Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2095/24.2T8VNG-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP202412112095/24.2T8VNG-E.P1
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de justa causa de destituição do administrador assenta na ideia de inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidos com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados na insolvência, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do processo.
II - Interessa a falta importante e grave, quer na sua dimensão individualizada, quer no domínio do resultado consequencial – a justa causa de destituição só ocorrerá, em princípio, quando a falta ou falha do nomeado se objective ou repercuta no âmbito do processo, dificultando ou inviabilizando se alcancem as suas finalidades, pois só então se poderá ter por irremediavelmente ferida a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2095/24.2T8VNG-E.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rodrigues Pires
Márcia Portela

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelante: A..., Ld.ª (insolvente).

Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 2) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.


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Na sentença (de 14/06/2024) que decretou a insolvência da devedora A..., Ld.ª, foi (no que releva à apreciação da presente apelação):

- fixada a sede da insolvente e a morada do seu gerente,

- nomeado o Dr. AA como o administrador da insolvência

- decidido não nomear (no momento) qualquer comissão de credores,

- determinada a entrega imediata ao administrador da insolvência (a levar a cabo pela devedora) dos documentos referidos no nº 1 do art. 24°, nº 1, do CIRE, que ainda não constassem dos autos,

- decretada a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade da devedora e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou de qualquer forma apreendidos ou detidos (art. 149º, nº 1 do CIRE), sem prejuízo do disposto no nº 1 do art. 150°, do CIRE (especificando-se que no caso de os bens haverem sido já vendidos, a apreensão teria por objeto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido – artigos 36º, g), 149º, nº 1 a) e b) e nº 2 do CIRE).

Apresentada (em 17/04/2024) pelo administrador da insolvência a declaração de aceitação da nomeação, apresentou-se (em 20/04/2024) a devedora insolvente a requerer a sua destituição e substituição por outro, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 56º do CIRE, argumentando para tanto:

- nessa data (20/04/2024), sem prévio aviso, o administrador de insolvência dirigiu-se às suas instalações e solicitou à funcionária aí presente que retirasse os seus objectos pessoais e lhe entregasse as chaves da porta de entrada, afirmando ser sua pretensão encerrar essas instalações,

- alertado pelo sócio gerente da insolvente (e pelo mandatário desta) que o encerramento das instalações acarretaria o encerramento da actividade comercial da mesma e que, não existindo decisão judicial nesse sentido, não estava mandatado para tanto (acto para o qual necessitaria de obter a prévia concordância dos credores), justificou o administrador da insolvência essa sua decisão (encerramento das instalações da insolvente) com base na sentença de declaração da insolvência,

- solicitada a presença da PSP, o administrador da insolvência, ante a presença dos elementos da força policial, desistiu do encerramento das instalações da devedora,

- o administrador da insolvência considerou apreendida toda a contabilidade da insolvente (apreensão que, alega a insolvente, não foi decretada pelo tribunal nem requerida por qualquer credor), nomeando como fiel depositário o sócio gerente da insolvente, não sendo este o detentor dela por a mesma se encontrar (tal como todos os documentos a ela inerentes) no escritório da contabilista que a efectua, o que determinou a recusa do sócio gerente em ser investido em tal função (fiel depositário da contabilidade),

- o administrador da insolvência demonstra, assim, uma ‘atitude ostensivamente contrária’ aos seus (insolvente) legítimos interesses, por isso ‘totalmente incompreensível e inaceitável’, não gerando a segurança mínima necessária de que está em condições de assegurar, de modo equidistante e imparcial, a subsequente tramitação do processo enquanto administrador judicial.

Após pronúncia do administrador da insolvência e da credora requerente (ambos concluindo pelo indeferimento da pretendida destituição) – e depois de a insolvente vir manifestar a premência do requerido, alegando ter o seu mandatário recebido e-mail enviado pelo administrador da insolvência a comunicar-lhe a caducidade de todos e quaisquer mandatos –, foi proferida decisão que, considerando não se verificar qualquer actuação que consubstancie violação grave dos seus deveres no exercício das funções, indeferiu o pedido de destituição do administrador da insolvência.

Inconformada, apela a insolvente pretendendo a revogação de tal decisão e sua substituição por outra que determine a destituição do administrador de insolvência e a sua substituição por outro, terminando as suas alegações pelas seguintes conclusões:
a) a Apelante de forma alguma concordar com a fundamentação do despacho sub judice para a decisão de não destituição do Sr. Administrador de Insolvência.
b) o comportamento perpetrado pelo Sr. Administrador de Insolvência de tentativa de encerramento do estabelecimento comercial da Insolvente, aqui Apelante, constitui uma violação grave dos seus deveres no exercício das suas funções.
c) não foi o Sr. Administrador de Insolvência que, como se refere no predito despacho, "acabou por não encerrar antecipadamente o estabelecimento comercial da devedora", já que não se tratou de uma decisão voluntária do mesmo, que pensando melhor decidiu não praticar o ato.
d) só com a presença da força pública é que fez com que o Sr. Administrador de Insolvência não encerrasse o estabelecimento comercial da devedora.
e) sendo intenção do Sr. Administrador de Insolvência proceder ao encerramento do estabelecimento comercial da Insolvente, aqui Apelante, deveria o mesmo ter previamente avançado com um pedido de encerramento antecipado do mesmo, para que os credores da massa insolvente tivessem a oportunidade de se pronunciar sobre tal encerramento, podendo os mesmos em alternativa decidirem pela sua manutenção em atividade, de forma a que tal pedido fosse apreciado, ou na assembleia de credores de apreciação do relatório (Artigo 156, n.° 2 do C.I.R.E.), ou após a apresentação do relatório previsto no artigo 155.° do C.I.R.E., no caso de ter havido dispensa da realização da assembleia de credores.
f) Não havendo comissão de credores, como é o caso, o Administrador da Insolvência só poderia proceder ao encerramento dos estabelecimentos do devedor, ou de algum ou alguns deles, previamente à assembleia de apreciação do relatório, se o devedor não se opusesse, ou se, não obstante a oposição do devedor, o juiz o autorizasse com fundamento em que o adiamento da medida até à data da referida assembleia acarretaria uma diminuição considerável da massa insolvente [alínea b) do Artigo 157.° do C.I.R.E.], o que de facto também não aconteceu.
g) A conduta do Sr. Administrador de Insolvência foi de extrema gravidade e sobretudo dolosa, já que o mesmo não podia desconhecer a sua falta de poderes para proceder ao encerramento do estabelecimento comercial da Insolvente, aqui Apelante, assim como também não podia desconhecer que a sua conduta poderia originar sérios e avultados prejuízos para a massa insolvente.
h) Nem mesmo o alegado, mas não provado, receio de dissipação de bens, pode servir de justificação para o comportamento altamente reprovável do Sr. Administrador de Insolvência, já que para acautelar tal situação, bastaria que o mesmo fizesse, como acabou por fazer, um inventário de todos os bens da Insolvente, ora Apelante, que se encontrassem no interior do estabelecimento comercial da mesma, não sendo necessário o seu encerramento.
i) O Sr. Administrador de Insolvência demonstrou uma atitude ostensivamente contrária aos legítimos direitos da Insolvente, ora Apelante, e por isso totalmente incompreensível e inaceitável, não gerando na Insolvente, ora Apelante, nem certamente nos Credores da massa insolvente, a segurança jurídica mínima necessária de que aquele estará em condições de assegurar a tramitação deste processo de forma equidistante e imparcial, enquanto administrador de insolvência do mesmo,
j) Na jurisprudência tem prevalecido um conceito dessa "justa causa" legitimadora da destituição do Administrador de Insolvência que se preenche e concretiza:
i) Com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo;
ii) Ou com a conduta traduzida na "inobservância culposa" dos seus deveres, "apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado" (art. 59, n°l do CIRE);
iii) Exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado".
k) Em conformidade com o disposto no n.° 1 do artigo 56.° do C.I.R.E., a decisão sub judice deve ser alterada por nova decisão que determine que o Sr. Administrador de Insolvência seja destituído e substituído por outro.
l) Em conclusão, a Meritíssima Juíza a quo acabou por não fazer uma correta fundamentação do despacho agora em mérito na parte objeto do presente recurso, em clara violação do estatuído nos artigos Artigo 156, n.° 2 e alínea b) do Artigo 157.°, ambos do C.I.R.E..
Contra-alegou o Ministério Público em defesa da decisão apelada e pela improcedência da apelação.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Delimitação do objecto do recurso.

Considerando a decisão recorrida e as conclusões das alegações, o objecto do recurso consiste em apreciar se existe razão (e se estão preenchidos os pressupostos legais – se ocorre justa causa) para a destituição do administrador da insolvência.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto.

A factualidade relevante mostra-se exposta no relatório que precede.

Fundamentação de direito

O CIRE (aprovado pelo DL 53/2004, de 18/03[1]), objectivando o compromisso de rever o processo de recuperação de empresas e falência, ‘com especial ênfase na sua agilização, bem como dos modos e procedimentos da liquidação de bens e pagamento aos credores’[2], adoptou modelo de pendor claramente liberal[3], marcado pela intensificação da desjudicialização do processo[4] (a indispensabilidade da intervenção do juiz foi reduzida ao que estritamente releva no exercício da função jurisdicional), tendo esse estruturante paradigma como contraponto necessário a atribuição da competência para tudo o que não colida com a função jurisdicional aos demais sujeitos processuais[5], mormente o reforço das funções do administrador da insolvência – a desvalorização do papel do juiz no processo de insolvência tem directo reflexo no carácter central e determinante das funções cometidas ao administrador da insolvência, que é o ‘órgão que maior e mais qualificada intervenção tem no processo de insolvência, nas diversas fases e actos em que ele se desdobra’, não sendo fácil descrever as suas atribuições, dando o art.º 55º do CIRE uma ‘pálida imagem dos múltiplos poderes e deveres’ que lhe estão reservados[6].

Desaparecendo o poder directivo do juiz sobre o liquidatário (estabelecido no anterior direito insolvencial – o art.º 141º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência cometia ao liquidatário judicial a administração dos bens integrantes da massa falida, sujeita à direcção do juiz e com a cooperação e fiscalização da comissão de credores), atribui-se agora ao tribunal, em alternativa, competência fiscalizadora da actividade do administrador[7], pois este exerce a sua actividade sob fiscalização do juiz, que pode a todo o tempo exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação (art.º 58º do CIRE).

Competência fiscalizadora do tribunal (reportada ao papel do juiz, confinado ao de garante da legalidade – ainda que alargada agora à globalidade da acção do administrador e não limitada tão só à administração dos bens, estando, porém, arredada a possibilidade do tribunal, fora dos poderes de fiscalização concretamente assinalados no art. 58º do CIRE, instruir o administrador sobre o modo de proceder ou impedi-lo de actuar e de censurar os actos do administrador praticados no exercício das suas funções[8]) que tem relevante manifestação no poder de destituição (art. 56º do CIRE) – poder revestido de carácter funcional, vinculado; não se trata de qualquer poder discricionário que possibilite ao juiz, verificada a justa causa, decidir ou não pela substituição; ao administrador judicial cabem importantíssimos poderes que, todavia, lhe são atribuídos para tutela de interesses que não são seus; estando investido de poderes funcionais cujo exercício zeloso é condição imprescindível da consecução da finalidade da insolvência, ocorrendo justa causa, a única consequência é a da destituição do administrador pelo juiz[9].

Conceito indeterminado de justa causa (condição essencial da destituição, garantia de independência do administrador, decisiva para a consecução dos objectivos do processo, no respeito pelo princípio da igualdade dos credores e na defesa genérica dos seus interesses[10]) que cobre ‘todos os casos de violação de deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa e, segundo o entendimento que temos por correcto, aqueles que traduzem uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador em se manter em funções’[11].

Conceito indeterminado que tem de ser conformado à teleologia funcional da actividade do administrador (tem de ser preenchido por referência às suas funções, com recurso às normas do CIRE e, se necessário, a outras normas aplicáveis[12]), qual seja a da consecução da finalidade da insolvência, centrada na satisfação dos interesses dos credores do insolvente, sendo esta finalidade o ponto de referência para aferir da aptidão, competência, eficiência, zelo e diligência do administrador em cada caso concreto e para aquilatar de qualquer desvio da conduta esperada (criteriosa e proficiente) e sua adequação para quebrar a relação de confiança entre ele e os credores, tornando inexigível a continuação do exercício de funções (e inconsistente e infundada qualquer pretensão do administrador em manter-se em funções)[13].

O conceito de justa causa legitimadora da destituição do administrador preenche-se e concretiza-se, assim, com condutas reveladoras de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo, com condutas traduzidas na ‘inobservância culposa’ dos seus deveres, apreciadas tendo por padrão de referência a diligência de administrador criterioso e ordenado (art. 59º, nº 1, parte final do CIRE), quando qualquer de tais condutas assuma suficiente gravidade que justifique a quebra de confiança e inviabilize, razoavelmente, a manutenção nas funções para que foi nomeado[14] - quando ‘o administrador adopte um comportamento geral ou pratique algum acto em particular que o torne desmerecedor da confiança dos restantes órgãos processuais ou das partes’, seja por inaptidão ou incompetência ou até por incapacidade para abstrair dos próprios interesses e manter-se equidistante em relação aos intervenientes no processo[15].

Justa causa de destituição do administrador verificar-se-á, assim, descurando as situações configuradoras de motivos objectivos de destituição (isto é, das hipóteses respeitantes à incapacidade para o exercício do cargo), quando ocorra a violação culposa de deveres legais ou estatutários que, pela sua gravidade, o tornem desmerecedor de confiança para os restantes órgãos processuais ou comprometam o fim do processo[16].

O conceito assenta, pois, na ideia de ‘inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidas com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados na insolvência, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do respetivo processo’[17].

Interessa, porém, que se trate de falta importante e grave, quer na sua dimensão individualizada, quer no domínio do resultado consequencial[18] – a justa causa de destituição só ocorrerá, em princípio, quando a falta ou falha do nomeado se objective ou repercuta no âmbito do processo, dificultando ou inviabilizando se alcancem as suas finalidades, pois só então se poderá ter por irremediavelmente ferida a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.

Na apelação (considerando as suas alegações e respectivas conclusões), a insolvente alicerça a existência de justa causa de destituição do administrador da insolvência no facto de se ter proposto encerrar o seu estabelecimento comercial, intento de que não desistiu voluntariamente, antes foi de tal propósito demovido pela presença da autoridade policial (convocada pela insolvente, que a tal pretensão se opôs) – o encerramento do estabelecimento (ponderando no caso não estar nomeada comissão de credores que pudesse ser chamada a pronunciar-se sobre tal pretensão de encerramento do estabelecimento previamente à assembleia de apreciação do relatório) só seria admissível se a devedora a ele se não opusesse ou se, não obstante a oposição desta, o juiz a autorizasse, pelo que o intento do Sr. administrador de encerrar o estabelecimento da insolvente apelante foi de extrema gravidade e doloso, por não poder desconhecer a sua falta de poderes para, nas circunstâncias em questão, proceder ao encerramento do estabelecimento e também que a sua conduta poderia originar ‘sérios e avultados’ prejuízos para a massa.

Não se nos afigura que tal quadro factual integre o conceito de justa causa para destituição do administrador da insolvência que acima se deixou densificado.

Mesmo que se pudesse considerar a conduta do Sr. administrador da insolvência como culposa (o dolo, mesmo na modalidade do dolo eventual, não parece poder ser concluído no enquadramento factual relatado nos autos), consubstanciando violação dos seus deveres legais e estatutários (prática de acto sem se munir da necessária autorização prévia) e a falha pudesse ser valorizada, apreciada na sua dimensão individualizada, como importante e grave, sempre será de recusar que se trate de falta que se tenha objectivado e repercutido no ‘domínio do resultado consequencial’, inviabilizando ou dificultando a adequada e profícua liquidação da massa e a optimização da satisfação dos interesses dos credores – o propósito manifestado pelo Sr. administrador da insolvência de encerrar o estabelecimento não ultrapassou a fase da tentativa, pois, aceitando-se (numa linguagem cara aos penalistas) que houve actos preparatórios para o cometimento do acto ilícito, certo é que este não veio a consumar-se (mesmo que tal não consumação não tenha como causa a mera desistência do Sr. administrador).

Falta de concretização do acto (do encerramento do estabelecimento) que impede se considere irremediavelmente comprometida ou afectada a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe – mesmo que se possa aceitar que a conduta do administrador tenha gerado na devedora algumas reservas sobre a sua competência e aptidão para alcançar as finalidades do processo (não só a profícua liquidação da massa como a boa administração dos bens que a integram), não pode aceitar-se que a mesma seja base suficiente para, razoavelmente, comprometer a cooperação exigível entre insolvente e administrador e/ou impedir a profícua relação processual entre ambos, pois que tal conduta não teve resultados práticos nocivos para os interesses das partes (da insolvente e dos credores).

De recusar, pois, que o enquadramento factual trazido para apreciação na presente apelação constitua justa causa de destituição do administrador da insolvência.

Do exposto resulta a improcedência da apelação, com a consequente manutenção da decisão que indeferiu o pedido de destituição do administrador da insolvência, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão apelada.

Custas pela massa.


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Porto, 11/12/2024
João Ramos Lopes
Rodrigues Pires
Márcia Portela

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Será – excepto quanto ao seu preâmbulo – citado por referência à versão consolidada, de acordo com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei nº 200/2004, de 18/08, nº 76-A/2006, de 29/03, nº 282/2007, de 7/08, nº 116/2008, de 4/07, nº 185/2009, de 12/08, pelas Leis nº 16/2012, de 20/04 e nº 66-B/2012, de 31/12, pelos Decreto-Lei nº 26/2015, de 6/02, nº 79/2017, de 30/06 (com a rectificação nº 21/2107, de 25/08), pelas Leis nº 114/2027, de 29/12 e nº 8/2018, de 2/03, pelo Decreto-Lei nº 84/2019, de 28/06, pelas Lei nº 99-A/2021, de 31/12 e nº 9/2022, de 11/01 e Decreto-Lei nº 57/2022, de 25/08.
[2] Considerando 1 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03 (1º parágrafo).
[3] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4ª edição, p. 21.
[4] Considerando 10 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03 (parágrafo 1º).
[5] Considerando 10 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03 (2º parágrafo).
[6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos sobre a insolvência, Quid Juris, Reimpressão, 2011, p. 149.
[7] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado’, 3ª Edição, Quid Juris, 2015, p. 340.
[8] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), pp. 340/341.
[9] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), pp. 335/336.
[10] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 335.
[11] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 334.
[12] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, p. 93.
[13] Cfr. acórdão desta Relação, de 10/09/2024, relatado pelo relator do presente e proferido no processo nº 2341/20.1T8AVR.P1, no sítio www.dgsi.pt (cuja argumentação se vem seguindo).
[14] Acórdão da Relação do Porto de 3/02/2014 (Carlos Querido), no sítio www.dgsi.pt.
[15] Catarina Serra, Lições (…), p. 94.
[16] Acórdão da Relação de Évora de 16/01/2020 (Francisco Matos), no sítio www.dgsi.pt.
[17] Acórdão da Relação do Porto de 12/04/2021 (Miguel Baldaia de Morais), no sítio www.dgsi.pt.
[18] Citado acórdão da Relação do Porto de 12/04/2021. Também entendendo ser requisito necessário para a destituição do administrador por justa causa um resultado consequencial (ainda que mais exigente – um ‘relevante prejuízo para a massa insolvente’), o acórdão da Relação do Porto de 9/06/2009 (Carlos Moreira), no sítio www.dgsi.pt.