Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA DOS PRAZERES SILVA | ||
| Descritores: | OMISSÃO DE PRONÚNCIA SENTENÇA PERDA DE BENS APREENDIDOS MATÉRIA DE FACTO PROVADA | ||
| Nº do Documento: | RP20160302176/14.0tasts-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 03/02/2016 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 670, FLS.279-304) | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A inobservância do disposto no artº 374º nº3 al. c) CPP, constitui mera irregularidade. II - A omissão do destino a dar aos objectos apreendidos no processo, não fica coberta pelo caso julgado material sendo licito ao tribunal proferir, oficiosamente, em momento posterior à sentença a declaração em falta. III – A sanação de tal irregularidade apenas se pode valer, quanto ao substracto factual, da matéria de facto provada na sentença, sob pena de se admitir uma modificação essencial do conteúdo dessa decisão. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 176/14.0tasts-A.P1 Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO: No âmbito deste processo sumaríssimo, após a prolação da sentença foi proferido despacho que declarou o perdimento a favor do Estado da arma e munições apreendidas ao arguido. * Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso, apresentando a motivação que rematou com as seguintesCONCLUSÕES: 1ª – O despacho recorrido é ilegal porque proferido a destempo, em contrário do legalmente estatuído e em violação do estatuído caso julgado, tudo nos moldes atrás narrados e aqui tidos como especificados. 2ª – Tal ilegalidade resulta ainda da deficiente aplicação do estatuído no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, cujos requisitos estão aqui perfeitamente ausentes, conforme se explicitou e aqui se tem igualmente como renovado. 3ª – Para além disso, e em qualquer caso, o decretado perdimento é claramente violador do princípio da proporcionalidade nos moldes atrás alegados e aqui tidos como repetidos. Normas jurídicas violadas: artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, versão actual, aqui aplicável “ex vi” artigo 4.º do Código de Processo Penal, artigos 395.º, mormente os seus nºs. 1, al. c) e 2, 397.º, n.º 2 e 374.º, n.º 3, al. c), todos do Código de Processo Penal, artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, e artigo 18.º, n.º 2 da CRP. Termos em que, e por todas as sobreditas razões antes expostas, requer-se a revogação do despacho recorrido a sua substituição por outro que, posto que verificado o necessário condicionalismo, determine a entrega da arma e respectivas munições ao ora recorrente, seu legítimo dono. Decidindo-se em conformidade, será então feita a COSTUMADA E ESPERADA JUSTIÇA. * O Ministério Público na primeira instância apresentou resposta, na qual se pronunciou no sentido da rejeição do recurso, formulando as seguintesConclusões: 1. O recorrente foi condenado, em processo sumaríssimo pela prática de um crime de uso e porte de arma sob o efeito de álcool, p. e p. pelos artigos 6.º, 14.º e 88.º, nº. 1 do Regime Jurídico de Armas e Munições, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,50, o que perfaz a quantia de €660,00 (seiscentos e sessenta euros). 2. Extinta a pena de prisão aplicada ao arguido, cumpria dar destino aos objectos apreendidos, a arma e as munições. 3. O artigo 109.º do Código Penal exige, entre outros requisitos, que exista uma relação de causalidade adequada, de modo a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou o não teria sido na forma e com a significação penal verificada. 4. O perdimento da arma não configura uma pena ou sanção acessória mas tão só a consequência da sua condenação. 5. Pelo que, entendemos ser de manter, na íntegra, o despacho recorrido, julgando-se assim improcedente o recurso. Nesta Relação o Ministério Público emitiu douto parecer, no qual pugnou pelo provimento do recurso. * Cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.* Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.* II. FUNDAMENTAÇÃO: a) Despacho recorrido: «Dispõe o art. 109.º n.º1 do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. São de considerar instrumentos do crime ou “instrumenta sceleris” os objectos que tenham sido reputados como essenciais para a prática da infracção. Ou seja, é indispensável que entre a utilização do objecto em causa e a prática do crime, em si próprio, exista uma relação de causalidade adequada, de modo que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria sido na forma e com a significação penal verificada. Por sua vez os produtos do crime são aqueles que foram produzidos pela prática do crime e que pela sua natureza ou quaisquer circunstâncias ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou ainda haja risco sério de serem utilizados para o cometimento de novos crimes. Não é necessário que os objectos que sirvam para a prática do crime tenham essa aplicação exclusiva para serem declarados perdidos, embora seja exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de carácter significativo, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma de que se revestiu. Exige-se assim do factualismo que resulta provado que se afirme que entre a utilização do objecto e a prática do crime exista uma relação de causalidade adequada nos termos supra referidos. Esta necessidade da causalidade leva-nos também ao princípio da proporcionalidade: a perda do instrumentum sceleris, não estando submetida ao princípio da culpa, terá de ser equacionada com o princípio da proporcionalidade no que concerne à importância do facto em análise. No caso em apreço, e conforme promovido, tendo em consideração a natureza dos objectos apreendidos- armas e munições- e o facto de terem sido usados para a prática do crime de uso e porte de arma sob o efeito de álcool- ao abrigo do disposto no art. 109.º n.º1 do Código Penal declaro os mesmos perdidos a favor do Estado». b) Requerimento do Ministério Público em processo sumaríssimo: «O Ministério Público vem requerer em processo sumaríssimo, ao abrigo dos artigos 392.º e ss. do C.P.P., a aplicação de pena não privativa da liberdade a B… (…) porquanto se mostra suficientemente indiciado que: No dia 5 de Fevereiro de 2014, o arguido B…, transportava à cintura e devidamente acondicionado no coldre, um revólver, sendo o mesmo portador de Licença de uso e porte de arma B1 e respetivo manifesto, quando conduzia o seu veículo automóvel de matrícula ..-..-AT e foi intercetado por elementos da GNR de …, na Estrada …, freguesia …, nesta comarca de Santo Tirso e que submetido ao teste de álcool no sangue apresentou uma taxa superior a 1,20 g/. A arma de fogo que o arguido consigo trazia, foi aprendida examinada nos autos e é uma arma de fogo curta – revolver -, com munições, arma da Classe B1, com o n.º de arma BDF…., marca “Smith & Wesson”, modelo …, Calibre 32 S & W Long, com o n.º 6 de tiros, cano de 75mm de comprimento, com o comprimento total de 195mm, cano de interior …, com …, platinas em …, tambor, arma tipo revólver, de disparo de repetição, com punções de origem americanas, sendo um revólver, arma de fogo curta, de repetição, que utiliza cartuchos carregados com carga, propulsora de pólvora, escorva e um projétil metálico (bala9 calibre.32 S & W\ Long, equipado com coldre … e em bom estado de conservação e cinco munições de arma de fogo, da Classe B1, …, marca HP, calibre.32 S&W Long, dimensões 7.85x23.2 – conforme exame de fls. 75 e 76 e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. O arguido bem sabia as características daquela arma de fogo supra descrita e que não a podia deter, transportar, trazê-la consigo ou utilizá-la com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l., não obstante, agiu da forma descrita com uma taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l. O arguido sabia que não podia transportar aquela arma de fogo com aquela taxa de álcool no sangue, o que quis e fez. Sabia também que este seu comportamento era proibido e punido por lei, mas, apesar de o saber, quis atuar da forma descrita, ou seja trazer consigo a descrita arma de fogo, nas condições em que o fez. O arguido atuou voluntária, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei. Cometeu, assim, como autor material, o arguido B… um crime de uso e porte de arma sob o efeito de álcool p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 14.º e 88.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições – Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro com as alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2013, de 24 de Junho – Redação atual. Prova: (…) Desconhece-se a profissão e as suas condições socioeconómicas. O arguido tem os antecedentes criminais constantes do Certificado de Registo Criminal de fls. 84 e 85, pois foi condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado na mesma data que os factos em apreço, 5 de Fevereiro de 2014, cerca das 23h00, conduzir o veículo automóvel de matrícula ..-..-AT, na Estrada da …, na freguesia de …, área desta comarca de Santo Tirso, com uma TAS de 1,47 g/l, numa pena de € 400,00 e ainda na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de três meses. * Determinação da medida concreta da pena:O crime de uso e porte de arma sob o efeito de álcool p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 14.º e 88.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições – Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro com as alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2013, de 24 de Junho – Redação atual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 360 dias. Consoante determina o artigo 70.º do Código Penal, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. No caso vertente, o arguido apesar de ter antecedentes criminais, afigura-se-nos ainda suficiente para promover a recuperação social do agente e satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção do crime (artigo 40.º do mesmo código) a aplicação ao arguido da pena de multa alternativamente prevista para o crime ora em apreço, sendo, deste modo, conferida expressão prática ao propósito do legislador penal de atribuir superioridade político criminal à pena de multa em detrimento da pena de prisão no tratamento da pequena e da média criminalidade. No que concerne à determinação concreta da pena, importa fixar, primeiramente, o número de dias de multa, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º. Não estabelecendo o tipo legal do crime previsto no artigo 292.º do Código Penal o limite mínimo da moldura penal da multa aí estipulada, mas apenas o seu limite máximo (360 dias), importa recorrer à previsão residual da parte final do artigo 47.º, n.º 1, do C.P., encontrando-se assim o limite mínimo de 10 dias. Obtida tal moldura penal, a fixação subsequente do número de dias de multa ocorrerá de acordo com os critérios gerais do n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, concretizado pelo n.º 2 do mesmo preceito. Consequentemente, a graduação em concreto do número de dias de multa é feita em função da culpa (concreta) do agente – limite máximo e inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (artigo 40.º, n.º 2) – e das exigências de prevenção geral, entendida como prevenção geral positiva ou de integração, e de prevenção especial de socialização. Deste modo, considerando a moldura da multa que em abstrato se comina (de 10 a 120 dias), bem como: - o grau de ilicitude que se situa num ponto elevado, considerando o valor da taxa de álcool; - no caso em apreço, o grau de ilicitude do facto mostra-se elevado, ainda, pelo facto de transportar arma de fogo naquelas condições, sendo que, se atenderá sempre que no registo criminal junto a fls. 84 e 85, foi o arguido condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado no mesmo dia, hora e local que o agora em apreço e pela mesma circunstancia de conduzir sob o efeito de álcool no sangue superior a 1,2 g/l no sangue, e desde então nenhum outro crime foi conhecido ao arguido, pelo que não aumenta as exigências de prevenção especial; - a intensidade do dolo por ser direto: o arguido sabia que havia ingerido álcool em quantidade suficiente para apresentar uma taxa de alcoolemia semelhante àquela que apresentou, e ainda assim predispôs-se a transportar a sua arma de fogo; - Tudo devidamente conjugado e ponderado, considera-se ajustada a pena de 120 dias de multa, em termos de se afigurar como uma censura suficiente do facto e, concomitantemente, uma estabilização da expectativa comunitária na vigência da norma violada. No que concerne à determinação do quantitativo diário da multa, relevam exclusivamente a situação económica e financeira e os encargos pessoais do arguido (artigo 47.º, n.º 2, in fine), que no presente caso, não foi possível apurar, pelo que se entende fixar no mínimo legal de €5,50 o quantitativo diário da multa. Tendo em conta todos os elementos supra referidos o Ministério Público propõe a aplicação ao arguido de pena de multa de 115 dias, à taxa diária de €5,50, o que perfaz um total de €660,00. * Pelo exposto, propõe-se, nos termos do art.º 394.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a aplicação ao arguido B… da pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,50 Euros (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de 660,00€ (seiscentos e sessenta euros).»* c) Decisão:«Notificado, nos termos do artigo 396º, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal, o arguido B… não deduziu oposição ao requerimento efectuado pelo Ministério Público para aplicação de processo especial sumaríssimo e respectiva proposta de sanção. Deste modo, ao abrigo do disposto no artigo 397º, nº1, do Código de Processo Penal, aplico ao arguido B…, casado, filho de C… e de D…, nascido a 28.02.1950, natural da freguesia de …, concelho de Guimarães, pela prática de um crime de uso e porte de arma sob o efeito do álcool p. e p. pelos artigos 6º, 14º e 88º, nº1, do Regime Jurídico das Armas e Munições – Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, a sanção de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de €660,00 (seiscentos e sessenta euros). Condeno o arguido nas custas do processo com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal. (art. 397º, nº1, do CPP). Notifique e deposite. Remeta boletim ao registo, após o decurso do prazo de 10 dias após a notificação, uma vez que a sentença proferida não admite recurso ordinário, artigo 397º, nº2, do Código de Processo Penal.» * d) Apreciação do recurso:Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as questões que sejam de conhecimento oficioso. No presente recurso são colocadas as questões seguintes: - saber se a determinação do destino dos bens pode ou não ser efetuada depois de ter sido proferida a decisão final; - saber se estão reunidos os pressupostos legais do perdimento de objetos; - determinar se o decretado perdimento da arma e munições viola o princípio da proporcionalidade. O recorrente começa por invocar que, não tendo sido determinado na sentença, o perdimento da arma e munições já não podia ser ordenado posteriormente, apoiando-se em jurisprudência deste Tribunal da Relação[1]. Na tese acolhida pelo recurso a omissão na sentença do destino a dar aos objetos apreendidos nos autos (cf. artigo 374.º, n.º 3, alínea c) do Código Processo Penal) não pode ser suprida por despacho posterior e a consequência do não perdimento dos objetos é a sua restituição a quem de direito (cf. artigo 186.º, n.º 2, do Código Processo Penal), a não ser que a detenção por particulares seja proibida. Ora, salvo o devido respeito pelo entendimento sufragado pela jurisprudência citada, consideramos que não existe obstáculo à prolação posterior à sentença de despacho que regularize o destino a dar aos bens apreendidos nos autos, por um lado, e, por outro, a apontada consequência do não perdimento de bens pressupõe e depende da prévia decisão neste sentido. Assim, quanto a esta matéria seguimos jurisprudência divergente, também deste Tribunal da Relação[2], segundo a qual a omissão do cumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 3, alínea c) do Código Processo Penal, constitui mera irregularidade «(…) o destino final dos objectos apreendidos não chega a assumir dignidade processual penal bastante para o qualificar como uma daquelas “questões que o tribunal dev[e] apreciar” e cuja omissão de pronúncia fere a sentença de nulidade, nos termos do disposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP. Ou seja o destino dos objectos apreendidos não é uma questão objecto do processo», irregularidade que não tendo sido arguida não impede a consolidação da sentença, mas essa omissão do destino a dar aos objetos apreendidos não fica coberta pelo caso julgado material, sendo lícito ao tribunal proferir em momento posterior à sentença, a declaração em falta. Além disso, não pode admitir-se que o poder jurisdicional se esgotou quanto a matéria sobre a qual o tribunal não chegou a pronunciar-se[3]. Ademais, as irregularidades da sentença podem ser sanadas, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 380.º, n.º 1, alínea a), do Código Processo Penal[4], por isso, também a omissão de pronúncia sobre o destino de bens apreendidos pode e deve ser suprida oficiosamente pelo tribunal. Contudo, importa notar que a sanação de tal irregularidade necessariamente apenas se pode valer, quanto ao substrato factual, da matéria de facto que tiver sido considerada provada na sentença, sob pena de se admitir uma modificação essencial do conteúdo dessa decisão[5]. De realçar, também, que a norma invocada para justificar a restituição não prescinde da decisão sobre o destino dos bens, ou seja, não estatui que, na ausência de determinação judicial de perdimento dos bens apreendidos os mesmos são restituídos a quem de direito, mas antes rege para as situações em que tenha havido uma prévia avaliação dos pressupostos legais de perdimento e se tenha concluído não se tratar de situação que o imponha. Por conseguinte, não se reconhece razão ao recorrente quanto a esta questão. Suscita também o recurso a falta dos pressupostos legais para o perdimento de objetos, nomeadamente os previstos na segunda parte do artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, apontando ao despacho a total omissão de avaliação quanto a tais requisitos. Analisada a decisão recorrida confirma-se que efetivamente não abordou os aludidos requisitos, ou seja, por referência à matéria factual provada, não indicou a existência de razões para se poder concluir pela colocação em perigo da segurança das pessoas, da moral ou ordem públicas, ou, por outra via, a presença de motivos que levem a concluir pelo risco sério de utilização futura da arma e munições para o cometimento de novos crimes. Ademais, examinada a factualidade em que se baseou a condenação conclui-se que não existem elementos que possam fundamentar a afirmação desses requisitos. Vejamos. Nos autos principais, o arguido foi condenado por ter na sua posse a arma e munições apreendidas quando se encontrava sob o efeito de álcool, que havia ingerido, apresentando uma TAS de 1,47 g/l. A arma de fogo que o arguido trazia consigo, e foi apreendida, constitui arma de fogo curta – revolver -, com munições, arma da Classe B1. O arguido transportava o revólver à cintura e devidamente acondicionado no coldre. O arguido era portador de licença de uso e porte de arma B1 e respetivo manifesto. Para além da condenação de que foi alvo no processo principal, o arguido sofreu uma condenação pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, cometido no mesmo dia[6]. Perante tais factos, tendo em conta que a arma em causa se trata de arma de defesa e se encontra manifestada, não sendo portanto arma proibida, mais sendo o arguido portador de licença de uso e porte da mesma, e as munições próprias para tal arma, não há razões para declarar que os objetos em causa revelam, pelas suas características e natureza, condições de perigosidade para a segurança, moral ou ordem públicas. Igualmente o não permitem afirmar as circunstâncias em que o arguido foi detetado na posse da arma e munições. Além disso, quando praticou os factos o arguido encontrava-se habilitado a ter na sua posse a arma apreendida e não lhe são conhecidos quaisquer comportamentos semelhantes ao protagonizado no dia em que cometeu o crime de uso e porte de arma sob o efeito do álcool, aliás, para além da condução automóvel nesse mesmo estado nenhum outro comportamento censurável lhe é imputado. As circunstâncias factuais apuradas não consentem que nelas se ancore a probabilidade séria de o arguido voltar a usar a arma e munições para o cometimento de novos crimes. Em conformidade com o exposto é forçoso concluir pela falta de verificação dos pressupostos legais, previstos no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, para o perdimento a favor do Estado dos objetos apreendidos nos autos. Por conseguinte, impõe-se a revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que não determine o perdimento a favor do Estado da arma e munições apreendidas ao arguido, com fundamento na verificação dos aludidos requisitos legais. Contudo, a restituição somente deverá ser determinada após comprovação da existência de atualizada licença para uso e porte da arma e munições por parte do arguido, na ausência de outro obstáculo legal à entrega. Perante o decidido fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no recurso. * III. DECISÃO:Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam que, em seu lugar, seja proferido despacho que não determine o perdimento a favor do Estado da arma e munições apreendidas ao arguido, com base no disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal. Sem custas. * Porto, 02-03-2016Maria dos Prazeres Silva Borges Martins _______ [1] Vd. Acórdão da Relação do Porto de 29-01-2014, proc. 549/11.0JAPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, e jurisprudência aí citada. [2] Vd. Acórdão da Relação do Porto de 06-04-2011, proc. 538/06.6GNPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, curiosamente citado na decisão recorrida e apreciada no acórdão em que se apoia o presente recurso. [3] Aliás, no seguimento do defendido no citado acórdão de 06-04-2011, a solução encontrada pela jurisprudência (seguida pelo acórdão de 29-01-2014) que distingue a natureza proibida ou não dos bens é omissa na explicitação do fundamento em que se apoia para atribuir ou não ao juiz poderes para declarar o perdimento dos objetos, consoante a diferente natureza destes. [4] Vd. neste sentido anotação aos artigos 374.º e 380.º do Código Processo Penal, produzida pelo Ex.mo Conselheiro Oliveira Mendes, Código Processo Penal Comentado, páginas 1169 e 1188. [5] Note-se que se trata de realidades distintas que não podem confundir-se, uma consiste em saber se o tribunal que omitiu a determinação na sentença do destino dos bens, o pode fazer ulteriormente e a outra radica em determinar quais os factos a atender para se proferir a declaração em falta (destino dos bens). [6] E ao que tudo indica nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar. |