Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1595/19.0T8MTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE MENOR
MEDIDA DE CONFIANÇA A PESSOA IDÓNEA
IDA PARA O ESTRANGEIRO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Nº do Documento: RP202307121595/19.0T8MTS-A.P1
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração estável (art. 4º/h) LPCJP).
II - Encontrando-se a criança bem integrada na dinâmica familiar do casal e restantes elementos do agregado, sendo, de facto, entendido como um elemento da família quer pelos adultos, quer pelas crianças, bem integrada nos diferentes contextos, não revelando instabilidade emocional, apresentando-se como uma criança feliz e bem-disposta e formulando a técnica da Segurança Social parecer no sentido de se manter a medida de confiança da criança a pessoa idónea apesar da família emigrar para França, não se justifica no superior interesse da criança alterar a medida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PromProt-1595/19.0T8MTS-A.P1
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SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )

I. Relatório
Na diligência de 6 de fevereiro de 2023, veio o casal AA e BB, id. nos autos, a quem a criança CC, nascido a .../.../2019, se encontra confiado, pretendendo emigrar para França, requerer autorização para levar a criança consigo para tal país, comprometendo-se a promover os contactos daquela com a avó paterna, DD, designadamente através de meios de comunicação eletrónicos.
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Na sequência de tal pretensão, foi, desde logo, determinada a realização de relatório social ao agregado familiar do casal requerente, tendo em conta o projeto de emigração e a necessidade de manutenção de convívios com a avó paterna.
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Tal relatório foi junto a 16 de fevereiro de 2023 (ref. 14168836) e notificado aos intervenientes processuais, dele constando o seguinte parecer: “continuamos a considerar que o CC se encontra bem integrado na dinâmica familiar do casal e restantes elementos do agregado, sendo, de facto, entendido como um elemento da família quer pelos adultos quer pelas crianças.
“O CC, de acordo com o aferido, quer dos elementos que com ele interagem, bem como pela observação efetuada, é uma criança bem integrada nos diferentes contextos, não revelando instabilidade emocional, apresentando-se como uma criança feliz e bem disposta.“
“Reiteramos o nosso parecer de que o melhor para o bem-estar e desenvolvimento equilibrado é manter-se aos cuidados desta família”.
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O Digno Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser deferido o requerido.
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A avó paterna DD veio requerer diligências de instrução, recaindo sobre tal pretensão o despacho que se transcreve:
“Ref. 14168836, 14177915, 14181869, 14185316, 141194163, 14204686:
Pelos motivos constantes das promoções com as ref. 126220943 e 125785397 (constante da ata da diligência de 6 de fevereiro de 2023[2]), que se dão por integramente reproduzidas por razões de economia processual, indefiro as diligências requeridas pela avó paterna.
Notifique e demais d. n.”
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Proferiu-se despacho com os fundamentos e decisão que se passam a transcrever:
“Cumpre apreciar e decidir.
Analisados os autos, designadamente os vários relatórios apresentados pela Ex.ma Senhora Gestora do Processo e tendo em conta a perceção direta quer da avó paterna quer do casal a quem a criança se encontra confiada (decorrente das duas diligências a que presidimos), concluímos que, ao contrário da avó paterna, o casal constituído por AA e BB, proporciona ao CC um ambiente seguro e tranquilo, promotor de um são e equilibrado desenvolvimento, pelo que é este o projeto de vida mais adequado à criança.
Destarte, autoriza-se o casal constituído por AA e BB a viajar para França com CC, devendo, oportunamente, indicar o seu paradeiro nesse país e comprovar documentalmente, no prazo de 10 (dez) dias, a inscrição da criança em estabelecimento de ensino.
Mais deve tal casal informar o processo das datas em que pretende regressar a Portugal, a fim de se agilizarem convívios com a avó paterna, para além dos contactos efetuados através das plataformas eletrónicas WHATSAPP e MESSENGER, já determinados.
Notifique e demais d. n.
Comunique à Ex.ma Sr.ª Técnica Gestora do processo”.
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A avó paterna DD veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1) A decisão provisoria do tribunal ad quo, é no entender da recorrente e com o devido respeito por douta e diversa opinião, insustentada de facto e de direito, sendo manifestamente violado do dever de fundamentação que recaia sobre o douto Tribunal a quo na prolação da decisão judicial, ora recorrida.
2) Foi violado o PRINCíPIO DA PREVALÊNCIA DA FAMÍLIA BIOLÓGICA, com a decisão tomada pelo Tribunal ad quo.
3) Foi provado pela avó paterna que reunia todas as condições para garantir um são desenvolvimento psicossocial e crescimento do seu neto, requerendo ainda junção aos autos das declarações técnicas que o atestaram bem como que não fosse autorizada a saída do CC e que o mesmo lhe fosse entregue, para se permitir a aplicação de medida de acompanhamento junto de familiar.
4) Assim, o Tribunal ad quo violou o principio do Primado da continuidade das relações psicológicas profundas, previsto no Art. 4.º, al. g) da LPCJP - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
5) Violou ainda o art.º 4.º, al.h) da LPCJP, no seu principio de Prevalência da família – na promoção dos direitos e na proteção desta criança deveria ter sido dada prevalência às
medidas que o integrasse na sua família biológica;
6) É, também, claro que o casal idóneo não conseguiu lograr como provado qualquer facto da existência de contrato de trabalho, contrato de arrendamento, condições de vida e
escolares do CC e que o Tribunal ad quo desvalorizou, de forma negligente, essa ausência e insegurança.
7) Há uma evidente e clara violação do superior interesse desta criança, com a ausência de averiguação cautelosa das circunstâncias em que esta criança se vai encontrar com estas pessoas, num país novo e estrangeiro e com a necessária estabilidade de vida, sem uma decisão rápida e precipitada e sem recurso a documentos oficiais, traduzidos e certificados.
8) Assim, o Tribunal ad quo violou o principio consagrado no Artigo 4.º da LPCJP, al. a), não atendendo, prioritariamente, aos interesses e direitos desta criança, na continuidade das relações de afeto de qualidade e significativas, como a que o CC tinha e tem com a sua avó paterna, ora recorrente.
9) Houve uma evidente violação do princípio da segurança e estabilidade de vida do CC, com a decisão ad quo.
10) O Tribunal ad quo falhou ao decidir pela manutenção da medida junto de casal idóneo e ao autorizar a saída do CC para França, criando um grave problema de competência territorial e capacidade de acompanhamento da medida- violando os princípios vigentes na Lei de proteção de Crianças e Jovens em perigo.
Termina por considerar que a decisão proferida violou as normas do art. 4º, 35º/1 b) e 79º da LPCJP e pede o provimento do recurso e a revogação da decisão proferida pelo tribunal “a quo”.
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O Digno Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso, concluindo que tendo em conta as circunstâncias do caso e o interesse concreto do CC, a intervenção protetiva desta criança não pode passar pela revogação da decisão proferida porquanto a mesma realiza de forma adequada o interesse superior da criança e satisfaz as exigências de proporcionalidade, atualidade, subsidiariedade e intervenção mínima, a que a lei manda atender cf. artigos 1.º, 3.º, 4.º, 5.º, alínea a), e 35.º, n.º 1, alínea f), todos da LPJCP, propondo que se mantenha a decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso.
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AA e BB, na qualidade de “pessoa idónea” a quem foi confiada a criança, vieram apresentar resposta ao recurso[3], formulando as seguintes conclusões:
A – O casal de acolhimento – AA e BB irão procurar melhorar as relações entre o CC e a sua Avó, sempre tendo presente o interessa do menor, para tal desenvolver rotinas de pontualidade, tanto para um mais natural relacionamento como tendo em vista as horas das refeições, descanso e escola.
B – Evitar animosidades entre os adultos, preservando um convívio calmo, cortês e respeitador, tudo para não envolver o CC em ambiente tóxico e desestabilizador.
C – Colaborar com o Tribunal e os Técnicos da Seg. Social para uma real entre-ajuda na procura do melhor futuro do CC, nomeadamente na sua educação e formação.
D – Para a decisão ad quo houve unanimidade do Tribunal, promoção do Ministério Público e suporte pleno no relatório técnico da Segurança Social.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação e quanto ao efeito a fixar ao recurso decidiu-se fixar o efeito meramente devolutivo, com os seguintes fundamentos: “[…]uma vez que não resulta demonstrado que a execução da decisão recorrida (despacho com a ref. 126221383, proferido a 1 de março de 2023) cause qualquer prejuízo à criança CC (tanto mais que a recorrente concordou com a aplicação da medida de promoção e proteção de apoio junto de pessoa idónea, p. e p. pelo art. 35.º, n.º 1, alínea c), da LPCJP (cfr. conferência de 13 de dezembro de 2023, ref. 124917056) – cfr. arts. 123.º, n.º 1 e 2, 124.º, n.º 1, 2 “a contrario”, 126.º, todos da LPCJP, e 644.º, n.º 2, alínea g), 645.º, n.º 2, 647.º, n.º 1, n.º 4, “a contrario”, estes do Cód. Processo Civil).”.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- preterição das diligências de instrução;
- nulidade do despacho, por carecer de fundamentação;
- da situação de perigo; e
- da alteração da medida, para apoio junto de familiar, a avó paterna e se a autorização para residir no estrangeiro com a família a quem a criança foi confiada, impede que a medida adotada possa produzir os seus efeitos, considerando o superior interesse da criança.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
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3. O direito
- Preterição de diligências de instrução -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 3 e 7, insurge-se a apelante contra o facto de não se ter valorizado elementos de prova - declarações técnicas - na tomada de decisão, para além de se omitirem diligências de instrução no sentido de apurar das condições em que a criança passou a residir com o casal no estrangeiro.
A questão que se coloca consiste em apurar se foram omitidas diligências de instrução que possam interferir com a apreciação do incidente de alteração da medida provisória aplicada à criança, cuja consequência é a nulidade do processado.
Não prevendo a Lei de Promoção de Crianças e Jovens em Perigo - Lei 147/99 de 01/09 (com as alterações introduzidas pela Lei 31/2003 de 22 de agosto e pela Lei 142/2015 de 08 de setembro, abreviadamente LPCJP) - um regime de nulidades de atos processuais na fase de debate judicial aplica-se subsidiariamente o regime do Código de Processo Civil, como decorre do art. 126º LPCJP.
As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“[4].
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como referia ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[5].
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão de um ato de instrução não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC, nem está prevista como tal na LPCJP.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art. 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art. 199º CPC.
A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa“.
No sentido de interpretar o conceito ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s actos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“[6].
Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art. 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que foi notificado o despacho que procedeu à revisão da medida.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art. 196º a 199º CPC.
Contudo, seguindo os ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE[7], ALBERTO DOS REIS[8] e ANTUNES VARELA[9], porque existe a decisão recorrida que sancionou a omissão, na medida em que decidiu sem se pronunciar sobre os meios de prova apresentados pelo apelante e sem proceder à audição de um dos menores, o conhecimento da nulidade pode-se fazer através deste meio de recurso. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir, será precisamente o recurso.
Considera-se, assim, que as alegadas irregularidades foram suscitada em tempo, pelo meio próprio, mas a omissão dos atos não interferiu na apreciação do mérito, não constituindo por isso irregularidade processual que justifique a anulação do processado.
O art. 4º LPCJP estabelece os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, destacando-se:
a) o interesse superior da criança;
e) proporcionalidade e atualidade;
g) primado da continuidade das relações psicológicas profundas, com o que se pretende que a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.
h) prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável.
O processo judicial de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo tem a natureza de processo de jurisdição voluntária, conforme decorre do disposto no art. 100º da LPCJP.
Desta forma, na instrução e promoção do processo devem observar-se as regras dos art. 986º, 987º, 988º do CPC.
No processo de jurisdição voluntária, como define o Professor ANTUNES VARELA, “há um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes), que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes”[10].
Daqui decorre, conforme resulta do art. 987º CPC, que o juiz não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo em cada caso adotar a solução que julgue mais conveniente e oportuna.
Este aspeto mostra-se de particular significado quando se trata de aplicar ou rever uma medida de promoção e proteção.
No caso presente o despacho recorrido veio rever a medida aplicada devido aos conflitos que surgiram com o cumprimento do regime de visitas e ainda, porque o casal, ou, família idónea, se propôs emigrar para França levando consigo a criança.
O despacho recorrido veio rever tal medida motivado pela alteração das circunstâncias, perante as informações prestadas pelo casal que a acolheu e a quem foi confiada a criança, que manifestaram o propósito de emigrar e levar a criança na sua companhia, pretendendo obter autorização do tribunal para esse efeito.
Atenta a natureza do processo o juiz promoveu as diligências de instrução que considerou relevantes para proferir decisão, contando-se entre tais diligências a solicitação de relatório social junto da Segurança Social e técnica que vem acompanhando a situação da criança. Tal procedimento está conforme com o regime previsto no art. 986º CPC, onde se prevê que só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias e a quem também cumpre coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes.
A opção do juiz no sentido de não efetuar as diligências de prova sugeridas pela apelante tem fundamento legal e por isso, não merece censura. Acresce que o relatório contém elementos fornecidos pelo casal sobre a situação laboral de BB, cujo contrato se iniciaria em 06 de março de 2023, casa de habitação e escolas que as crianças (duas filhas do casal e a criança em questão), passariam a frequentar.
Conclui-se que os procedimentos adotados não revelam qualquer irregularidade suscetível de interferir na boa decisão da causa.
Improcedem, nesta parte as conclusões de recurso.
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- Nulidade do despacho por falta de fundamentação -
Nas conclusões de recurso, sob o ponto 1, suscita o apelante a nulidade do despacho, por falta de fundamentação.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[11].
As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites “considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art. 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[12]. O regime aplica-se aos despachos, como se prevê no art.613º/3 CPC.
O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art. 615º CPC, advertia que: “ não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário ( … ) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”[13].
Argumenta a apelante que a decisão provisória carece de fundamento de facto e de direito.
Com efeito, nos termos do art. 615º/1 b) CPC, a sentença é nula, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A nulidade ocorre desde que se verifique a falta absoluta de fundamentação, que pode referir-se só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. A nulidade pressupõe que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão.
A irregularidade está diretamente relacionada com o dever imposto ao juiz de motivar as suas decisões, conforme resulta do disposto no art. 607º/3/4 CPC[14].
Na situação concreta, o despacho recorrido enuncia os factos relevantes por remissão para anterior decisão que fixou a medida de promoção e proteção e transcrição das conclusões de relatório social elaborado pela técnica da segurança social que acompanha o processo. Na decisão o juiz do tribunal “a quo “atendeu apenas a tal matéria, fundamentando a decisão nos elementos de prova que foram apresentados até aquele momento nos autos e que foram oportunamente notificados a todos intervenientes, com a possibilidade de exercerem o contraditório, como o fez a apelante. Os fundamentos de direito em que assentou a decisão são os mesmos em que se fundamentou a decisão a rever, quando se afirma: “[…] ao contrário da avó paterna, o casal constituído por AA e BB, proporciona ao CC um ambiente seguro e tranquilo, promotor de um são e equilibrado desenvolvimento, pelo que é este o projeto de vida mais adequado à criança”.
A anterior decisão resultou do acordo obtido em 13 de dezembro de 2022 (ref. Citius 124917056[15]).
A decisão proferida visa tutelar o superior interesse da criança (art. 4º/a) LPCJP), ao pretender garantir “a continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas” e “com integração familiar estável” da criança ( art. 4º/ g) e h) LPCJP).
Desta forma, o despacho não se mostra ferido de nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso.
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- Da situação de risco e alteração da medida -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 2 a 10, a apelante não questiona a situação de perigo e risco que justificou a aplicação de uma medida de promoção e proteção, mas tão só a adequação da medida à concreta situação configurada nos autos.
Está em causa apurar se a alteração da residência do casal, a quem a criança foi confiada, com deslocação da criança para França, põe em causa o superior interesse da criança, justificando a alteração para a medida de apoio junto de familiar, a avó paterna.
Adiantando a resposta, entendemos que não se justifica alterar a decisão, face aos elementos que constam do presente apenso e a análise do processo principal, cujo acompanhamento foi facultado pelo Juiz do tribunal “ a quo”.
Como decorre do art.º 36.º n.ºs 5 e 6 da Constituição da República Portuguesa, os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e não podem deles serem separados, salvo quando não cumpram os deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
O poder paternal, como efeito da filiação é, nos termos do art.º 1877.º e segs. do Código Civil, definido como um conjunto de poderes-deveres funcionalmente afetados à prossecução do bem-estar moral e material do filho e que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos menores não emancipados, na atual terminologia designado por “responsabilidade parental “.
O poder paternal não se trata de um puro direito subjetivo, visto que o seu exercício não está dependente da livre vontade do seu titular, sendo antes um poder funcional, um poder-dever[16].
O poder paternal, como observa ARMANDO LEANDRO[17] constitui “um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objetivo primacial de proteção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral “.
Constituindo nítido exemplo de direito pessoal familiar, o poder paternal não é, porém, um direito a que se ajuste a noção tradicional de direito subjetivo, trata-se antes, de um poder-dever, um poder funcional, nos termos do qual incumbe, a cada um dos pais, no interesse exclusivo do filho, guardar a sua pessoa, manter com ele relações pessoais, assegurar a sua educação, sustento, representação legal e administração dos seus bens - art.ºs 1878.º n.º 1, 1881.º e 1885.º, todos do C. Civil.
O menor não é, porém, apenas um sujeito protegido pelo direito, é ele próprio, titular de direitos reconhecidos juridicamente, designadamente o direito à proteção especial da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral - art.ºs 64.º n.º2, 67.º, 68.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa.
Como se observa no Ac. Rel. Porto 23 de Fevereiro de 2016, Proc. 249/15.1T8SJM.P1 (www.dgsi.pt):”[a] criança apresenta um conjunto de necessidades cuja satisfação é necessária ao seu bem-estar psicológico e cuja não realização compromete o seu desenvolvimento posterior e o seu ajustamento social. Entre essas necessidades avultam, os cuidados físicos e de proteção; afeto e aprovação, estimulação e ensino, disciplina e controlo consistente e apropriados, oportunidade e encorajamento da autonomização gradual. O conceito de necessidades e o imperativo da sua satisfação cria as condições para o reconhecimento do direito que assiste à criança de as ver realizadas. As necessidades da criança convertem-se, assim, em direitos subjetivos extensivos que constituem normas educativas relativamente às quais se afere a qualidade, competência e adequação dos pais.
Ora, a dignidade da pessoa do filho e o papel dos pais - que exercem poderes funcionais para desempenharem deveres no interesse do primeiro – impõem que o exercício das responsabilidades parentais seja colocado ao serviço do desenvolvimento, são e harmonioso, da personalidade da criança e do seu bem-estar moral e material.
E o reconhecimento dos direitos da criança exige o estabelecimento de um equilíbrio com os dos seus responsáveis legais, contudo, a vida, a saúde e a educação do filho, como atributos fundamentais da pessoa humana, colocam-se, na escala axiológica dos valores sociais, acima do poder jurídico dos pais sobre os filhos”.
Neste sentido, podem consultar-se, ainda Ac. Rel. Porto 24 de Março de 2015, Proc. 161/13.9TBOAZ.P1; Ac. Rel. Porto 12 de Outubro de 2015, Proc. 1923/14.5TMPRT.P1, Ac. Rel. Lisboa 02 de Julho de 2015, Proc. 1603/08.0TBTVD.L2-6 todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Podemos assim concluir que a tutela da família e da paternidade e maternidade sofrem uma importante limitação, em sede de direitos fundamentais, quando está em causa a proteção da criança – art. 67º, 68º, 69º CRP.
A Constituição prevê no art. 69º CRP:
1. As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra toda as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
2. O Estado assegura especial proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.
3.[…]”
O processo de promoção e proteção de crianças e jovens visa a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral – art. 1º da Lei 147/99 de 01/09.
A intervenção justifica-se, conforme resulta do disposto no art. 3º/1, da citada lei:
“ … quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo“.
A lei de igual forma, define em que circunstâncias se deve considerar que as crianças ou jovens estão em situação de perigo – art 3º/2.
Na previsão da norma enquadram-se, entre outras, as seguintes situações:
“a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
( …)
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
(…)
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
( … ) “
O Estado está autorizado a intervir quando se verifique uma situação de risco que ponha em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou jovem[18].
O perigo, a que se reporta o preceito, traduz a existência de uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação da efetiva lesão da segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento[19].
A intervenção do Estado, neste domínio, pauta-se por um conjunto de princípios orientadores, que vêm enunciados no art.4º da citada lei e que funcionam como critérios a atender na promoção do processo e na determinação da medida a aplicar e que são:
- o interesse superior da criança e do jovem;
- a privacidade;
- a intervenção precoce;
- a intervenção mínima;
- a proporcionalidade e atualidade;
- a responsabilidade parental;
- a prevalência da família;
- a obrigatoriedade da informação;
- a audição obrigatória e participação;
- interdisciplinaridade[20];
- a subsidiariedade;
- continuidade das relações psicológicas profundas.
Assim, desde logo, a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto. Nisso se traduz o princípio do interesse superior da criança e do jovem ( art. 4º a) da citada lei ).
A intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida, como manifestação do princípio da intervenção precoce ( art. 4º/ c) do mesmo diploma ).
Por outro lado, conforme resulta do princípio da responsabilidade parental, a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem ( art. 4º f) ).
A intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida em que for estritamente necessário a essa finalidade, como decorre dos princípios da proporcionalidade e atualidade ( art. 4º e) ).
A intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante ( art. 4º/g)).
Na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração estável ( art. 4º/h)).
No caso presente a criança encontrava-se numa situação de perigo que justificou e determinou a intervenção do Estado, no sentido de a proteger por forma a garantir, a sua saúde, o seu bem-estar e desenvolvimento integral.
A criança nasceu em .../.../2019 e foi confiada a uma instituição, sendo posteriormente aplicada a medida de acolhimento residencial ( cfr. ata de 01 de agosto de 2019), porque os seus progenitores não revelaram ter condições para lhe prestar os cuidados básicos de subsistência, aceitando a aplicação da medida de acolhimento residencial – cfr. ata e decisão proferidas em 01 de agosto de 2019.
A alteração da medida em 02 de dezembro de 2021 (sentença proferida em 02 de dezembro de 2021), com a aplicação da medida de apoio junto de familiar, ficando a criança confiada à avó paterna, veio a revelar-se inadequada o que determinou nova alteração, em 21 de dezembro de 2022, com a confiança da criança a pessoa idónea.
Não resulta dos factos provados elementos que permitam concluir que a situação de perigo que determinou a aplicação da medida de promoção e proteção cessou e que os progenitores estão em condições de acolher a criança no agregado familiar assumindo as responsabilidades parentais. Desde o primeiro momento, os progenitores mantêm-se ausentes de todo o processo, não respondendo às convocatórias, aos contatos telefónicos, desconhecendo-se o seu efetivo paradeiro, sendo de salientar a relação de conflito com a avó paterna e com quebra de contactos entre o progenitor e a avó paterna. Acresce que cerca de um ano depois do nascimento da criança CC, em agosto de 2020, a progenitora deu à luz nova criança desta vez do sexo feminino, também filha de EE, o progenitor do CC. Esta nova criança também foi institucionalizada logo após o seu nascimento, correndo processo próprio e autónomo de promoção e proteção. Todos estas factos evidenciam uma situação de abandono por parte dos progenitores.
A situação de perigo para a criança é séria, grave e atual, o que justificou e justifica a intervenção do tribunal no sentido de promover a adoção de medidas de promoção dos direitos e de proteção da criança.
O facto da família que acolheu a criança pretender emigrar e passar a residir em França, não justifica que a criança permaneça em Portugal e confiada aos cuidados da avó paterna, como pretende a apelante.
A apelante insurge-se contra a concreta medida aplicada, por entender que seria de aplicar a medida de apoio junto de outro familiar.
O processo judicial de promoção e proteção, como já se deixou dito, reveste a natureza de um processo de jurisdição voluntária. Rege-se, assim, pelas normas dos art. 986º a 988º CPC.
Constituindo um processo de jurisdição voluntária, as resoluções – decisões – podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração – art. 988º/1 CPC.
A lei considera supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso – art. 988º/1 CPC.
Nos termos do art. 62º da LPCJP prevê-se o regime de revisão da medida, nos seguintes termos:
“1. Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 37.º, as medidas aplicadas são obrigatoriamente revistas findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses, inclusive as medidas de acolhimento residencial e enquanto a criança aí permaneça.
2 — A revisão da medida pode ter lugar antes de decorrido o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, oficiosamente ou a pedido das pessoas referidas nos artigos 9.º e 10.º, desde que ocorram factos que a justifiquem.
3 — A decisão de revisão determina a verificação das condições de execução da medida e pode determinar, ainda:
a) A cessação da medida;
b) A substituição da medida por outra mais adequada;[…]”.
Decorre do disposto no art. 34º da Lei 147/99 de 01/09 que as medidas de promoção e proteção visam:
“ a ) Afastar o perigo em que [crianças ou jovens] se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso“.
Na escolha da medida, o tribunal, em obediência ao princípio da proporcionalidade e atualidade deve considerar a intervenção adequada e necessária à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.
De igual forma, a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem (art. 4º / f) da lei citada).
Na escolha da medida adequada cumpre ponderar o princípio da prevalência da família, no sentido de na promoção de direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência ás medidas que os integram na sua família ou que promovam a sua adoção, ou outra forma de integração estável (art. 4ºh) da lei citada).
A lei prevê no art. 35º, de forma taxativa, as medidas de promoção e proteção.
As medidas são classificadas em dois tipos, segundo uma ordem de preferência:
- medidas a executar em meio natural de vida – art. 35º a), b), c), d); e
- medidas de colocação – art. 35º e), f), g).
A execução das medidas em meio natural de vida regem-se pelo regime previsto no DL 12/2008 de 17/01, que não foi derrogado com as alterações introduzidas pela Lei 142/2015 de 08 de setembro[21].
A opção pela medida de acolhimento junto de outro familiar, como sugere a apelante, não se mostra exequível considerando a finalidade que se visa alcançar com a aplicação de tal medida.
A medida de promoção e proteção “apoio junto de outro familiar“ prevista no art. 35º/1 b) e 40º da Lei 147/99 de 01/09 consiste na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de um familiar com quem resida ou a quem seja entregue, acompanhada de apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica.
A execução da medida está subordinada ao regime previsto na Lei 12/2008 de 17/01.
No preâmbulo da citada lei a respeito da execução da medida refere-se: “[a]s medidas de apoio junto de outro familiar e de confiança a pessoa idónea são orientadas para a aquisição, por parte da criança ou do jovem, no grau correspondente à sua idade, de competências emocionais, educativas e sociais, que a capacitem para prosseguir em condições de segurança o seu percurso, de preferência junto dos pais ou em autonomia de vida“.
Nos termos do art. 3º da Lei 12/2008 de 17/01, a medida que se insere no âmbito das medidas a executar em meio natural de vida, visa:
“ … manter a criança ou o jovem no seu meio natural, proporcionando condições adequadas ao seu desenvolvimento integral, através de apoio psicopedagógico e social e, quando necessário, de apoio económico. “
Para efeitos de aplicação da lei considera-se “familiar acolhedor”:
“a pessoa da família da criança ou do jovem com quem estes residam ou à qual sejam entregues para efeitos de execução da medida de apoio junto de outro familiar “( art. 4º/b) ).
No art. 16º do mesmo diploma estabelece-se os objetivos a alcançar com a aplicação da medida, nos seguintes termos:
“1.A execução da medida[…]deve ter em conta a situação de perigo que determinou a sua aplicação e o nível das competências parentais ou da capacidade protetora do outro familiar ou da pessoa idónea, reveladas quando da aplicação da medida, consoante os casos.
2.[…]
3.A execução da medida de apoio junto de outro familiar e de confiança a pessoa idónea deve ser orientada no sentido do acompanhamento afetivo, responsável e securizante da criança ou do jovem, para aquisição, no grau correspondente à sua idade, das competências afetivas, físicas, psicológicas, educacionais e sociais que lhe permitam, cessada a medida, prosseguir em condições adequadas o seu desenvolvimento integral, de preferência junto dos pais ou em autonomia de vida.
[…]”
No sentido de alcançar esses objetivos a lei prevê, no nº 5 do art. 16º que devem ser considerados na elaboração e execução do plano de intervenção, entre outros, os seguintes elementos relativos ao familiar acolhedor:
“a) Capacidade para remover qualquer situação de perigo;
b) Ausência de comportamentos que afetem a segurança ou o equilíbrio emocional da criança ou do jovem;
c) Disponibilidade para colaborar nas ações constantes do plano de intervenção;
d) Relação de afetividade recíproca entre a criança ou o jovem e o familiar acolhedor ou a pessoa idónea, consoante o caso;
e) Proximidade geográfica com os pais da criança ou do jovem;
f) Idade superior a 18 e inferior a 65 anos, à data em que a criança ou o jovem lhe for confiado, salvo o disposto no nº 6;
g) A não condenação, por sentença transitada em julgado, por crimes contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual“.
A lei enuncia, ainda, um conjunto de direitos e obrigações da criança, dos pais e do familiar acolhedor, bem como obrigações específicas – art. 22º a 29º.
Nos direitos da criança prevê-se no nº 2 do art. 22º:
“Quando se trate de medida de apoio junto de outro familiar ou de confiança a pessoa idónea a criança ou jovem tem ainda direito a:
a) Permanecer junto do familiar acolhedor ou da pessoa idónea pelo tempo estritamente necessário a que os pais disponham das condições para assumir a sua função parental;
b) Ser acolhido juntamente com os seus irmãos, sempre que a conciliação do superior interesse das crianças envolvidas o aconselhe;
c) Manter regularmente e em condições de privacidade contactos pessoais com os pais e com as pessoas com quem tenham especial relação afetiva, sem prejuízo das limitações decorrentes do estabelecido em acordo de promoção e proteção ou em decisão judicial“.
Destacam-se nas obrigações específicas dos pais (art. 28º):
a) Colaborar com o familiar acolhedor ou a pessoa idónea e com a entidade que assegura os atos materiais de execução da medida, no processo de desenvolvimento da criança ou do jovem, sempre que possível e se afigure benéfico;
b) Aceitar acompanhamento técnico conforme previsto no acordo de promoção e proteção ou decisão judicial, com vista à reintegração familiar da criança ou jovem;
c) Participar em programa de educação parental quando o superior interesse da criança o justifique salvo se for apresentado pedido de escusa com motivos atendíveis;
d) Comparticipar nos encargos com a manutenção da criança ou do jovem de acordo com as normas sobre comparticipações familiares para a utilização de equipamentos e serviços de ação social. “
Quanto ao familiar acolhedor a lei prevê no art. 29º as seguintes obrigações especificas:
“1. O familiar acolhedor ou a pessoa idónea fica obrigado ao cumprimento dos deveres e orientações fixadas no acordo de promoção e proteção ou em decisão judicial.
2. Constituem, ainda, obrigações do familiar acolhedor ou da pessoa idónea:
a) Assegurar condições para o fortalecimento das relações da criança e jovem com os seus pais, salvo decisão judicial em contrário;
b) Comunicar aos pais a eventual alteração de residência e o período e local de férias, salvo se o tribunal ou a Comissão de proteção no respeito pelas normas e princípios da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em perigo o julgar inconveniente;
c) Dar conhecimento aos pais de factos supervenientes que possam alterar as condições do acolhimento“.
Na execução da medida a lei salienta a necessidade de ouvir a criança ou jovem, fazendo-o intervir de forma ativa na promoção da medida, desde que disponha de capacidade para entender o alcance da decisão – art. 17º, 22º, 23º.
No caso presente, ponderando os factos apurados, conclui-se que não estão reunidos os pressupostos para decretar e executar a medida de acolhimento junto de familiar, no caso a apelante, avó paterna, porque tal medida, que foi oportunamente aplicada, se veio a revelar inadequada, para garantir o superior interesse da criança, apesar dos apoios concedidos à avó paterna.
A avó paterna ainda que com o devido apoio social e apesar de todo o esforço, não revelou capacidade para, sozinha, assumir numa vivência quotidiana as responsabilidades parentais e acautelar os interesses da criança, manifestando insegurança no que concerne à gestão dessas obrigações e revelando problemas de saúde que comprometiam a segurança da criança e o seu normal desenvolvimento (cfr. relatório da segurança social de 13 de julho de 2022).
Tal como aquela, a medida aplicada de confiança a pessoa idónea, enquadra-se na categoria das medidas a executar em meio natural de vida.
A criança foi confiada a pessoa idónea por decisão de 13 de dezembro de 2022, com o acordo da avó paterna que tinha a guarda da criança.
Os elementos que constam dos autos dão conta de uma perfeita integração da criança, no seio desta nova família. Surgiram, tão só, problemas na concretização do regime de visitas, que sofreu ajustamentos.
A opção do casal emigrar para França e transferir-se com toda a família e levar a criança foi previamente comunicada ao tribunal.
Realizadas diligências no sentido de apurar do impacto de tal alteração na vida da criança, verificou-se apenas que o CC se encontra bem integrado na dinâmica familiar do casal e restantes elementos do agregado, sendo, de facto, entendido como um elemento da família quer pelos adultos, quer pelas crianças, bem integrada nos diferentes contextos, não revelando instabilidade emocional, apresentando-se como uma criança feliz e bem-disposta.
A técnica da Segurança Social que acompanha o processo deu parecer no sentido: “que o melhor para o bem-estar e desenvolvimento equilibrado é manter-se aos cuidados desta família” - relatório da Segurança Social 16 de fevereiro de 2023 (ref. 14168836).
Neste contexto, manter a medida aplicada e autorizar que a criança acompanhe o casal para França, não se revela prejudicial para o bem estar e integral desenvolvimento, mas pelo contrário releva-se atual, proporcional e adequada, permitindo deste modo a aquisição, por parte da criança, no grau correspondente à sua idade, de competências emocionais, educativas e sociais, que a capacitem para prosseguir em condições de segurança o seu percurso, em autonomia de vida (junto dos pais será algo impensável no imediato, perante a ausência dos progenitores).
Desde logo a situação de risco subsiste, porque os progenitores e a avó paterna não têm condições para acolher a criança.
A família que acolheu a criança demonstra estar consciente das obrigações que assumiu ao acolher a criança, de tal forma que não a excluiu deste novo projeto de vida.
Os contactos com a avó paterna estão garantidos e previstos, na decisão de que se recorre. O regime de visitas regulares devido à distância física entre os dois países, fica comprometido. Contudo, não se pode ignorar que mesmo cá em Portugal, o regime não estava a ser cumprido devido aos conflitos suscitados, que determinaram a sua suspensão.
Neste ponto exige-se um esforço das partes (avó e casal a quem a criança foi confiada) com acompanhamento técnico pela Segurança Social, para ultrapassar a situação de conflito, no superior interesse da criança
Note-se que é de primordial importância garantir que a criança cresça e se desenvolva num agregado familiar que garanta estabilidade e o são desenvolvimento físico, social, intelectual e afetivo.
Acresce que o país para onde se deslocou pertence à União Europeia e está dotado de um rede de apoio social sólida e de estruturas de ensino público (factos do conhecimento comum), que poderão contribuir para melhorar a educação e as aptidões intelectuais da criança.
Refira-se, por fim, que a apelante apesar de salientar nas conclusões de recurso que a medida adotada vai colocar em perigo o desenvolvimento e segurança da criança, não enuncia factos que permitam obter tal conclusão, refugiando-se em meras conclusões e conceitos jurídicos, sem qualquer aplicação à concreta situação dos autos e a esta criança.
Tudo ponderado é de concluir que a decisão que manteve a medida de confiança a pessoa idónea e autorizou a deslocação da criança CC para França, integrado na família onde se encontrava não merece censura.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 2, 4 a 6 e 8 a 10.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão.
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Custas a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Porto, 12 de julho de 2023
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Teresa Fonseca
Fátima Andrade
_________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Promoção ata 06 de fevereiro de 2023: “Após, concedida a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi dito “tendo em conta a medida recentemente aplicada por acordo e bem assim o parecer da Segurança Social, no que diz respeito ao superior interesse do CC, posição com a qual concordamos. De facto, resultam nos autos elementos que indiciam os comportamentos da avó denunciados pelo casal idóneo, concretamente tentativas de contacto e mensagens. Importa também ter em conta o tom em que as mesmas são dirigidas, demostrando autoridade e posse relativamente ao neto.
Mantém-se a situação que determinou a abertura do presente processo de promoção e proteção, bem como todas as condições físicas e psicológicas da avó, resultando apenas uma situação extraordinária que diz respeito à perspetiva de o casal idóneo emigrar.
Assim, por considerarmos que o que melhor salvaguarda o superior interesse do CC, é a sua manutenção no agregado familiar do casal idóneo, tendo também em conta a proximidade da data em que os mesmo pretende viajar, assim como o acordo que se encontra vigente, promovo a manutenção da medida alcançada por acordo, autorizando-se o CC a viajar e integrar o agregado familiar tal como vem fazendo até agora. Os convívios poderão ser realizados através da videochamada em dias alternados, devendo ainda o casal idóneo providenciar pelas visitas pessoais, quando se encontrarem em território nacional, devendo para o efeito avisar a avó”.
[3] A resposta ao recurso consta do processo principal com data de entrada em 04 de abril de 2023 ( ref. Citius 14399786) e não foi integrada no presente apenso e acedeu-se à mesma através do acompanhamento do processo.
[4] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 156
[5] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 357
[6] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, ob. cit., pag. 486
[7] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil , ob. cit., pág. 183
[8] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V , ob. cit., pag.424
[9] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora Limitada, Coimbra, 1985, pág. 393
[10] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil , ob. cit., pag. 69
[11] OÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pag. 297.
[12] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pag. 308.
[13] ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 686.
[14] JOSÉ LEBRE DE FREITAS E A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, vol II, 2ª edição, pag. 675 e ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pag. 141.
[15] Pela avó do menor, DD, após a sua identificação, disse concordar com a alteração da medida proposta, designadamente aceita confiar o neto ao casal idóneo AA e BB.
As declarações prestadas pela avó do menor DD, encontram-se gravadas em suporte digital em uso neste Tribunal, de tempos 00:00:01 a 00:30:50.
Seguidamente, a Digna Magistrada do Ministério Público promoveu fosse declarada encerrada a instrução, celebrando-se acordo para aplicação ao menor da medida de Apoio junto de pessoa idónea (art.º 35º, n.º 1, al. c), da L.P.C.J.P), o que foi aceite pelas partes, acordando nos seguintes termos:
Acordo a que alude o art.º 113.º da Lei de Promoção e Proteção
Medida a aplicar:
Apoio junto de pessoa idónea - designadamente AA e BB art.º 35.º, n.º 1, al. c), da Lei de Promoção e Proteção, com as seguintes condições:
1- A criança CC manter-se-á à guarda e cuidados de AA e BB, que zelarão pelo seu bem-estar.
2- AA e BB comprometem-se a educar a criança, assegurando todos os cuidados necessários, nomeadamente de higiene, saúde e segurança, mantendo igualmente o espaço habitacional com condições adequadas de higiene, organização e segurança.
3 - O CC passará um fim de semana de 15 em 15 dias com a avó, no período compreendido entre das 19:00 horas de sexta feira e as 19:00 horas de domingo, sendo a responsabilidade do transporte do casal idóneo.
4 - Na semana em que a avó paterna não tenha a criança ao fim de semana, esta poderá passar com ela um dia da semana das 19:00 às 09:00 horas do dia seguinte.
5 - A avó paterna poderá visitar a criança sempre que assim entender, devendo previamente avisar o casal idóneo.
6- Aceitam a intervenção da técnica da Segurança Social.
Duração da medida:
- Um ano.
Relatórios da Segurança Social:
- Um relatório ao fim de três meses.
*
Após, concedida a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi dito promover a aplicação ao menor da medida de apoio junto de pessoa idónea - nomeadamente junto de AA e BB - art.º 35º, n.º 1, al. c), da LPCJP, declarando-se encerrada a instrução e homologando-se o acordo alcançado.
*
Logo, pelo Mm. º Juiz foi proferida a seguinte:
= SENTENÇA=
"Declara-se encerrada a instrução, homologando-se o acordo supra, relativamente ao menor CC, aplicando a medida prevista no art.º 35º, nº 1, al. c), da Lei de Promoção e Proteção, a vigorar pelo período de um ano.
A execução da medida cabe à Segurança Social, e determino o acompanhamento pela Técnica da Segurança Social Gestora do processo, com a elaboração de um relatório ao fim de três meses e a final.
Decisão sobre custas será proferida a final.
Registe e notifique.”
*
A sentença acabada de proferir foi notificada a todos os presentes, que disseram ficar bem cientes, tendo a diligência sido declarada encerrada quando eram 12:20 horas”.
[16] Cfr. ARMANDO LEANDRO in “Poder Paternal”, Temas de Direito da Família, pág.119
[17] Cfr. ARMANDO LEANDRO in “Poder Paternal”, Temas de Direito da Família, pág.119
[18] PAULO GUERRA Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – Anotada, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 23.
[19] TOMÉ D`ALMEIDA RAMIÃO Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – Anotada e Comentada, 6º edição, Quid Juris, Lisboa 2016, pag. 28
[20] PAULO GUERRA, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – Anotada, 1ª edição, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 27
[21] PAULO GUERRA Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – Anotada, ob. cit., pag. 86