que o mesmo foi impossível devido à ausência de tal documento e nem sequer explica como é que é possível que, apesar disso, o imóvel esteja arrendado à ré.

Da putativa ilicitude da ocupação do locado com um alpendre podem decorrer diversos danos – geradores de diferentes direitos de indemnização. O dano ou prejuízo alegado pela autora foi apenas a privação da faculdade de arrendar o primeiro andar do imóvel. Não resulta do pedido (nem do art. 16.º da petição aperfeiçoada) que o concreto dano respeitante à indemnização reclamada corresponda à impossibilidade de obtenção do lucro resultante de uma alienação nem o correspondente prejuízo financeiro pelo atraso na alienação.
Ora, no que respeita ao concreto dano invocado, não obstante o regime invocado pela apelante nas alegações de recurso (art. 9.º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro) ter sido revogado pelo art. 60.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro), resulta do disposto do regime atualmente vigente – art. 1070.º do Cód. Civil e DL n.º 160/2006, de 8 de agosto –, que a exigência legal de licença de utilização para a celebração de contrato de arrendamento estabelecida pelo art. 5.º, n.º 1, do referido DL n.º 160/2006, apenas não se aplica quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de Agosto de 1951 (n.º 2 do art. 5.º do referido DL n.º 160/2006).
Assim, a não ser que a construção do imóvel adquirido pela autora seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de agosto de 1951 (matéria que se encontra por apurar), a factualidade alegada pela autora quanto à putativa imputação da não obtenção de licença de utilização – que será necessária para a celebração de contrato de arrendamento, nos termos do art. 5.º, n.º 1,do DL n.º 160/2006 – à existência da construção ilegal (não licenciada) do alpendre é uma das soluções plausíveis de direito, não havendo, por conseguinte, elementos suficientes para se decidir já pela manifesta improcedência deste pedido de indemnização, pelo que também quanto a este pedido procede a apelação.

1.1.3. Pedido de acesso ao logradouro

O tribunal a quo julgou manifestamente improcedente o quarto e o quinto pedidos formulados pela autora – als. d) e e) –, com a seguinte fundamentação:
O pedido deduzido na alínea e) [será d)] alicerça-se na alegação contida no art. 18.º que continua a ser conclusiva, pois não concretiza quando e como a autora solicitou à ré o acesso ao alpendre e qual o comportamento da ré do qual se conclui que impediu o acesso.

O pedido deduzido na alínea f) alicerça-se na alegação contida no art. 19.º que continua a ser conclusiva, pois não concretiza quando e como a autora solicitou à ré o acesso ao local onde se localiza a fossa e qual o comportamento da ré do qual se conclui que impediu o acesso.

Não se alcança a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo. O senhorio não tem o direito de vistoriar o locado apenas quando é oferecida oposição pelo inquilino; tem-no a qualquer momento, no respeito pelos direitos do inquilino, na estrita medida em que se justifique (art. 1038.º, al. b), do Cód. Civil). Não é, pois, coerente julgar improcedente o pedido apenas porque o inquilino não oferece oposição ou porque não são suficientemente alegadas as características de tal suposta oposição.
O mesmo é dizer que a factualidade invocada pelo tribunal a quo apenas é relevante se, em face da contestação apresentada, se entender que há lugar à aplicação do disposto no art. 535.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil. No entanto, esta questão deve ser suscitada pela ré, e não pela autora.
Quanto à factualidade alegada que serve de base à discussão desta questão, está ela suficientemente alegada (arts. 18.º e 19.º da petição aperfeiçoada), podendo, se necessário, vir a ser complementada ou concretizada nos termos previstos no art. 5.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
Deve, assim, a ação prosseguir para conhecimento destes pedidos, procedendo igualmente, nesta parte, a apelação.

2. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).
A responsabilidade pelas custas da apelação cabe à ré, por ter ficado vencida, dada a procedência do recurso interposto pela autora (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
Quanto às custas da ação, subsiste a condenação na parte já julgada e não impugnada no recurso (fixada em 13% para a autora e em 32% para a ré), sendo os restantes 55% devidos pela parte vencida a final, na proporção do decaimento, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar a decisão recorrida – de absolvição da ré AA dos pedidos deduzidos sob as alíneas a), b), d) e e) –, determinando-se o prosseguimento do processo perante tribunal a quo, sendo concluído o saneamento dos autos, precedido do oferecimento esclarecedor de contraditório ou, se se entender que nenhuma questão prévia existe e que nada mais obsta ao oportuno conhecimento do mérito, seguindo-se os demais termos processuais para oportuno conhecimento dos pedidos formulados pela autora nas als. a), b), d) e e).

As custas da ação ficam – na parte já julgada e não impugnada no recurso – a cargo da autora (13%) e da ré (32%) nos termos fixados pelo tribunal a quo, sendo os restantes 55% devidos pela parte vencida a final, na proporção do decaimento, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.
As custas da apelação ficam a cargo da ré/apelada, por ter ficado vencida.
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Notifique.

Porto, 6 de junho de 2024
Ana Luísa Loureiro
Ernesto Nascimento
João Venade