Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2434/21.8T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: REVERSÃO
DÍVIDAS FISCAIS
GERENTES DE SOCIEDADE
DIREITO DE REGRESSO
SOLIDARIEDADE
PRESCRIÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP202312192434/21.8T8MAI.P1
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A alínea d) do art. 615º, n.º 1 do CPC contempla duas situações: a) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).
II - O excesso de pronúncia refere-se, como é óbvio, não à competência material do tribunal, mas aos limites objectivos da decisão, o pedido e a causa de pedir, no sentido de fundamento fáctico-jurídico da pretensão. Por isso que nunca o conhecimento de questão para a qual o tribunal fosse materialmente incompetente se reconduziria à convocada nulidade.
III - A nulidade por omissão de pronúncia, correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, tem em vista as questões essenciais, todos os pedidos, todas as causas de pedir e todas as excepções invocadas e as que lhe cabe conhecer oficiosamente.
IV - As questões essenciais que a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC impõe que o juiz conheça não se confundem com “factos”, que se constituem como um elemento para a solução da questão, mas não como a própria questão.
V - De acordo com a Lei Geral Tributária (LGT), os gerentes de uma sociedade são subsidiária e solidariamente responsáveis perante a Segurança Social pelas dívidas daquela; nesse sentido, são ab initio, responsáveis pelas dívidas fiscais da referida sociedade, integrando a respectiva relação jurídica tributária.
VI - Consequentemente e porque sujeitos passivos dessa relação tributária, a respectiva obrigação não nasce para os responsáveis subsidiários com a reversão, pois que esta apenas determinou a efectivação da sua responsabilidade no processo executivo instaurado inicialmente apenas contra o devedor originário.
VII - Enquanto a caducidade extingue o direito da Administração Tributária de poder liquidar o tributo, por seu turno o instituto da prescrição consiste na extinção do direito, que assiste ao Estado, de exigir determinada dívida tributária ao contribuinte ou a um outro responsável tributário. Não extingue a dívida tributária mesma, pelo que insubsistente o argumentário do recorrente quanto a uma pretensa natureza diversa ou distinta da prescrição tributária.
VIII - Quanto à prescrição, o credor de regresso, tendo cumprido, pode exercer esse direito de regresso se a prescrição não se verificou em relação a ele, mesmo que estejam prescritas as obrigações dos outros condevedores, desde que o credor de regresso, que cumpriu a obrigação, não tenha renunciado à prescrição, que é a doutrina imposta pelo artigo 521.º do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 2434/21.8T8MAI.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 4

Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Manuela Machado
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva
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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
AA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de 16.026,31 euros, acrescida de juros de mora a contar desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para fundamentar a pretensão aduziu terem sido sócios da sociedade comercial por quotas denominada A..., Lda, sendo ambos detentores de uma quota de 2.500,00 euros, no total do capital social de 5.000,00 euros. A gerência da sociedade era desempenhada por ambos, cuja assinatura conjunta obrigava a sociedade. A sociedade foi dissolvida, com dívidas à Segurança Social, a qual instaurou processos de reversão fiscal contra o autor, na qualidade de sócio-gerente, na sequência dos quais e para evitar penhoras ou venda de património, o autor celebrou acordos de pagamento em prestações que foi cumprindo com dificuldades. Em 26 de novembro de 2020, o autor terminou os pagamentos em falta, num total de 31.153,94 euros, reclamando o direito de regresso contra o réu de metade desse valor (15.576,97 euros), por se tratar de dívida da sociedade de que ambos foram gerentes.
Citado o réu, o mesmo apresentou contestação, aceitando a factualidade atinente à sociedade, mas impugnando o demais alegado.
Excepcionou a incompetência material do tribunal, pugnando tratar-se de matéria do foro dos tribunais tributários. Mais excepcionou a prescrição, por entender já ter decorrido o prazo de 5 anos que defende aplicar-se à situação dos autos. Por fim, refere que autor e réu acordaram em partilhar os pagamentos das dívidas fiscais da sociedade: o autor pagaria as dívidas à Segurança Social e o réu à Autoridade Tributária, sendo certo que o réu ainda liquidou algumas das prestações da Segurança Social, a pedido do autor. Donde a extinção da obrigação reclamada pelos institutos do pagamento e da compensação. Acresce que a Segurança Social, em consequência dos incumprimentos do autor, tentou reverter para o réu algumas dessas dívidas, o que foi indeferido pelo Tribunal Administrativo, entendendo por ilógico que fosse declarado que não existe qualquer dívida do réu à Segurança Social, mas que a mesma dívida onera o réu em relação ao autor.
Conclui pedindo a sua absolvição da instância e do pedido, por entender não ter qualquer responsabilidade pelo pagamento do montante peticionado nos autos.
Após convites ao aperfeiçoamento a ambas as partes, foi proferido despacho saneador onde se procedeu à identificação do objeto do litígio, bem como à enunciação dos temas da prova.
Foi realizada audiência final, com cumprimento dos formalismos legais.
Foi proferida sentença, a qual decidiu da parcial procedência da acção, condenando o réu a pagar ao autor a quantia de 15.901,31€ (quinze mil, novecentos e um euros e trinta e um cêntimos), acrescida de juros de mora a contar desde a citação até integral pagamento.
É desta decisão que vem interposto recurso de apelação, concluindo o Réu/Recorrente nos seguintes termos:
A. O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre toda a matéria factual constante da contestação, o que constitui uma nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil.
B. Os factos em causa, confessados pelo autor e omitidos na Sentença, levantam várias questões jurídicas, inclusive na óptica da interpretação das normas efectuada pelo Tribunal recorrido.
C. Cumulativamente, o réu não se conforma com a Sentença recorrida por discordar com a fundamentação jurídica constante da mesma.
D. É essencial salientar que, nos presentes autos, estamos perante uma questão fiscal relativa ao instituto jurídico da “prescrição fiscal”, com especificidades que divergem frequentemente do estabelecido na lei civil.
E. Desde logo, a “prescrição fiscal”, sendo extintiva e não presuntiva, é de conhecimento oficioso pelo Tribunal como refere o artigo 175.º do CPPT “A prescrição ou duplicação da colecta serão conhecidas oficiosamente pelo juiz se o órgão da execução fiscal que anteriormente tenha intervindo o não tiver feito.”, ao contrário do que sucede com a prescrição civil.
F. Assim, é indubitável que a natureza jurídica da “prescrição fiscal” é mais próxima da caducidade civil do que a sua homónima constante do CC.
G. Por esse motivo, entendemos que não será de aplicar o artigo 521.º do CC aos casos de reversão fiscal, dado que a “prescrição” aí referida não coincide com a natureza jurídica da “prescrição fiscal”, a qual se deve qualificar como uma prescrição imprópria sujeita a um regime especial em relação ao regime geral da lei civil.
H. Não sendo aplicável o artigo 521.º do CC, e não tendo sido declarada a reversão fiscal das dividas societárias para o réu pela Segurança Social, inexiste fundamento legal para o autor reclamar sobre o réu qualquer direito de regresso nos presentes autos.
I. Consequentemente, por este motivo, concluímos que se verificou um erro de julgamento pelo Tribunal recorrido, devendo a Sentença recorrida ser anulada e o réu absolvido do pedido.
J. Mais, sem prejuízo do acima exposto, no que concerne ao regime legal das reversões fiscais das sociedades comerciais para os seus representantes legais, a Lei Geral Tributária (LGT) estabelece o seguinte no seu artigo 23.º “A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal.”
K. Ou seja, ao contrário das obrigações civis onde a lei ou um contrato determinam os devedores, na reversão fiscal é o acto administrativo que determina e define a relação tributária dos devedores subsidiários com a Segurança Social e entre os mesmos.
L. Sem esse acto administrativo da reversão não existe obrigação fiscal do responsável subsidiário.
M. Na presente situação, o Tribunal recorrido, confrontando-se com duas sentenças do Tribunais Tributários a negarem a reversão fiscal contra o réu, resolveu mesmo assim reconhecê-la e definir os seus contornos e limites, e, consequentemente reconhecer o direito de regresso do autor com fundamento na solidariedade determinada pela lei fiscal.
N. De acordo com o artigo 49.º c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os Tribunais Tributários são competentes para conhecer “Das ações destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal”.
O. Simultaneamente, o artigo 9.º do CPPT afirma o seguinte: 1 — Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.
2 — A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal.
3 — A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.
4 — Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.
P. Ou seja, se o autor pretendia ver reconhecido o seu direito de regresso, tinha de ver reconhecida, como condição prévia, a obrigação fiscal subsidiária do réu para com a Segurança Social perante um Tribunal Tributário, bem como o próprio direito de regresso, o que não sucedeu.
Q. Assim, com o devido respeito e de acordo com as normas apontadas, os Tribunais Judiciais não têm competência para reconhecer esse direito de regresso do autor sem que haja um acto administrativo ou uma decisão de um Tribunal Tributário a reconhecer-lhe tais direitos.
R. Consequentemente, o Tribunal recorrido não podia julgar as matérias fiscais aqui determinadas, nomeadamente reconhecer a obrigação subsidiária do réu em relação às dividas societárias e o direito de regresso do autor, por incompetência material.
S. Por este motivo, o Tribunal recorrido ao julgar-se competente ao aplicar normas fiscais, está a ocorrer num erro de julgamento que determina a nulidade da respectiva sentença nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea d) in fine do CPC.
T. Mais, decretando-se a incompetência material dos Tribunais Judiciais em relação a estas matérias fiscais o réu deverá ser absolvido da instância nos termos do artigo 96.º alínea a) e 99.º n.º 1 do CPC.

Contra-alegou o Autor, sustentando inexistir nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º, n.º 1 d) do CPC; mais pugnando pela improcedência do recurso interposto e pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a decidir nos autos:
A) Da admissibilidade de conhecimento agora da incompetência material do tribunal para a apreciação das questões colocadas à sua apreciação;
B) Em relação com a resposta que mereça a questão anterior, da incompetência material propriamente dita e suas consequências, mormente em sede de nulidade da decisão proferida, com base na alínea d) do artigo 615º do CPC;
C) Da nulidade emergente da falta de pronúncia na sentença quanto a factos aduzidos na contestação;
D) Do errado julgamento do aspecto jurídico da causa.

A)
Tendo sido excepcionada na contestação a incompetência material do tribunal, a questão foi decidida, fundamentadamente, por despacho proferido em 28.02.2023, sob a referência 445497009, tendo-se julgado improcedente, nos termos e com os fundamentos que ali melhor constam.
Desta decisão não foi interposto recurso, como dos autos ressalta.
Donde, visto o disposto no art. 644º, nº 2, al. b) do CPC, se mantém aplicável a decisão do AUJ de 27.11.1991, no DR IS DE 11-01-1992, PÁG. 167 a 169, nos termos do qual: o despacho a conhecer de determinada questão relativa à competência em razão da matéria do tribunal, não sendo objecto de recurso, constitui caso julgado em relação à questão concreta de competência que nela tenha sido decidida.
Formou-se, assim, caso julgado sobre a existência desse pressuposto, nos termos do que dispõe o art. 100º do CPC, que impede o tribunal superior de entrar na apreciação da matéria.
Para que se forme o caso julgado sobre a competência absoluta do tribunal, é indispensável que o juiz analise uma questão concreta de competência e a decida por despacho que transite em julgado. O réu alegou que o tribunal é incompetente em razão da matéria, invocando a competência da jurisdição administrativa/fiscal; o juiz conheceu da arguição e julgou-a improcedente. Esta decisão transitou em julgado, sendo, pois, que a questão respectiva fica arrumada definitivamente, não podendo mais tarde o juiz, mormente o de recurso, decidir, com fundamento no texto invocado pelo réu, que a acção é da competência do tribunal administrativo.
Apresenta-se, pois, como segura a matéria que ora importa considerar - se o juiz conheceu expressamente sobre uma questão concreta de competência e este seu despacho, nesta parte, não for objecto de recurso, forma-se caso julgado formal.
Donde, desde logo, improcedente a pretensão do recorrente, de que se decida agora da incompetência material do Tribunal.

B) E C)
Quando se tenha presente a solução que mereceu a questão anterior, afastada s.m.o. a argumentação nos termos da qual o conhecimento da causa pelo tribunal materialmente incompetente integra a nulidade convocada, a da alínea d) do artigo 615º do CPC.
Sempre incorrendo a argumentação num manifesto vício de raciocínio, que bem assim se evidencia quanto à suscitada nulidade da decisão por omissão de pronúncia quanto a matéria de facto oportunamente alegada.
Dispõe a alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC:
1. É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”
A sentença pode ser vista como trâmite ou como ato: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
As nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes atos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam3 ter ou têm um conteúdo que não podiam ter (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual).
A alínea d) contempla duas situações: a) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).
O excesso de pronúncia refere-se, como é óbvio, não à competência material do tribunal, mas aos limites objectivos da decisão, o pedido e a causa de pedir, no sentido de fundamento fáctico-jurídico da pretensão.
Por isso que nunca o conhecimento de questão para a qual o tribunal fosse materialmente incompetente se reconduziria à convocada nulidade.
A primeira está correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, que dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;…”
O normativo tem em vista as questões essenciais, ou seja, o juiz deve conhecer todos os pedidos, todas as causas de pedir e todas as excepções invocadas e as que lhe cabe conhecer oficiosamente (desde que existam elementos de facto que as suportem), sob pena da sentença ser nula por omissão de pronúncia.
As questões essenciais não se confundem com os argumentos invocados pelas partes nos seus articulados. O que a lei impõe, sob pena de nulidade, é que o juiz conheça as questões essenciais e não os argumentos invocados pelas partes (sendo abundante a jurisprudência em que esta questão é suscitada, a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 21/01/2014, proc. 9897/99.4TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jst).
Nos termos do n.º 1 do art.º 608º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica, ou seja, tem-se em vista aquelas questões - nulidades, excepções dilatórias ainda por apreciar ou outras questões de natureza processual - que possam ter influência no desfecho do processo.
Por outro lado, o facto de, eventualmente, o tribunal a quo não se ter pronunciado quanto aos factos alegados, ou de ter havido por provados factos que o não foram, não constitui nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.
É que as questões essenciais que a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC impõe que o juiz conheça, também não se confundem com “factos”.
Como refere Alberto dos Reis, in CPC Anotado, 1984, pág. 145: “Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.”
E como decidido pelo Ac. do STJ de 23/07/2017, processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, “o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido”: são situações que “não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, antes se tratando de situações que se reconduzem “a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC”.
Destarte e quando muito, estar-se-á perante uma deficiência da matéria de facto, patologia a suprir nos termos do disposto no art.º 662º do CPC.
Improcedente, pois, o duplo fundamento convocado para a arguição da nulidade da sentença recorrida.
*
Não foi posto em causa o julgamento da matéria de facto, pelo que a matéria a considerar por este tribunal vem a ser a seguinte:
1. Autor e réu foram sócios da sociedade comercial por quotas denominada “A..., Lda, com a última sede na sita na Urbanização ..., freguesia e concelho de Fafe, conforme documento 1 junto com a petição inicial.
2. A sociedade tinha por objeto social a formação profissional ao nível de informática e inglês e a compra e venda de equipamento informático, conforme dito documento 1.
3. O capital social da referida sociedade era de €5.000,00, dividido em duas quotas de €2.500,00 pertencentes a cada um dos sócios, autor e réu, conforme ainda documento 1.
4. A gerência da sociedade era desempenhada pelos dois sócios que a obrigavam com a sua assinatura conjunta, também conforme documento 1.
5. A partir de determinada altura, não apurada, a sociedade passou a ter dificuldades financeiras, deixando de ter meios para proceder ao pagamento de fornecedores, a Segurança Social e à Administração Tributária, o que resultou na instauração de várias execuções.
6. Face à inviabilidade para a continuidade da sociedade, a Conservatória do Registo Comercial de Lisboa intentou um processo administrativo de dissolução/liquidação, o qual terminou com a decisão de dissolução e encerramento da liquidação, conforme documento 2 junto com a petição inicial.
7. A sociedade já não tinha qualquer tipo de atividade há bastante tempo.
8. Por força das dívidas contraídas pela sociedade junto da Segurança Social foram instaurados processos de reversão fiscal contra o autor, na qualidade de sócio-gerente, conforme documentos 3 a 6 juntos com a petição inicial.
9. O autor não dispunha de meios financeiros para efetuar de imediato o pagamento desses montantes, pelo que foi confrontado com diversas execuções movidas pela Segurança Social.
10. Para não ver penhorado ou até vendido o seu património, nomeadamente o imóvel em que habitava, o autor celebrou acordos de pagamento em prestações com a Segurança Social, conforme documentos 7 a 10.
11. Por força do incumprimento desses acordos por parte do autor, a Segurança Social penhorou o imóvel onde o autor habitava, conforme documento 11 junto com a petição inicial.
12. Em 26 de novembro de 2020, o autor conseguiu liquidar antecipadamente os acordos de pagamento que vinha pagando à Segurança Social, conforme documentos 12 a 16 juntos com a petição inicial.
13. Por força da reversão fiscal operada pela Segurança Social em relação ao autor, este pagou o valor total de 31.153,94 euros, sendo 13.685,76 euros, pagos em prestações entre 08/09/2010 e 06/10/2020 e 17.468,18 euros, pagos de uma só vez em 26/11/2020, referente a dívidas da sociedade, conforme os documentos 12 a 16 referidos.
14. Em consequência dos incumprimentos dos planos prestacionais por parte do autor, a Segurança Social tentou reverter algumas dessas dívidas para o réu também, o que foi indeferido pelo Tribunal Central Administrativo, através de duas sentenças já transitadas em julgado, por se encontrarem prescritas, conforme documento 3 junto com a contestação e documento junto com o requerimento datado de 10/03/2022.
E são os seguintes os FACTOS NÃO PROVADOS a considerar:
a) A vida da sociedade foi sempre marcada por uma grande instabilidade, em grande parte por desentendimentos entre os sócios quanto ao rumo a dar ao projeto e principalmente pelas dificuldades financeiras decorrentes da crise que se abateu sobre toda a economia a partir do ano de 2008.
b) Foi decisão dos sócios (autor e réu) dissolver e encerrar a sociedade.
c) O Fisco também moveu execuções contra o autor.
d) O autor teve de suportar a título de registo e cancelamento da hipoteca a importância de 250,00 euros.
e) Após verificarem os valores em divida, autor e réu acordaram em partilhar os pagamentos das dívidas fiscais da sociedade do seguinte modo: o autor pagaria as dívidas à Segurança Social e o réu pagaria as dívidas à Autoridade Tributária.
f) As execuções da Autoridade Tributária também operaram contra o réu, tendo este pago sozinho essas mesmas dívidas.
g) O réu efetuou o pagamento de algumas prestações da Segurança Social, a pedido do autor.
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Desde logo, o Recorrente não indica nas conclusões das alegações, que delimitam o objecto do recurso, nos termos expostos, quais os concretos factos alegados e relevantes que a decisão recorrida omitiu.
Ainda quando, na senda da mais recente jurisprudência do STJ[1], se possa considerar integrável aquela omissão pela consideração do articulado das alegações no seu conjunto, sempre se afigura assistir razão ao recorrido, quando salienta que os factos sob os artigos 20º e 21º da contestação estão considerados na sentença recorrida.
Assim sob a alínea e) dos factos não provados e sob 8) a 12) dos factos provados, dos quais resulta (de resto como do documento 1 junto com a contestação) que o pedido de pagamento em prestações o foi já em sede executiva.
Não se alcança, pois, qualquer omissão na sentença de matéria de facto relevante.
C) Quanto ao erro de julgamento do aspecto jurídico da causa.
Adiante-se que sem razão o recorrente.
Referindo-nos em geral ao instituto do direito de regresso, sabemos que este colhe previsão na lei civil, nos termos do artigo 524.º do CC.
O devedor que satisfizer o direito do credor para além da parte que lhe competia tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete (artigo 524.º do CC).
Com o surgimento do direito de regresso, em princípio, nasce uma obrigação parciária: o credor é o devedor que pagou, sendo devedores os restantes condevedores. É um direito novo, autónomo, com um regime próprio e as suas vicissitudes[2].
No caso, um dos responsáveis (subsidiários) solidários procedeu à liquidação da obrigação, causando assim a extinção do processo executivo em que, por ordem de reversão, se incluíam.
Ao verificar-se que os condevedores são também responsáveis pela mesma dívida já paga, o responsável que procedeu ao pagamento da obrigação detém agora um crédito sobre os seus pares, que deverá ser ressarcido por meio de uma acção de direito de regresso. Como anota MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil IV – Direito das obrigações, Coimbra: Almedina, 2019, pág. 781 já citada, este instituto serve o propósito de contrariar a possibilidade de enriquecimento dos devedores que não hajam sido chamados à liquidação da sua quota-parte.
À falta de regulação de carácter especial, sobrevirá a aplicação supletiva do regime geral, tendo como solução a quotização da responsabilidade em partes iguais, se nada for indicado em sentido contrário.
Atento o que dispõe o artigo 24.º da Lei Geral Tributária (LGT), há que considerar, o que não vem posto em causa, que quer o Autor, quer o Réu eram, ab initio, responsáveis pelas dívidas para-fiscais (à Segurança Social) da sociedade da qual eram ambos administradores de direito e de facto à data da constituição das mesmas obrigações de pagar as contribuições, integrando a respectiva relação jurídica tributária (subsidiariamente responsáveis em relação à Segurança Social, enquanto credora para-fiscal e solidariamente, entre si, não só aquando da verificação do facto tributário – cfr. alínea a) do nº. 1 do citado artigo 24.º da LGT, como relativamente ao período do exercício dos respectivos cargos de gerentes pelas dívidas tributárias que se tenham verificado nessa data – alínea b) do nº.1 do mesmo preceito). Ou seja, a obrigação tributária já existia porquanto a solidariedade entre os gerentes mostra-se legalmente contemplada pela lei tributária, à data da constituição da relação jurídica para-tributária. Por conseguinte, a respectiva obrigação não nasceu com a reversão, tendo esta apenas determinado a efectivação da responsabilidade no processo executivo instaurado inicialmente apenas contra o devedor originário.
Na solidariedade entre os gerentes, que resulta da lei (artigo 24.º citado), há que fazer funcionar a presunção do artigo 516.º, do CC, nos termos do qual os devedores comparticipam em partes iguais na dívida. Consequentemente, tendo o procedido ao pagamento da totalidade das dívidas, satisfazendo integralmente o direito do credor, cabe-lhe o direito de regresso contra o Réu (co-responsável/condevedor).
O direito de regresso em causa, sustentado assim no regime de solidariedade legal e tendo origem na relação jurídica tributária é, por isso, independente da efectivação da reversão.
De acordo com a Lei Geral Tributária (LGT), os gerentes de uma sociedade são subsidiária e solidariamente responsáveis perante a Segurança Social pelas dívidas daquela; nesse sentido, são ab initio, responsáveis pelas dívidas fiscais da referida sociedade, integrando a respectiva relação jurídica tributária.
Consequentemente e porque sujeitos passivos dessa relação tributária, a respectiva obrigação não nasce para os responsáveis subsidiários com a reversão, pois que esta apenas determinou a efectivação da sua responsabilidade no processo executivo instaurado inicialmente apenas contra o devedor originário.
Está-se, pois, no caso dos autos no domínio das relações internas entre co-responsáveis para tributários, para os quais a responsabilidade tributária propriamente dita já se extinguiu, subsistindo apenas a responsabilidade solidária que por si só sustenta a pretensão jurídica do Autor, aqui apelado.
Existe assim solidariedade entre Autor e Réu no pagamento das dívidas da sociedade, onde se incluem as da Segurança̧ Social, pagas pelo Autor, pelo que este detêm direito de regresso sobre o Réu, por forca̧ do art. 513.º do Código Civil e 24.º n.º 1 da LGT.
O indeferimento da reversão contra o Réu pelo Tribunal Central Administrativo, através de duas sentenca̧s já transitadas em julgado, por forca̧ da figura da prescrição não altera o que vem de dizer-se, afigurando-se nessa parte totalmente fundada e esclarecedora a motivação da sentença recorrida.
Assim é que diz o artigo 48.º da Lei Geral Tributária que «As causas de suspensão ou interrupção da prescrição aproveitam igualmente ao devedor principal e aos responsáveis solidários ou subsidiários» [n.º 2]; e que «A interrupção da prescrição relativamente ao devedor principal não produz efeitos quanto ao responsável subsidiário se a citação deste, em processo de execução fiscal, for efectuada após o 5.º ano posterior ao da liquidação» [n.º 3].
Sobre a “Noção” de obrigação solidária, explica mormente o n.º 1 do artigo 512.º do Código Civil que «A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera (…)». Ou, como diz o n.º 1 do artigo 519.º do Código Civil, «O credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado (…)».
Mas preceitua no n.º 2 deste mesmo artigo 519.º do Código Civil que «Se um dos devedores tiver qualquer meio de defesa pessoal contra o credor, não fica este inibido de reclamar dos outros a prestação integral, ainda que esse meio já lhe tenha sido oposto». E, do lado do devedor, dispõe o n.º 1 do artigo 514.º do Código Civil, a respeito de “Meios de defesa”, que «O devedor solidário demandado pode defender-se por todos os meios que pessoalmente lhe competem ou que são comuns a todos os condevedores». Sendo certo que o n.º 1 do artigo 521.º do mesmo Código Civil diz que «Se, por efeito da suspensão ou interrupção da prescrição, ou de outra causa, a obrigação de um dos devedores se mantiver, apesar de prescritas as obrigações dos outros, e aquele for obrigado a cumprir, cabe-lhe o direito de regresso contra os seus condevedores».
Prescrita a obrigação em relação a algum ou alguns dos devedores – diz-se no Código Civil Anotado, na anotação 1. ao artigo 521.º, de Pires de Lima e Antunes Varela – estes podem invocar a prescrição nos termos gerais: não estão, portanto, sujeitos, em relação ao credor, ao cumprimento parcial ou integral da obrigação. Mas se, em relação a algum ou alguns dos devedores, a prescrição não se tiver consumado por haver suspensão ou interrupção, este ou estes podem ser compelidos a cumprir integralmente, pois não podem invocar um meio de defesa pessoal a outro devedor (cf art.º 525.º). Ora, neste caso, a lei confere ao demandado o direito de regresso, mesmo em relação àqueles cuja responsabilidade se encontrava prescrita. O benefício da prescrição, portanto, neste caso de solidariedade dos devedores, limita-se à faculdade que os beneficiários têm de recusar o cumprimento ao credor. Nunca respondem, consequentemente, pelo cumprimento integral da obrigação. Porém, nas relações internas dos devedores continuam a responder pela sua parte, embora a obrigação esteja, em relação a eles, prescrita. A solução adoptada assenta ainda no efeito pessoal da interrupção, limitando-a ao devedor atingido pelo acto interruptivo (…) [fim de citação].
Pelo que acima se deixou dito, os gerentes de uma sociedade, e nos termos da lei, são responsáveis de modo subsidiário «e solidariamente entre si».
E, a respeito da obrigação solidária, supõe-se a existência de meios de defesa, quer comuns, quer pessoais ao demandado, não podendo este invocar um meio de defesa pessoal a outro devedor – cf., no mesmo sentido, José Dias Marques, Prescrição Extintiva, Coimbra Editora, Limitada, 1953, pp. 256 e ss..
Com Manuel Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p. 45, cabe fazer notar que “a prescrição consumada não extingue pura e simplesmente a obrigação, mas apenas confere ao devedor o poder (direito potestativo) de a invocar como causa extintiva da mesma obrigação”.
Sempre nos termos do disposto no art.º 160.º do CPPT (correspondente ao art.º 246.º do CPT), a responsabilidade de cada dos devedores revertidos é apreciada individualmente. Acrescenta-se que é também individualmente assegurado a cada responsável a possibilidade de reagir contra a execução, por diferentes formas processuais – cf. art.º 22.º, n.º 4, da LGT.
Enquanto a caducidade extingue o direito da Administração Tributária de poder liquidar o tributo, por seu turno o instituto da prescrição consiste na extinção do direito, que assiste ao Estado, de exigir determinada dívida tributária ao contribuinte ou a um outro responsável tributário. Não extingue a dívida tributária mesma, pelo que insubsistente o argumentário do recorrente quanto a uma pretensa natureza diversa ou distinta da prescrição tributária.
Quanto à prescrição, como já vimos, o credor de regresso, tendo cumprido, pode exercer esse direito de regresso se a prescrição não se verificou em relação a ele, mesmo que estejam prescritas as obrigações dos outros condevedores, desde que o credor de regresso, que cumpriu a obrigação, não tenha renunciado à prescrição, que é a doutrina imposta pelo artigo 521.º do CC.
Temos para nós que subjacente à argumentação do recorrente está a invocação deste último segmento, que a matéria de facto não corrobora minimamente.
Tudo para concluir pelo acerto da decisão recorrida.

III.
Tudo visto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, vencido.
Notifique.

Porto, 19 de Dezembro de 2023
Isabel Peixoto Pereira
Manuela Machado
Paulo Dias da Silva
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[1] AUJ de 17.10.2023, ainda não publicado.
[2] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil VI, p. 781.