Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
405/22.6T8BAO.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
SUBSOLO
DIREITO À ÁGUA
Nº do Documento: RP20240111405/22.6T8BAO.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A demonstração da propriedade do subsolo de um imóvel depende dos requisitos gerais da transmissão da propriedade, pelo que cabe ao adquirente demonstrar os requisitos concretos para beneficiar de uma presunção de propriedade ou demonstrar a aquisição originária da mesma.
II - A inscrição matricial produz efeitos meramente fiscais.
III - O conceito de subsolo deve ser limitado não apenas pelas condicionantes do domínio público, mas também à concreta ou previsível utilização visada pelas partes.
IV - O direito de propriedade do subsolo pode incidir apenas sobre o direito à agua nos termos do art. 1390º, do CC. 4. Se desde 1980 a única utilização desse subsolo consistiu na condução de água por condutas para um poço e daí para a casa dos Apelantes, ter-se-á de concluir que foi esse o objecto da coisa corpórea alienada e possuída no caso concreto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 405/22.6T8BAO.P1



Sumário:
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I. Relatório

AA, NIF: ...66 e mulher BB, NIF: ...10, casados sob o regime da comunhão de bens adquiridos, residentes na Rua ..., Freguesia ..., em Baião, intentaram a presente Acção Declarativa sob a forma de Processo Comum contra CC, e mulher DD, residentes na Rua ..., ..., em Vila Franca de Xira, peticionando a condenação destes a reconhecer que são legítimos e exclusivos possuidores e proprietários, por a haverem adquirido por usucapião, de toda a água captada e armazenada no poço existente próximo e no subsolo da extremidade norte/poente do prédio rústico denominado “Campo 1...”, sito no lugar ..., Freguesia ..., concelho de Baião, composto por cultura e videiras em ramada, com a área de 1800 m2, a confrontar de norte com EE, de sul com FF, de nascente com GG e com o caminho público e de Poente com prédio da herança de HH, inscrito na matriz ...45 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ...29/20220215, bem como que são legítimos e exclusivos possuidores e titulares do direito ao subsolo do mesmo prédio, por o terem adquirido quer por via derivada, quer pela via originária da usucapião , bem como a condenação dos Réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam, perturbem ou por alguma forma prejudiquem o direito dos Autores, quer à água referida e seu aproveitamento, quer ao uso e fruição do subsolo do prédio “Campo 1...”.
Para tanto alegaram em síntese que mediante escrito datado de 08 de Fevereiro de 1977, no Cartório Notarial de Baião, II e mulher JJ, pais do Réu marido, declararam vender a KK casado com LL, e estes declararam comprar o subsolo do prédio rústico que constava de uma sorte do “Campo 2...”, sito no lugar ..., Freguesia ..., Baião, inscrito na matriz sob os artigos ...99 (1/3) e ...00, não descrito na Conservatória do Registo Predial, confrontando a norte com MM, a sul com NN, a nascente com OO e com caminho público e a poente com JJ.
Alegaram que mediante escrito datado de 26 de Agosto de 1980, aqueles KK e mulher LL declararam vender aos Autores o direito ao subsolo do mesmo prédio, que haviam adquirido aos pais do Réu.
Alegaram ainda os Autores que em data não concretamente apurada, mas após 01 de Janeiro de 1983, o prédio supra, que já se encontrava material e fisicamente delimitado tal como hoje, passou a designar-se de “Campo 1...” tendo sido inscrito na matriz ...45 e com os seguintes elementos identificativos: Localização: ...; Composição: cultura com videiras em ramada; Área: 1.800 m2; Confrontações: norte OO; sul HH; nascente PP e outro; poente MM. Porém, alegaram os Autores que as confrontações não se mostram correctas, por desactualizadas e porquanto alegadamente o aludido prédio continuará a confrontar com o caminho público. Mais alegaram os Autores que mediante escrito datado de 13.01.2022, o prédio descrito na matriz ...45 foi adquirido por sucessão hereditária de II e JJ pelo Réu.
Alegaram os Autores que, lançando mão dos referidos escritos datados de 1977 e 1980, requereram, em 15.02.2022, junto da Conservatória do Registo Predial de Baião o registo a favor de KK e mulher LL e a seu favor, do direito ao subsolo atinente ao prédio supra, que alegadamente na actualidade se mostra descrito na matriz ...45. Contudo, alegaram os Autores que os registos foram lavrados como provisórios e que como não foi possível o registo a favor dos pais dos Réus, pois desconhecem o título aquisitivo destes, não lograram proceder ao registo em definitivo a seu favor do reclamado direito ao subsolo.
Alegaram os Autores que os Réus igualmente requereram a inscrição a seu favor, no registo predial, do prédio com a descrição ...45, o que ficou lavrado provisoriamente. Mais alegaram os Autores, desde 26.08.1980 que a água captada e armazenada num poço, com cerca de 4 metros de profundidade, revestido com manilhas em cimento, situado próximo do limite norte/poente, do aludido prédio, é aproveitada e utilizada em exclusivo pelos Autores para as necessidades domésticas da casa onde habitam, através de um tubo que atravessa o subsolo do prédio “Campo 1...”, no sentido norte/poente – nascente, bem como o caminho público à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição de quem quer que seja, ignorando lesar direitos de terceiros, convictos da sua titularidade.
Alegaram ainda que como o poço e o tubo que conduzem a águas subsistem no subsolo do prédio, inscrito na matriz ...45, há mais de 20 anos, adquiriram a posse de todo o subsolo por via derivada e/ou originária.
Finalmente alegaram os Autores que os Réus os impedem de explorar e captar as águas subterrâneas noutros locais do prédio que se mostra alegadamente hoje inscrito sob o aludido artigo ...45, violando assim o seu direito.
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Regularmente citados os Réus contestaram defendendo-se por excepção e impugnação.
Saneado e instruído o processo foi realizado julgamento e depois, foi proferida sentença que decidiu: a) Condenar os Réus CC e mulher DD a reconhecer que os Autores AA e mulher BB, são proprietários, por a haverem adquirido por usucapião, da água captada e armazenada num poço, com cerca de 4 metros de profundidade – subsolo - revestido em manilhas de cimento, situado no limite norte/poente, do prédio rústico, denominado “Campo 1...”, composto por cultura com videira em ramada, sito em ..., Freguesia ..., Concelho de Baião, com a área total de mil e oitocentos metros quadrados, sendo a confrontação conhecida a norte com OO, e actualmente a sul com FF, a Poente com o prédio da Herança de HH, a nascente com GG, pertença dos Réus. b) Absolver os Réus CC e mulher DD do demais peticionado pelos Autores AA e mulher BB.
Inconformados vieram os AA. interpor recurso o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (artigos 627.º, nºs 1 e 2, 644.º, nº 1, alínea a), 645.º, n.º 1 alínea a) e 647.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil).
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2.2. Foram apresentadas as seguintes conclusões
1. Das escrituras públicas melhor referidas nos 1º e 3º factos provados constam que II e mulher (pais do recorrido) venderam a KK e mulher, e estes, por seu turno, venderam aos recorrentes, o subsolo do prédio rústico ao tempo denominado “Campo 2...”.
2ª Para além dos factos que o tribunal recorrido considerou como provados, deve ainda ser como tal considerado o facto alegado no artigo 20º do articulado inicial, ou seja, que na sequência da avaliação fiscal do prédio em questão, e da entrada em vigor da nova e atual matriz no dia 01 de janeiro de 1983, aquele prédio deixou de ser designado de “Campo 2...” e passou a ser designado de “Campo 1...”, tendo passado a vigorar na matriz com o artigo ...45.
3ª Com efeito, aquele facto foi expressamente admitido como verdadeiro no artigo 1º da contestação, devendo ter-se por confessado, tal como prescreve o artigo 574º/2 do CPC.
4ª Consequentemente, deve ser eliminado do elenco dos factos não provados o constante da letra f).
5ª Os recorridos afirmaram no artigo 3º da contestação desconhecerem o a legado no artigo 5º da PI, ou seja, que o prédio “Campo 1...” se encontre, desde tempos imemoriais, física e visivelmente delimitado, confrontando: A norte: com o prédio rústico de EE, sendo a delimitação entre ambos estabelecida por um muro em pedra com uma altura média de 1,5 metros em toda a extensão; A sul com o prédio de FF, sendo a delimitação entre eles também estabelecida por um muro em pedra: A nascente: com o prédio de GG, sendo a delimitação estabelecida por uma rede com cerca de 1,5 metros de altura e com o caminho público; A poente: com o prédio da herança de HH, sendo a delimitação entre ambos estabelecida por um murete de pedra tosca, encimado por uma rede.
6ª Trata-se, contudo, de um prédio que, pelo menos em 1977, era propriedade dos pais do recorrido e assim se manteve até que ele próprio o adquiriu por sucessão hereditária daqueles.
7ª Não podem pois os recorridos afirmar desconhecerem os limites físicos e confrontações de um prédio que está na sua esfera familiar há, pelo menos, 46 anos consecutivos.
8ª Deste modo, também o facto alegado no artigo 25º da PI deve ter-se por provado nos exatos termos alegados, atento o disposto no artigo 574º/3 do CPC.
9ª Consequentemente, devem ser eliminados os factos constantes das letras a) e b) dos não provados ou, se assim se entender, serem transpostos para a “galeria” dos provados.
10ª Deve ainda eliminar-se o facto constante da letra c), pois em lado algum do articulado inicial os recorrentes alegaram que os recorridos os impedem de explorar e transportar a água referida em 8) e 10) dos factos provados, nem tal resultou da instrução da causa, ainda que como facto instrumental, tendo assim sido violado o “princípio do dispositivo” constante do artigo 5º do CPC. Na verdade, o que os recorrentes alegaram foi que os recorridos os impedem de usufruir do direito ao subsolo do prédio “Campo 1...” em toda a sua extensão, impedindo-os, nomeadamente, de explorarem e captarem águas subterrâneas noutros locais, entenda-se, em locais distintos daquele onde existe o poço (artigos 64º e 65º da PI).
11ª Dúvidas não restam pois que o prédio rústico que outrora se designou de “Campo 2...”, se designa agora, na sequência da entrada em vigor da atual matriz rústica do concelho de Baião, de “Campo 1...”, inscrito na matriz da Freguesia ... ...45 e tem os limites físicos, a extensão e as confrontações constantes do artigo 25º da PI, encontrando-se melhor retratado no registo fotográfico que constitui o documento 4 daquele articulado, que não foi objeto de impugnação pelos recorridos.
12ª De resto, mal se compreende que o tribunal recorrido tenha considerado e julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito à água explorada e armazenada num poço existente no limite norte/poente do “Campo 1...” e, ao mesmo tempo, tenha considerado como não provado que esta designação correspondesse, na anterior matriz, à de “Campo 2...” (confronte-se o facto provado 8º com o não provado da letra f).
13ª E os recorrentes são titulares do direito de propriedade do seu subsolo, por o haverem adquirido por compra a KK e mulher, que, por seu turno, o haviam adquirido aos pais do recorrido.
14ª A aquisição dos recorrentes, bem como a dos seus transmitentes, foi derivada constitutiva e não meramente declarativa, uma vez que o direito adquirido (no caso o direito ao subsolo) filia-se num direito mais amplo do anterior titular e forma-se à custa dele, limitando-o, comprimindo-o.
15ª Não obstante, os recorrentes invocaram também a aquisição originária do direito de propriedade do subsolo pela via da usucapião, como resulta da alegação inserta nos artigos 38º, 39º, e 46º a 51º da PI e fizeram prova destes factos, como assim considerou o tribunal e verteu nos 8º, 9º, 10º e 11º dos provados.
16ª Ainda assim – mal, a nosso ver – o tribunal fez improceder o pedido de reconhecimento do direito dos recorrentes sobre o subsolo do “Campo 1...”, com uma dupla mas falível argumentação: a) por não se ter alcançado a prova de que os recorrentes exerçam poderes de facto sobre a totalidade do “Campo 1...” (“acesso, escavação, prospeção, construção de algo”); b) e, por outro lado, porque a existência, provada, de um tubo que conduz a água e perpassa o subsolo do prédio, apenas consubstancia um direito acessório ao direito à captação e exploração de águas subterrâneas.
17ª No que ao primeiro argumento diz respeito, provou-se justamente o contrário, que os poderes de factos exercidos pelos recorrentes, os atos de posse, se manifestaram em toda a extensão do prédio, desde norte/poente, onde subsiste há mais de 20 anos um poço de cuja a água aí explorada e armazenada fruem os recorrentes em exclusivo (factos 8º e 9 dos provados), até ao lado oposto, a nascente, pela permanência no subsolo de um tubo que a conduz até sua casa (facto 10º dos provados).
18ª No que ao segundo argumento diz respeito, um direito real acessório pressupõe, naturalmente, um direito real principal. O direito principal é aquele que tem existência própria, autónoma, que existe por si só, exercendo sua função e finalidade, independentemente de outra. O direito acessório é o que não existe sem o direito principal, que nasce e se extingue com este.
19ª Contudo, no caso vertente os recorrentes fruem do subsolo do “Campo 1...” para condução da água pelo tubo, não só porque são os titulares da água, como porque adquiriram o direito ao subsolo.
20ª Ou seja, a fruição do subsolo não está dependente de qualquer outro direito, mas sim porque a propriedade dele foi pelos recorrentes adquirida.
21ª Aliás, o próprio direito de propriedade da água, que o tribunal reconheceu assistir aos recorrentes, deriva precisamente do facto de serem titulares do subsolo e não por a terem adquirido autonomamente.
22ª Dívidas não restam pois que os recorrentes são proprietários de todo o subsolo do prédio rústico “Campo 1...”, não só por o haverem adquirido derivadamente e de forma constitutiva, como por o haverem adquirido pela via originária da usucapião.
23ª Isto porque foi o próprio tribunal recorrido que entendeu ter-se provado que o subsolo do prédio é atravessado, pelo menos desde 26 de agosto de 1980, por um tubo que conduz a água desde norte / poente – nascente, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, na ignorância da lesão de direitos de terceiros e com convicção da titularidade do direito (vejam-se os factos provados 10º e 11º).
24ª Mas ainda que assim se não entendesse, sempre os recorrentes beneficiariam da presunção da titularidade do direito ao subsolo, por se ter provado estarem na posse dele e não existir a favor de outrem, designadamente dos recorridos ou seus antecessores, presunção derivada de registo anterior ao início da posse (artigo 1268º/1 do CC).
25ª O tribunal desconsiderou por completo este facto, violando, por omissão de aplicação, aquele preceito.
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2.2. A parte contraria contra-alegou nos seguintes termos:
A. Os Recorrentes não cumpriram os requisitos impostos pelos artigos 639.º e 640.º, ambos do CPC, ou seja, não impugnaram verdadeiramente quer a matéria de facto quer a matéria de direito;
B. Das motivações e conclusões, não resulta que tenham cumprido quer o ónus de alegação, quer o ónus de formulação de conclusões, nem tão-pouco que tenham especificado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
C. Aliás, não resulta nem das alegações nem das conclusões a indicação exata das passagens da gravação relevantes em que os Recorrentes se fundam para impugnar a decisão sobre a matéria de facto, elemento absolutamente imprescindível/essencial sem o qual o Tribunal ad quem não pode conhecer do objeto do recurso – cfr. 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea b) do CPC.
D. Ora, «(…) a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso» - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-10-2015.
E. O recorrente tem de indicar, com exatidão, pelo menos nas alegações, as passagens da gravação em que se funda, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30-11-2015 – Não o tendo feito, não deve o recurso dos Recorrentes ser conhecido, sendo objeto de rejeição.
F. Mais, os Recorrentes não especificaram, quer em sede de alegações, quer em sede de conclusões, qual a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida, sobre as questões de facto impugnadas, em clara violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea c) do CPC, devendo, também por este motivo, o recurso ser objeto de rejeição.
G. Os Recorrentes não indicam nas alegações os concretos pontos de facto que consideram que tenham sido incorretamente julgados, violando assim o artigo 640.º, n.º 1, alínea a) do CPC, devendo, também por este motivo, o recurso ser objeto de rejeição.
H. Os Recorrentes não explicitaram as razões pelas quais consideram que a decisão está alegadamente errada ou injusta, sendo que se limitaram a tecer considerações demasiado vagas e imprecisas sobre a prova produzida em sede de audiência de julgamento, o que também é manifestamente insuficiente para interpor recurso da sobre a matéria de direito.
I. A douta sentença não merece qualquer censura, pelo que deve a mesma ser confirmada nos precisos termos em que foi proferida.
J. A douta sentença não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes.
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3. Questões a decidir
1. Da admissibilidade do recurso de facto dos apelantes
2. Da admissibilidade do recurso dos Apelantes
3. Da alteração dos factos provados e não provados.
4. Da alteração ou não das consequências jurídicas face aos factos provados.
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4. Da admissão do recurso de facto
Assiste toda a razão por parte dos apelados quanto aos requisitos de admissibilidade do recurso da matéria de facto nos termos do art. 640º, do CPC.
Mas, no presente caso os apelantes põem apenas em causa a aplicação das regras processuais probatórias relativas à admissão de factos por virtude na sua impugnação.
Logo é evidente que não podem citar gravações, depoimentos, e passagens da produção de prova, pois, não são estas que fundamentam a sua pretensão.
Pelo contrário a sua fundamentação é clara (alterar a matéria de facto como discriminado) e o seu fundamento a aplicação aos autos dos arts. 574º nº 2 e 3 do CPC.
Improcede, pois, a questão suscitada.

5. Da admissão do recurso
Pretendem os RR que “Os Recorrentes não explicitaram as razões pelas quais consideram que a decisão está alegadamente errada ou injusta, sendo que se limitaram a tecer considerações demasiado vagas e imprecisas sobre a prova produzida em sede de audiência de julgamento, o que também é manifestamente insuficiente para interpor recurso da sobre a matéria de direito”.
Ora, nas suas alegações é dito pelos apelantes:
Conforme resulta unanimemente da jurisprudência, de que é mero exemplo o Acórdão do TRL de 23/02/2023 (Proc. nº 2524/17.0T8CSC.L1-8, acessível em www.gde.mj.pt/jtrl), nas aquisições derivadas translativas os negócios não são constitutivos do direito, não criam a propriedade, apenas a transferem. (…)
Sucede que, no caso dos autos, não estamos em presença de uma aquisição derivada translativa, mas sim constitutiva. Mas ainda que se entenda estarmos em presença de uma aquisição derivada translativa, lograram os recorrentes fazer dela prova, pela junção da certidão da escritura pública pela qual adquiriram o subsolo do prédio a KK e mulher, e pela junção da escritura pela qual estes transmitentes adquiriram o mesmo direito a II e mulher, assim fazendo prova da legitimidade transmissiva daqueles a quem adquiriram (Ac. do TRL de 06/11/2012, CJ, nº 242, ano XXXVII, tomo V/2012). (…)
Portanto, ainda que os recorrentes não beneficiem, como não beneficiam, de registo definitivo de aquisição do direito de propriedade do subsolo do “Campo 1...”, não se lhes pode negar a aquisição derivada do direito. Mas numa ação de reivindicação pode o autor alcançar a prova do seu direito fazendo a prova dos pressupostos de uma das formas de aquisição originária, como é o caso da usucapião e não está impedido, como fizeram os recorrentes, de a invocar em paralelo com a aquisição derivada (Ac. do STJ de 24/05/2018, Proc. nº 455/12.0TVPRT.P1.S1, 7ª secção). (…)
O facto de o tubo condutor da água se encontrar no subsolo do prédio não obsta à consideração de que tal revela uma posse pública. Com efeito, diz o artigo 1262º do CC que “posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida dos interessados”. (…)
Por fim, dizer ainda que os recorrentes beneficiam da presunção da titularidade do direito ao subsolo, por se ter provado estarem na posse dele e não existir a favor de outrem, designadamente dos recorridos ou seus antecessores, presunção derivada de registo anterior ao início da posse (artigo 1268º/1 do CC).
Ou seja, foram expressas com clareza as razões e normas que no entender dos apelantes foram violadas pelo tribunal recorrido.
Improcede, pois, a questão dos apelados.
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6. Do recurso sobre a matéria de facto
1. Pretendem os apelantes que: “2ª Para além dos factos que o tribunal recorrido considerou como provados, deve ainda ser como tal considerado o facto alegado no artigo 20º do articulado inicial, ou seja, que na sequência da avaliação fiscal do prédio em questão, e da entrada em vigor da nova e atual matriz no dia 01 de janeiro de 1983, aquele prédio deixou de ser designado de “Campo 2...” e passou a ser designado de “Campo 1...”, tendo passado a vigorar na matriz com o artigo ...45. 3ª Com efeito, aquele facto foi expressamente admitido como verdadeiro no artigo 1º da contestação, devendo ter-se por confessado, tal como prescreve o artigo 574º/2 do CPC.”.
De facto no art. 1º da sua contestação os RR admitem essa factualidade com excepção do nome do campo.
Logo, a mesma está admitida por acordo, com essa excepção.
2. Pretendem ainda que o facto alegado no art. 25º, da PI seja dado como provado, porque essa factualidade foi impugnada por desconhecimento, mas constitui um facto pessoal dos RR porque “Trata-se, contudo, de um prédio que, pelo menos em 1977, era propriedade dos pais do recorrido e assim se manteve até que ele próprio o adquiriu por sucessão hereditária daqueles”.
O art 25º da petição foi impugnado no art. 3º da contestação nos seguintes termos: “Desconhecem os factos alegados nos artigos 1º a 11.º, 19.º, 22.º a 25.º, 30.º a 36.º, 50.º, 51.º da douta Petição Inicial, que, por não serem pessoais nem ter a obrigação de os conhecer, vão os mesmos por impugnados, nos termos do disposto no artigo 574.º do Código de Processo Civil”.
O ónus da impugnação pressupõe que o réu “deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” – nº 1 do art. 574º, do CPC.
E, constituiu facto pessoal “ou de que o réu deve ter conhecimento, não só o ato praticado por ele ou com a sua intervenção, mas também o ato de terceiro perante ele praticado (…), ou o mero facto ocorrido na sua presença, e ainda o conhecimento do facto ocorrido na sua ausência (…)”[1].
A sucessão hereditária pressupõe o ingresso na posição do de cujus. Logo, essa realidade assume natureza pessoal.
Alberto dos Reis[2], a propósito do art. 494º do CPC então vigente afirmava: “Como exigir que o réu impugne o facto, sob pena de o aceitar como verdadeiro, se não tem conhecimento dele, se nada sabe a respeito da ocorrência material narrada pelo autor?
O § 1º do artigo resolve a dificuldade. Admite a declaração, por parte do réu, de que não sabe se o facto é exacto; e atribui à declaração valor diverso, conforme se trata de facto pessoal ou de facto de que o réu deva ter conhecimento, ou se trata de facto que não esteja nestas condições: no 1º caso a declaração vale como confissão, no 2º vale como impugnação”.
É certo que, a alegação é mais ampla do que o inicio dessa sucessão já que se alega que a situação ocorre desde tempos imemoriais. Mas, pelo menos desde 1977 essa realidade é do conhecimento pessoal dos RR.
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3. Por fim, pretendem os apelantes que seja eliminada a alínea c) (por lapso já que a factualidade é a e), dos factos não provados.
Tal pedido é processualmente inútil, já que os apelantes nem sequer pretendem que a factualidade seja considerada provada, porque, na óptica da sua pretensão a mesma já consta dos factos provados.
Logo, não se aprecia esta parte do recurso por manifesta inutilidade para a boa decisão da causa.
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4. Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso sobre a matéria de facto e por via disso aditam-se aos factos provados que:
a) Na sequência da avaliação fiscal do prédio em questão e da entrada em vigor, no dia 01 de janeiro de 1983, da nova e atual matriz, o prédio passou a designar-se de “Campo (…)”, tendo sido inscrito na matriz ...45 e com os seguintes elementos identificativos: Localização: ... Composição: cultura com videiras em ramada Área: 1.800 m2 Confrontações: norte OO; sul HH; nascente PP e outro; poente MM (doc. 3 junto com a pi)
b) o prédio está física e visivelmente delimitado desde (pelo menos 1977) e confronta atualmente: Norte: com o prédio rústico de EE, sendo a delimitação entre ambos estabelecida por um muro em pedra com uma altura média de cerca de 1,5 metros em toda a extensão; Sul: com o prédio de FF, situado a uma cota mais baixa, sendo a delimitação também estabelecida por um muro em pedra; Nascente: com o prédio de GG, sendo a delimitação estabelecida por uma rede também com cerca de 1,5 metros de altura e com o caminho público; Poente: com o prédio da herança de HH, sendo a delimitação entre ambos estabelecida por um murete de pedra tosca, com cerca de 0,5 metros de altura, encimado por uma rede (doc. 4).
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7. Motivação de facto
1) II e JJ, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Baião, no dia 08.02.1977, que se dá por integralmente reproduzida, declararam que: “Pelo preço de cinco mil escudos, que já receberam, vendem ao [gerido*][3]1 do segundo outorgante, referido KK, o subsolo do seu prédio rústico que consta de uma sorte do Campo 2..., sito nos limites do lugar de ..., na dita Freguesia ..., a confrontar de nascente com OO e caminho público, poente com JJ, do norte com MM e do sul com NN, não descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho (…) e inscrito na respectiva matriz sob os artigos trezentos e noventa e nove um terço e quatrocentos.
2) No mesmo acto QQ, na qualidade de Gestor de Negócios de KK casado com LL, declarou aceitar o contrato.
3) KK e LL, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Baião, no dia 26.08.1980, que se dá por integralmente reproduzida, declararam, entre outros, que: “Vendem (…) o subsolo do prédio rústico que consta de uma sorte do Campo 2..., sito nos limites do lugar de ..., na dita Freguesia ..., a confrontar de nascente com OO e caminho público, poente com JJ, do norte com MM e do sul com NN, inscrito na respectiva matriz sob os artigos quatrocentos e trezentos e noventa e nove- um terço (…).
4) No mesmo acto AA e BB declararam aceitar o contrato.
5) Mediante escritura de partilha, lavrada no Cartório Notarial de Baião, datada de 13.01.2022, que se dá por integralmente reproduzida, foi adjudicado ao Réu CC o prédio rústico, denominado “Campo 1...”, composto por cultura com videira em ramada, sito em ..., Freguesia ..., Concelho de Baião, com a área total de mil e oitocentos metros quadrados, a confrontar a norte com OO, sul com HH, nascente com PP e outro e poente com MM.
6) No documento referido em 5) consta que o ali aludido prédio rústico, denominado “Campo 1...”, se mostra inscrito na matriz actual, ...45 e não descrito na Conservatória do Registo predial.
7) O prédio referido em 5) confronta actualmente a sul com FF, a Poente com o prédio da Herança de HH, a nascente com GG e outro, mostra-se delimitado e tem ramada de videiras em todos os seus limites.
8) Nos limites do prédio referido em 5) e 7) designadamente no seu limite norte/poente, existe um poço para exploração e armazenamento de água, com cerca de 4 metros de profundidade, revestido em manilhas de cimento.
9) Desde o dia 26 de Agosto de 1980 que os Autores aproveitam em exclusivo a água existente em 8) para as necessidades domésticas da casa onde habitam.
10) A referida água é transportada, desde pelo menos 26 de Agosto de 1980, por um tubo que atravessa o subsolo do prédio referido em 5) e 7) no sentido norte/poente-nascente até chegar a casa dos Autores.
11) Os actos referidos em 9) e 10) que incidem sobre o objecto referido em 8) são praticados pelos Autores, desde 26.08.1980, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, ignorando lesar direitos de terceiros e convictos da titularidade do direito.
12) Os Autores não usam/fruem do subsolo do prédio com a configuração referida em 5) e 7) noutros locais que não os referidos em 8) e 10).
13) Em 15/02/2022 foi aberta descrição ...29/20220215, relativa a um prédio rústico, sito em lugar ..., com a área total de 1.800 m2, inscrito na matriz ...45, composto de cultura com videiras em ramada com as confrontações: norte, OO, Sul HH; Nascente PP e outro; poente MM.
14) Em 15.02.2022, os Autores requereram junto da Conservatória do Registo Predial de Baião o registo de aquisição a favor de KK e mulher e sucessivamente a seu favor de denominado direito ao subsolo do prédio descrito na ficha ...29 referido em 13), pelas apresentações ...90 e ...91 de 15.02.2022.
15) Os pedidos de registo referidos em 14) mostram-se lavrados por dúvidas, fundamentando o Exmo. Conservador do Registo Predial de Baião na não apresentação de elemento que permitisse respeitar o princípio do trato sucessivo.
16) Em 14.03.2022 foi requerido junto da Conservatória do Registo Predial de Baião o registo de partilha por herança a favor dos Réus do prédio rústico, denominado “Campo 1...”, composto por cultura com videira em ramada, sito em ..., Freguesia ..., Concelho de Baião, com a área total de mil e oitocentos metros quadrados, a confrontar a norte com OO, sul com HH, nascente com PP e outro e poente com MM, inscrito na matriz actual, ...45 e não descrito na Conservatória do Registo predial.
17) O pedido de registo referido em 16) mostra-se lavrado por dúvidas fundamentando o Exmo. Conservador do Registo Predial de Baião por ser incompatível com as apresentações ...90 e ...91 de 15.02.2022 constantes da descrição ...29/20220215.
18) O artigo ...45, do Distrito do Porto, Concelho de Baião e Freguesia ..., foi inscrito na matriz no ano de 1983.
a)[4] Na sequência da avaliação fiscal do prédio em questão e da entrada em vigor, no dia 01 de janeiro de 1983, da nova e atual matriz, o prédio passou a designar-se de “Campo (…)”, tendo sido inscrito na matriz ...45 e com os seguintes elementos identificativos: Localização: ... Composição: cultura com videiras em ramada Área: 1.800 m2 Confrontações: norte OO; sul HH; nascente PP e outro; poente MM (doc. 3 junto com a pi)
b)[5] o prédio está física e visivelmente delimitado desde (pelo menos 1977) e confronta atualmente: Norte: com o prédio rústico de EE, sendo a delimitação entre ambos estabelecida por um muro em pedra com uma altura média de cerca de 1,5 metros em toda a extensão; Sul: com o prédio de FF, situado a uma cota mais baixa, sendo a delimitação também estabelecida por um muro em pedra; Nascente: com o prédio de GG, sendo a delimitação estabelecida por uma rede também com cerca de 1,5 metros de altura e com o caminho público; Poente: com o prédio da herança de HH, sendo a delimitação entre ambos estabelecida por um murete de pedra tosca, com cerca de 0,5 metros de altura, encimado por uma rede (doc. 4).
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8. Motivação jurídica
Nos presentes autos os AA obtiveram ganho parcial da sua pretensão, já que foi reconhecido que adquiriram por usucapião o direito da água do poço existente na imóvel pertença dos RR., mas foi julgado improcedente o pedido de Que “os AA. são legítimos e exclusivos possuidores e titulares do direito ao subsolo do mesmo prédio, por o terem adquirido quer por via derivada, quer pela via originária da usucapião”.
O subsolo de um imóvel é o espaço inferior ao seu solo.
Nos termos do art. 1344º, do CC “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à sua superfície bem como ao subsolo”.
Esta norma não visa atribuir o direito de propriedade, nem delimitar o mesmo, mas sim regular o conteúdo do direito de propriedade sobre essas áreas[6].
Nos termos da mesma conjugada com o art. 202º, do CC e art. 82º, da CRP constituem coisas fora do comércio jurídico aquelas que se encontram no domínio público, o que incluiu além do espaço aéreo
a) As águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos;
b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário;
c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção;
d) As estradas;
e) As linhas férreas nacionais;
f) Outros bens como tal classificados por lei.
Deste modo, o negócio jurídico constante dos factos provados nº1 e 2, terá de ser interpretado (e restringido), de acordo com esses limites legais imperativos relativos ao seu objecto.
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Depois, convém salientar que o conceito de subsolo apropriável, não está apenas limitado aos direitos disponíveis, mas também à efectiva utilização social (real ou potencial) no momento da celebração do negócio jurídico.
Com efeito, o Ac do STJ de 25.4.02, nº 04B360 (Ferreira de Almeida), acentua que “o conceito de "prédio" tal como emerge da vida social hodierna deve limitar-se, em profundidade, àquela porção que for efectivamente ocupada, em concretização prática das chamadas "função social da propriedade" ou da "socialização da riqueza", as quais assumiram foros de dignidade constitucional na Lei Fundamental de 1976”.
Daí resulta, pois, que se a utilização do subsolo incidia apenas sobre a água concreta depositada no poço, e se esse uso se manteve assim desde 1980, parece natural que seja esse o limite do objecto contratual visado pelas partes.
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Em terceiro lugar, a aquisição desse subsolo está condicionada pelas formas legais de aquisição dos direitos reais sendo que a parte invocou, mas não demostrou, uma forma de aquisição originária desse subsolo.
Basta dizer que, resulta demonstrado (facto provado nº 12) que: “Os Autores não usam/fruem do subsolo do prédio com a configuração referida em 5) e 7) noutros locais que não os referidos em 8) e 10)”.
Daí resulta, pois, que com excepção da água concreta que se encontra depositada nesse poço, a qual é transportada por um tubo do subsolo, até chegar a casa dos AA. não existem quaisquer actos concretos de apropriação, utilização e fruição desse subsolo.
Depois, como bem salientou a sentença recorrida, os AA não beneficiem da presunção de propriedade resultante do registo predial (art. 7º, do CRP), nem muito menos, se pode considerar que a inscrição na matriz desse imóvel seja apta a produzir o mesmo efeito substantivo e não apenas tributário.
Conforme decidiu o Ac da RP de 8.6.2010, nº 1628/08.6TBPNF-A.P1 (Henrique Antunes) e é pacífico ente nós: “As inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade”.
Logo, teremos de concluir que nenhuma forma de aquisição originária da propriedade do subsolo desse terreno foi concretamente alegada e provada, pelo que sempre teria de improceder a pretensão dos AA, já que note-se nunca demonstraram que os transmitentes sejam efectivos donos dessa coisa.
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Poder-se-ia, é certo, discutir, como pretendem agora os apelantes, se a simples utilização dessa água, nos termos provados poderá ou não constituir a demonstração da utilização da totalidade desse subsolo e por isso, demonstrar, afinal, a prática de actos de posse da totalidade do objecto.
Entre nós a propriedade de uma coisa corpórea abrange quer as partes componentes quer as partes integrantes da mesma.
Mas, o objecto em causa (água concreta armazenada num poço) é susceptível de apropriação e fruição autónoma e por isso constituiu uma parte acessória.
Porque se “a afetação da totalidade da coisa é uma característica tendencial dos direitos reais, (estes) podem ser constituídos sobre uma parte da coisa, na medida em que esta seja autonomizável e, como tal, objecto de um tratamento autónomo”[7].
Por isso, como decidiu o Ac do STJ de 18.6.19, Nº 1669/17.2T8VNF-G.G1.S1 (RAIMUNDO QUEIRÓS), “O princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas, já que o mesmo não poderá incidir apenas sobre parte de uma coisa”.
Ora, a água em causa, não apenas assume essas características de autonomia e individualidade corpórea, como se integra na previsão do art. 1390º, do CC.
Esta norma dispõe que é título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, nomeadamente a usucapião, quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
É isso precisamente que acontece no caso presente e o que vem acontecendo, desde a utilização e fruição inicial dos Apelantes.
Por isso, essa coisa corpórea tem efectiva autonomia da restante parte do subsolo e constituiu até (de acordo com os factos provados) a totalidade das utilidades que este pode fornecer aos AA.
Acresce que, tem sido essa mesma utilização autónoma, a única, que os AA vêm fazendo desde 1980.
Pretender-se assim que essa utilização da água constituiu apenas a demonstração da fruição das restantes utilidades do subsolo é ignorar que essa foi há mais de 30 anos a única utilização concretamente efectuada.
Logo, teremos de concluir, nos mesmos termos da decisão recorrida que os Apelantes demonstraram “apenas” um direito de propriedade da água nos termos constantes dos factos provados.
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9. Deliberação
Pelo exposto, este tribunal colectivo julga a presente apelação improcedente, por não provada e, por via disso, confirma a douta decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes porque decaíram na sua pretensão.



Porto em 11.1.24
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
Maria Manuela Machado
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[1] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pág. 572.
[2] Código de Processo Civil anotado, volume III, pág. 60. O mesmo autor, a pág 50, esclarece: “Estamos perante uma das alterações mais profundas introduzidas no sistema do Código de 1876. Segundo este Código não careciam as partes, nas acções de processo ordinário, de tomar posição quanto aos factos articulados pela parte contrária; se o réu nada declarasse, na contestação, quanto aos factos articulados na petição inicial, não se concluía daí que os tinha como exactos, isto é, nem por isso ficava o autor dispensado de fazer a prova deles.”
[3] Sic cuja explicação, efectuada na sentença recorrida, se dá por reproduzida.
[4] Facto aditado por efeito do recurso.
[5] Facto aditado por efeito do recurso.
[6] Henrique Sousa Antunes, Comentário ao Código Civil, UCP, III, 242 e Ac da RC de 18.1.2005, nº 4027/04 (Ferreira de Barros).
[7] Maria Graça Trigo e Rodrigo Moreira, Comentário ao CC, citado, III, pág. 119.