Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2455/20.8T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INEPTIDÃO (PARCIAL) DA PETIÇÃO INICIAL
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP202203082455/20.8T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que o autor estriba a pretensão deduzida em juízo não gera o vício de ineptidão da petição inicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 2455/20.8T8VLG-A.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Valongo - Juiz 1

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA e BB intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, formulando os seguintes pedidos:
“a) reconhecimento de que, com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores do prédio identificado como fração D;
b) reconhecimento de que faz parte integrante da fração B e D, alicerces, cobertura, paredes exteriores e ainda um logradouro devidamente identificado em planta;
c) respeito do direito de propriedade dos autores sobre a fração D, incluindo o logradouro, abstendo-se de praticar quaisquer atos que impeçam ou diminuam o uso e fruição da referida fração;
d) retirada definitiva dos anexos, bem como todos os apetrechos de tubos e ligações que ali existem e se encontram à vista, deixando o logradouro limpo e desimpedido de entulhos ou lixo;
e) reparação de todos os danos que possam existir nas partes comuns, nomeadamente no piso e paredes, quer no pavimento de mosaicos/ladrilhos, quer no seu isolamento pluvial e térmico, ralos, tubagens de escoamento e, em geral, deixando-o em estado adequado ao seu fim;
f) subsidiariamente, condenação no pagamento dos danos patrimoniais ainda não determinados, a liquidar em sede de incidente de liquidação de execução de sentença; g) a condenação no pagamento da quantia de 5.500,00€ (cinco mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.”
Alegam, para tanto e, em suma, serem donos e legítimos possuidores da fração D, sendo os réus donos e legítimos possuidores proprietários da fração B do mesmo prédio, sito na Rua ..., ..., na freguesia e concelho de Valongo, e que estes têm feito uso indevido dessa fração que lhes pertence, impedindo-os de fruir de forma plena do logradouro.
Os réus apresentaram contestação, invocando, entre o mais, a exceção de ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade da mesma e, bem assim, por incongruência do pedido com a causa de pedir.
Deduziram ainda pedido reconvencional, peticionando a condenação dos autores a reconhecerem que os réus são legítimos e exclusivos possuidores e proprietários da fração designada pela letra “B”, composta por garagem no rés-do-chão esquerdo e logradouros B-1, na frente e traseiras, com entrada pelo n.º ..., do edifício constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., da freguesia e concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ......; a reconhecerem que, exclusivamente, fazem parte integrante da referida fração os logradouros, na frente e traseiras, devidamente identificados em planta por B-1., com áreas descobertas de 21,00m2 e 96,00m2, respetivamente, e a absterem-se de sobre os mesmos causar qualquer tipo de perturbação; no pagamento aos réus da quantia de € 6.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora.
Os autores na réplica, responderam à exceção da ineptidão da p.i, concluindo pela sua não verificação, tanto que os réus se defenderam cabalmente e defenderam-se por impugnação quanto á reconvenção, pugnando pela sua improcedência.
Foi proferido despacho ao abrigo do estatuído nos artigos 6.º e 590.º, n.ºs 2, alínea b), e 4, do Código de Processo Civil, convidando os autores “a apresentarem, em 15 dias, petição inicial aperfeiçoada, de que conste a concretização factual do seguinte:
“- o alegado uso indevido pelos réus da fração B;
- em que medida esse uso é impeditivo da fruição plena do logradouro e causa aos autores danos;
- razão por que imputam a existência de “pessoas estranhas” aos réus e em que medida lesam o seu alegado direito de propriedade;
- a que logradouro se reportam (não bastando a mera remissão para a planta junta) e cuja propriedade reclamam (sua localização e concretas características físicas/composição;
-se em comum ou exclusivo), bem como o fundamento ou a que título o fazem;
- a que “construções e anexos ilegais” se referem no artigo 24.º desse articulado;
- quais os “anexos” cuja retirada pretendem;
- quais os danos patrimoniais por si alegadamente sofridos, até à data, na sequência da conduta imputada aos réus.
Mais deverão os autores esclarecer a razão para concluírem pela existência de apenas duas frações, quando os próprios fazem alusão a quatro frações autónomas (A, B, C e D), como integrantes do prédio em causa.”
Os Autores responderam ao convite, juntando nova petição, “aperfeiçoada”.
Foi proferido despacho que ao abrigo do disposto no art.º 593.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispensou a realização da audiência prévia, proferindo de imediato despacho saneador.
Foi proferido despacho que admitiu a reconvenção.
O tribunal conheceu ainda da exceção da ineptidão da petição inicial, que julgou procedente, nos seguintes termos:
“(…)
Como se viu, a ineptidão ocorre quando os vícios que afetam a petição inicial são graves e evidentes, não tendo sido sanados nem corrigidos ou não subsistindo qualquer possibilidade de sanação ou correção, assim tornando a petição omissa, contraditória ou substancialmente inconciliável nos seus próprios termos.
Na presente contenda, a petição inicial contínua insuficiente e ininteligível na descrição da causa de pedir, sendo nulo o processado, já que, mesmo depois do convite formulado, nos termos do art.º 590.º, n.º 2, b), do Código do Processo Civil, não foi sanada essa falha.
Por todo o exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 186.º, n.º 1, al. a), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.º 2 e 577.º, al. b), do Código de Processo Civil, julga-se verificada a exceção dilatória de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial e, em consequência, declara-se a absolvição dos réus CC e DD da instância.
Custas pelos autores – art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Notifique.”
Inconformados, os Autores AA e BB interpuseram o presente recurso de APELAÇÃO, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador proferido nos autos, na firme convicção que a mesma enferma de nulidade, ao abrigo do disposto no art.º 195.º, do CPC., atenta o incumprimento de várias formalidades legalmente prescritas e que, em boa verdade, influenciam o exame e a decisão da causa bem como, de uma errada e insuficiente qualificação jurídica que serviu de base à decisão, a qual vai em sentido bem diferente daquele que, Vossas Excelências, elegerão, certamente, como mais acertada, depois da necessária reponderação dos pertinentes pontos da matéria de facto e de direito, e à luz dos meios probatórios disponíveis.
2. O objeto do presente recurso consubstancia-se na impugnação da decisão proferida pelo Tribunal a quo nos seguintes termos:
- Procedente a exceção de ineptidão da petição inicial.
- Admitir a reconvenção deduzida pelos RR.
3. Desde logo, salvo o devido respeito, jamais os ora Recorrentes poderão concordar com o entendimento do Tribunal recorrido.
- a) A ineptidão da petição inicial, apenas, ocorre quando esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, determinando a nulidade de todo o processo e absolvição da instância, conforme art.s 186.º n.º 1, 576.º n.º 1 e 2, 577.º al. b) e 278.º n.º 1, al. b) do CPC.
- b) Ainda, que os factos essenciais sejam insuficientes, se os RR. contestaram, decorrendo da Contestação que interpretaram convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelos AA. e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a, do n.º 2 do art.º 186 do CPC seja, com fundamento na falta ou ininteligibilidade de causa de pedir ou do pedido, a arguição não é julgada procedente quando, conforme estipula o n.º 3 daquele mesmo artigo, aliás foi deduzido pedido reconvencional e, foi julgado procedente.
4. Desta forma, violou o Meritíssimo Juiz a quo uma das formalidades do artigo 3.º n.º 3 do C.P.C.
1. NESTES TERMOS, cumpre concluir que, atento o supra exposto a decisão, aqui em apreço é nula atenta a preterição de formalidades essenciais legalmente consignadas.
I – ERRO DE JULGAMENTO
II - DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO:
6. No seguimento daquilo que já supra melhor se mencionou, os fins do Processo Civil, resumidamente, são os de, em contraditório, determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, proferir o despacho destinado a identificar o objeto do litígio.
7. ACONTECE QUE, não obstante a existência de matéria controvertida, a Meritíssima Juiz a quo, entendeu que os autos já possuíam todos os elementos necessários à decisão sobre o mérito da causa e, como tal, proferiu o respetivo despacho, proferindo decisão no âmbito dos presentes autos.
8. Porém, ao arrepio da lei, designadamente, ao abrigo do disposto no art.º 3.º n.º 3 do C.P.C., o Tribunal recorrido decidiu sobre o mérito da causa nem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito.
9. Ora, a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito constitui uma formalidade legalmente imposta pelo artigo 3.º n.º 3 do C.P.C., cuja violação acarreta a nulidade da decisão o que, desde já se invoca, com todas as consequências legais daí decorrentes.
10. Deste modo, violou o Meritíssimo Juiz a quo um dos mais elementares princípios processuais, nomeadamente, o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º n.º 3 do CPC.
11. Face ao exposto, não restam dúvidas de que a prolação da decisão é proferida com preterição de uma formalidade essencial e, que se encontra prescrita na lei, ou seja, foi a mesma efetuada sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito.
12. Em face disso e, uma vez que a omissão de tal formalidade influi no exame ou na decisão da causa, tal decisão é nula, atenta a violação do art.º 3º n.º 3 do CPC.
13. Assim sendo e, sempre com o devido respeito, a verdade é que, muito mal andou o Tribunal de que se recorre.
14. Em suma, não se conformam, de modo algum, os ora apelantes com a douta decisão em crise, por entender que a decisão judicial proferida é, nula, atenta a violação de formalidades legais, conforme supra melhor se explanou, com todas as consequências legais daí decorrentes.
15. Diremos apenas que a p.i. não é inepta; contém, de forma perfeitamente inteligível, os factos que consubstanciam a causa de pedir, o direito aos mesmos aplicável e em que se funda o pedido, que também é absolutamente claro e consonante com a causa de pedir.
16. Inexiste, pois, a invocada exceção de ininteligibilidade da p.i., pelo que deve julgar-se a mesma improcedente.
Termos em que se concedendo provimento ao recurso, deve revogar-se o despacho recorrido, em conformidade com as conclusões formuladas, com as legais consequências, fazendo-se a sã e habitual Justiça.”
Contra-alegaram os Réus CC e DD, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como Apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo do conhecimento oficioso, as questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
-Nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório;
-Não verificação dos pressupostos da exceção da ineptidão da p.i.

III-FUNDAMENTAÇÃO
Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais mencionados no Relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:
4.1-Da nulidade
Comecemos pela análise do vício da nulidade apontado pelos recorrentes no sentido que o despacho saneador que conheceu da exceção da ineptidão da petição inicial foi proferido em violação do princípio do contraditório, não tendo sido dada oportunidade às partes de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito decididas.
O princípio do contraditório é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes e com uma matriz constitucional, assente no princípio de acesso ao direito e aos tribunais e no princípio da igualdade.
Tem como corolário principal a obrigatoriedade de citação do Réu para contestar, consagrada no art.º 569.º, n.º 1, do CP Civil, sendo, depois, replicado ao longo de todo o processo civil, com as devidas adaptações.
Interpretando este princípio geral de forma atualista, refere Lebre de Freitas[1], que existe hoje uma noção ampla de contraditoriedade “com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
Apenas em casos excecionais pode este princípio ser postergado (cf. o n.º 2 do art.º 3.º do CPC), devendo ser observado e feito cumprir, não só em cada questão concretamente suscitada, como também em qualquer das diversas fases do processo, não devendo (e não podendo), por isso, o juiz decidir qualquer questão (de direito ou de facto), ainda que de conhecimento oficioso, sem que as partes hajam tido ensejo de sobre elas se pronunciarem (cf. n.º 3 do art.º 3.º)."
No caso em apreço, parece-nos evidente que as questões apreciadas e decididas no despacho saneador, foram ambas sujeitas a contraditório das partes, nos articulados que precederam o despacho saneador.
Assim, quanto á admissibilidade da reconvenção, tiveram os autores na Réplica que apresentaram, oportunidade de se pronunciarem.
De acordo com o art. 584º do CPC a réplica tem precisamente a função de permitir ao autor, contra quem é dirigido o pedido reconvencional de deduzir toda a defesa quanto á matéria da reconvenção.
Quanto á exceção dilatória da ineptidão da p.i., que foi invocada pelos Réus na contestação, foram os autores notificados para quererem responderem, o que aqueles fizeram, mediante articulado autónomo, tendo ainda, mais tarde, lhes sido dada a oportunidade pelo Tribunal de procederem ao aperfeiçoamento da petição inicial, convite que os autores também aceitaram.
Parece-nos assim manifesto que não ocorre o vício apontado.
4.2-Da ineptidão da p.i
No despacho sob recurso, a verificação da exceção dilatória da ineptidão da p.i assentou nas seguintes considerações: a descrição da coisa reivindicada apresenta-se como um facto essencial ao preenchimento da causa de pedir, cabendo aos autores alegá-lo, em conformidade com o disposto no art.º 552.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, o que não sucedeu, tendo ademais, em sede de despacho de convite ao aperfeiçoamento os autores sido expressamente alertados para o facto de a descrição do logradouro reivindicado não se bastar com a mera remissão para a planta junta, antes sendo necessário concretizar a sua localização e caraterísticas físicas ou composição, o que não se veio a verificar, como se viu.
O mesmo acontece quanto ao pedido de condenação em indemnização por danos patrimoniais, relativamente ao qual, apesar de instados a especificar os danos alegadamente sofridos até à data na sequência da conduta imputada aos réus, os autores se limitaram a invocar que tiveram “despesas e prejuízos, nomeadamente deslocações às Finanças, Conservatória, Câmara Municipal ..., deslocações a tribunal e despesas e honorários com a mandatária”. Que tal enunciação não se encontra minimamente especificada, apresentando-se abstrata, vaga e sem qualquer concretização, sendo fulcral nesta senda que os autores houvessem indicado a data da ocorrência das mencionadas despesas e prejuízos, seus montantes, entre outros.
Daí que tenha concluído o tribunal a quo que, não tendo os autores cumprido o ónus de alegação que decorreu do despacho proferido ao abrigo do disposto no art.º 590.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil e não podendo o Tribunal se substituir aos autores na definição concreta dessa factualidade em sede de decisão final, por via da produção de prova, a petição inicial era inepta, com a consequente nulidade do processado posterior, com exceção da reconvenção deduzida.
Vejamos.
A ineptidão da petição inicial constitui vício processual que gera a nulidade de todo o processo (artº 186º, nº 1 do CPC), sendo-lhe aplicável o disposto nos artigos 278º, nº 1, alínea b) e ainda o art. 577º, alínea b) do CPC.
A ineptidão da petição inicial, traduzindo-se em nulidade absoluta que afeta todo o processo, constitui uma exceção dilatória nominada.
Ao delinear o regime da ineptidão da petição inicial a intenção e finalidade da lei foi “impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria objeto do processo, que mostra desde logo não ser possível um ato (unitário) de julgamento, «judicium»” [2].
Isto é, com “a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar concretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis, visto só dentro dessas balizas se mover o exercício da atividade jurisdicional declaratória do direito”, sendo certo que além desse propósito de circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à atividade decisória, a figura da ineptidão propõe-se “ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o fundamento do pedido contra ele deduzido” [3].
A reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e Lei 41/2013 tentou reduzir, até limites razoáveis, as situações em que, por falta dos pressupostos processuais ou por qualquer outra razão relacionada com a constituição da relação jurídica processual, o tribunal se veja confrontado com a necessidade de proferir decisão de absolvição da instância, consagrando um alargamento da possibilidade de salvar a ação inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito.
Assim sendo e em face do atual regime processual, “nos casos em que a narração fáctica vertida na petição inicial não cumpra cabalmente o ónus que impende sobre o autor, teremos o seguinte quadro:
a)Ou a alegação contida na petição inicial é de tal modo deficiente que não permite identificar o tipo legal, caso em que ocorrerá ineptidão, por falta de causa de pedir
b)ou a alegação, embora deficiente, permite essa identificação, caso em que se imporá, na altura própria a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento fáctico do articulado (cfr. art. 590º).[4]
No caso em apreço, estamos perante deficiências na alegação dos factos que constituem a causa de pedir, que fundamentaram a prolação do despacho pré-saneador a que alude o art. 590º nº 2 al b) do CPC.
Uma vez convidados a suprir as deficiências na alegação, os autores juntaram nova petição inicial, tendo, porém, o tribunal a quo entendido que as deficiências não foram integralmente supridas, pelo menos em duas situações: a da devida identificação da parcela de terreno reivindicada nos autos, constituída pelo logradouro, quês segundo os autores faz parte das frações B e D do prédio constituído em propriedade horizontal, de que os autores se arrogam proprietários e da concretização das despesas com “deslocações às Finanças, Conservatória, Câmara Municipal ..., deslocações a tribunal e despesas e honorários com a mandatária” que os autores alegam ter tido em consequência da atuação dos Réus.
No caso de persistirem as deficiências apontadas no despacho de aperfeiçoamento, difere-se para o despacho saneador apreciar os efeitos das mesmas (art. 595º nº 1 al a).do CPC).[5]
Analisando a petição inicial junta aos autos (aperfeiçoada), constata-se que os autores colmataram algumas das deficiências apontadas á primitiva petição inicial, que foram assinaladas no despacho pré-saneador de aperfeiçoamento.
Resta saber se na parte em que os autores não responderam integralmente ao convite de aperfeiçoamento subiste alguma situação suscetível de impedir o conhecimento do mérito da causa.
No caso em apreço, estamos perante uma ação de reivindicação.
A ação de reivindicação, que tem a natureza de ação real, consubstancia-se numa ação de condenação que passa primeiro pelo reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiato) e depois pela restituição da coisa (condemnatio), constituindo esta afinal, o objeto desta ação. O pedido a formular em ação de reivindicação de propriedade divide-se assim em dos pedidos: o de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do objeto desse direito.
Entendemos que relativamente às duas situações apreciadas no despacho sob recurso, tal não acontece.
Concordamos com o tribunal a quo, quando afirma que constituindo o “logradouro”, o imóvel reivindicado nesta ação, carece o mesmo de se encontrar devidamente descrito e identificado, sendo doutra forma inteligível a pretensão dos autores formulada em juízo.
O tribunal tem de saber ao certo o que os autores pretendem.
Porém já não concordamos com o entendimento de que o logradouro não se mostra suficientemente densificado.
É certo que relativamente ao logradouro que os autores pretendem ver reconhecido como fazendo parte integrante da fração “B” e “D” de que se arrogam proprietários, os Autores persistiram na sua definição por remissão para a “planta camarária” que juntam aos autos, ao contrário do entendimento vertido no despacho saneador.
Só que a nosso ver a remissão para o documento - planta camarária – concede um mínimo de concretização do terreno reivindicado, impeditivo da ineptidão.
Constata-se aliás que, na escritura pública de “constituição da propriedade horizontal e partilha” junta aos autos, relativamente às frações “B” e “D” (frações de que os Autores se arrogam proprietários nesta ação), ficou estabelecido quanto às áreas comuns a estas duas frações autónomas o seguinte: “Alicerces, cobertura, paredes exteriores e ainda um logradouro devidamente identificado em planta, com a área descoberta de trinta metros”.
Ou seja na escritura de constituição da propriedade horizontal, também não foi feita uma descrição minuciosa do logradouro que constitui área comum ás frações “B” e “D”, não sendo mencionada a configuração, nem a localização expressamente, mas por remissão para uma planta.
Ora, na p.i, na descrição que os autores fazem do imóvel reivindicado aqueles usam precisamente estas expressões, (com exceção da área) bem como utilizam a mesma remissão para a planta, tal como no título constitutivo da propriedade horizontal.
Daí que, não possamos concordar com o despacho recorrido no sentido da insuficiente descrição da “coisa reivindicada”, impeditiva do conhecimento do mérito da causa, até porque todos os demais factos integrantes da causa de pedir típica de uma ação de reivindicação de propriedade se mostram devidamente enunciados na p.i, assim ficando definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da pretensão que formulam os autores.
O que pode acontecer é que uma deficiente descrição, possa vir a dar lugar a eventual improcedência da ação, no plano do mérito, caso no decurso do julgamento não se mostre possível com base no documento para o qual o autores remetem descortinar concretamente o logradouro reivindicado nesta ação.
Com efeito, as deficiências de alegação quanto á concreta descrição do logradouro (dimensão, situação no terreno, etc), mostram-se supridas pela remissão para o documento constituído pela planta junta aos autos.
A apontada falta de “densificação” na descrição do logradouro, poderá quando muito implicar a improcedência, no plano do mérito, da acusa, mas não a ineptidão.
O STJ, vem-se pronunciando no sentido acolhido, tal como resulta dos Acórdão do STJ, de 26.03.2015 (processo nº 6500/07.4TBBRG.G2.S2) e de 27 de janeiro de 2022 (processo 3777/17.0T8VFR.P1.S1), onde se pode ler: «A ineptidão da petição inicial (…) supõe que o A. não haja definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da pretensão que formula, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível» e que a «mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes».
Entendemos assim que, quanto á questão do logradouro não pode subsistir o despacho em causa, que arredou a apreciação do mérito da causa, não ocorrendo ineptidão da petição inicial geradora da nulidade de todo o processo.
O mesmo se diga quanto aos danos patrimoniais invocados, pelos autores, matéria relativamente á qual o tribunal entendeu ocorrer situação semelhante, dizendo que os autores se limitaram a invocar que tiveram “despesas e prejuízos, nomeadamente deslocações às Finanças, Conservatória, Câmara Municipal ..., deslocações a tribunal e despesas e honorários com a mandatária” e que tal enunciação não se encontra minimamente especificada, apresentando-se abstrata, vaga e sem qualquer concretização.
Também essa situação não é suscetível de conduzir á ineptidão da petição inicial, pelas mesmas razões acabadas de expor, quando muito á eventual improcedência da ação, impondo-se por isso a revogação do despacho recorrido, devendo os autos prosseguirem os normais termos.
Terminaria aqui a apreciação do presente recurso, não fosse, da leitura da p.i, constatarmos porém que, relativamente a um dos pedidos formulados, existe uma total ausência de causa de pedir.
Apesar dessa situação concreta não ter sido objeto de apreciação específica no despacho recorrido, que entendeu que a petição inicial era inepta absolvendo os Réus da instância, por se tratar de situação do conhecimento oficioso do tribunal, passamos a apreciá-la.
Com efeito, os autores formulam o seguinte pedido sob a alínea e): condenação dos réus á “reparação de todos os danos que possam existir nas partes comuns, nomeadamente no piso e paredes, quer no pavimento de mosaicos/ladrilhos, quer no seu isolamento pluvial e térmico, ralos, tubagens de escoamento e, em geral, deixando-o em estado adequado ao seu fim”.
Os Autores limitam-se a alegar que os Réus fazem um “uso indevido” do logradouro, consubstanciado nos factos que alegam no art. 18º da p.i de “terem colocado um portão no logradouro comum e caixotes na lateral que impede o acesso destes (autores) ao logradouro exclusivo”; no art. 19º, de os Réus terem construído “anexos ilegais precários interligados no referido logradouro, estruturados em madeira e ferro e com cobertura em chapa ondulada com cerca de 10,0 m2 de área total coberta”, construções feitas á revelia dos autores (cfr. artigo 24º da p.i).
Alegam que essas situações lhe causaram danos não patrimoniais (alegados nos artigos 24º e ss da p.i) e danos patrimoniais (alegados no art. art. 42º).
Porém em lado algum, porém os autores alegam que os Réus tenham causado “danos nas partes comuns, nomeadamente no piso e paredes, quer no pavimento de mosaicos/ladrilhos, quer no seu isolamento pluvial e térmico, ralos, tubagens de escoamento”.
Aliás, como resulta da formulação do pedido, tratar-se-ão de “danos” que os autores nem sabem se existem, já que aí referem a “danos que existam”.
Os autores não alegam que danos são esses, tão-pouco quem os causou e como foram causados, não havendo pois factualidade suscetível de fundamentar um pedido fundado em responsabilidade civil extracontratual, já que nenhum dos pressupostos decorrentes do disposto noa rt. 483º do C.Civil são alegados.
Somos assim confrontados com uma total ausência de causa de pedir relativamente a este pedido formulado sob a aliena e).
Como se ensina no “Manual de Processo Civil” de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [6] “a causa de pedir é o facto concreto quer serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido”.
Também Lebre de Freitas[7] refere que, para o autor da ação, indicar a causa de pedir é “alegar o facto constitutivo da situação jurídica material que quer fazer valer” .
Assim, como é bom do ver, a causa de pedir tem a ver com a factualidade concreta alegada para suporte do efeito que a parte pretende obter em termos de tutela jurídica.
Face ao preceituado no art. 581º nº 4, do C.Proc.Civil (que afirma no nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, a teoria da substanciação) pode assim definir-se a causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor. E, "quando se diz que a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto cujos contornos se enquadram na definição legal.
Sendo a causa de pedir o facto de que deriva o direito invocado (o efeito jurídico pretendido) "se o autor não… mencionar o facto concreto que lhe serve de fundamento… a petição será inepta, não bastando, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão"[8] .
Sobre a questão dispõe o artigo 186º do Código Processo Civil:
– Diz-se inepta a petição:
Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (…)
No caso do pedido formulado em e), há omissão de factos essenciais e nucleares que integram o núcleo primordial da causa de pedir, sendo nesse circunspecto a petição de tal forma deficiente que não permite sequer identificar o tipo legal.
Apesar do CPC não referir expressamente a possibilidade de ineptidão parcial da petição inicial, entende-se que não há razões para sustentar a inexistência da figura e, logo, considera-se que seja admissível quando inexista causa de pedir para parte do pedido, situação que se verifica in casu, quanto ao pedido formulado sob a alínea e).
Como vimos a consequência da ineptidão da ineptidão da p.i é absolvição da instância dos réus, no caso em apreço relativamente ao pedido contra eles formulado na alínea e) da petição inicial.
Assim sendo deverá manter-se o despacho recorrido apenas relativamente ao pedido formulado sob a alínea e), prosseguindo os autos quanto aos restantes.

V-DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando o despacho que julgou procedente a exceção da ineptidão da petição inicial, e absolveu os réus da instância, devendo prosseguir os autos os seus ulteriores termos, com exceção do que respeita o pedido formulado sob a alínea e), relativamente ao qual, se mantém a absolvição (parcial) dos réus da instância quanto ao mesmo, nos termos do disposto nos artigos 186º nº 2 al.a), 557º al. b) e 278º nº 1 al b) todos do CPC. considerando-se verificada a exceção dilatória da ineptidão parcial da petição inicial,
Custas pelos Apelados e Apelantes na proporção de 1/5 para estes e 4/5 para aqueles.

Porto, 8.3.2022
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiro
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[1] In Introdução do Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 2013, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 124 e 125.
[2] Cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pg. 47.
[3] Castro Mendes in Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pp. 219 e 220.
[4] Abantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in CPC anotado, Almedina, pg. 606; pg. 323 e pg. 220.
[5] Abrantes Geraldes in Temas da Reforma, vol II, 4ª ed., pg. 57 e ss.
[6] Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 245.
[7] Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág.322.
[8] Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, loc citado, pgs. 243 e 244.