Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19416/18.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
ARRENDAMENTO
FORMA DO CONTRATO
PROVA
Nº do Documento: RP2022011019416/18.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 1311º do CC, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição daquilo que lhe pertence.
II - Para o efeito, recai sobre o reivindicante o ónus de provar que é 1) proprietário da coisa e 2) que o réu a detém ou possui - e, ainda, a identidade da coisa que se reclama com a que é possuída pelo demandado.
III - Julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, deve ser julgado no mesmo sentido o pedido de restituição da coisa, pedido que só poderá ser recusado nos casos previstos na lei (nº 2 do art. 1311º do CC); nesta conformidade, o possuidor ou detentor, que não se arroga proprietário da coisa reivindicada, só pode evitar a restituição se provar, por seu lado, que: a) tem sobre a coisa outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou b) que a detém por virtude de direito pessoal bastante.
IV - Tendo em conta a nova redacção do art. 1069º do CC (introduzida pela Lei nº 13/2019 de 12.02) e a norma transitória nele inscrita (nº 2 do art. 14º), o réu podia alegar e fazer a prova da existência do contrato de arrendamento (verbal), por qualquer forma admitida em direito, demonstrando, nomeadamente, a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 19416/18.0T8PRT.P1
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Sumário (elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC):
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Comarca do Porto - Juízo Local Cível do Porto - Juiz 7
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
I. RELATÓRIO.
Recorrente(s): - B…;
Recorrido(a)(s): - C…;
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D… intentou a presente acção declarativa, na forma comum contra E….
Fundamentou a autora a sua pretensão no direito de propriedade do prédio urbano identificado na petição inicial, registada a seu favor na competente conservatória do registo predial, direito este que o réu violou ao ocupar o aludido prédio, sem qualquer título que o legitime.
Terminou a autora pedindo que seja judicialmente reconhecido e declarado que a autora é legitima proprietária do aludido prédio urbano e que o réu seja condenado a reconhecê-lo e a entregar-lhe o bem imóvel em causa e ainda que, por cada dia de atraso na restituição, a partir do trânsito em julgado da sentença que o ordenar, o réu seja condenado no pagamento de uma sanção pecuniária, à razão diária de € 150,00.
Citado regularmente, o réu contestou alegando, em resumo, que o prédio urbano em causa foi arrendado aos seus avós, com quem residia desde 2007, e que após estes terem falecido, solicitou à autora que fosse redigido um contrato de arrendamento em seu nome, o que lhe foi indeferido apesar de ter remetido os documentos exigidos e ter passado a depositar o valor de € 180,00, correspondente ao valor que a autora lhe comunicou que teria que pagar caso se mantivesse no locado com o novo contrato de arrendamento.
Terminou pedindo a improcedência da acção e, caso assim não se entenda, ser o réu condenado a entregar o locado devoluto de pessoas e bens apenas depois de lhe ser atribuída habitação social, para o que deverá fazer prova da respectiva candidatura nos 5 dias posteriores ao trânsito em julgado da decisão a proferir nos presentes autos. Mais deduziu reconvenção pedindo a restituição do valor de € 1.782,50, e o demais de liquidação posterior face ao pagamento de rendas vincendas.
Na réplica, a autora veio invocar a caducidade do contrato de arrendamento e dizer que a quantia aparentemente paga pelo réu aparece nos extractos bancários da autora como paga por F…, sem indicação de NIB ou IBAN da conta de origem, tornando impossível a sua devolução, mais se declarando disposta a devolver o montante que o réu pagou a mais, considerando a renda de € 1,75.
Findos os articulados, e por se afigurar possível conhecer do pedido, foi realizada audiência prévia, onde se tentou a conciliação das partes, sem que tenha surtido qualquer efeito.
De seguida, considerando que o processo contém todos os elementos para uma decisão conscienciosa, o tribunal recorrido passou a conhecer directamente dos pedidos formulados na acção e na reconvenção, nos termos do art. 595º, nº 1, al. b), do CPC:
“IV. Decisão:
Em face do exposto:
A. julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência, declara-se que a autora D… é proprietária do prédio urbano identificado no artigo 1º, da petição inicial e condena-se o réu E… a reconhecê-lo e a entregar-lhe o bem imóvel em causa, sem prejuízo do disposto no art.º 6º-E, nº 7, da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, absolvendo-se o réu do demais peticionado. (…)
B. julgo procedente a reconvenção e, em consequência, ordena-se que autora/reconvinda D… restitua ao réu/reconvinte E… o valor pago a mais por este - considerando a renda de € 1,75 - que à data da contestação ascendia a € 1.782,50, acrescido das quantias pagas. (…)”
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É justamente desta decisão que o Réu/recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
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Foram apresentadas contra-alegações, tendo a recorrida apresentado as seguintes conclusões:
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o recorrente coloca as seguintes questões que importa apreciar:
- saber se lhe pode ser reconhecido título válido para a ocupação do prédio da Autora;
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
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“III. Fundamentação
A. Factos Provados:
Dos documentos e do acordo das partes resultam assentes os seguintes factos:
1. A autora é uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, tendo sido instituída pelo G… em 16.03.1959, conforme documentos de fls. 80 a 84 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
2. Encontra-se registada a favor da autora a aquisição da propriedade, pela inscrição AP. 1 de 1962.12.27, do prédio urbano, sito na Rua …, …, freguesia …, do concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número 4670, destinado a habitação, composto por dois pisos, cozinha e duas salas no rés-do-chão e três quartos e casa de banho no primeiro andar, jardim e quintal, estando inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 3934, conforme documentos de fls. 5 a 7 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
3. Por contrato de arrendamento celebrado em 20.12.1954, o G… declarou dar de arrendamento a F… que declarou tomar de arrendamento o aludido prédio para habitação, com início em 1.01.1955 pela renda mensal de 350$00, conforme documento de fls. 78v a 79 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
4. Por contrato de arrendamento celebrado em 1988, a autora declarou dar de arrendamento a H… que declarou tomar de arrendamento o prédio urbano, sito na Rua …, …, para habitação do seu agregado familiar do qual fazia parte do réu, com início em 1.03.1955 pela renda mensal de 12.400$00, conforme documento de fls. 95 a 96v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
5. Por carta datada de 1.03.2007, o supra aludido F…, avó do réu, informou a autora que este se encontrava a residir com o mesmo e a sua mulher, I…, no prédio urbano identificado em 3, conforme documento de fls. 95 a 96v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
6. F… faleceu em 2013 e a sua mulher faleceu em 24.01.2017.
7. Através de carta de 22.03.2017, o réu comunicou à autora a morte da avó, I… e manifestou a vontade de continuar a residir no prédio identificado em 3, com a companheira, solicitando que lhe fosse feito novo contrato de arrendamento, conforme documento de fls. 56 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
8. Em resposta, a autora, através de carta de 17.04.2017 solicitou diversa documentação a fim de apreciar se o réu preenchia os requisitos de atribuição da habitação em causa, informando que na eventualidade do deferimento do pedido apresentado, a respectiva renda ascenderia ao valor de € 180,00, conforme documento de fls. 59v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
9. O réu remeteu os elementos solicitados em 11.05.2017, conforme documento de fls. 58 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
10. Em Janeiro de 2018, a autora, através de advogado, solicitou ao réu a entrega do prédio, por não preencher os requisitos para a atribuição do mesmo.
11. A atribuição de casas de renda económica pertencentes à autora obedece a um regulamento interno, conforme documento de fls. 114 a 115 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido
12. A partir de Abril de 2018, inclusive, ao invés de liquidar mensalmente o valor de renda no montante de € 1,75, o réu passou a depositar na conta bancária da autora a quantia mensal de € 180,00, em numerário e em nome de F…, conforme documentos de fls. 68 a 73v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13. O réu sofre de diabetes tipo 1, encontra-se desempregado e aufere a quantia mensal de € 174,21, a título de RSI”.
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Conforme resulta das posições do recorrente e da recorrida, a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal Recorrido não foi impugnada pelo mecanismo processualmente próprio, pelo que o presente Tribunal terá de se pronunciar sobre a identificada questão tendo em consideração apenas aquela factualidade.
Nessa medida, não tendo sido deduzida Impugnação da matéria de facto, e não sendo caso do presente Tribunal proceder à alteração oficiosa da matéria de facto (cfr. nº 1 do art. 662º do CPC)[1], deverá a factualidade dada como provada manter-se nos exactos termos que se mostram vertidos na Decisão Recorrida.
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Aqui chegados, e dentro destes pressupostos fácticos, importa, pois, que o presente Tribunal se pronuncie sobre a argumentação do recorrente que contende, como vimos, com a questão de saber se lhe pode ser reconhecido título válido para a ocupação do prédio da Autora.
Importa, pois, verificar se, atendendo aos fundamentos de recurso invocados, se deve manter a apreciação de mérito efectuada pela Decisão Recorrida, em face da matéria de facto dada como provada.
Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, julga-se que a sentença recorrida não merece as criticas que lhe são efectuadas pelo recorrente.
Senão vejamos.
Nos termos do art. 1311º do CC, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição daquilo que lhe pertence.
Não há duvidas, atentos os factos considerados provados, que se tem de considerar a Autora como titular de um direito de propriedade sobre a prédio urbano identificado nos autos (direito de propriedade, aliás, expressamente não posto em causa pelo Réu).
Ora, dispõe o art. 1311º do CC que, assumindo tal qualidade: "... 1. o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. 2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei".
Face a este condicionalismo legal pode-se, assim, afirmar que sobre o reivindicante recai o ónus de provar que é 1) proprietário da coisa e 2) que o réu a detém ou possui - e, ainda, a identidade da coisa que se reclama com a que é possuída pelo demandado[2].
Assim, julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade da autora, deve ser julgado no mesmo sentido o pedido de restituição da coisa e só poderá ser recusado nos casos previstos na lei (nº 2 do art. 1311º do CC).
Afirmado e decidido o direito de propriedade, o possuidor ou detentor, que não se arroga proprietário da coisa reivindicada, só poderia evitar a restituição se provasse que: a) tem sobre a coisa outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou b) que a detém por virtude de direito pessoal bastante[3].
Poderia, assim, o Réu contestar a obrigação de entrega com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe conferisse a posse ou detenção da coisa, ou com alguma das situações especiais previstas na lei, nos termos do artigo 1311º, nº 2, do CC, cabendo-lhe o ónus da prova do motivo que legitima a recusa da restituição da coisa, ou seja, deveria alegar e provar que a sua detenção é legítima e é oponível à reivindicante.
Assim, entre outras situações previstas na lei, o Réu poderia “... contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do(a) Autor(a), com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa (a titulo de usufrutuário, locatário, credor pignoratício, etc. ... )”[4].
No caso concreto, o Réu invocou justamente uma dessas hipóteses, uma vez que alegou que a sua ocupação seria legitima porque fundada na celebração dum contrato de arrendamento (verbal) - ou porque teria direito a que fosse celebrado um contrato de arrendamento com a Autora.
A questão que o recorrente levanta é justamente a de saber se assim é, ou seja, se ocupa o locado mediante um contrato de arrendamento (celebrado verbalmente ou cuja celebração o tribunal deveria reconhecer).
Antes de entrarmos na apreciação dos argumentos apresentados pelo recorrente (que, desde já se avança, foram devidamente apreciados pelo tribunal recorrido), importa salientar que, como aceitam ambas as partes, o contrato de arrendamento mencionado na matéria de facto caducou por morte da avó do réu, pois que o Réu, sendo descendente em 2º grau da arrendatária, não se encontrava em qualquer uma das situações previstas nas alíneas do nº 1 do art. art.º 57º da NRAU (na redacção emergente da Lei nº 31/2012, de 14.08, em vigor à data do óbito da arrendatária, ocorrido a 24.01.2017), e, nessa medida, não lhe assistia o direito à transmissão da posição de arrendatário, ainda que fizesse prova da alegada vivência em economia comum há mais de 10 anos – o que não provou -, pelo que cumpre concluir pela caducidade do contrato de arrendamento por morte da avó do réu.
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Dito isto, tendo caducado o contrato de arrendamento, a ocupação legitima do Réu só poderia surgir:
- se o Réu demonstrasse ter celebrado com a Autora um (novo) contrato de arrendamento;
- ou se o Réu demonstrasse que a recusa da Autora em celebrar o novo contrato era injustificada, uma vez que estavam reunidos todos os pressupostos legais para que esta celebração do contrato ocorresse.
Começando pela primeira questão, salvo o devido respeito pela insistência do recorrente, a verdade é que, como bem referiu o tribunal recorrido, não decorre da matéria de facto provada que se possa afirmar a celebração de um novo contrato de arrendamento.
Ou seja, pode-se concluir da matéria de facto considerada provada que o Réu não logrou fazer a prova da existência de um novo contrato de arrendamento.
É verdade que, tendo em conta a nova redacção do art. 1069º do CC (introduzida pela Lei nº 13/2019 de 12.02) e a norma transitória nele inscrita (nº 2 do art. 14º), o réu podia alegar e fazer a prova da existência do contrato de arrendamento (verbal), por qualquer forma admitida em direito, demonstrando, nomeadamente, a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Com efeito, estabelece o artigo 1069.º do CC (na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02) sob a epígrafe “Forma” que:
“1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses”.
Não há dúvidas de que, por força do nº 2 do artigo 12.º do CC, as condições de validade substancial ou formal de um contrato se aferem, em geral, pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado.
Ora, à data da alegada celebração do contrato (2018), para a validade do contrato, o citado artigo 1069º, do CC, exigia a forma escrita - aliás, desse inciso até a alteração introduzida pela Lei 13/2019, constava apenas o seu corpo (agora nº 1) cuja redacção inicial foi alterada pela Lei 31/2012 de 14/08 que suprimiu a referência à duração do contrato[6].
Sucede que é inequívoco que o legislador, no artigo 14º, nº 2 da lei 13/2019 (Norma transitória), impôs que “o disposto no nº 2 do artigo 1069º do CC, com as alterações introduzidas pela presente lei, se aplica igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma”.
O legislador com esta norma transitória quis estabelecer que:
“No que respeita à aplicação da lei no tempo, tais alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, como decorre da regra geral do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. Acresce que o legislador esclareceu expressamente que algumas alterações têm aplicação mesmo a situações constituídas antes da entrada em vigor da presente lei (artigo 14.º). Assim acontece quanto à forma do contrato, prevista no n.º 2 do artigo 1069.º, e quanto ao disposto no artigo 1041.º”[7].
Assim, “o n.º 2 do art. 14.º prevê que a regra nova do art. 1069º, n.º 2 (permite ao arrendatário preservar a validade do contrato, provando a sua execução) seja aplicável a arrendamentos existentes à data da entrada em vigor da lei. Apesar de se tratar de uma prescrição sobre forma, caso em que as regras de aplicação da lei no tempo definem a aplicação da lei vigente no momento da celebração do contrato (art. 12.º, n.º 2 do CC), não se trata de requisitos de validade formal que as partes devessem ter observado aquando da celebração do contrato, pelo que não se compromete a regra geral de que a lei só dispõe para o futuro e fica assim resolvida a dúvida que se pudesse suscitar sobre a aplicação da regra nova (Nota 46: Conforme esclarece Pinto Furtado, op. cit., p. 312, às modificações ao contrato de arrendamento anteriormente celebrado aplica-se a nova regra e não a disposição vigente no momento da sua celebração)”[8].
Com efeito, “mantendo-se inalterada a obrigação de celebração por escrito dos contratos de arrendamento, é aditado ao preceito o nº 2 que, na ausência de contrato escrito, vem permitir ao arrendatário a demonstração da existência do vinculo contratual estabelecido por qualquer forma admitida em direito, demonstrando que utiliza o locado sem a oposição do senhorio e que efectuou o pagamento da respectiva renda mensal por um período de sei meses, abrangendo, a referida alteração, não apenas os contratos celebrados após a entrada em vigor da Lei nº 13/2019, mas também os arrendamentos existentes anteriormente a essa data, nos termos do nº 2 do art. 14º deste último diploma”[9].
As razões que terão levado o legislador a alterar estas exigências formais decorrerão do facto de “na prática, existir ainda um número significativo de arrendamentos em que, por diversas razões, as partes optam por não reduzir a escrito o vinculo contratual, contribuindo assim para uma maior vulnerabilidade dos arrendatários visados que dificilmente teriam como demonstrar a existência do mesmo”[10].
“Nestes casos, a sanção para a falta de forma não será assim a nulidade, mas a invalidade mista. Para além (de que) poderá ainda ocorrer uma inalegabilidade formal, no caso de a invocação da nulidade por falta de forma se apresentar como contrária à boa-fé, por haver abuso de direito na sua invocação”[11].
Isto dito, não há dúvidas que o Réu podia, como lhe passou a ser permitido pelo nº 2 do artigo 1069.º atrás transcrito, fazer a prova da existência do contrato de arrendamento que tinha celebrado verbalmente com a Autora, por qualquer forma admitida em direito – uma vez que a forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem -, demonstrando a sua utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Acontece, porém, que, ainda que se possa admitir que o réu alegue e demonstre o pagamento de uma renda desde Abril de 2018, a verdade é que o mesmo não alega, e consequentemente, não demonstra a utilização do locado sem oposição da autora.
Aliás, como bem refere o tribunal recorrido, da factualidade provada resulta precisamente o inverso (cfr. pontos 7. a 10. do elenco dos factos provados).
Além disso, inclusivamente a presente acção deu entrada em 21.09.2018, ou seja, antes de decorridos seis meses após o primeiro pagamento de renda no valor de € 180,00 – daí a desnecessidade de discutir se tais transferências de dinheiro poderiam significar a não oposição da Ré.
Nesta conformidade, em face da matéria de facto considerada provada, nunca se poderá considerar que o Réu logrou demonstrar a celebração de um contrato de arrendamento (verbal).
Restaria, pois, verificar se tal oposição da Autora em celebrar o contrato de arrendamento se mostrava infundada em face dos regulamentos aplicáveis à situação e a que a Autora devia obediência (Regulamento interno de atribuição de casas da D… (documento junto aos autos) e o Regulamento dos Concursos para Atribuição de Habitações Sociais, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 50/77, de 11 de Agosto, publicado no Diário da República I Série nº 185 de 11/08/77
Esses regulamentos, no entanto, impunham, entre outros, os seguintes requisitos:
- o requisito previsto no número 2.3 do citado Regulamento Interno de Atribuição de Casas de Renda Económica, que pressupõe para a transferência do arrendamento aos descendentes: “(…) que com eles sempre tenham coabitado (…)”[12].
- O requisito previsto no art. 3º Decreto Regulamentar nº 50/77, de 11 de Agosto – aplicável por força da remissão estabelecida no art. 4.1.1 do Regulamento interno[13] - que pressupõe a adequação da habitação em função do agregado familiar, critério que deverá ter em conta o número de membros de cada agregado familiar de molde a que o imóvel se mostre adequado à satisfação das necessidades do agregado em questão, considerando-se o número de quartos de dormir e capacidade de alojamento – cfr quadro constante do citado preceito legal[14].
Ora, se compulsarmos a matéria de facto considerada provada, podemos concluir que o Réu não preenchia qualquer um destes requisitos procedimentais, pelo que a Autora, no estrito cumprimento de tais regras regulamentares, teve que necessariamente recusar a celebração do contrato de arrendamento que o Réu declarou unilateralmente pretender celebrar - declaração que, assim, não foi aceite justificadamente pela Autora nos termos das regras objectivas resultantes dos regulamentos a que esta devia obediência – tudo conforme também os arts. 224º e ss. do CC[15].
Com efeito, resulta dos factos provados que o Réu nem sempre coabitou com os seus ascendentes no prédio urbano aqui em discussão - o próprio réu alegou que só passou a residir com os arrendatários, seus avós, em 2007, ou seja, não resulta da própria alegação que o locado tenha sido sempre a sua residência.
E, por outro lado, sendo o seu agregado familiar composto apenas por dois elementos, e dada a tipologia da casa, o pedido do Réu estava fora dos critérios estabelecidos no Art.º 3º Decreto Regulamentar nº 50/77.
Assim, como bem concluiu o tribunal recorrido, como o Réu não reunia tais requisitos procedimentais, a recusa da celebração do contrato de arrendamento, comunicada pela Autora (e exercida pela presente acção) mostra-se totalmente justificada à luz dos citados Regulamentos a que a Autora devia obediência.
Nesta conformidade, não podemos deixar de aderir à fundamentação do tribunal recorrido, quando refere o seguinte:
“Por fim, não se revela também suficiente para tal que o réu tenha alegado e demonstrado que é uma pessoa de modestos recursos e que a autora é uma D… que tem por escopo, para além do mais, proporcionar “habitação condigna e de renda económica se encontra em situação económica a pessoa de modestos recursos económicos”.
Conforme decorre do Regulamento Interno junto aos autos a fls. 114 a 115 a atribuição de uma habitação pela autora não decorre imediata e directamente da situação económica dos candidatos, estando tal atribuição assente na ocupação dos fogos por agregados familiares que apresentem baixos rendimentos, seleccionados após um procedimento concursal, que está dependente de várias condições e requisitos.
Como é comummente aceite, o direito à habitação, consagrado no art.º 65º, da CRP, não é um direito absoluto e, mesmo nos termos consagrados constitucionalmente, não é um dever dum particular perante outro, mas um dever do Estado perante os cidadãos.
Do que vem de dizer-se resulta que não pode o tribunal deixar de ordenar a restituição do imóvel reivindicado, livre de pessoas e coisas – ao réu incumbia a alegação e prova de facto que legitimasse a ocupação do imóvel, o que não logrou fazer (e o significado essencial do ónus de prova reside precisamente em dever o tribunal decidir contra a parte sobre a qual impende o ónus de prova quando a prova do facto não seja feita)”.
Nessa medida, e porque se concorda, assim, com a fundamentação de direito aduzida pelo Tribunal de Primeira Instância, decide-se manter a decisão proferida.
Improcede, pois, totalmente o recurso com estes fundamentos.
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III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto e, na sequência, decide-se manter integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente (artigo 527º, nº 1 do CPC).
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Porto, 10 de Janeiro de 2022
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
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[1] Sobre os casos em que tal alteração oficiosa pode ocorrer, v. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, págs. 241 e ss., explicitando o Autor os seguintes exemplos: “… quando o Tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de determinado meio de prova…” (por ex. um documento com valor probatório pleno); “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº1 e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC)”; “ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente” (por ex. presunção judicial ou depoimento testemunhal nos termos dos arts. 351 e 393º do CC); “Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte…”; finalmente, acrescenta este autor que “também não oferece dúvidas a possibilidade… de se modificar a decisão sobre a matéria de facto quando for apresentada pelo Recorrente documento superveniente que imponha decisão”- tudo situações que não se verificam no caso concreto.
[2] Cfr. Ac. do STJ 11.4.91, in dgsi.pt;
[3] Cfr. Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, 1979, 848; Menezes leitão, in “Direitos Reais “, págs. 256 e 257.
[4] Antunes Varela e Pires de Lima, in “CC anotado”, vol. III, pág. 116; cfr. ac. do STJ de 4.7.80, in BMJ 299, pág. 320.
[5] Cumpre aqui salientar que, como constava do contrato de arrendamento inicialmente celebrado, o avô do Réu era “funcionário do G…”; e que, além disso, estabelecia-se na cláusula 7ª do contrato que: o contrato caducava “… quando o inquilino deixar de ser empregado ou assalariado do G… ou da actividade coordenada deste organismo” - v. documento junto com a Réplica. No entanto, nos termos do art. 2º do Regulamento interno da Autora estava prevista a transmissão da posição de arrendatário para o cônjuge sobrevivo – a avó do Réu: “2.2 - Assim, considerando a titularidade do arrendamento da habitação familiar um valor patrimonial do casal, aceita transferir essa titularidade para o cônjuge sobrevivo, sem qualquer alteração das condições, nomeadamente do valor da renda”.
[6] Sobre a evolução das exigências legais de forma no âmbito do contrato de arrendamento, v. por ex. Pinto Furtado, in “Comentário ao Regime do arrendamento urbano”, págs. 299/300.
[7] Maria Olinda Garcia, in “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, - Julgar online, Março de 2019, pág. 8.
[8] Ana Isabel Afonso, in “Sobre as mais recentes alterações legislativas ao regime do arrendamento urbano” (Estudos de Arrendamento urbano, Vol. I), UCP Porto, Maio de 2020, pág. 37.
[9] Edgar Valente, in “Arrendamento urbano- Comentário às alterações legislativas introduzidas ao regime vigente”, págs. 23/4.
[10] Edgar Valente, in “Arrendamento urbano- Comentário às alterações legislativas introduzidas ao regime vigente”, pág. 23.
[11] Menezes leitão, in “Arrendamento urbano” (9ª edição), pág. 59
[12] É o seguinte o teor deste art. do Regulamento interno da Autora: “2.3 - Igualmente, em caso de morte dos titulares ou respectivos cônjuges reconhece aos descendentes que com eles sempre tenham coabitado a transferência do arrendamento, com actualização da renda, nos termos definidos pela Segurança Social para as casas do seu património”.
[13] “4.1.1 - A adequação do agregado familiar ao tipo de habitação disponível, nos termos definidos no art°. 3°. do Regulamento dos concursos para atribuição de habitações sociais, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 50/77, de 11/8, não sendo admitidos os candidatos que não estejam nas condições exigidas;”
[14] É o seguinte o teor do nº 1 do art. 3.º do citado Dec. Regulamentar: “(Habitação adequada) 1. A habitação a atribuir a cada agregado familiar será a adequada à satisfação das suas necessidades, não podendo ser atribuído a cada concorrente o direito ao arrendamento ou à propriedade de mais do que um fogo”.
[15] Como referem Fernando Ferreira Pinto/Fernando Sá, in “Comentário ao CC- Parte Geral”, UCP- 2014, pág. 528: “A declaração de rejeição, expressa ou tácita, tem como efeito a extinção da proposta, ainda que não tenha decorrido o prazo para a aceitação. Trata-se de uma declaração recipienda que, na falta de regime especifico, segue o regime da proposta (…)”.