Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO AFONSO LUCAS | ||
Descritores: | CRIME DE DESOBEDIÊNCIA POR RECUSA DE REALIZAR TESTE DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE OMISSÃO DE COMPORTAMENTO DEVIDO PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS MOTORIZADOS APLICADA A CRIME DE DESOBEDIÊNCIA | ||
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Nº do Documento: | RP20241120978/20.8GDVFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Deve ter–se por adquirido para qualquer cidadão condutor que é sujeito a uma acção de fiscalização rodoviária e a quem é dada ordem de sujeição ao teste de despistagem de álcool no sangue, que, caso não seja viável tal procedimento por teste ao ar expirado, deverá submeter–se a exame por via de colheita de sangue em conformidade com quanto estipula o art. 153º/8 do Cód. da Estrada, e que, caso assim não proceda incorre no cometimento de um crime de desobediência. II - Se o arguido, por se haver sentido indisposto no momento em que tentava realizar a pesquisa de álcool no sangue por teste ao ar expirado, é conduzido ao hospital, mas vem a abandonar este local sem contactar os agentes da autoridade a fim de efectuar recolha de sangue que era devida para efectivar o teste de pesquisa de álcool, tal omissão consubstancia efectiva recusa à ordem a que já se encontrava adstrito. III - A recusa de realização do teste de pesquisa de álcool no sangue ocorre não apenas quando se declara de forma expressa não se pretender adoptar o comportamento devido, mas também quando se assume uma actuação material de onde se pode extrair que se está a boicotar ou se pretende inviabilizar aquela realização. IV - A pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista e aplicável nos termos da alínea d) do nº1 do art. 69º do Cód. Penal, tem o seu pressuposto material na consideração de que o desrespeito das regras atinentes à fiscalização pelas autoridades competentes do exercício da condução em estado de afectação etílica (no caso) se revela especialmente censurável, pois que a perigosidade de tal comportamento não pode deixar de ser reflexo daquela que é, afinal, a perigosidade própria da condução exercida sob efeito do álcool – que no caso nem é adequadamente detectada por culpa do arguido. (Sumário da responsabilidade do Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 978/20.8GDVFR.P1 Referência: 18717933
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2
Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 978/20.8GDVFR que corre termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2, em 15/05/2024 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor: «DECISÃO Nos termos expostos, decido: 1). Absolver o arguido AA do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.o 1, alínea a), do Código Penal, que lhe era imputado. 2). Sem custas – artigo 513.º do Código de Processo Penal, a contrario. »
Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 29/05/2024, o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões: I. O Tribunal “a quo” absolveu o arguido AA da prática do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; II. A sentença padece do vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º, n.º 2, al. c) do C.P.P.; III. Resulta do texto da sentença, no que toca às declarações do arguido que ele: reconheceu que foi fiscalizado pelas autoridades e submetido ao teste de despistagem de alcoolemia no aparelho qualitativo; reconheceu que já no posto da GNR, antes de fazer o teste no aparelho quantitativo, ter-se-á sentido “indisposto” e foi transportado para o hospital; reconheceu que esteve no hospital e que abandonou o local sem receber qualquer assistência médica ; reconheceu que os bombeiros que procederam ao seu transporte o avisaram que deveria aguardar a chegada dos militares da GNR; não soube explicar que tipo de indisposição teve; IV. O arguido reconheceu que os bombeiros que procederam ao seu transporte o avisaram que deveria aguardar a chegada dos militares da GNR, mas já não se lembrava que os miliares da GNR poucos minutos antes o tinham advertido de que tinha de aguardar a sua chegada ao hospital para fazer a necessária recolha sanguínea a fim de ser realizado o exame de despistagem de álcool no sangue; V. Resulta do texto da sentença que a Meritíssima Juiz: não atribuiu credibilidade à narrativa do arguido; conferiu credibilidade às declarações dos militares da GNR que em uníssimo asseveram que, por diversas vezes, advertiram o arguido que teria de aguardar a sua chegada ao hospital para fazerem o exame sanguíneo e que, caso o não fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência; valorou as declarações dos militares e o teor do auto de notícia de fls. 6/7, os quais evidenciam que os guardas da GNR se deslocaram ao hospital pelas 18h30m e que o arguido já aí não se encontrava tendo realizado diversas diligências durante cerca de uma hora para o procurar com base nos elementos de identificação que tinham e ainda com a sua descrição física; valorou o registo clínico de fls. 27 que demonstra que o arguido teve “alta por abandono” no dia 25/12/2020, pelas 19:39:03; valorou o termo de entrega dos documentos de fls. 8 ao arguido no dia 26/12/2020, pelas 08h50m, que evidencia que o arguido sabia o que tinha acontecido, ou seja, que apesar da sua “indisposição”, tinha sido fiscalizado pelas autoridades no dia anterior e que os militares da GNR ficaram na posse dos seus elementos de identificação pessoais; VI. O conteúdo da sentença, por si só e conjugado com as regras da experiência comum, patenteia, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida no que toca à factualidade dada como não provada nos pontos 3) a 6) da sentença e na factualidade dada como provada na al. i) de que o arguido só abandonou o hospital pelas 04h00m; VII. A sentença padece do vício da “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto”, previsto no art.º 410º, n.º 2, al. b) do C.P.P.; VIII. Resulta do texto da sentença que o Tribunal “a quo” valorou, claramente, positivamente as declarações dos militares da GNR, as quais por si só permitiam dar por verificado a prática do crime de desobediência; ao invés, com a mesma clareza, não atribuiu credibilidade à versão do arguido; IX. Contraditoriamente com a valoração efetuada da prova em sede de motivação da sentença, decidiu absolver o arguido; X. Caso seja julgado procedente o recurso, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, n.º 1, al. a) do C.P. numa pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 9,00€ e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses – cf. art.ºs 40º, 47º, n.ºs 1 e 2, 69º, n.º 1, al. c), 70º, 71º e 348º, n.º 1, al. a) do C.P. (este último conjugado com o art.º 152º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do C.E.).
O recurso foi admitido em 14/06/2024
A este recurso respondeu, em 02/09/2024, o arguido AA, propugnando pela improcedência do recurso, referenciando nomeadamente da seguinte forma: (…) 9- A Mmª Juiz a quo faz, na “motivação da matéria de facto”, não só uma síntese do que foi referindo o arguido, nas suas declarações, como também uma análise crítica ao que foi declarado, atentas as regras da lógica e da experiência comum, e sopesado com a demais prova dos autos que entendeu relevante para a formação da sua convicção, tirando as devidas ilações em termos de factualidade provada. (…) 12- Ou seja, a Mmª Juiz a quo das declarações do arguido e da testemunha BB concluiu que o arguido, ainda estava no Centro Hospitalar ... de madrugada. 13- Relevou a hora referida pelo arguido atento não só o facto da testemunha ter referido que foi abordada por um sujeito de madrugada que lhe pediu um táxi, como também o relato que o arguido fez de conversa que terá tido com a testemunha em que esta lhe terá dito que ele já havia sido chamado pela secretaria, o que encontra arrimo no documento de fl. 27. 14- Tudo o mais, designadamente, que o arguido se terá furtado(escondido) à localização dos militares da G.N.R., com intenção de obstar à realização do teste de álcool, a Mmª Juiz a quo deu como não provado, por insuficiência de prova, o que lhe gerou dúvidas, e tendo essas dúvidas que se resolver em benefício do arguido, como é constitucionalmente consagrado – princípio in dubio por reo. 15- É este o único sentido que de uma leitura atenta do texto da douta sentença recorrida se retira, e está conforme (em absoluta congruência), com as regras da lógica e da experiência comum. 16- Não há, repete-se, qualquer erro notório na apreciação da prova, como sustenta o Digníssimo Procurador da República na sua douta Motivação de Recurso. 17- Como também não há, quanto aos factos não provados nos pontos 3) a 6). 18- Os pontos 4) a 6) dos factos não provados configuram o elemento subjectivo do tipo legal de crime de desobediência que, como não provados, acarretam, irremediavelmente, a absolvição. 19- No que concerne ao ponto 3) apenas se concluiu que o arguido esteve no Hospital até de madrugada, concretamente, até às 4 da manhã, como se deu como provado em i). 20- E, neste particular, a Mm.ª Juiz a quo fez figurar no texto da decisão recorrida que “[P]ara além do mais, ficou igualmente por demonstrar de modo seguro que o arguido se tenha deliberadamente furtado ao contacto com os identificados Militares no Hospital e muito menos que o tenha abandonado antes da chegada daqueles Militares”. 21- Ou seja, não foi feita prova inequívoca, cabal, e do texto da douta sentença recorrida resulta isso mesmo, de que o arguido deambulou pelo Centro Hospitalar com o propósito de se furtar à submissão ao exame quantitativo de detecção de álcool no sangue. (…) 26- Passando aos pontos 4) a 6) dos factos não provados, se prova foi feita do elemento objectivo do crime que melhor consta da alínea e) dos factos provados, igual prova não foi feita quanto ao elemento subjectivo do tipo legal de crime de desobediência. 27- E são várias as referências que a Mm.ª Juiz faz na motivação da matéria de facto quanto às dúvidas que a assolaram no que a esse elemento do tipo legal de crime diz respeito, no que redundou na sua não prova com fundamento no Princípio in dubio pro reo. (…) 29- Face a esta motivação da matéria de facto, coerente e lógica em si, outra opção não restava senão dar como não provados os factos 4) a 6) que se vêm referindo, com base no principio constitucional que se vem referindo e, em consonância, com a não prova do elemento subjectivo do tipo legal de crime desobediência, absolver o arguido, como absolveu. 30- Não há, por tudo o que se deixa alegado também qualquer contradição insanável entre a matéria de facto considerada provada e não provada e a motivação que lhe subjaz. 31- Não há qualquer contradição insanável entre os factos dados como provados, maxime, o constante das doutas conclusões de recurso, e os que constam como não provados, designadamente, os que também são impugnados nas conclusões de recurso. 32- Outrossim, inexiste qualquer contradição insanável entre os factos dados como provados e como não provados e o dispositivo da douta sentença recorrida. 33- A sentença recorrida fez um correcto juízo, interpretação e aplicação, designadamente, do artigo 32.º da C.R.P., artigo 127.º do C.P.Penal, artigo 348.º, n.º1, alínea a) do C.Penal.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu propugna pela procedência do recurso, referenciando em síntese: «O Ministério Público não impugnou a matéria de facto dada como provada e como não provada nos termos previstos no artigo 412.º n.º3, do Código de Processo Penal. Os recursos cingem-se à invocação de vícios previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, mais concretamente os de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), da referida norma, e o de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, este previsto na alínea b), os quais têm necessariamente de decorrer do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Acompanha-se, decididamente, o recurso do Ministério Público, aderindo-se aos seus fundamentos, dos quais resulta claramente demonstrada a verificação dos vícios invocados. Quanto a estes, considere-se que não há qualquer relação de mútua exclusão entre um e outro, pois, como refere Francisco Mota Ribeiro, in Processo e Decisão Penal, e-book, CEJ, Novembro 2019, págs. 47, pode haver situações em que a contradição da fundamentação se traduz ao mesmo tempo num erro notório na apreciação da prova, o que manifestamente sucede, a nosso ver, no caso vertente. Os elementos existentes dispensam, quanto a nós, o reenvio, permitindo decidir da causa neste tribunal de recurso. Em CONCLUSÃO, somos de parecer que o recurso merece provimento, devendo alterar-se a matéria fáctica dada como não provada nos pontos 3., 4., 5., e 6., que deve passar a considerar-se provada, e na alínea i), da matéria de facto provada, que deve considerar-se não provada, com a consequente condenação do arguido e fixação da respectiva pena concreta, nos termos também apontados no recurso [Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência 4/2016].»
Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser acrescentado de relevante no processo. * Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. * II. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[1] e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre: 1. saber se se verifica na Sentença do tribunal a quo algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal; 2. saber se estão reunidos os pressupostos da condenação do arguido pelo crime de desobediência de que vinha acusado, com correspondente determinação das respectivas consequências penais. * Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.
a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância: «FUNDAMENTAÇÃO Matéria de facto provada Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto: Da acusação pública: a). No dia 25 de Dezembro de 2020, pelas 17:25 horas, na Rotunda ..., ..., Santa Maria da Feira, o arguido AA conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com o n.º de matrícula DY-...-BZ da República Francesa. b). Ao ser abordado pelos Militares da GNR, o arguido realizou exame qualitativo que indicou uma TAS de 1,04 g/l de sangue. c). Por via disso foi transportado ao Posto da GNR ... para realização do exame quantitativo. d). Nas instalações da GNR o arguido começou a dizer que se sentia mal, sendo accionado o número 112, que encaminhou ambulância dos Bombeiros Voluntários .... e). Por ter sido considerado necessária a realização de exames complementares, foi o arguido transportado para o hospital, porém, antes do transporte, foi o mesmo advertido pelos Militares da GNR de que não poderia abandonar o hospital sem a chegada da Patrulha ao local, para ser realizada colheita ao sangue e posterior pesquisa de TAS, sob pena de, não o fazendo, incorrer em crime de desobediência, do que foi expressamente e várias vezes advertido pelos Militares. f). Já no Centro Hospitalar ..., E.P.E., o arguido foi sujeito à triagem. g). Quando referidos Militares da GNR chegaram ao Hospital, após terem ido ao Posto Territorial ... recolher um kit para recolha de sangue e análise da taxa de álcool, não encontraram o arguido. h). Motivo pelo qual não foi efectuada a colheita de sangue para exame de TAS. i). O arguido abandonou o Hospital pelas 04:00 horas. j). Antes das 08:50 horas do dia 26/12/2020 compareceu no Posto da GNR ... a solicitar que lhe entregassem os seus documentos pessoais que lá tinha deixado. * Mais se provou: k). À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais. l). O arguido é emigrante em França há cerca de quinze anos, vindo a Portugal apenas pelo Natal. m). Tem o 6.º ano de escolaridade e trabalha na construção civil, auferindo um vencimento de € 1.300 mensais. n). Separou-se há cerca de dois/três anos da sua mulher, vivendo, agora, sozinho, em casa arrendada pela qual paga € 540 mensais. o). Tem uma filha de trinta e nove anos de idade, residente em Portugal. p). O arguido é dono de um veículo automóvel, da marca “Mercedes”, modelo “...”, do ano de 2016. * Não se provou: 1). O arguido disse também que necessitava de assistência médica. 2). No circunstancialismo descrito na alínea f) dos factos provados, foi também prestada assistência ao arguido. 3). O arguido andou a deambular pelo hospital e depois abandonou o mesmo. 4). Sabia o arguido que a ordem para aguardar pelos Militares da GNR para submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue era legal, provinha da autoridade competente, fora-lhe regularmente comunicada e a devia acatar. 5). O arguido agiu com intenção, concretizada, de desobedecer à ordem legítima que lhe foi regularmente transmitida, abandonando as instalações do hospital furtando-se e desse modo recusando a sua submissão ao exame quantitativo de detecção de álcool no sangue, apesar de se encontrar legalmente obrigado a tal. 6). O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal vigente. »
b. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância: «Motivação da matéria de facto: A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, desde logo nas declarações do próprio arguido, o qual, no fundamental, reconheceu os factos tidos por demonstrados (note-se que com correcção quanto ao local dos factos, padecendo a acusação pública de manifesto lapso de escrita, indicando-se o Posto da GNR como o local dos factos), referindo que se teria sentido mal no indicado Posto, caindo para o chão, ainda que não conseguisse esclarecer ou concretizar em que consistiria tal indisposição. Mais aduziu o arguido não ter qualquer recordação de ter sido advertido pelos identificados Militares de que não poderia abandonar o Hospital sem aguardar a sua chegada e que se o fizesse incorreria num crime de desobediência, assumindo que, de facto, os Bombeiros que procederam ao seu transporte o avisaram que deveria aguardar a chegada daqueles Militares. Relatou ainda o arguido que, quando se sentiu melhor, levantou-se da sala de espera e foi tomar café, foi à casa-de-banho e andou por ali, estranhamente alegando não ter pensado em avisar alguém, ainda mais inacreditavelmente referindo que esperou até cerca das 04:00 horas e que, só então, como ninguém o tinha chamado para ser visto, após falar com um segurança (que o informou que o tinham chamado e ele não respondera – cfr. informação de folhas 27), decidiu ir embora, ou seja, aguardou por longas horas sem tentar inteirar-se do motivo da delonga no atendimento (versão que à luz das mais elementares regras da experiência comum, do normal acontecer e até mesmo da mais meridiana razoabilidade, não se tem como plausível) e, quando finalmente o fez, não se dirigiu à secretaria ou similar, mas sim a um segurança. Por outro lado, a testemunha CC, à data dos factos, em funções no Posto Territorial ... da Guarda Nacional Republicana, de modo escorreito e consistente, relatou a factualidade atinente à fiscalização do arguido, mormente a sua aparente indisposição e a decisão que tomou em accionar a emergência médica, assim como o motivo pelo qual não acompanharam o arguido ao hospital (tendo a necessidade de passar primeiro pelo Posto ...), asseverando que, por diversas vezes, o advertiram que teria de aguardar a sua chegada ao hospital e que, caso o não fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência, certo que, quando chegou ao Hospital não encontrou o arguido, não obstante o tenha insistentemente procurado e questionado diversas pessoas se o tinham visto. O depoimento da testemunha DD, também ele, à data dos factos, em funções no Posto Territorial ... da Guarda Nacional Republicana, foi prestado em moldes em tudo idênticos à antecedente testemunha. Foi ainda atendido o teor do auto de notícia de folhas 6 a 7, do termo de entrega de folhas 8 (onde se consigna como hora da entrega dos documentos as 08:50, pelo que necessariamente anterior às indicadas 09:00 horas) e relatório de admissão hospitalar de folhas 10. Quanto às condições pessoais do arguido foram atendidas as suas próprias declarações e no que tange à ausência de antecedentes criminais o certificado do registo criminal junto a folhas 129. Ora, ainda que não se tenha minimamente credível a versão do arguido, o certo é que a demais prova produzida não foi de molde a afirmar inequivocamente a versão vertida no libelo acusatório. Na realidade, muito embora as testemunhas CC e DD asseverassem que advertiram o arguido de que não poderia abandonar o hospital, não resultou indubitável que o arguido tenha ouvido, percebido ou retido tal advertência, certo que o mesmo (pretensamente) se encontraria indisposto. Acresce que, ainda que se duvide da veracidade da putativa indisposição do arguido, mercê a dificuldade deste em concretizar em que a mesma consistiria, bem como o referido pelas identificadas testemunhas quanto à coincidência de tal estado com o início da realização do teste quantitativo de álcool no sangue (ainda que o primeiro depoente referisse inicialmente que o arguido ainda teria esboçado algumas tentativas de sopro – que não realizava –, mencionando, depois, não ter certeza se o arguido teria chegado a tentar soprar alguma vez, e o segundo depoente afirmado que a indisposição acontecera mesmo antes do início daquele teste), assim como a suspeita com que os mesmos teriam ficado quanto à sinceridade do verbalizado e revelado, o certo é que ambas as testemunhas referiram não ser capazes de avaliar se, efectivamente, o arguido se estaria a sentir mal (pelo que, tratando-se de uma simulação, teria sido minimamente credível), para além de também os Bombeiros que se deslocaram ao Posto terem avaliado como credível o mal-estar do arguido, tanto que decidiram transportá-lo ao hospital, onde, após triagem, lhe foi dada uma pulseira amarela, o que se sabe, tendencialmente, não corresponde a queixas inócuas (é o terceiro grau de urgência). Donde que, a verificar-se um quadro clínico de etiologia e contornos não concretamente apurados, mas que poderia, por exemplo, coincidir com um ataque de pânico, tornava-se credível a asserção do arguido quanto à falta de qualquer recordação da advertência que lhe foi endereçada ou até a não percepção do que lhe foi transmitido. Para além do mais, ficou igualmente por demonstrar de modo seguro que o arguido se tenha deliberadamente furtado ao contacto com os identificados Militares no Hospital e muito menos que o tenha abandonado antes da chegada daqueles Militares. Com efeito, não se afigurando credível a narrativa do arguido, em conformidade com o supra consignado (reitere-se, não é plausível que tenha aguardado até às 04:00 horas sem tentar inteirar-se do motivo pelo qual não era chamado), não é impossível que o mesmo tenha andado pelo hospital sem ter consciência que inviabilizaria a sua assistência e a sua fiscalização, tanto mais que, de acordo com o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue inicialmente realizado, o mesmo estaria embriagado. Assim, aparecendo efectivamente como a versão mais plausível e provável dos eventos, aquela que parecia resultar da tese acusatória (ainda que expressamente não se alegue que o arguido deambulou com o propósito de se furtar ao contacto com os Militares), ou seja, que o arguido se teria furtado (escondido) à localização dos identificados Militares, com o escopo de obstar à realização do teste de álcool, não é possível afirmar, com segurança, que foi o que aconteceu naquela data, certo que, a testemunha EE, assistente operacional em funções na referida Instituição hospitalar, não tinha memória dos factos, e a testemunha BB, também assistente operacional na portaria daquele Hospital, revelando não ter uma recordação vívida dos eventos, relatou que foi abordado de madrugada por um sujeito que lhe pediu um táxi, facto que, no dia seguinte, transmitiu aos Militares que o questionaram a tal propósito, confirmando-se, assim, a presença do arguido no Hospital ainda de madrugada. »
c. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância: «Aspecto jurídico da causa: Enquadramento jurídico-penal Traçado o quadro factual a considerar, importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico. Em conformidade com o recorte típico proporcionado pela disposição incriminadora em presença, comete o crime de desobediência simples aquele que faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. Conforme consensualmente reconhecido, através da repressão jurídico-penal da desobediência, tutela-se, em especial, o interesse administrativo do Estado em garantir o acatamento dos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública, reprimindo-se a desobediência em si mesma e enquanto tal, independentemente das insurrectas consequências ou dos propósitos subversivos que lhe possam estar associados. Tratando-se, assim, em primeira linha, da salvaguarda de um bem jurídico ontologicamente incaracterístico, optou o legislador por circunscrever o âmbito – ainda assim porventura excessivamente amplo – de protecção da norma incriminadora, através da caracterização, ao nível da descrição típica da conduta proibida, da ordem emitida por autoridade pública cujo não acatamento é susceptível de determinar a correspondente responsabilidade criminal. Qualquer que seja, pois, a modalidade que concretamente revista, para que a factualidade típica se tenha por objectivamente preenchida é necessária a existência de uma ordem ou mandado legítimos, a sua regular comunicação, a emanação da mesma de autoridade ou funcionário competente e a falta à obediência devida. A ordem ou mandado cujo não acatamento penalmente se reprime haverá de ser substancialmente legítima, ou seja, haverá necessariamente de surgir em presença de uma disposição legal que autorize a sua emissão nos termos em que foi realizada ou, na ausência de disposição legal, na sequência dos poderes para esse efeito reconhecidos ao funcionário ou autoridade expedidora. Para além de legitimidade substantiva, a ordem ou o mandado têm que ter validade formal. Com efeito, apenas quando as ordens ou mandados em causa são emitidos e comunicados em conformidade com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão e comunicação se poderá configurar um crime de desobediência. Em todos os outros casos, a ordem ou o mandado não terá sido regularmente emitido ou comunicado, razão pela qual a obediência não será devida. Ora, ao remeter constantemente, a propósito da concretização de cada um dos elementos típicos utilizados – legitimidade da ordem emitida, regularidade da sua comunicação e competência da autoridade ou funcionário de que emana –, para outras disposições legais, o preceito em causa pode qualificar-se como um preceito penal “em branco”, ou seja, um preceito cuja norma de comportamento é preenchida através da convocação de outras disposições, mesmo que situadas no âmbito de ordenamentos não penais (cfr. F. Dias, Crime de Câmbio Ilegal, CJ, ano XII, 1987, tomo 2, pg.54). Daqui resulta necessariamente que a hipótese legal se deverá procurar, em cada caso, nas atinentes normas legais, penais ou extra-penais. Deste modo, na presente hipótese, porque legalmente previsto se encontra o procedimento a observar em cada uma das situações concretamente verificadas, a afirmação da legitimidade substancial da ordem emitida dependerá da respectiva conformidade com o teor da disposição reguladoras. Decorre do artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, na versão aprovada pelo Decreto-lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro que quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas é punido por desobediência. No caso presente, tendo-se demonstrado que a emissão da ordem desatendida foi precedida de um acto de condução praticado pelo visado, tem-se por verificado o pressuposto previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º do Código da Estrada, razão pela qual se impunha a observância do procedimento previsto no referido dispositivo, o que, por seu turno, conduz a que se afirme a validade substancial do comando que ao arguido foi endereçado. Todavia, ficando por afirmar a demais factualidade que poderia apontar para a conclusão que o arguido se recusou a realizar o referido teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado ou deliberadamente obstou a sua realização, não se encontram sequer preenchidos todos os elementos do tipo do ilícito que ao arguido vem imputado, pelo que, sem necessidade de outras considerações, se decide absolvê-lo do mesmo. »
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.
1. De saber se se verifica na Sentença do tribunal a quo algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal.
Como facilmente se pode constatar, parte substancial – e primordial – do recurso apresentado pelo Ministério Público tem por objecto a impugnação de parte da matéria de facto não provada que vem considerada em sede de Sentença recorrida – invocando que esta última se mostra inquinada dos vícios de erro notório na apreciação da prova e também de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto, previstos, respectivamente, nas alíneas c) e b) do art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal.
Como decorre do disposto no art. 428º do Cód. de Processo Penal, as Relações, em sede de recurso, conhecem de facto e de Direito. Em sede de decisão sobre a matéria de facto adoptada em primeira instância, a mesma pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas: – no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal, – ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal. A impugnação ora formulada pelo Ministério Público gravita no âmbito da primeira dessas vias, isto é, da arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º – a designada impugnação restrita da matéria de facto –, disposição onde se estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) o erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, como acima já se enunciou, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar – como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, em ‘Código de Processo Penal Anotado’, 10ª ed., pág. 729 ; Germano Marques da Silva, em ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª ed., pág. 339 ; ou ainda Simas Santos e Leal Henriques, em ‘Recursos em Processo Penal’, 6.ª ed., pág. 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. Serão, pois, falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão devendo ser patentes e perceptíveis à leitura do restrito teor da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios. Assumem–se, pois, como erros de lógica intrínsecos na construção da sentença, a relevar da contextualização interna da estrutura da mesma, ainda que congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado.
Centrando–nos naquilo que nesta sede importará considerar, vejamos, sucintamente, como se caracterizam os vícios aqui invocados. Assim, a “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” (art. 410º/2/b) do Cód. de Processo Penal), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados, entre os meios de prova invocados na fundamentação de facto, ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre maxime quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado simultaneamente como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou ainda quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Como indicado por Simas Santos e Leal–Henriques em ‘Recursos em Processo Penal’, 6ª ed., pág. 71, “contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão - incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados ; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada ; e há contradição entre os factos quando os provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem–se mutuamente”. Ou, como se exarou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/05/2020 (proc. 9/19.0GBMDA.C1)[3] “A referida alínea b) abrange, na verdade, dois vícios distintos: a contradição insanável da fundamentação ; e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível” (cfr. Ac. do STJ de 18-02-1998, nº convencional JSTJ00034535). Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas”. Por seu turno, o “erro notório na apreciação da prova” (cfr. art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal) verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em processo penal”, 5.ª edição, pág. 61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6ª Ed., pág. 74). Esta interpretação, para além acolhida por todos os Tribunais da Relação, é também sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo referenciar–se neste sentido, e entre muitos outros, o Acórdão do S.T.J. de 09/03/2023 (1368/20.8JABRG.G1.S1)[4], «O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto, mas nem sempre detetável por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos. Na verdade, o erro pode não ser evidente aos olhos do leitor médio e, todavia, constituir um erro evidente para um jurista de modo que a manutenção da decisão com base naquele erro constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça». Não obstante, e como adverte o Acórdão do S.T.J. de 23/09/2010 (proc. 427/08.0TBSTB.E1.S2)[5], «O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova (…) tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida». Ou seja, não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Efectuadas (e tendo presentes) estas considerações, revertamos ao caso concreto dos autos.
Como de início se recordou, alega o recorrente/Ministério Público que a Sentença recorrida padece dos vícios de erro notório na apreciação da prova, e também do de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto – previstos, respectivamente, nas alíneas c) e b) do art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal. Em apertada síntese se dirá que, quanto ao erro notório na apreciação da prova, considera o recorrente que, dando nota o tribunal a quo de qual a matéria de facto reconhecida pelo próprio arguido, das incoerências em que o mesmo incorreu, e da credibilidade atribuída à versão dos militares da GNR e da falta de credibilidade atribuída à versão do arguido, e enfim os demais elementos ali valorados, a análise de qualquer homem comum chega à conclusão que se impunha decisão diversa quanto à matéria de facto dada por não provada nos pontos 3). a 6). e por provada no ponto i). Já quanto à contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto, alega–se que que a Sentença revela haver o tribunal a quo valorado, de forma clara e positiva, as declarações das testemunhas militares das GNR, e que estas, por si só e como ali explanadas, permitiam dar por verificada a matéria de facto integradora da prática do crime imputado ao arguido – sendo que, ao invés, e com a mesma clareza, a Sentença também revela não haver sido atribuída credibilidade à versão do arguido. Ou seja, contraditoriamente com esta que é a valoração da prova efectuada, decidiu–se pela não demonstração da factualidade típica e, assim, pela absolvição do arguido.
Apreciando, liminarmente se consigna que se julga assistir razão ao recorrente/Ministério Público, considerando–se verificados os vícios decisórios invocados, cuja sustentação reside, precisamente, no conjunto de circunstâncias cirurgicamente recortadas nas alegações do recorrente. Aliás, em bom rigor se dirá que a principal dificuldade na sindicância da decisão recorrida neste âmbito reside, não na constatação dos vícios em causa, mas sim na rigorosa delimitação entre ambos – isto é, em seccionar onde termina um e começa o outro, tal a interligação entre ambos. Nesta perspectiva, e não sendo – naturalmente – isso obstáculo à verificação dos fundamentos que sustentam os vícios em questão, sufraga–se a consideração a propósito efectuada pelo Digno PGA no seu parecer, quando assinala que «Quanto a estes [vícios], considere-se que não há qualquer relação de mútua exclusão entre um e outro, pois, como refere Francisco Mota Ribeiro, in Processo e Decisão Penal, e-book, CEJ, Novembro 2019, págs. 47, pode haver situações em que a contradição da fundamentação se traduz ao mesmo tempo num erro notório na apreciação da prova, o que manifestamente sucede, a nosso ver, no caso vertente».
Começando pela constatação da situação de erro notório na apreciação da prova, cumprirá atalhar no caminho da presente exposição para a referência de que o arguido vinha nos autos acusado do cometimento de um crime de desobediência previsto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 348º/1/a) do Cód. Penal – de que resulta que «Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se … [u]ma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples» – e 152º/1/a)/3 do Cód. da Estrada – onde se estipula que «Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas … [o]s condutores», prevendo–se que quando (nomeadamente) estas pessoas «recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência». In casu, e sendo indisputada a condição de condutor do arguido no âmbito e contexto de toda a factualidade assente em sede de Sentença, constata–se que na mesma se vêm a considerar como não verificados os pressupostos típicos da actuação criminal imputada no essencial porque, como se sintetiza em sede de motivação da decisão de facto, conclui que não se considera haver resultado «indubitável que o arguido tenha ouvido, percebido ou retido» a advertência que se considera assente haver–lhe sido oportunamente e «várias vezes» feita pelos agentes da GNR autuantes, de que não poderia abandonar o hospital (onde foi conduzido por se haver manifestado indisposto após realização de exame qualitativo que indicou uma TAS de 1,04 g/l de sangue, e já no Posto da GNR ... onde deveria realizar exame quantitativo) sem a chegada da Patrulha ao local para ser realizada colheita ao sangue e posterior pesquisa de TAS – cfr. factos provados sob os pontos b). c)., d). e e.)). Se em si mesmo este cenário já se apresentaria à partida algo singular e inusitado, ainda que em rigor, e considerado apenas em tais singelos termos, nada de flagrantemente errado revele – na verdade, é abstractamente admissível que, apesar de advertido, o arguido não tivesse apreendido aquelas reiteradas advertências –, já quando, efectuada a leitura do teor da Sentença (limite inicial e final da nossa análise), se examina o caminho percorrido pelo tribunal a quo e que deveria conduzir àquela determinante conclusão, é concludente a constatação de que a própria valoração probatória manifestada pela primeira instância não suporta a mesma, antes a inviabiliza e impõe conclusão de sinal oposto.
Assim, começa a sentença recorrida, por, em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, referir o seguinte – com sublinhados agora apostos: «A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, desde logo nas declarações do próprio arguido, o qual, no fundamental, reconheceu os factos tidos por demonstrados (note-se que com correcção quanto ao local dos factos, padecendo a acusação pública de manifesto lapso de escrita, indicando-se o Posto da GNR como o local dos factos), referindo que se teria sentido mal no indicado Posto, caindo para o chão, ainda que não conseguisse esclarecer ou concretizar em que consistiria tal indisposição. Mais aduziu o arguido não ter qualquer recordação de ter sido advertido pelos identificados Militares de que não poderia abandonar o Hospital sem aguardar a sua chegada e que se o fizesse incorreria num crime de desobediência, assumindo que, de facto, os Bombeiros que procederam ao seu transporte o avisaram que deveria aguardar a chegada daqueles Militares. Relatou ainda o arguido que, quando se sentiu melhor, levantou-se da sala de espera e foi tomar café, foi à casa-de-banho e andou por ali, estranhamente alegando não ter pensado em avisar alguém, ainda mais inacreditavelmente referindo que esperou até cerca das 04:00 horas e que, só então, como ninguém o tinha chamado para ser visto, após falar com um segurança (que o informou que o tinham chamado e ele não respondera – cfr. informação de folhas 27), decidiu ir embora, ou seja, aguardou por longas horas sem tentar inteirar-se do motivo da delonga no atendimento (versão que à luz das mais elementares regras da experiência comum, do normal acontecer e até mesmo da mais meridiana razoabilidade, não se tem como plausível) e, quando finalmente o fez, não se dirigiu à secretaria ou similar, mas sim a um segurança.» Ora, constata–se que logo neste ponto de partida o tribunal a quo manifesta a transversal incredulidade que lhe suscita o relato do arguido, sendo que vem reiteradamente, e em várias passagens subsequentes do exercício de motivação probatória, a reiterar não lhe haver merecido credibilidade o relato do arguido, inclusive o considerando inverosímil em vários aspectos concretos que realça do mesmo. Assim, e além do que logo acabamos de ver mencionado no agora transcrito trecho inicial da motivação, adiante mais se menciona designadamente o seguinte, sempre com sublinhados agora apostos: – «ainda que não se tenha minimamente credível a versão do arguido», – «não resultou indubitável que o arguido tenha ouvido, percebido ou retido tal advertência, certo que o mesmo (pretensamente) se encontraria indisposto». – «ainda que se duvide da veracidade da putativa indisposição do arguido, mercê a dificuldade deste em concretizar em que a mesma consistiria, bem como o referido pelas identificadas testemunhas quanto à coincidência de tal estado com o início da realização do teste quantitativo de álcool no sangue», – «não se afigurando credível a narrativa do arguido, em conformidade com o supra consignado (reitere-se, não é plausível que tenha aguardado até às 04:00 horas sem tentar inteirar-se do motivo pelo qual não era chamado)». E julga–se que todas estas – e aquelas anteriores – asserções se revelam ajustadas, pois que, na verdade, e exactamente pelos motivos que a Sentença vai assinalando, um tal relato afigura–se, efectivamente, incompatível com elementares regras de lógica e de experiência comum. Porém, e de forma que por isso mesmo escapa à lógica de uma tal motivação, vem o tribunal a quo a considerar que afinal poderá suceder que o contexto daquela suposta indisposição propalada pelo arguido, e que o próprio tribunal não dá por segura, poderá permitir acolher a dúvida sobre se o mesmo terá percebido a advertência efectuada pelos agentes autuantes. Estamos em face de um raciocínio que, de todo, pode merecer acolhimento à luz, repete–se, daquelas que são as basilares regras de lógica e experiência absolutamente comum nas concretas circunstâncias de facto que a Sentença descreve. E por duas ordens de razões: quer porque as justificações que a Sentença aduz para acolher aquela dúvida não se julgam merecedoras de razoabilidade à luz dos próprios termos da decisão recorrida, quer porque, em boa verdade, não é inclusive sem alguma dificuldade que se percepciona a relevância típica criminal negativa atribuída à eventualidade de o arguido não haver percepcionado a advertência «várias vezes» efectuada pelos agentes da GNR antes de ser conduzido ao hospital.
Assim, e quanto ao primeiro leque de motivos, as justificações que a Sentença ensaia em sustento da dúvida sobre a consciência e voluntariedade da actuação do arguido em furtar–se à realização do exame da T.A.S. por recolha de sangue, não se julgam merecedoras de razoabilidade à luz dos próprios termos da decisão recorrida. Assim, como é que se coaduna a circunstância de jamais se caracterizarem os termos de tal indisposição com a tutela de uma eventual falta de memória? Repare–se que jamais o teor da Sentença recorrida viabiliza em concreto a caracterização de uma tal indisposição, não passando o hipotético «ataque de pânico» a que a Sentença alude a determinado passo de mera especulação que não encontra na mesma motivação probatória qualquer sustento. Na verdade, quando a Sentença refere que «a verificar-se um quadro clínico de etiologia e contornos não concretamente apurados, mas que poderia, por exemplo, coincidir com um ataque de pânico, tornava-se credível a asserção do arguido quanto à falta de qualquer recordação da advertência que lhe foi endereçada ou até a não percepção do que lhe foi transmitido», não está mais do que a retirar uma conclusão (negativa, no caso) sobre um dado facto numa premissa que nem o próprio tribunal a quo tem por verificada. E tudo isto quando é ademais certo, e prosseguindo, que exactamente o primeiro e último motivos pelo qual nada se sabe sobre as características de tal indisposição, como assumido na Sentença, é a circunstância de o arguido não ter sido, afinal, assistido clinicamente, e porque abandonou as instalações do hospital – não sendo, de facto, absolutamente nada credível, como assinala o tribunal a quo, que tivesse deambulado longas horas pelo hospital sem questionar os motivos da demora na sua assistência. Tudo quando é seguro assinalar ainda e sempre a Sentença resultar do depoimento dos agentes da GNR – ao qual o tribunal a quo atribui integral credibilidade – que estes se deslocaram ao hospital mais de nove (!) horas antes daquela (04.00 horas) a que o arguido alega ter saído dali, e já ali o não encontraram «não obstante o tenha[m] insistentemente procurado e questionado diversas pessoas se o tinham visto» – note–se que a Sentença expressa haver valorado o registo clínico de fls. 27, e onde de dá conta de que demonstra que o arguido teve “alta por abandono” no dia 25/12/2020, pelas 19.39 horas. O que, diga–se desde já (e di–lo o tribunal a quo, como acima vimos), bem demonstra como frontalmente contrário às regras da lógica e experiência relativas ao comportamento normal de alguém que aguarda assistência hospitalar, seria andar a deambular por um hospital até às 04.00 horas da madrugada. Neste particular cumpre assinalar que é certo referir a motivação da Sentença que «a testemunha BB, também assistente operacional na portaria daquele Hospital, revelando não ter uma recordação vívida dos eventos, relatou que foi abordado de madrugada por um sujeito que lhe pediu um táxi, facto que, no dia seguinte, transmitiu aos Militares que o questionaram a tal propósito, confirmando-se, assim, a presença do arguido no Hospital ainda de madrugada». O que já não se vislumbra como indiciariamente inevitável – nem a Sentença o explica – é a conclusão de que aquele aludido «sujeito» fosse a pessoa do arguido. Depois, temos que se refere ainda na Sentença que «certo é que ambas as testemunhas [agentes da GNR] referiram não ser capazes de avaliar se, efectivamente, o arguido se estaria a sentir mal (pelo que, tratando-se de uma simulação, teria sido minimamente credível), para além de também os Bombeiros que se deslocaram ao Posto terem avaliado como credível o mal-estar do arguido, tanto que decidiram transportá-lo ao hospital, onde, após triagem, lhe foi dada uma pulseira amarela, o que se sabe, tendencialmente, não corresponde a queixas inócuas (é o terceiro grau de urgência)». Salvo o devido respeito, não se vislumbra em que é que tal circunstância afecta a factualidade imputada ao arguido. Na verdade, o que aqui se refere haver sido mencionado por estas duas testemunhas é que os mesmos não foram capazes de asseverar se o arguido, após submetido ao teste quantitativo e já no posto da GNR, estava efectivamente a sentir–se indisposto, como alegava, nem os contornos de tal pretensa (para usar a expressão da própria sentença) indisposição. O que bem se compreende, pois que não consta da Sentença que os mesmos tenham valências clínicas, donde, exigir–lhes uma tal avaliação seria exigir–lhe mais do que aquilo que o tribunal a quo exigiu à própria pessoa que estaria indisposta, isto é, ao arguido, que apesar de haver sofrido na pele tal indisposição, não a soube minimamente caracterizar. Mas, e por isso mesmo, daí não resulta que tal pretensa indisposição fosse sequer indiciariamente incapacitante de o arguido reter qualquer uma das «várias» advertências que na altura as testemunhas lhe fizeram – sendo certo, como resulta da matéria de facto provada e é coerente com básicas regras de lógica, que tais «várias» advertências não foram efectuadas a um arguido em estado de inconsciência ou inanição. Mais, e exactamente nesta sequência. É a própria consideração pelo tribunal a quo do teor de outros meios de prova nos exactos e precisos termos em que o faz consignar na Sentença, que, de acordo ainda e sempre com regras de lógica comum, inculca estarmos perante um juízo probatório flagrantemente erróneo por parte do tribunal a quo. Assim, realça–se que na própria motivação da decisão sobre a matéria de facto se relata resultar das declarações prestadas pelo arguido o seguinte: «Mais aduziu o arguido não ter qualquer recordação de ter sido advertido pelos identificados Militares de que não poderia abandonar o Hospital sem aguardar a sua chegada e que se o fizesse incorreria num crime de desobediência, assumindo que, de facto, os Bombeiros que procederam ao seu transporte o avisaram que deveria aguardar a chegada daqueles Militares». Desde logo se diga que esta asserção liminarmente acentua o desvio revelado pela Sentença com relação a quanto inculcaria a lógica, pois que sempre corresponde ao sufragar–se – e como assinala o Ministério Público na sua alegação de recurso – que o arguido se lembrava perfeitamente de que os bombeiros que procederam ao seu transporte o avisaram que deveria aguardar a chegada dos militares da GNR, mas já não se lembrava que os miliares da GNR poucos minutos antes o tinham advertido exactamente disso mesmo, isto é, de que tinha de aguardar a sua chegada ao hospital para fazer a necessária recolha sanguínea. Seja como for, o que daqui resulta é que os próprios bombeiros do serviço de emergência médica que conduziram o arguido ao hospital – e que a Sentença faz questão de realçar «terem avaliado como credível o mal-estar do arguido, tanto que decidiram transportá-lo ao hospital» – não deixaram de advertir também o arguido naqueles termos – o que só se compreende, de acordo com uma elementar lógica, no pressuposto de que, no seu juízo avaliativo, tais soldados–da–paz consideraram que o arguido estava em condições de percepcionar e compreender uma tal advertência, independentemente das características da sua indisposição. Dito de outro modo, se algo indiciariamente em termos probatórios se retira logicamente dessa circunstância relatada pelo próprio arguido, e considerada na Sentença, é que o arguido não estaria inibido de compreender e reter a advertência que lhe foi efectuada – ou seja, exactamente o contrário daquilo que veio a considerar–se na decisão recorrida.
O que nos conduz ao segundo leque de motivos pelos quais a dúvida em que se suporta a Sentença carece de razoabilidade – e ligados, como acima se disse, à circunstância de não ser sequer totalmente líquida a relevância típica criminal negativa atribuída à eventualidade de o arguido não haver percepcionado a advertência «várias vezes» efectuada pelos agentes da GNR antes de ser conduzido ao hospital. Retomando a configuração típica do crime de desobediência imputado ao arguido nos autos, e que logo de início aqui se recordou, é verdade, como vem a assinalar o tribunal a quo já em sede de enquadramento jurídico–criminal da matéria de facto, que «Qualquer que seja, pois, a modalidade que concretamente revista, para que a factualidade típica [do crime de desobediência] se tenha por objectivamente preenchida é necessária a existência de uma ordem ou mandado legítimos, a sua regular comunicação, a emanação da mesma de autoridade ou funcionário competente e a falta à obediência devida.». Porém, e como certeiramente realça o recorrente/Ministério Público, tenha–se também presente que, para que se tenha por preenchida a tipicidade do concreto crime in casu imputado, já não é outrossim necessária uma prévia e expressa advertência ou cominação por parte de autoridade ou funcionário de que o comportamento do agente, se adoptado ou omitido (conforme o caso) em contrário da ordem legitima em causa, consubstanciará crime de desobediência – nisso se distinguindo da imputabilidade decorrente da alínea b) do art. 348º/1 do Cód. Penal, como, por todos, referencia o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/05/2018 (proc. 1727/17.3PBOER.L1-5)[6], referindo que «Conforme resulta do n.º 3 do art.º 152º C.P., não é elemento típico do crime de desobediência que o arguido seja advertido pelo agente autuante de que a recusa à submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue é punida como crime de desobediência, pois esta advertência apenas se mostra exigível na ausência de disposição legal que comine a falta de obediência à ordem ou mandado como crime de desobediência, como resulta do artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, em contraposição com a norma contida na sua alínea a)» ; no mesmo sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/11/2010 (proc. 327/08.3GTLRA.C1)[7], do Tribunal da Relação de Évora de 12/09/2017 (proc. 36/17.2PBSTB.E1)[8], e do Tribunal da Relação do Porto de 10/12/2019 (proc. 195/18.7PTPRT.P1)[9]. O que liminarmente significa, como bem vem alegado, que deve ter–se por adquirido para qualquer cidadão condutor que é sujeito a uma acção de fiscalização rodoviária e a quem é dada ordem de sujeição ao teste de despistagem de álcool no sangue, que, caso não seja viável tal procedimento por teste ao ar expirado, deverá submeter–se a exame por via de colheita de sangue em conformidade com quanto estipula o art. 153º/8 do Cód. da Estrada – onde se estipula que «Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.» –, e que, caso assim não proceda incorre no cometimento de um crime de desobediência. Ora, como decorre indiscutido da matéria de facto provada, ao arguido, abordado no exercício da condução automóvel, foi dada ordem de sujeição a teste de despistagem qualitativo, e, subsequentemente (atento o resultado detectado) foi conduzido ao posto da GNR para fazer o teste no aparelho quantitativo, o que se preparava para fazer perante nova ordem que lhe foi dada nesse sentido. Julga–se, assim, absolutamente evidente e coerente com aquilo que inculca a lógica e experiência reportada ao cumprimento das regras inerentes à condução automóvel, que sabendo o arguido que deveria ter sido submetido ao teste no aparelho quantitativo por ar expirado, o que não sucedeu por não se ter revelado possível face à indisposição manifestada, teria de oportunamente submeter-se ao exame sanguíneo, o que ademais lhe foi comunicado, devendo tal facto, como assinala o recorrente, ter–se quase por notório para todas as pessoas que, como o arguido, são titulares da carta de condução e a exercem. No caso, e no limite, mesmo que o Tribunal acreditasse na íntegra nas declarações do arguido – o que, repete–se, está inclusive muito longo de haver sucedido –, sempre o arguido quando se ausentou do hospital sem ter recebido assistência, teria de deslocar-se ao posto da GNR para concluir o que ainda não tinha feito e que sabia que tinha de fazer (teste de despistagem de álcool que lhe foi ordenado) para obstar à verificação do crime de desobediência. Não deixa de nesta sequência se aditar que a confusão propalada pelo arguido, e de que a Sentença dá nota, não o inibiu de, logo «antes das 08h50m» do dia imediato (26/12/2020), se haver deslocado ao posto da GNR «a solicitar que lhe entregassem os seus documentos pessoais» – cfr. ponto j). da matéria de facto provada.
Em suma, e porque as coisas têm que ter lógica e ser coerentes, conformes com as regras da experiência e os critérios da normalidade, não se crê que a matéria probatória tal como percorrida e expressa em sede de Sentença, permita tutelar a demonstração ou sequer a dúvida sobre se da consciência, conhecimento e vontade do arguido estaria ausente a percepção de que deveria actuar em termos que configurassem a completude de execução do acto que lhe fora ordenado e a cuja submissão estava vinculado. Não se lobrigando, na Sentença recorrida, razões coerentes – à luz da lógica e das regras de experiência que aqui regem (ligadas máxime ao exercício da condução rodoviária para a qual estava habilitado e ao consequente conhecimento devido das normas de fiscalização da segurança rodoviária que o constrangem) – para questionar a capacidade de discernimento e decisão do arguido, inevitável (julga–se) deverá ser a conclusão de que o facto de o arguido ter abandonado o hospital sem ter esperado pelos militares da GNR e sem que tivesse sido medicamente assistido, equivale efectivamente a uma recusa tácita à realização do teste. Como muito bem assinala o Ministério Público no seu recurso, e aqui se realça, a recusa ocorre não apenas quando o arguido declara de forma expressa não pretender adoptar o comportamento devido, mas também quando assume comportamentos de onde, em termos lógicos e em termos de homem médio, se poderá extrair que o mesmo está a boicotar ou pretende inviabilizar a sua realização e, nessa medida, está a recusar o teste.
Vejamos ainda que tange ao segundo vício decisório intrínseco à Sentença que vem invocado pelo recorrente/Ministério Público, isto é, à alegada contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto, prevista na alínea b) do art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal
Nesta parte, e à luz da alegação recursória, é inevitável concluir, como vimos já fazer o Digno PGA no seu parecer, estarmos em bom rigor perante uma situação «em que a contradição da fundamentação se traduz ao mesmo tempo num erro notório na apreciação da prova». Porque é isso que, afinal, decorre de tudo quanto já acima foi dito – mas restringido agora ao critério, que se tem por contrário às regras da lógica, de valorar de forma integral, clara e positiva, os depoimentos das testemunhas militares das GNR, do mesmo passo que se descredibiliza na sua quase totalidade as declarações do arguido, somente aceitando a viabilidade da bondade destas num aspecto que contraria, afinal, o teor daqueles depoimentos testemunhais. Ou seja, a lógica do exercício de motivação da decisão da matéria de facto que se mostra plasmado na Sentença corresponde – sempre salvo o muito devido respeito – ao dar com uma mão aquilo que logo adiante vem a tirar com a outra. É que, na verdade, e como mais uma vez acertadamente alerta o recorrente, e agora ademais à luz de tudo quanto acima já se expôs – e para cujos termos integralmente se remete nesta parte –, o teor daqueles depoimentos por si só permitiam dar por verificada a matéria de facto integradora da prática do crime imputado ao arguido. Donde a evidência da contradição consubstanciada em manifestar haver sido feita fé absoluta nos mesmos depoimentos, e, a montante dar como não demonstrada a factualidade que os mesmos permitiam corroborar. Ou seja, contraditoriamente com aquela que vem a ser a valoração da prova efectuada, decidiu–se na Sentença pela não demonstração da factualidade típica e, assim, pela absolvição do arguido.
Concluindo, julga–se, pois, que efectivamente a Sentença recorrida evidencia os vícios decisórios invocados pelo recorrente, com clara prevalência para aquele do erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal a quo.
Tais vícios são, porém, susceptíveis de sanação por esta instância de recurso ao abrigo da possibilidade que, nesse sentido, lhe é desde logo conferida pelos arts. 431º/1/a) do Cód. de Processo Penal. Na verdade, não se afigura necessário mais do que o mero percurso pela Sentença recorrida para – à luz de todas as circunstâncias acima aludidas e apelando sempre às elementares regras de lógica e experiência comum assinaladas – se concluir como evidente, numa perspectivação daquilo que é o normal acontecer em situações como exactamente aquela que aqui se mostra configurada, que mal andou a primeira instância ao considerar como não demonstrado pelo menos o vertido nos pontos 3.), 4)., 5.) e 6). da matéria de facto não provada. Assim como, sempre pelos motivos acima expostos, não se considera que pudesse dar por assente que o arguido saiu do hospital apenas pelas 04.00 horas da madrugada (ponto i.) da matéria de facto provada). Pelo contrário, considera–se sim que o caminho de convicção trilhado pelo tribunal a quo não é conforme com as regras da experiência comum, e com aquilo que o próprio teor da Sentença determina como única alternativa probatória razoável e adequada.
Assim, no presente caso e nesta parte em concreto, mostra–se viável a apreciação e decisão por parte desta instância, por forma a sanar o apontado vício, decorrendo do aludido art. 431º/a) do Cód. de Processo Penal que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada designadamente «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base».
Nesta conformidade, e decidindo nesta parte, procede esta parte do recurso do Ministério Público – e em termos que influenciam, naturalmente, a caracterização e apreciação da responsabilidade criminal da actuação do recorrido/arguido, como melhor se apreciará e concretizará mais adiante.
Por ora, e bastando para tanto ter presente o próprio conteúdo e sentido decisório da Sentença recorrida, procede–se à modificação da matéria de facto que se mostra dada como provada e não provada nos seguintes termos agora realçados:
I. Matéria de facto provada: a). No dia 25 de Dezembro de 2020, pelas 17:25 horas, na Rotunda ..., ..., Santa Maria da Feira, o arguido AA conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com o n.º de matrícula DY-...-BZ da República Francesa. b). Ao ser abordado pelos Militares da GNR, o arguido realizou exame qualitativo que indicou uma TAS de 1,04 g/l de sangue. c). Por via disso foi transportado ao Posto da GNR ... para realização do exame quantitativo. d). Nas instalações da GNR o arguido começou a dizer que se sentia mal, sendo accionado o número 112, que encaminhou ambulância dos Bombeiros Voluntários .... e). Por ter sido considerado necessária a realização de exames complementares, foi o arguido transportado para o hospital, porém, antes do transporte, foi o mesmo advertido pelos Militares da GNR de que não poderia abandonar o hospital sem a chegada da Patrulha ao local, para ser realizada colheita ao sangue e posterior pesquisa de TAS, sob pena de, não o fazendo, incorrer em crime de desobediência, do que foi expressamente e várias vezes advertido pelos Militares. f). Já no Centro Hospitalar ..., E.P.E., o arguido foi sujeito à triagem. f.1). O arguido andou a deambular pelo hospital e depois abandonou o mesmo. g). Quando referidos Militares da GNR chegaram ao Hospital, após terem ido ao Posto Territorial ... recolher um kit para recolha de sangue e análise da taxa de álcool, não encontraram o arguido. h). Motivo pelo qual não foi efectuada a colheita de sangue para exame de TAS. h.1). Sabia o arguido que a ordem para aguardar pelos Militares da GNR para submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue era legal, provinha da autoridade competente, fora-lhe regularmente comunicada e a devia acatar. h.2). O arguido agiu com intenção, concretizada, de desobedecer à ordem legítima que lhe foi regularmente transmitida, abandonando as instalações do hospital furtando-se e desse modo recusando a sua submissão ao exame quantitativo de detecção de álcool no sangue, apesar de se encontrar legalmente obrigado a tal. h.3). O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal vigente. j). Antes das 08:50 horas do dia 26/12/2020 compareceu no Posto da GNR ... a solicitar que lhe entregassem os seus documentos pessoais que lá tinha deixado. k). À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais. l). O arguido é emigrante em França há cerca de quinze anos, vindo a Portugal apenas pelo Natal. m). Tem o 6.º ano de escolaridade e trabalha na construção civil, auferindo um vencimento de €1.300 mensais. n). Separou-se há cerca de dois/três anos da sua mulher, vivendo, agora, sozinho, em casa arrendada pela qual paga €540 mensais. o). Tem uma filha de trinta e nove anos de idade, residente em Portugal. p). O arguido é dono de um veículo automóvel, da marca “Mercedes”, modelo “...”, do ano de 2016. * II. Não se provou que: 1). O arguido disse também que necessitava de assistência médica. 2). No circunstancialismo descrito na alínea f) dos factos provados, foi também prestada assistência ao arguido. 3). O arguido abandonou o Hospital pelas 04:00 horas.
2. De saber se estão reunidos os pressupostos da condenação do arguido pelo crime de desobediência de que vinha acusado, com correspondente determinação das respectivas consequências penais.
Como decorre dos termos e das conclusões do recurso do Ministério Público, vem este propugnar, como efeito da impugnação que efectua da decisão em sede de matéria de facto, por que seja reconfigurada a qualificação jurídica dos factos praticados pelo arguido AA, considerando que em resultado de se deverem considerar afinal provados os factos que consubstanciam a imputação da acusação oportunamente deduzida, terá o mesmo praticado o crime de desobediência ali cominado.
Pois bem, como vem de se analisar e decidir no ponto antecedente da presente decisão, a reconfiguração e alteração da qualificação jurídica da matéria de facto relativamente ao arguido mostra–se efectivamente imposta – pois que, como se decidiu supra, por via do sucesso da impugnação (ao abrigo do disposto no art. 410º/2/b)c) do Cód. de Processo Penal) da decisão da matéria de facto, foi determinada, e exactamente no sentido requerido pelo recorrente/Ministério Público, a alteração da mesma matéria de facto. Cumprirá ademais, e logo a jusante, proceder à determinação das consequências sancionatórias penais relativas ao crime praticado pelo arguido.
Vejamos, pois, cada um dos aspectos em causa sucessivamente.
2.1. Da qualificação jurídico–criminal da apurada actuação do arguido.
Com relação à situação aqui em causa, veio a primeira instância, a final, a decidir pela absolvição do arguido AA da prática do crime de desobediência imputado na acusação, onde vinha cominado com base nos artigos 348º/1/a) e 69º/c), ambos do Cód. Penal, em conjugação com o disposto no art. 152º/1/a)/3 do Cód. da Estrada. No essencial, tal decisão absolutória assentou na consideração, exarada em sede de fundamentação jurídica do acórdão, segundo a qual «ficando por afirmar a demais factualidade que poderia apontar para a conclusão que o arguido se recusou a realizar o referido teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado ou deliberadamente obstou a sua realização, não se encontram sequer preenchidos todos os elementos do tipo do ilícito que ao arguido vem imputado». Porém, em virtude da alteração da matéria de facto provada acima determinada nesta parte, constata–se que se devem, afinal, ter por efectivamente demonstrados os actos que preenchem tipicidade criminal imputada.
Assim, e procedendo ao aqui devido enquadramento jurídico–criminal do conjunto de factos que acima se tem agora por demonstrado, sucintamente se começará por recordar que, de acordo com os termos do art. 348º/1/a) do Cód. Penal, pratica o crime de desobediência «Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se … [u]ma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples» ; por seu turno, prevê o art. 152º/1/a)/3 do Cód. da Estrada (que ali inicia o capítulo dedicado ao «Procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas») que «Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas … [o]s condutores», prevendo–se que quando (nomeadamente) estas pessoas «recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência».
Em face da fundamentação de facto supra enunciada e agora assente, verifica-se haver efectivamente o arguido AA preenchido os pressupostos da previsão criminal aqui em causa.
Ele preencheu, desde logo, todos os elementos típicos objectivos da incriminação referida, pois que da factualidade dada como provada resulta: – que ao arguido foi dada uma ordem, regularmente comunicada e proveniente da autoridade competente para se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue, – que o arguido compreendeu tal ordem, sabia que lhe devia obediência, – e ainda assim adoptou um comportamento que obstou ao respectivo cumprimento, ao abandonar o hospital onde foi conduzido (a pretexto de uma indisposição que inviabilizava o exame mediante teste ao ar expirado), sem sequer se sujeitar a qualquer assistência, e sem aguardar pelos agentes da autoridade a fim de ser efectuada a devida recolha sanguínea. Esta conduta do arguido consubstancia uma recusa à ordem que lhe era dada, tal como prevista no art. 152/3 do Cód. da Estrada. Na verdade, e reiterando quanto já acima se disse, qualquer cidadão condutor que é sujeito a uma acção de fiscalização rodoviária e a quem é dada ordem de sujeição ao teste de despistagem de álcool no sangue, que, caso não seja viável tal procedimento por teste ao ar expirado, deverá submeter–se a exame por via de colheita de sangue em conformidade com quanto estipula o art. 153º/8 do Cód. da Estrada – onde se estipula que «Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.» –, e que, caso assim não proceda incorre no cometimento de um crime de desobediência. Sabia, pois, o arguido que deveria ter sido submetido ao teste no aparelho quantitativo por ar expirado, o que não sucedeu por não se ter revelado possível face à indisposição manifestada, e que assim teria de oportunamente submeter-se ao exame sanguíneo, o que ademais lhe foi comunicado. Donde, aquele omissão de aguardar pelos agentes da autoridade e assim obstar à recolha sanguínea que era devida, consubstancia efectiva recusa à ordem a que se encontrava adstrito, sendo que tal recusa, como também já se disse, ocorre não apenas quando o arguido declara de forma expressa não pretender adoptar o comportamento devido, mas também quando assume comportamentos de onde se poderá extrair que está a boicotar ou pretende inviabilizar a sua realização e, nessa medida, está a recusar o teste – neste sentido vejam–se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 20/01/2010 (proc. 158/09.3GFPRT.P1)[10] e do Tribunal da Relação de Évora de 12/09/2017 (proc. 36/17.2PBSTB.E1), este já acima mencionado. A dignidade penal da conduta omissiva aqui apurada mostra–se ademais tutelada por via de o dever de obediência incumprido se mostrar expressamente prevenido numa disposição legal (no caso, o citado art. 152º/3 do Cód. da Estrada) que comina a correspondente punição – donde, estar a conduta prevista na alínea a) do art. 348º/1 do Cód. Penal.
Preencheu de igual modo o arguido os elementos típicos subjectivos deste crime. De facto, ele actuou dolosamente, pois que o fez de modo plenamente voluntário, e tendo esclarecido conhecimento da situação em que se encontrava, sendo sua vontade agir como agiu.
Não ocorrem, enfim, no caso concreto quaisquer circunstâncias que justifiquem ter o arguido agido pela forma como o fez, nem que excluam a sua culpa. Ele actuou com consciência de que a sua conduta não lhe era permitida por lei, devendo o seu procedimento ser objecto de juízo de censura penal por ter agido como agiu quando podia e devia ter agido de outra forma (abstendo-se de praticar os factos descritos).
Temos, pois, que o arguido AA incorreu no cometimento de um crime de desobediência, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 348º/1/a) do Cód. Penal e 152º/1/a)/3 do Cód. da Estrada, devendo pelo mesmo ser condenado. A concretização das consequências penais de tal condenação será apreciada e decidida já em seguida.
2.ii. Das consequências sancionatórias penais relativas ao crime de desobediência praticado pelo arguido.
Por via de quanto vem de se decidir, o arguido incorreu na prática do citado crime de desobediência, devendo pelo mesmo ser condenado penalmente, decisão a adoptar nesta sede. Na verdade, e como decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2016, de 22/02/2016 [11], «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.». É o que passa a fazer–se – anotando–se que o tribunal de primeira instância indagou em sede de julgamento, e consignou na Sentença, avisadamente – e muito bem –, as circunstâncias de facto que se revelam adequadas à prolação de decisão nesta parte.
O crime de desobediência aqui em causa, tal como resulta das disposições conjugadas dos arts. 348º/1/a) e 69º/1/c), ambos do Cód. Penal, é punível com pena principal de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias ; e mais com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (no caso) por um período a fixar entre 3 meses e 3 anos.
Da determinação da pena principal. Como é consabido, por isso dispensando especiais dissertações, resulta desde logo do art. 40º do Cód. Penal que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos (considerações de prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (considerações de prevenção especial). O n.º 2 do artigo citado enuncia o princípio geral e estruturante do direito penal, o princípio da culpa, através do qual se afirma que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Como factores de escolha e graduação da respectiva pena concreta há a considerar os parâmetros dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal. A primeira dessas disposições determina que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Já o art. 71º do Cód. Penal estabelece que essa determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que - não fazendo parte do tipo de crime - depuserem a favor ou contra o arguido. Na escolha e determinação da concreta sanção penal, o tribunal deve, pois, atender à culpa do agente, ao mesmo tempo tendo em conta que as finalidades de aplicação das penas incidem fundamentalmente na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Como, por todos, se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/12/2014 (proc. 52/14.6GTCBR.C1)[12], «A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos. A reintegração do agente na sociedade está ligada á prevenção especial ou individual, isto é, á ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.» O grau de exigência na protecção dos valores jurídicos que estejam em causa em determinada criminalização, deverá ser objecto de ponderação a partir de dois vectores complementares e indissociáveis: por um lado, e em termos gerais, do respectivo relevo em termos de hierarquia axiológica legal e constitucionalmente estipuladas, e por outro lado, em termos concretos, da intensidade do respectivo desrespeito em que a actuação ilícita do agente se traduziu. Trata–se de vectores que, naturalmente, já se mostram omnipresentes na própria definição a montante dos critérios de estatuição da punibilidade aplicável em cada tipo criminal, mas que mantém, agora em sede de determinação punitiva concreta, o seu relevo por via da sua devida densificação. Quanto às necessidades de ressocialização, na avaliação do grau da respectiva necessidade haverá de se atentar na medida em que os actos do agente são um reflexo quer da sua personalidade, quer das suas circunstâncias – e, estas, quer as específicas verificadas no momento do acto, quer as relativas ao seu percurso e situação de vida.
Começando por quanto respeita à escolha da natureza da pena a aplicar ao arguido, colocando–se a opção entre pena privativa e não privativa da liberdade, é desde logo a consideração sobre qual delas assegura de forma adequada e suficiente o devido respeito por tais finalidades que está em causa. In casu, atentas as circunstâncias de o arguido ser delinquente primário (assim não denotando uma personalidade especialmente propensa à reiteração criminosa), e bem assim de revelar ter modo de vida bem definido, mostrando–se integrado social e profissionalmente, sufraga–se a proposta do recorrente, crendo–se suficiente e adequada a aplicação de pena de multa.
Determinada a natureza da sanção a aplicar, revertamos à determinação da medida concreta da mesma. Temos, pois, ser aqui cominada uma pena de multa a fixar até 120 dias. Na tarefa de individualização da pena concreta, o tribunal dispõe dos critérios de vinculação na escolha da medida da pena constantes do já citado art. 71.º do Código Penal, designadamente os susceptíveis de “contribuírem tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2008, cit. por A. Lourenço Martins, ‘Medida da Pena’, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 242). Assim, na escolha e determinação da medida da pena não poderá ultrapassar-se a medida da culpa, mas não poderá também ficar–se aquém do exigido pelos ditames da prevenção geral (centrados na tutela de bens jurídicos), abaixo dos quais não pode optar–se por ou fixar-se determinada sanção, sob pena de perda de confiança da comunidade no restabelecimento da vigência da norma violada.
No caso, e em desfavor do arguido, poderá considerar–se desde logo o dolo com que o mesmo actuou, porque directo. O seu concreto modo de actuação não deixa de revelar alguma astúcia, aproveitando um hiato nos procedimentos legais necessários à devida realização do teste de detecção de álcool no sangue, para subreptíciamente se furtar à concretização do mesmo pelas autoridades. Depois, releva a ponderação do grau de ilicitude e da correspondente elevada necessidade de tutela dos bens jurídicos que aqui foram materialmente colocados em crise pelo comportamento do arguido, acentuando as exigências preventivas, e bem assim o juízo de censura ínsito nesse mesmo comportamento. O comportamento do arguido traduz o desrespeito por um dever de conduta legalmente imposto, e que foi regular e reiteradamente comunicado por autoridade competente, determinação essa concretamente dirigida ao arguido, que a compreendeu perfeitamente. Com esta incriminação visa-se a protecção da autonomia intencional do Estado, pretendendo-se, como escreve Cristina Líbano Monteiro, em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, ed. 2001, pág. 350, “de uma forma particular, a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos”, esclarecendo mais adiante (in ob. citada, pág. 349), que «o artigo [348º] que se comenta incrimina a pura desobediência, a desobediência em si, desligada de quaisquer consequências; a desobediência sem violência, sem distúrbio da ordem e tranquilidade públicas, sem propósito de subversão da ordem democrática constituída. É o simples: "Faz isto!", "Não faço!" ou "Não faças aquilo!", "Faço mesmo!", desde que traduzido em actos (ou omissões relevantes)». Mas o alcance da gravidade do comportamento do arguido, e assim da censurabilidade que o mesmo justifica, vai além disso. Como já acima se disse, a ordem de cumprimento de um dever legalmente imposto a que o arguido desobedeceu, está directamente conexionada com o exercício da condução automóvel após a ingestão de bebidas alcoólicas: a recusa do arguido teve por objectivo precisamente evitar que viesse a ser detectado que estava conduzindo em estado de embriaguez. O que faz relevar in casu também a tutela dos valores jurídico–penais ligados ao sancionamento da condução de veículo em estado de embriaguez – isto é, a segurança rodoviária, enquanto valor directamente ligado à tutela de outros relevantes bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal e patrimonial de todos quantos utilizam as vias de circulação públicas. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/09/2010 (proc. 477/08.6PAOVR.P1)[13], «Importa pôr termo a comportamentos como o do arguido face aos elevados índices de sinistralidade rodoviária com que se defronta o nosso País, nos quais, a condução sob influência de álcool vem tendo uma larga contribuição. A vida e a integridade física dos utentes das vias públicas não podem ficar à mercê de comportamentos criminosos, resistentes a sucessivas campanhas profiláticas”, acrescentando que se impõe “que o direito assuma, dentro do limite da culpa, a sua inestimável função de prevenção geral de intimidação, de modo a contribuir, em medida significativa, para a emenda cívica dos condutores recalcitrantemente imprudentes». É, pois, premente a necessidade de consciencialização do arguido, enquanto condutor, para o respeito dos valores pessoais e comunitários aqui colocados em crise, assim se incentivando o seu esforço de socialização nesse sentido.
Em favor do arguido divisa–se, outrossim, desde logo a circunstância de não registar qualquer outra condenação criminal no seu percurso de vida, sendo que tinha 48 anos de idade à data dos factos. Tal denota que o mesmo não será dotado de uma personalidade especialmente propensa ao cometimento de ilícitos, indiciando que a sua detectada actuação poderá ter sido um evento revestido de ocasionalidade. Acresce a sua integração social e profissional. O arguido tem modo de vida perfeitamente definido, estando emigrado em França, sendo de modesta condição sócio–económica.
Tudo ponderado, em face da moldura penal prevista no caso, tendo em conta a gravidade dos factos e, acima de tudo, o juízo de censura penal que incide sobre a conduta do arguido e sua correspondência nas necessidades de protecção dos bens jurídicos atingidos pela mesma, julga–se adequada a fixação da pena de multa em 80 (oitenta) dias, correspondendo ademais ao limite do proposto pelo Ministério Público/recorrente.
Correspondendo, nos termos do nº2 do art. 47º do Cód. Penal, a cada dia de multa uma quantia entre €5,00 e €500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, pondere–se que, como resulta da matéria de facto provada, o arguido se encontra emigrado em França onde aufere um vencimento de cerca de €1.300 mensais, vivendo sozinho, pelo que é daquele rendimento que suporta todas as suas despesas, designadamente €540,00 de renda de casa. Revela, pois, e como se enunciou, uma relativamente modesta condição económica. Assim, tem–se por ajustado fixar ao arguido uma quantia de €7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos) por cada dia de multa (o que perfaz um valor global de €600,00) – neste segmento não merecendo total acolhimento a pretensão recursória.
Da determinação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
Além da cominação de uma pena principal, resulta do disposto no art. 69º/1/c) do Cód. Penal que é ainda condenado na proibição de conduzir veículos com motor, por um período fixado entre três meses e três anos, quem for punido (designadamente) pela prática de crime «crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo … com ou sem motor, sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo». Ou seja, prevê a lei penal que o agente de factos típicos, ilícitos e culposos que integrem a prática de um crime de desobediência da natureza daquele pelo qual o arguido ora vai condenado, deverá ser também aplicada a pena acessória aqui em causa. Vejamos.
A pena acessória é aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, dependendo desde logo de uma condenação nesta última. Porém, não é um efeito dessa pena (principal), mas antes uma consequência do crime – sendo por isso que também aqui as finalidades de prevenção geral e integração assumem o primordial lugar, enquanto as finalidades de prevenção especial de qualquer espécie apenas actuam no interior da moldura penal construída dentro do limite da culpa, mas na base daquelas primeiras. Porque se trata de uma pena, ainda que acessória, a determinação da sua medida deve operar-se de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação da pena principal. Ou seja, deve ter–se desde logo presente que também aqui, e como impõe genericamente o art. 40º do Cód. Penal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, determinando-se que a culpa constitui o seu limite. Depois, como factores de escolha e graduação da pena concreta há a considerar os parâmetros do art. 71º do Cód. Penal – com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória tem sobretudo em vista prevenir uma determinada específica perigosidade do agente revelada pela sua conduta, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral. Apesar da identidade dos critérios base a que se recorre para definição da medida concreta, quer da pena principal, quer da pena acessória, haverá que ter em conta a natureza e as finalidades próprias desta última, por forma a que a pena acessória aplicada em concreto se mostre ajustada às suas finalidades específicas. A pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, constituindo uma censura adicional pelo facto praticado pelo agente, mas do mesmo passo o que se procura com a mesma é prevenir a perigosidade imanente à norma incriminadora, e, assim, reforçar e diversificar o conteúdo penal sancionatório da condenação. Significa isto que, uma vez que a aplicação de determinada sanção acessória está directa e imediatamente ligada à natureza das condutas criminalmente punidas que a montante lhe subjazem, é desde logo na ponderação dos valores jurídicos tutelados por tal criminalização que deve procurar–se também a razão de ser dessa mesma pena acessória.
Assim, e no caso concreto da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no art. 69º do Cód. Penal, o respectivo pressuposto material reside na consideração de que o desrespeito das regras atinentes à fiscalização pelas autoridades competentes do exercício da condução em estado de afectação etílica (no caso) se revela especialmente censurável – pois que a perigosidade de tal comportamento não pode deixar de ser reflexo daquela que é, afinal, a perigosidade própria da condução exercida sob efeito do álcool, que no caso nem é adequadamente detectada por culpa do arguido, sendo essa a substancial razão de ser da tipificação criminal. Não deixa, pois, de se ter aqui em vista também uma função de prevenção geral por via da intimidação comunitária ínsita na restrição do exercício do direito de conduzir sofrida por quem, de forma criminalmente relevante, obsta à fiscalização e (provável) repressão do exercício da condução estando afectado pela ingestão de álcool. Com efeito a pena acessória aqui em causa incide directamente sobre o imediato instrumento da condução automóvel, limitando ou restringindo o direito do arguido a conduzir, assim o privando de exercer temporariamente a actividade cujo exercício tem umbilical e imediata conexão com a prática da infracção. O que assume especial relevo como factor de prevenção geral e especial e correspondente motivação pela norma. Nesta perspectiva, não é despiciendo convocar nesta sede que a frequência da condução sob o efeito do álcool revela que o sistema sancionatório não tem funcionado adequadamente. Tanto que continua a ser uma das infracções que, em termos estatísticos, maior relevo tem nas condenações proferidas pelos tribunais, não podendo ignorar-se a consideração pelos nefastos efeitos da alcoolização no exercício da condução automóvel e os perigos e graves consequências daí advenientes. Não deixará de se ter na devida consideração, como contraponto, a já realçada circunstância de o arguido ser delinquente primário, o que denota uma personalidade não propensa ao cometimento de ilícitos, indiciando–se que a sua detectada actuação poderá ter sido um evento revestido de ocasionalidade.
Assim, e tudo ponderado, julga–se adequado e justo fixar a pena acessória de proibição de condução de veículos a motor em 5 (cinco) meses, merecendo assim acolhimento o propugnando pelo recorrente nesta parte. * * III. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público nos autos e, em consequência decidem: i. alterar, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 410º/2/b)c) e 431º/a do Cód. de Processo Penal, a matéria de facto provada e não provada nos termos e em conformidade com o decidido no ponto 1. da presente decisão ; ii. consequentemente, revoga–se a decisão de absolvição do arguido, e substitui–se a mesma pela presente decisão que julga o arguido AA incurso na prática, em autoria material, de um crime de desobediência, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 348º/1/a) e 69º/1/c) do Cód. Penal, e art. 152º/3 do Cód. da Estrada, condenando–se o mesmo na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período que se fixa em 5 (cinco) meses.
Sem Custas. * Após trânsito em julgado e baixa do processo, deverá a 1ª instância levar a cabo as diligências necessárias à notificação do arguido para entregar a sua carta de condução (ou qualquer título que o habilite a conduzir veículos com motor) no prazo de 10 dias nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 69º/3 do Cód. Penal e 500º/2 do Cód. de Processo Penal). Boletins à DSIC (Direcção dos Serviços de Identificação Criminal) - a cumprir também na 1ª instância após trânsito e baixa do processo, assim como as comunicações a efectuar à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e ao IMTT. * Pedro Afonso Lucas Paulo Costa Maria Luísa Arantes (Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página) ______________ [1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt [3] Relatado por Jorge Jacob, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [4] Relatado por Helena Moniz, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [5] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [6] Relatado por Artur Vargues, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf [7] Relatado por Mouraz Lopes, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [8] Relatado por Alberto Borges, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [9] Relatado por José Carreto, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [10] Relatado por Pinto Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [11] Relatado por Isabel Pais Martins, e publicado no Diário da República n.º 36/2016, Série I de 22/06/2016 – disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/4-2016-73650548 [12] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [13] Relatado por António Gama, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf |