Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
209/21.3T8ESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: JOGOS DE FORTUNA E AZAR
GRATIFICAÇÕES DOS FUNCIONÁRIOS
JOGOS TRADICIONAIS
Nº do Documento: RP20231010209/21.3T8ESP.P1
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os diplomas que regulamentam a distribuição das gratificações entregues pelos utilizadores das diversas salas de jogos dos casinos apenas aludem, de forma expressa, às salas de jogos tradicionais, às salas privativas de máquinas e às salas de bingo, ignorando a existência de salas mistas, porque a lei apenas contemplou este tipo de salas após a sua aprovação.
III – A referência às salas de jogos tradicionais e às salas privativas de máquinas tem subjacente a modalidade dos jogos que geram aquelas gratificações, e não o local ou sala física onde decorre cada um desses jogos.
III – Assim, a distribuição das gratificações deve realizar-se entre os empregados adstritos aos jogos tradicionais ou aos jogos de máquinas, qualquer que seja a sala em que estes são explorados, e não por salas de exploração.
IV – A concatenação das normas que regulam a distribuição das gratificações – assentes na categorização dos jogos de fortuna e azar como jogos tradicionais, de máquinas ou de bingo – com as normas que definem as regras de execução dos jogos de fortuna e azar – assentes na sua categorização como jogos bancados, jogos não bancados (aqui se incluindo o jogo de bingo) ou jogos de máquinas – revela que na categoria de jogos tradicionais cabem os jogos bancados e não bancados, com excepção do bingo, havendo uma natural correspondência entre o conceito de “jogos de máquinas” utilizado nos dois regimes normativos, o mesmo sucedendo com o conceito de “jogo de bingo” utilizado no artigo 4.º, n.º 1, al. e), da Lei do Jogo, no Decreto-Lei n.º 31/2011, de 4 de Março, e na Portaria n.º 128/2011, de 1 de Abril).
V – Deste modo, o poker não bancado configura um jogo tradicional, por contraste com os jogos de máquinas e o jogo de bingo, pelo que os trabalhadores que exercem funções naquele sector têm direito às gratificações dadas pelos frequentadores da sala de jogos tradicionais, desde que detenham alguma das categorias profissionais discriminadas na parte II da Portaria 1159/90.
VI – Todavia, se terceira pessoa, nomeadamente a entidade patronal do funcionário, lhes pagar uma remuneração superior à dos outros profissionais que exercem funções no mesmo sector para os compensar pelo não recebimento das referidas gratificações, presume-se o animus solvendi desta obrigação, pelo que a mesma se considera extinta pelo cumprimento por terceiro, nos termos do disposto no artigo 767.º, n.º 1, do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 209/21.3T8ESP.P1



Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
Comissão de Distribuição de Gratificações da sala de jogos tradicionais do Casino de ..., com sede na Rua ..., ... ..., intentou a presente acção comum contra AA, com domicílio na Avenida ..., ... ....
Alegou, em síntese, que embora o réu tenha a categoria profissional de fiscal-chefe e tenha exercido funções na sala de jogos tradicionais do Casino de ... (doravante SJTC...) em 2018, desde então não presta trabalho/serviço nessa sala, não exercendo funções de fiscal-chefe na mesma, pelo não tem direito à perceção de gratificações dessa sala. Mais alegou que, no mês de Agosto de 2020, ao proceder ao cálculo e distribuição das gratificações relativas ao mês de Julho, por manifesto lapso, incluiu-o na distribuição destas e transferiu-lhe a quantia de 248,53€, tendo posteriormente solicitado a devolução dessa quantia, o que o réu se recusou a fazer.
Concluiu pedindo a condenação do réu a devolver-lhe a quantia de 248,53€.
*
O réu contestou alegando, em síntese, o seguinte: em Janeiro de 2018 passou a exercer funções exclusivamente na SJTC..., com a categoria e funções de fiscal-chefe, pelo que, a partir desse momento, foram também por ele distribuídas as gratificações provenientes daquela sala; a partir de Setembro de 2018, por determinação da entidade empregadora, réu passou a ser responsável e a dedicar maior parte do seu tempo à organização, chefia e controlo do jogo de “poker não bancado” e “poker não bancado em modo torneio”; neste cenário, a autora entendeu que o réu não era mais beneficiário de gratificações provenientes da SJTC..., tendo deixado de lhas pagar; o poker não bancado apenas pode ser explorado nas salas de jogos tradicionais dos casinos, sendo os beneficiários das gratificações da SJTC... que operam diariamente esse jogo e recolhem diariamente as gratificações nele recebidas; conclui-se, assim, que o réu labora de forma exclusiva na SJTC..., pelo que nada tem a devolver à autora.
Para além de contestar, o réu deduziu reconvenção, reiterando que é beneficiário das gratificações provenientes da SJTC..., por exercer as funções de fiscal-chefe exclusivamente nessa sala, não as recebendo desde Setembro de 2018, pelo que a autora lhe deve o valor das gratificações que deveria ter recebido desde aquela data, descontado o valor já pago de 248,53€, num total de 20.668,03€, acrescido de juros de mora, ascendendo os já vencidos a 1.480,47€.
Concluiu pugnando pela improcedência da acção e pedindo a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de 22.148,50€, correspondente às gratificações referentes aos meses de setembro a dezembro de 2018, janeiro a dezembro de 2019 e demais meses em que sejam apuradas, bem como aos juros de mora vencidos desde os respetivos meses a que disserem respeito até efetivo e integral pagamento.
*
A autora replicou, alegando que o réu não tem direito às gratificações, visto que o poker não bancado não integra a categoria dos jogos tradicionais. Mais alegou que embora haja, de facto, outros profissionais da sala de jogos tradicionais a prestarem trabalho nos torneios de poker, recebendo gratificações da sala de jogos tradicionais, os mesmos são profissionais que, trabalhando em exclusivo na sala de jogos tradicionais, cumprem escala nos torneios de poker, alternadamente entre si, ao passo que o réu não trabalha em tal sala e, por vezes, nem no Casino de ..., exercendo toda a sua actividade, única e exclusivamente, nos torneios de poker, por vezes em torneios no Casino de .... Alegou, ainda, que o réu e outros profissionais que se encontram na mesma situação, pelo facto de não terem direito às gratificações, são compensados pela concessionária, auferindo remunerações superiores às dos profissionais da sala de jogos tradicionais.
Concluiu pugnando pela total improcedência da reconvenção.
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BB, residente na Travessa ..., ..., ... ..., ..., veio requerer a sua intervenção como assistente, ao abrigo do disposto nos artigos 326.º e seguintes do CPC, alegando que é funcionário no Casino de ..., com a categoria profissional de Adjunto de chefe de sala de jogos tradicionais, presta as mesmas funções que o réu desde Agosto de 2020, estando responsável pela gestão e organização do jogo de “poker não bancado” e “poker não bancado em modo torneio”, e também não aufere gratificações.
Depois de ouvida a autora, o requerente foi admitido a intervir como assistente enquanto auxiliar do réu.
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Admitida a reconvenção e saneado o processo, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide o Tribunal:
1. Julgar a presente ação totalmente improcedente, absolvendo o R do pedido formulado.
2. Julgar o pedido reconvencional totalmente procedente, condenando a A no pedido formulado.
Custas da ação e reconvenção pela A.
Registe e notifique.»
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Inconformada, a autora apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«I. Em sucintas palavras, e, de algum modo, antevendo a conclusão última a que, inelutavelmente, seremos forçados a chegar, deverá ser revogada a decisão judicial ora posta em crise, devendo ser substituída por uma outra que julgue o pedido na acção de processo comum, totalmente, procedente, por provado, e, em consequência, julgue, outrossim, a reconvenção improcedente por não provada.
II. Mal andou o tribunal a quo ao: - Julgar a presente acção improcedente, absolvendo o R. do pedido formulado; e - Julgar o pedido reconvencional totalmente procedente, condenando na A. no pedido formulado, com manifesto erro na apreciação da prova, incluindo a gravada, recorrendo a uma construção jurídica “(…) que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (…)!
III. A lei (Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na sua versão actual e, ao deante, por economia, Lei do Jogo) estabelece o que são jogos de fortuna ou azar, e insere os jogos não bancados, não nos jogos carteados, mas sim na alínea do jogo de Bingo – cf. o artigo 4º, n.º 1, alínea e)
IV. A Portaria n.º 217/2007, de 26/2, apenas e tão-somente, “Aprova as regras de execução dos jogos de fortuna ou azar” e prevê, no seu preambulo, que “O n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, atribui competência ao membro do Governo da tutela para autorizar a exploração e novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e mediante parecer da Inspecção-Geral de Jogos.” - Veja-se “[o artigo] 1.º Autorizar a exploração nos casinos do jogo de fortuna ou azar póquer não bancado, nas variantes «omaha» e «hold'em».” –
V. Isto é, não introduz qualquer novo jogo no catálogo dos jogos a explorar nas salas de jogos tradicionais, mas sim autoriza e estabelece regras para que as concessionárias a passem a explorar os jogos não bancados (vide o preâmbulo da Portaria n.º 401/2015, de 9/11).
VI. Os jogos não bancados não foram adicionados à lei do jogo no mesmo Título pré-existente para os jogos carteados. Os jogos não bancados em questão foram adicionados à lei do jogo criando-se para o efeito novo um título, o Título II, com epígrafe “Jogos não bancados”, com Capítulo Único, mantendo estes jogos fora do Título I, Jogos Bancados, Capítulo III, Jogos Carteados.
VII. Presume-se que o legislador legislou bem e exprimiu adequadamente a sua intenção.
VIII. E esta opção do legislador tem razão de ser, na medida em que o poker não bancado não é um jogo de fortuna ou azar, equiparável aos ditos jogos tradicionais, pelos seguintes motivos: O poker não bancado é jogado entre jogadores e não contra a concessionária; O prémio para o vencedor, de entre os jogadores inscritos, é previamente estabelecido; e A concessionária não corre qualquer risco de perda no jogo, uma vez que os jogadores apostam entre si e não contra a concessionária como nos jogos ditos tradicionais de casino, nos quais a concessionária é, também, apostadora.
IX. Também por estas razões o poker não bancado está classificado mundialmente como um jogo de destreza intelectual (jogo da mente) e não como um jogo de fortuna ou azar. Tendo o jogo sido já incluído nos jogos “World Mind Sports Games in London in 2012” – vide em https://www.cardplayer.com/poker-news/8988-poker-recognised-as-mind-sport.
X. Ao contrário dos jogos de fortuna ou azar ditos tradicionais, em que os apostadores ganham de vez em quando, quando ganham, porque estão sempre verdadeiramente dependentes da sorte.
XI. No jogo de poker não bancado, em ambas as modalidades, alguns dos jogadores são tidos como “masters”, pois ganham a grande maioria das vezes, existindo até classificações dos jogadores, que são verdadeiros rankings internacionais, pois, sendo jogo que não depende exclusivamente da sorte, jogadores há mais habilidosos que outros e que ganham frequentemente aos demais em jogos ou torneios, o que nunca acontece nos jogos bancados e ditos tradicionais de casino.
XII. Mal andou o tribunal a quo ao partir do princípio de que o poker não bancado (em ambas as modalidades) é um jogo que integra os jogos tradicionais de casino, considerando assim que o réu/reconvinte/recorrido presta trabalho na sala de jogos tradicionais do casino de ..., de modo efectivo.
XIII. Decisão que deve ser revogada e substituída por uma outra que declare que o jogo de poker não bancado (em ambas as modalidades) não é um jogo de fortuna ou azar que integre o catálogo dos ditos jogos tradicionais de casino.
XIV. O tribunal a quo não pode fundamentar a sua livre apreciação da prova, princípio que não se discute, valorando o Parecer do SRIJ, e não dando acolhimento à invocação dos réus, quando alegaram “o teor do art.º 3º da Portaria n.º 1159/90, de 27.11 (…)”.
XV. Se os tribunais estão adstritos à lei têm, forçosamente, de atender ao referido preceituado do artigo 3º da Portaria n.º 1159/90, de 27 de Novembro, que determina que só Sua Exa. o Senhor Ministério do sector pode esclarecer as dúvidas de interpretação das regras anexas à sobredita Portaria.
XVI. De seguida, o tribunal a quo conclui que “a transferência do valor peticionado na acção não se deve propriamente a lapso na inserção do aqui R. na lista das pessoas beneficiarias de gratificações”, sem que tal se retire de documento algum, nem, tampouco, de algum dos depoimentos prestados em sede de julgamento!!!
XVII. Em momento algum a testemunha CC admitiu que o réu, depois de destacado para o poker não bancado, continuou a exercer na sala de jogos tradicionais.
XVIII. A testemunha CC referiu que o poker não bancado é explorado numa zona restrita e numa sala distinta de todos os outros jogos, o que não contraria nenhum outro depoimento, e o tribunal a quo pôde constatar ser verdadeiro, aquando da inspecção judicial.
XIX. O local onde é explorado o poker não bancado, bem como, o poker em modo torneio, fica, totalmente, separado dos restantes jogos da sala mista, por divisórias amovíveis, é certo, mas divisórias.
XX. Ora, o que a testemunha CC disse é que “sala mista é a sala onde se pratica o jogo tradicional com o das máquinas, mas cada um tem o seu quadro independente”, e perguntado se conhece outro casino onde o poker não bancado faça parte dos jogos tradicionais? Respondeu: “que saiba só mesmo a A...”. (aos 40.50 minutos); e se quando havia um problema na sala de jogos tradicionais, se chamava pelo réu (alegado chefe do jogo tradicional)? Respondeu: “Não.” (aos 42.00 minutos); e se o jogo não bancado também está na sala mista como os outros jogos, disse: “Não. Está separado. Nota-se que está separado.” (vide gravação do depoimento de CC aos 41.00 minutos)
XXI. Entendeu ainda o Tribunal a quo não valorar o depoimento de DD, concluindo o tribunal a quo que tal apenas denota circunscrição de tarefas e não que o jogo de poker não bancado não é jogado no mesmo espaço e que tal também não significa que o pessoal do quadro do jogo tradicional não exerça funções no poker não bancado!
XXII. A testemunha DD foi clara ao afirmar quais as funções de um fiscal-chefe na sala de jogos tradicionais: “(…) zelam pelo bom funcionamento da sala, certificam-se que as bancas [imperceptível] todas as leis e requisitos do jogo, (…)” (aos 02.00 minutos), e perguntado: se houver um problema no jogo não bancado? Respondeu “Não.” (aos 02.30 minutos).
XXIII. Uma vez mais, o tribunal a quo, aparentemente, valorando o depoimento, não atendeu ao que a testemunha diz, mas antes retira ilações sobre o que a testemunha não disse!
XXIV. A testemunha EE que não hesitou em classificar o poker como jogo tradicional, apenas levou ao tribunal a quo a visão do SRIJ, olvidando, in totum, o preceituado no artigo 3º, da Portaria n.º 1159/90, bem como, todas as contra-ordenações julgadas pelos tribunais, nas quais essa visão não obteve vencimento.
XXV. A testemunha FF, que se intitulou como formador de pagadores, referiu que o poker é jogo tradicional, “apelando à Portaria de 2007”, o que, por si, dirá muito do que sabe sobre o assunto – vide depoimento dos 5,00 aos 9,00 minutos - uma vez que a Portaria a que se refere (Portaria n.º 217/2007, 26 de Fevereiro), apenas estabelece as regras dos jogos e autoriza os casinos a explorarem os jogos não bancados.
XXVI. Essa Portaria não veio incluir nenhum jogo de poker não bancado nos jogos explorados nas salas de jogos tradicionais.
DOS FACTOS INDEVIDAMENTE DADOS POR PROVADOS (com recurso à reapreciação da prova gravada)
DO FACTO PROVADO 20.
XXVII. O facto provado 20. não devia ter sido assim julgado, mormente, na parte em que se dá por assente “aí prestando serviço exclusivo desde Janeiro de 2018”.
XXVIII. O réu tem por função a organização de torneios de poker e direcção do jogo não bancado (jogo que consiste em apostas entre jogadores e não entre apostadores e concessionária de jogo) e elabora as escalas dos trabalhadores do poker não bancado (não elabora qualquer escala de serviço dos trabalhadores da sala de jogo tradicional) – vide a gravação dos depoimentos das testemunhas: GG, aos 50 segundos; HH, aos 3.20 até 4.oo minutos, 4,20 até 5,05 minutos; CC aos 2,00 até 4,50 minutos; II aos 1,05 até 2,20; JJ aos 4,00 até 4,40, 5,00 até 6,30 minutos; KK aos 2,20 até 6,10 minutos; DD aos 1, 45 até 4,00 minutos; LL (testemunha do réu) aos 6,40 até 8, 05, 8,10 até 9,00, 13,50 até 15, 20 minutos; e FF (alegado formador de pagadores) aos 5,00 até aos 9,00 minutos.
XXIX. Em nenhum diploma legal é estabelecido que o poker não bancado (em ambas as modalidades) é um jogo tradicional e que integra o “catálogo” dos jogos tradicionais de casino, facto pelo qual, é jogado em espaço diferente do espaço destinado aos jogos tradicionais.
XXX. E o réu/reconvinte no exercício das suas funções nem sequer se desloca às mesas dos jogos tradicionais, prestando trabalho, única e exclusivamente, ao serviço do poker não bancado e ao poker em modo de torneio.
XXXI. Conjugando estes factos com o que vai alegado supra, no que concerne à distribuição das salas de jogo no casino, i.e. o poker não bancado não é jogo tradicional de casino, não se podia ter julgado que o réu/reconvinte presta serviço em exclusivo na sala de jogo tradicional desde Janeiro de 2018!
Assim,
XXXII. Devia o facto provado 20. ter sido julgado de modo diferente, concluindo de outro modo, e deve agora a sua redacção ser substituída por uma outra que contenha a seguinte redacção: “Na divisão aludida supra em 10), o R. ficou adstrito à chefia da sala de jogos tradicionais do Casino de ... na categoria de fiscal-chefe, por ordem da sua empregadora, mas exercendo as funções de direcção do jogo não bancado e sem que tenha prestado qualquer serviço na sala de jogo tradicional.”.
DO FACTO PROVADO 34.
XXXIII. O facto provado 34. foi incorrectamente julgado, porquanto o réu/reconvinte, para efeito de gratificações, enquadra-se na Classe B e não na Classe A, por, em 31 de Dezembro de 2020 ter apenas 4 anos e 11 meses de trabalho efectivo como profissional de banca – vide a Portaria n.º 1159/90, de 27 de Novembro, Anexo II, n.ºs 2, 3 e 7, e o réu/reconvinte não fez prova de exercer, efectivamente, a profissão, há mais de cinco anos.
XXXIV. Assim, os valores concedidos pelo tribunal a quo não estão correctos, e o Facto Provado 34. devia ter sido julgado do seguinte modo: Não foram pagas ao réu/reconvinte gratificações correspondentes ao valor global de €10.006,86, referentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2018, Janeiro a Dezembro de 2019, Janeiro a Março e Maio a Dezembro de 2020, distribuídas do seguinte modo: Pelo ano de 2018, a quantia de €2.509,19; Pelo ano de 2019, a quantia de €5.230,25; e pelo ano de 2020, a quantia de €2.267,42 – como se exemplifica, para facilitação, nos quadros I, II, e III em anexo.
DOS FACTOS INDEVIDAMENTE JULGADOS NÃO PROVADOS
DO FACTO NÃO PROVADO A)
XXXV. O Facto não provado A) foi mal julgado pelo tribunal a quo, só se compreendendo por o tribunal a quo ter erradamente concluído que o jogo de poker não bancado e em modo torneio integra os jogos da sala de jogos tradicionais do casino, e colide com os factos provados 6., 20., 23. e 25.
Destarte, e em atenção ao alegado supra,
XXXVI. O Facto não provado A) deve ser julgado em sentido inverso, isto é, como Facto Provado 36., com a seguinte redacção: “Que o réu não exerce funções na sala de jogos tradicionais do Casino de ..., desde Setembro de 2018”.
DO FACTO NÃO PROVADO I)
XXXVII. O tribunal a quo refere que “com interesse, é ali referido que «a HH continua dizendo que a Dr.ª MM (MM) arranjou a solução de a comissão pagar aos cinco adjuntos de chefe e o AA recebia da empresa o valor para cobrir a perda” o que também não corresponde propriamente ao que esta, quando aqui testemunhou, disse, fazendo-o com foros de seriedade»”.
Porém,
XXXVIII. A testemunha, MM, confirmou as suas declarações em acta e disse que o réu era compensado pela concessionária pelo facto de não receber gratificações, para depois continuar dizendo que: “porque não queria prejudicar ninguém, não queria prejudicar os chefes, não queria prejudicar a empresa (…) que queria mesmo era resolver e ele [o réu] sair da comissão de gratificações para ele era um descanso emocional (…)”, e
XXXIX. Continuando disse: “de facto, o AA tinha, aparece no seu recibo de vencimento isso, tinha dois tipos de subsídio de funções, um subsídio de função de facto pela responsabilidade, pela disponibilidade, pela organização do jogo e durante o tempo em que ele não estava a receber gratificações ou não recebia a empresa pagava isso, eu já tinha dito isso” (vide o depoimento de MM ao minuto 00,20 até 01.35 segundos).
XL. Com o maior respeito, por opinião diversa, o depoimento da testemunha, que o tribunal diz “com foros de seriedade”, e a acta, enquanto documento, que a testemunha confirmou, são prova bastante para aferir que o réu era compensado pela empregadora, pelo facto de não ter direito a gratificações.
XLI. Assim, o facto não provado I) deve ser julgado como Facto provado 37., com a seguinte redacção: “Que o réu auferiu remuneração superior há dos outros profissionais que exercem funções na sala de jogos tradicionais, como compensação pela não percepção das gratificações desse sector de jogo”.
Acresce ainda que
XLII. A “mobilidade funcional”, é uma faculdade da empregadora, mas com a obrigação de ser essa a compensar o seu trabalhador pelas perdas que da ordem decorram – artigo 120º, do Código do Trabalho – e não à custa dos demais trabalhadores de um sector.
XLIII. E como se constatou supra, o réu/reconvinte/recorrido foi compensado pela concessionária pelas perdas de gratificações, sob a forma de um dos subsídios que auferia.»
Terminou pugnando pela revogação da decisão recorrida e, atendendo à reapreciação dos factos provados e não provados, à sua substituição por outra que julgue procedente o pedido da autora recorrente.
O réu respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso.
*
Por acórdão proferido em 13.06.2023, foi ordenada a notificação da sociedade A..., S.A. para juntar aos autos:
- Cópia dos recibos de vencimento do réu/recorrido AA no período compreendido entre Janeiro de 2018 e Dezembro de 2020;
- Cópia dos recibos de vencimento de outro funcionário que, no mesmo período, exercesse funções de fiscal-chefe/adjunto de chefe de sala, mas sem funções no poker não bancado, nas máquinas ou no bingo;
- Cópia dos recibos de vencimento de outro funcionário que, no mesmo período, exercesse funções de fiscal-chefe/adjunto de chefe de sala exclusivamente no jogo de poker não bancado; não havendo outro funcionário que exercesse essas funções no mesmo período, deverão ser enviadas cópias de recibos de vencimento, relativas aos meses posteriores, do funcionário que sucedeu ao réu.
Juntos tais elementos, ambas as partes se pronunciaram.
A recorrente, assinalando que a empregadora não identificou nem relacionou os recibos de vencimento que juntou com as funções exercidas, veio prestar essa informação.
O recorrido, por sua vez, veio afirmar que os documentos juntos «não reflectem qualquer compensação pela não percepção das gratificações que são da inteira responsabilidade da Autora» e que os subsídios «resultam da efetiva prestação das novas funções laborais, exercidas pelo Réu», conforme foi esclarecido pela A..., S.A., no documento que lhe dirigiu e cuja junção aos autos requer.
Notificada deste requerimento e do documento que o acompanha, a recorrente veio opor-se à sua junção, alegando que a mesma é extemporânea, e impugnar o teor e o alcance daquele documento.
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II. Questão prévia – a admissibilidade do documento junto
A apresentação de documentos no âmbito do recurso de apelação está disciplinada no artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), nos seguintes termos: «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância»
Por sua vez, dispõe assim este artigo 425.º do CPC: «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».
Esta norma admite a junção de documentos objectiva ou subjectivamente supervenientes ao encerramento da discussão da audiência final. Neste sentido, vide Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2019, p. 502).
No presente caso, o documento agora apresentado pelo recorrido está datado de 9 de Setembro de 2023, pelo que é manifesta a sua superveniência objectiva e, consequentemente, a sua admissibilidade à luz dos dispositivos legais antes citados.
Pelo exposto, admite-se a sua junção aos autos.
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III. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
1. O erro no julgamento da matéria de facto no que c0ncerne aos pontos 20 e 34 dos factos provados e aos pontos A) e I) dos factos não provados.
2. O erro no julgamento no que concerne ao direito do autor/recorrido às gratificações da sala de jogos tradicionais do Casino de ....
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IV. Fundamentação
A. Decisão sobre a matéria de facto na primeira instância
Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. A A. é uma comissão de distribuição de gratificações, constituída ao abrigo do Despacho normativo n.º 24/89, publicado em Diário da República, I Série, n.º 62, de 15.03, revogado pela Portaria n.º 1159/90, de 27.11.
2. É sua atribuição e competência proceder ao cálculo e à distribuição das gratificações da sala de jogos tradicionais do Casino de ... por todos os trabalhadores do quadro daquela sala que, nos termos do disposto nos Estatutos, ali prestem exclusivamente serviço.
3. Entre a sociedade A..., S.A. e o aqui R. foi celebrado, em 01.05.2012, contrato denominado de “contrato de trabalho a termo incerto”, constando da cláusula 1.ª que «a empregadora contrata o trabalhador para lhe prestar serviço no Casino de ..., com a categoria e funções de pagador de banca estagiário».
4. Em 09.04.2013, entre as pessoas identificadas em 3) foi celebrado contrato denominado de “contrato de trabalho em comissão de serviço”, constando da cláusula 1.ª que «a entidade empregadora contrata o trabalhador para lhe prestar serviço no regime de comissão de serviço, com a categoria e funções de adjunto do chefe de sala, que exercerá diretamente dependente da Direção de Jogo, a quem reporta».
5. O R. tem atualmente a categoria profissional de fiscal-chefe.
6. Desde setembro de 2018 o R. exerce funções nos torneios de poker organizados pela concessionária do Casino de ....
7. Desde o ano de 2012 até final do ano de 2017, o R., por imposição da empregadora, auxiliava também na gestão e direção da sala de máquinas do Casino de ..., tal como todos os outros seus colegas de função e categoria idêntica.
8. Tal originou um litígio entre o A., o R. e os demais colegas deste com iguais categorias e funções.
9. O que levou à prolação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Proc. n.º 78/12.4TTVFR.P1, estipulando tal decisão que, em síntese, exercendo funções também na sala de máquinas, o aqui R. e demais colegas de funções e categorias idênticas, não eram beneficiários das gratificações provenientes da sala de jogos tradicionais do Casino de ....
10. Todavia, no final do ano de 2017, a entidade empregadora fez a divisão do pessoal da chefia adstrito a cada uma destas salas, tendo ficado cada uma com chefia própria e exclusiva.
11. O R., à data de agosto de 2020, constava do quadro de trabalhadores da sala de jogos tradicionais.
12. No mês de agosto de 2020, ao proceder ao cálculo e distribuição das gratificações relativas ao mês de julho, a A., por lapso, incluiu-o na distribuição destas e transferiu para a sua conta bancária a quantia de €248,53.
13. Em 07.08.2020, o R. enviou à A. o e-mail do qual consta, além do demais teor que aqui se dá por reproduzido, o seguinte:
«Sendo eu parte integrante da Chefia da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ... há já quase 8 anos, recebi um comunicado interno da mesma, via e-mail, onde me era dado conhecimento de que a partir do mês de julho eu passaria a receber, também, gratificações.
(…)
Ora, (…) tendo em conta que, como referi, sou parte integrante da Chefia há já quase 10 anos e que há cerca de 2 anos que V.Ex.ªs entendem que eu não sou beneficiário das mesmas , sou por este meio a questionar qual a razão desta mudança opinativa, sendo que o quadro factual das circunstâncias continua exatamente o mesmo, visto que o meu contrato de trabalho e, inerentemente, as minhas funções continuam as que sempre foram.
(…).»
14. Em resposta, a A. remete ao R. a carta, datada de 18.08.2020, da qual, além do demais teor que aqui se dá por reproduzido, consta o seguinte:
«(…)
Tem, de facto, V.Ex.ª razão na sua reflexão, a qual, desde já, agradecemos, passando a explicar-lhe que a CDG da Sala de Jogos Tradicionais não mudou de opinião, lamentando, contudo que, por lapso, e do qual se penitencia, V.Ex.ª foi incluído na distribuição de gratificações do mês de julho de 2020.
Com efeito, foram-lhe processadas e pagas gratificações a que não tem direito por erro nosso, uma vez que não prestou nem presta, trabalho na sala de jogos tradicionais.
Assim, somos pelo presente a reclamar a devolução das quantias recebidas a esse título, até ao último dia do mês de agosto de 2020, para que possam ser redistribuídas pelos colegas da “chefia” que são os verdadeiros prejudicados na distribuição do mês de julho de 2020.
(…).»
15. Em 28.08.2020, remeteu o R. à A. o e-mail do qual, além do demais teor que aqui se dá por reproduzido, consta o seguinte:
«(…) sou por este meio a informar que não irei proceder à devolução do montante recebido, aproveitando para esclarecer o seguinte:
Ao contrário do que V.Ex.ªs alegam, e como bem sabem, faço parte integrante dos quadros da sala de jogos tradicionais do Casino de ... há vários anos, pelo que as minhas funções e categoria profissionais sempre foram prestadas nesta mesma sala. Por tal motivo, e conforme estipulam os diplomas legais, pertenço a categoria profissional beneficiária de gratificações provenientes dos jogos tradicionais pelo que, inquestionavelmente, as mesmas também deveriam ser por mim recebidas.
Nessa senda, e tendo em conta o facto de já exercer funções na sala de jogos tradicionais do Casino de ... há vários anos e que apenas recebi gratificações provenientes da mesma alguns anos, a V. instituição encontra-se em dívida para comigo em valor por mim ainda não apurado.
(…).»
16. Em consequência, a A. remeteu ao R. a carta datada de 22.09.2020, da qual, além do demais teor que aqui se dá por reproduzido, o seguinte:
«(…)
V.Exª não tem o direito à perceção de gratificações da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ....
Aliás, como os tribunais bem têm decidido nos já inúmeros processos propostos por trabalhadores em circunstâncias similares às que V.Exª mantém no Casino de ..., e como é bom exemplo o último processo proposto por trabalhadores contra a CDG e que viu ser prolatada sentença durante o corrente mês de setembro de 2020, dando total procedência aos fundamentos da CDG.
Atentos aos factos supra,
V.Exª, ao não pretender devolver o indevidamente recebido, locupletou-se, assim, com a quantia de €248,53.
(…)
Somos, então (…) a reclamar a devolução da quantia de € 248,53 (…) num prazo razoável, isto é, até ao último dia útil do corrente mês de setembro de 2020, sob pena de, não o fazendo, e sem necessidade de mais interpelações, nos vermos na contingência (…) de recorrer aos meios judiciais (…).»
17. O R., vencido o prazo concedido em 16), nada mais disse e não devolveu à A. a quantia em causa.
18. O R. nunca reclamou gratificações e nunca propôs nenhuma ação judicial reclamando o direito àquelas, como fizeram outros colegas.
19. O R. sabe que as ações judiciais intentadas por outros colegas foram julgadas improcedentes, sendo a última delas, datada de 09.09.2020, e prolatada no âmbito do Proc.n.º24080/19.6T8PRT, que correu os seus termos no Tribunal Judicial de ..., Juiz 1.
20. Na divisão aludida supra em 10), o R. ficou adstrito à chefia da sala de jogos tradicionais do Casino de ... na categoria de fiscal-chefe, aí prestando serviço exclusivo desde janeiro de 2018.
21. A categoria de fiscal-chefe está legalmente prevista como beneficiária de gratificações provenientes de Sala de Jogos tradicionais.
22. As funções dos elementos da A. materializam-se na chefia, controlo e organização da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ... de todos os pagadores de banca e fiscais que ali trabalham, com exceção do poker.
23. Em setembro de 2018, por determinação da empregadora, o R., no exercício das funções de fiscal-chefe, passou a dedicar a maior parte do seu tempo de trabalho ao controlo do jogo denominado de “Poker não bancado”.
24. Em face da existência da necessidade de ter um elemento da chefia adstrito ao mesmo dado que o volume de jogadores e especificidades que o jogo aludido em 23) comporta aumentaram significativamente.
25. Deste modo, o R. é o responsável pela organização, chefia e controlo do jogo de “Poker não bancado” e “Poker não bancado em modo torneio”, constando das escalas mensais da chefia da sala de jogos sob a designação «P».
26. Neste cenário, entendeu a A. que o R. não era mais beneficiário de gratificações.
27. Tendo deixado de pagar ao R. as gratificações provenientes da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ... desde setembro de 2018.
28. O “Poker não bancado” é um jogo de cartas, não dependendo de nenhum meio eletrónico (ou máquina) para o seu funcionamento.
29. São os próprios beneficiários das gratificações da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ... que operam diariamente nesse mesmo jogo, incluindo os elementos da direção da A.
30. Ou seja, cabe aos elementos da A. e respetivos beneficiários das gratificações provenientes da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ... o funcionamento e manuseamento das bancas de “Poker não bancado” e de “Poker não bancado em modo torneio”.
31. Em 26.09.2019 realizou-se um plenário de trabalhadores beneficiários de gratificações, no qual não foi permitido ao R. participar e que, por isso, deu origem a uma exposição escrita feita pelo R. ao Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, onde comunica tal ocorrência bem como que discorda da decisão da A. em não distribuir gratificações e que é beneficiário das mesmas e, como tal, deveria ter-lhe sido permitida a participação naquele plenário.
32. Em 17.10.2020, os elementos da direção da A. e demais pagadores de banca do Casino laboraram nas bancas do jogo “Poker não bancado em modo torneio”.
33. Tendo recolhido as gratificações apuradas nessas bancas.
34. Não foram pagas ao R. gratificações correspondentes ao valor global de €22.148,50 referentes aos meses de setembro a dezembro de 2018, janeiro a dezembro de 2019, janeiro a março e maio a dezembro de 2020, e respetivos juros, nos termos do quadro seguinte:
(…)
35. BB integra o quadro de pessoal da A..., S.A. em regime de contrato de trabalho por tempo indeterminado desde 10.08.2021, exercendo funções inerentes à categoria de adjunto-chefe de sala dos jogos tradicionais.
*

Factos Não Provados
O tribunal recorrido julgou não provado:
A) Que o R, desde setembro de 2018, não exerça as suas funções na sala de jogos tradicionais do Casino de ....
B) Que o R. bem saiba que não tinha direito à quantia supra aludida em 12) por ter deixado de prestar serviço na sala de jogos tradicionais do Casino de ....
C) Que as funções do R. se materializem na elaboração de escalas de serviço de todos os pagadores de banca e fiscais que ali laboram.
D) Que seja o R. a determinar qual a banca de jogo tradicional, à exceção do Poker, a ocupar pelos empregados de banca da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ....
E) Que o R. tenha tomado conhecimento de que a A. unilateral e arbitrariamente decidiu deixar de o incluir na distribuição das gratificações provenientes da Sala de Jogos Tradicionais do Casino de ..., de forma fugaz, verbalmente, na zona dos vestiários.
F) Que, desde logo, o R. tenha manifestado a sua discordância e questionado qual a razão de tal facto.
G) Que, apesar de várias tentativas, nunca tenha logrado obter resposta clara e percetível, alegando apenas estarem na posse de um suposto parecer jurídico nesse sentido.
H) Que das interpelações verbais aludidas em G) tenham sido participantes e testemunhas, por estarem presentes, KK e CC.
I) Que o R. aufira remuneração superior à dos outros profissionais que exercem funções na sala de jogos tradicionais como compensação pela não perceção de gratificações.
*
B. Fundamentação de Direito
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
1.1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no CPC actualmente vigente, nomeadamente nos seus artigos 640.º e 662.º.
Nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 640.º, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando este ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Em coerência, o mesmo autor (cit., pp. 199 e 200), enuncia assim as situações que determinam a rejeição, total ou parcial do recurso:
- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC);
- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC);
- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou nele registados, em que o recorrente se baseia;
- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
No presente caso, o recorrente indicou com clareza, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – os pontos 20 e 34 dos factos provados e os pontos A) e I) dos factos não provados – bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto impugnadas.
Diferentemente, a especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida está longe de ser clara. Para além de uma persistente confusão entre convicção formada com base na análise da prova e questões de direito, por vezes não se consegue estabelecer a relação entre os meios probatórios invocados e analisados na alegação de recurso e os concretos pontos de facto impugnados, tudo como melhor decorrerá da exposição subsequente.
Em todo o caso, não sendo caso para rejeitar na sua totalidade o recurso da decisão sobre a matéria de facto, por não se verificar um incumprimento total do ónus primário consagrado na al. b), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC, o mesmo sucedendo com o ónus secundário previsto na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, passemos à análise de cada um dos factos impugnados.
1.2. Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do CC.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, como vimos, a recorrente pretende ver alterada a decisão proferida sob os pontos 20 e 34 dos factos provados e sob os pontos A) e I) dos factos não provados. Vejamos se lhe assiste razão.
1.2.1. O Tribunal a quo julgou provado o seguinte facto: «Na divisão aludida supra em 10), o R. ficou adstrito à chefia da sala de jogos tradicionais do Casino de ... na categoria de fiscal-chefe, aí prestando serviço exclusivo desde janeiro de 2018» (cfr. ponto 20 dos factos provados).
O recorrente entende que o mesmo deve ser alterado, julgando-se provado o seguinte: «Na divisão aludida supra em 10), o R. ficou adstrito à chefia da sala de jogos tradicionais do Casino de ... na categoria de fiscal-chefe, por ordem da sua empregadora, mas exercendo as funções de direcção do jogo não bancado e sem que tenha prestado qualquer serviço na sala de jogo tradicional».
Alega, para tanto, que o réu não exerce funções da na sala de jogos tradicionais, estando exclusivamente ao serviço do poker não bancado e do poker em modo de torneio, tendo por funções a organização de torneios de poker, a direcção do jogo não bancado e a elaboração das escalas dos trabalhadores do poker não bancado, como decorre dos depoimentos das testemunhas GG, HH, CC, II, JJ, KK, DD, LL e FF, designadamente das passagens que identifica por via da sua localização temporal, não cabendo estas funções aos fiscais-chefes da sala de jogos tradicionais. Mais alega que a lei não qualifica o poker não bancado como um jogo tradicional, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, pelo que é jogado em espaço diferente do destinado aos jogos tradicionais.
Esta argumentação está estreitamente relacionada com a impugnação do ponto A) dos factos não provados, isto é, com da decisão que julgou não provado «Que o R, desde setembro de 2018, não exerça as suas funções na sala de jogos tradicionais do Casino de ...», facto que o recorrente pretende ver incluído entre os julgados provados.
Os argumentos esgrimidos pela recorrente revelam que o segmento do ponto 20 por si impugnado não traduz uma verdadeira questão de facto, mas antes uma questão de direito, o que é corroborado pelo teor dos pontos 6, 20 (parte restante), 23 e 25 dos factos provados, que a recorrente não impugnou.
Como veremos com mais detalhe quando analisarmos o recurso sobre a matéria de direito, não está ali em causa o espaço físico da sala de jogos tradicionais, até porque a lei prevê a existência de salas mistas. O que está em causa é a classificação dos jogos como integrando os tradicionais ou os de máquina.
Repare-se que está assente – e não foi questionado pelas partes – que a partir de Janeiro de 2018 o réu deixou de exercer funções na sala de máquinas e ficou adstrito à chefia da sala de jogos tradicionais, na categoria de fiscal-chefe (pontos 9, 10 e 20, 1.º parte), e que desde Setembro de 2018, por determinação da empregadora, no exercício das funções de fiscal-chefe, passou a dedicar a maior parte do seu tempo de trabalho ao controlo do jogo denominado de “Poker não bancado” (ponto 23) e a exercer funções nos torneios de poker organizados pela concessionária do Casino de ... (p0nto 6), sendo o responsável pela organização, chefia e controlo do jogo de “Poker não bancado” e “Poker não bancado em modo torneio”, constando das escalas mensais da chefia da sala de jogos sob a designação «P» (ponto 25). Assim, ao afirmar que o réu presta serviço exclusivo na sala de jogos tradicionais desde janeiro de 2018 (ponto 20, 2.ª parte), sem estabelecer o limite temporal de Agosto de 2018, o Tribunal a quo está a assumir que o poker não bancado é jogado na sala de jogos tradicionais do Casino (ainda que esta possa ser uma sala mista) ou, se preferirmos dizer assim, é um jogo tradicional. A afirmada exclusividade assenta, necessariamente, nessa qualificação ou entendimento.
Mas tal exclusividade, face ao preceituado no artigo 2.º do Estatuto da Comissão de Distribuição de Gratificações da sala de jogos tradicionais do Casino de ... (doravante designada como CDG) – nos termos do qual os beneficiários das gratificações são todos os empregados de banca que prestam exclusivamente serviço nas salas de jogos tradicionais e tenham uma das categorias profissionais constantes do instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, subscrito pelo Sindicato dos Profissionais de Banca dos Casinos –, configura uma das questões de direito de que depende a procedência ou improcedência da acção e da reconvenção.
Assim, esta não é uma questão de facto, sobre a qual deva ou possa ser produzida prova. Trata-se, ao invés, de uma questão de direito, não reconduzível ao disposto nos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, 410.º, 596.º, n.º 1, parte final, e 607.º, n.ºs 3, 1.ª parte, e 4, todos do CPC, pelo que se impõe expurgar a fundamentação de facto da decisão dessa matéria de direito, relegando o seu conhecimento para sede própria, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, e 607.º, n.º 3, 2.ª parte, do mesmo código.
É certo que, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, pp. 24 e 25) em anotação ao artigo 5.º do CPC, «[o] preceituado no n.º 3, associado à eliminação no actual CPC do que se previa no n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”), implica que deva ser moderada a ideia tradicionalmente arreigada, posto que formalmente excessiva, de se estabelecer uma rígida delimitação entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito».
Mas, reconhecendo a persistência no nosso ordenamento jurídico da distinção entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito, bem como a existência de conceitos ambivalentes e, por isso, de frequentes dúvidas quanto ao estabelecimento de linhas de demarcação entre as questões de facto e as questões de direito, os mesmos autores acrescentam que «sem dogmatismos que já nem sequer encontravam apoio numa norma como a do n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que não transitou para o CPC de 2013) e tendo em consideração o modo como em simultâneo na sentença final serão abordadas as questões de facto e as questões de direito, podemos já antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção. Se este, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente do significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, pois o significado a atribuir-lhes será determinante para o desfecho da causa. Se, pelo contrário, o objecto da acção não estiver directamente associado ao significado a conferir a certas afirmações das partes, as expressões assim utilizadas (arrendamento, renda, hóspede, e outras de cariz semelhante) poderão ser tomadas no âmbito da matéria de facto, sendo passíveis de apuramento por via da prova e de pronúncia em sede de julgamento, sempre encaradas com o significado vulgar e corrente, não já com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais».
No caso concreto, como vimos, o significado do termo exclusividade é determinante para o desfecho da causa. De resto, a própria enunciação dos temas da prova efectuada pelo Tribunal a quo acaba por corroborar esta afirmação, pois embora refira como primeiro tema da prova apurar se o réu exerceu e em exclusivo as funções de fiscal-chefe na sala de jogos tradicionais do Casino de ..., acrescentou entre parêntesis que tal «inclui a aferição da natureza do jogo de póquer não bancado como jogo tradicional ou não».
Nestes termos, para evitar que a decisão da questão de direito tenha a sua resposta na descrição da matéria de facto, impõe-se expurgar a fundamentação de facto da decisão da matéria de direito descrita no segmento final do ponto 20 dos factos provados.
Mas o mesmo sucede relativamente ao ponto A) dos factos não provados. Como decorre do que já ficou exposto, saber se, desde Setembro de 2018, o réu não exerce funções na sala de jogos tradicionais do Casino de ... está directamente dependente da questão de saber se o poker – a que o réu passou a dedicar a maior parte do seu tempo desde então, conforme afirmado no ponto 23 dos factos provados – integra os jogos da referida sala.
Claro que esta dependência não é total, pois mesmo que se entenda que o poker não se integra na sala de jogos tradicionais, a afirmação de que o réu não exerce funções nessa sala sempre estaria dependente da confirmação de que, a partir da referida data, o mesmo não estava incumbido de outras funções integradas na sala de jogos tradicionais.
Sucede que, para além de se revelar pouco consentânea com a factualidade descrita no ponto 23 dos factos provados, maxime quando aí se diz que o réu passou a dedicar a maior parte do seu tempo de trabalho ao controlo do jogo denominado de “Poker não bancado”, e não que tenha passado a desempenhar unicamente essas funções, aquele facto sempre seria, nesta perspectiva, inócuo para a decisão da causa, cujo desfecho, recordemo-lo, não está dependente de saber se o recorrido trabalhava na sala de jogos tradicionais do Casino de ..., mas antes se o fazia em exclusividade, o que, repetimos, nos remete para a questão de saber se o poker integra os jogos da referida sala.
Em suma, por ser em parte meramente conclusivo e em parte irrelevante para a decisão da causa, elimina-se igualmente o ponto A) dos factos não provados.
1.2.2. A recorrente impugnou também o ponto 34 dos factos provados, no que concerne ao valor aí referido, afirmando que, para efeitos de gratificações, o réu se enquadra na Classe B e não na Classe A, visto que em 31 de Dezembro de 2020 tinha apenas 4 anos e 11 meses de trabalho efectivo como profissional de banca, não tendo aquele feito prova de exercer efectivamente a profissão há mais de 5 anos, pelo que o facto julgado provado deve ser o seguinte: «Não foram pagas ao réu/reconvinte gratificações correspondentes ao valor global de €10.006,86, referentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2018, Janeiro a Dezembro de 2019, Janeiro a Março e Maio a Dezembro de 2020, distribuídas do seguinte modo: Pelo ano de 2018, a quantia de €2.409,19; pelo ano de 2019, a quantia de €5.230,25; e pelo ano de 2020, a quantia de €2.267,42».
Do exposto decorre que a recorrente não põe em causa os valores totais de gratificações discriminados no quadro que integra o ponto 34 dos factos provados, mas apenas a contagem do tempo de serviço do recorrido enquanto profissional de banca e, por essa via, da classe em que o mesmo se integra para efeitos dos cálculos previstos na parte II (Salas de jogos tradicionais), da Portaria n.º 1159/90, de 27 de Novembro (com as alterações das Portarias n.ºs 129/94, de 1 de Março, e 355/2004, de 5 de Abril), assim pondo em causa apenas estes cálculos.
Contudo, não esclarece a recorrente em que meios probatórios e/ou factos já julgados provados se fundamenta para afirmar que o tempo de serviço do recorrido era, em 31 de Dezembro de 2020, de 4 anos e 11 meses. Tanto bastaria para rejeitar o recurso da decisão sobre a matéria de facto, no que respeita ao referido ponto 34 dos factos provados, por incumprimento do ónus primário previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), do CPC.
De todo o modo, o que resulta dos factos provados que a recorrente não impugnou é que, mediante contrato de trabalho a termo incerto, o recorrido foi admitido como pagador de banca estagiário em 01.05.2012 (cfr. ponto 3 dos factos provados), e que, mediante contrato de trabalho em comissão de serviço, foi admitido como adjunto do chefe de sala – que corresponde à categoria de fiscal-chefe, como também veremos melhor quando analisar o recurso da matéria de direito – em 09.04.2013 (cfr. ponto 4 dos factos provados) e que mantém actualmente a categoria profissional de fiscal-chefe (cfr. ponto 5 dos factos provados).
É, assim, manifesto que os factos apurados revelam que nas datas a que se referem as gratificações em discussão na acção e na reconvenção – Setembro de 2018 a Dezembro de 2020 – o réu recorrido era empregado de banca do Casino de ... há mais de 5 anos, pelo que os cálculos apresentados no ponto 34 dos factos apurados não enfermam do apontado vício.
Pelas razões expostas, mantém-se inalterado o ponto 34 dos factos provados.
1.2.3. Por fim, a recorrente insurgiu-se contra a decisão relativa ao ponto I) dos factos não provados, preconizando que se considere provado que «o réu auferiu remuneração superior há (sic) dos outros profissionais que exercem funções na sala de jogos tradicionais, como compensação pela não percepção das gratificações desse sector de jogo», baseando-se no depoimento da testemunha MM e no teor da acta, por esta confirmado.
A este respeito, afirma-se o seguinte na motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida:
«Com interesse, é ali também referido que «a HH continua dizendo que a Dr.ª (MM) arranjou a solução de a comissão pagar aos cinco adjuntos de chefe e o AA recebia da empresa o valor para cobrir a perda», o que também não corresponde propriamente ao que esta, quando aqui testemunhou, disse, fazendo-o com foros de seriedade.
Mais dali resulta a cativação de valores de gratificação em favor do aqui R., o que demonstra a existência de ambivalência quanto ao direito deste em ser seu beneficiário por parte da A., o que também, por seu turno, e aliando-se à ausência de demais prova em sentido contrário, contribuiu para a inserção do teor da alínea I) nos factos não provados.
Dali consta ainda que «a Doutora (MM) explica que em dois mil e dezoito a A... fez uma exposição ao turismo de Portugal sobre os rácios e sobre a questão do poker pois não queria prejudicar a equipa de adjuntos ou parar o poker só porque a comissão interfere constantemente na gestão do casino e que ainda aguarda resposta. Que a empresa o que fez para o poker continuar foi pagar um subsídio de funções ao AA no valor das gratificações e assim a comissão não prejudicava ninguém. Diz que a categoria profissional do AA não foi alterada e assim se avançou. Conta que também não achava que o AA fosse pedir gratificações para trás, pois este sempre lhe disse que esta situação era melhor, que não queria gratificações nem ter de lidar com a comissão», tendo esta esclarecido em julgamento que o boom do Poker significou um aumento de responsabilidade do R. e da sua carga horária e disponibilidade, pelo que o subsídio de função acrescido teve isso em linha de conta].»
No acórdão anteriormente proferido (que determinou a produção de nova prova) fizemos a seguinte apreciação:
«Sem prejuízo de outras reservas que esta apreciação da prova pode suscitar (nomeadamente no que concerne à correspondência entre o teor da acta de 14.09.2021 e o teor do depoimento da testemunha MM), depois de ouvida a gravação integral da audiência de julgamento e de analisados todos os documentos juntos aos autos, verifica-se que aquela apreciação é omissa a respeito da demais prova produzida a respeito da factualidade descrito no ponto I) dos factos não provados.
Na verdade, para além da testemunha MM, também os representantes da autora, HH e CC, bem como a testemunha JJ, afirmaram em sede de audiência de julgamento que a empresa concessionária do casino de ... compensou o réu recorrido pelo não recebimento de gratificações, atribuindo-lhe um subsídio de valor equivalente.
Por sua vez, a testemunha KK esclareceu que todos os fiscais-chefes do casino de ... recebem um subsídio de função, mas que este é superior quando exercem funções no jogo de poker não bancado, o que parece corroborar os depoimentos anteriores.
Todavia, a testemunha NN, que exerce funções de adjunta de chefe de sala ou fiscal-chefe, embora tivesse confirmado que foi aumentada quando passou para o jogo de poker não bancado, afirmou que nunca lhe disseram que esse aumento era para compensar a perda das gratificações, assim lançando dúvidas sobre a finalidade do referido subsídio de função.
Tais dúvidas são alimentadas pelo próprio depoimento da testemunha MM, pois embora afirme que a empresa decidiu compensar o réu/recorrido pela perda de gratificações, admitiu que a atribuição do subsídio também teve em conta a maior responsabilidade e a maior disponibilidade exigida aos fiscais-chefes ou adjuntos de chefe de sala em funções no poker não bancado, acabando mesmo por referir que aquele subsídio não será retirado se a autora vier a pagar as gratificações ao recorrido.
Mas a verdade é que esta mesma testemunha acabou por referir a existência de, não apenas um, mas dois subsídios no recibo de vencimento, um pela maior responsabilidade de disponibilidade e outro pela perda de gratificações.
Também a testemunha CC aludiu aos recibos de vencimento do recorrido, afirmando que este se conformou com o corte das gratificações, visto estar a ser compensado pela empresa concessionária, e que exibiu o seu recibo de vencimento para o demonstrar, acabando por afirmar que o recorrido tinha dois subsídios.
Flui com clareza do exposto que existem fundadas dúvidas sobre a não prova do facto descrito no ponto I); mas também que a análise dos recibos de vencimento do recorrido poderá revelar-se decisiva para dissipar essas dúvidas, sobretudo se for possível a sua comparação com os recibos de vencimento de outros fiscais-chefe ou adjuntos de chefe de sala, tanto os que exerciam funções exclusivas no jogo de poker bancado, como os que exerciam funções nos demais jogos (que não os jogos de máquina ou bingo)».
Foi, então, ordenada a notificação da sociedade A..., S.A. para juntar aos autos:
- Cópia dos recibos de vencimento do réu/recorrido AA no período compreendido entre Janeiro de 2018 e Dezembro de 2020;
- Cópia dos recibos de vencimento de outro funcionário que, no mesmo período, exercesse funções de fiscal-chefe/adjunto de chefe de sala, mas sem funções no poker não bancado, nas máquinas ou no bingo;
- Cópia dos recibos de vencimento de outro funcionário que, no mesmo período, exercesse funções de fiscal-chefe/adjunto de chefe de sala exclusivamente no jogo de poker não bancado; não havendo outro funcionário que exercesse essas funções no mesmo período, cópias de recibos de vencimento, relativas aos meses posteriores, do funcionário que sucedeu ao réu.
Embora a sociedade A..., S.A. se tenha limitado a juntar aos autos 127 recibos, referentes ao autor e a mais dois trabalhadores com a categoria profissional de “Adjunto de Chefe de Sala”, sem esclarecer quais deles exerceram funções no poker não bancado e qual deles não exerceu essas funções, da análise dos referidos recibos, designadamente das respectivas datas e da natureza das prestações neles descritas, decorre com clareza que o funcionário BB sucedeu o autor no exercício de funções no poker não bancado (visto que os recibos se referem aos anos de 2021 e de 2022 e que este, tal como o autor, foi recebendo “Gratificações de Torneio de Poker), ao passo que o funcionário FF não exerceu essas funções, pelo menos nos anos de 2018 a 2020 (visto que os recibos se referem, tal como os do autor, a este período e nenhum respeita a gratificações de torneios de poker).
No que concerne a este último funcionário, verifica-se que, nos anos de 2018 a 2020, para além do vencimento base (relativo a uma carga horária de 173,33 horas de trabalho normal, sucessivamente no valor ilíquido – sendo igualmente ilíquidos os demais valores que indicaremos – de 936,00€, 955,00€ e 974,00€), diuturnidades (no valor de 120,00 €) e subsídio de alimentação, auferiu mensalmente um “Subsídio de Função Adj. Chefe de Sala” que se manteve no valor de 225,00€ ao longo destes três anos.
Cfr. documentos n.º 1, 6, 7, 8, 12, 17, 21, 24, 27, 30, 33, 36, 37, 40 e 43 relativamente ao ano de 2018; documentos n.º 2, 4, 9, 10, 13, 14, 15, 18, 22, 25, 28, 31, 34, 38, 39 e 44 relativamente ao ano de 2019; documentos n.º 3, 5, 11, 16, 19, 20, 23, 26, 29, 32, 35, 41, 42 e 45 relativamente ao ano de 2020.
No mesmo período, o autor auferiu mensalmente, para além do vencimento base (relativo à mesma carga horária de 173.33 horas, sucessivamente no valor ilíquido de 829,00€, 846,00€ e 863,00€) e do subsídio de alimentação, um “Subsídio de Função Adj. Chefe de Sala” no valor de 270,00€ até Agosto de 2018 e no valor de 352,00 € nos meses subsequentes.
A partir de Setembro de 2018, ou seja, quando passou a exercer funções no poker não bancado, passou a auferir também um “Subsídio de Função, que nesse mês de Setembro ascendeu a 634,00 €, mas que a partir do mês seguinte se fixou nos 1.400,00 € mensais.
Nos meses de Março, Julho, Setembro, Outubro e Novembro de 2018, Junho, Julho e Setembro de 2019 e Fevereiro e Março de 2020, o autor auferiu ainda “Gratif. Torneio de Poker”, cujo valor foi de 300, 400, 600 ou 900 euros.
Cfr. documentos n.º 44, 49, 53, 54, 58, 59, 60, 65, 68, 72, 73, 78, 81, 82, 86, 87, 90, 91, 92 e 97 relativamente ano de 2018; documentos n.º 47, 50, 55, 61, 62, 66, 69, 70, 74, 75, 76, 79, 83, 84, 88, 93, 94 e 98 relativamente ano ano de 2019; documentos n.º 48, 51, 52, 56, 57, 63, 64, 67, 71, 77, 80, 85, 89, 95, 96 e 99 relativamente ao ano de 2020.
Por fim, no que concerne ao funcionário BB, verifica-se que no ano de 2021, para além do vencimento base (no valor de ilíquido de 1.000,00€ para a mesma uma carga horária de 173,33 horas de trabalho normal, mas que foi de apenas de 700,00€ no mês de Agosto, para uma carga horária de apenas 121.33 horas de trabalho normal) e do subsídio de alimentação, auferiu mensalmente um “Subsídio de Função”, cujo valor foi variando (280,00€ no mês de Agosto, certamente em virtude da menor carga horária; 400,00€ nos meses de Setembro a Novembro; 154,49 no mês de Dezembro).
No ano de 2022, o vencimento base deste mesmo funcionário foi, nos meses de Janeiro e Fevereiro, de 1.000,00€ para uma carga horária de 173,33 horas de trabalho normal, tendo diminuído para 900,00€ no mês de Março para uma carga horária de 104 horas e subido para 918,00€ nos meses seguintes para uma carga horária de 108.33 horas, embora o valor efectivamente auferido tenha sido inferior nos meses de Janeiro a Março e Dezembro, presume-se que em virtude da carga horária não ter sido cumprida. A este vencimento base acresceu:
- No mês de Janeiro, um “Subsídio de Função” no valor de 320,00€ e “Retroactivos Subs. Funções” no valor de 245,60€;
- No mês de Feveriro, um “Subsídio de Função” no valor de 360,00€ e um “Subsídio de Funções” no valor de 139,55€;
- No mês de Março, um “Compl. Vencimento” no valor de 433,35€” e um “Subsídio de Função” no valor de 177,33 €.
Nos meses de Março, Junho, Setembro e Outubro de 2022 este funcionário auferiu ainda “Gratif. Torneio de Poker”, cujo valor foi de 275, 300 ou 500 euros.
Cfr. documentos n.º 104, 105, 107, 109, 110, 113 e 126 relativamente ao ano de 2021 e documentos n.º 100, 101, 102, 103, 106, 108, 111, 112, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125 e 127 relativamente ano de 2022.
Não é alvo de controvérsia entre as partes, e é corroborado por toda a prova produzida, inclusivamente a prova documental agora junta aos autos, que a categoria profissional de adjunto de chefe de sala confere o direito a um subsídio remuneratório.
É igualmente consensual e corroborado por toda a prova produzida que os adjuntos de chefes de sala que exerciam funções no poker não bancado auferiam complementos remuneratórios mais generosos que os demais, tendo em conta a maior complexidade das suas tarefas e a maior disponibilidade que as mesmas demandam.
Mas da prova documental agora em análise também decorre com clareza que a compensação dada ao autor e ao funcionário BB pela sua participação em determinados torneios de poker – muito provavelmente devido à ainda maior complexidade que revestiam, à disponibilidade acrescida que demandavam e, eventualmente, à necessidade de deslocação para outros locais, designadamente Chaves, como foi mencionado por diversas testemunhas – não era feita, pelo menos de modo exclusivo, por subsídios mensais regulares, mas mediante a atribuição das gratificações acima aludidas.
Posto isto, focando agora a nossa atenção nos rendimentos mensais regularmente auferidos pelo autor nos anos de 2018 a 2020, comparando-os com os rendimentos mensais regularmente auferidos por FF no mesmo período, verificamos o seguinte: até Agosto de 2018, enquanto ambos exerceram funções de adjunto de chefe de sala, na sala de jogos tradicionais, sem funções no poker não bancado, o vencimento base do autor foi, até Março, de 829,00€, acrescido de um subsídio de função de adjunto de chefe de sala de 270,00€, num total de 1099; a partir de Abril o vencimento base passou a ser de 846,00€, o qual, somado ao referido subsídio, perfazia 1116,00€; por sua vez, o vencimento base de FF foi sempre superior – 936,00€ até Março e 955,00€ a partir de Abril – mas o subsídio de adjunto de chefe de sala foi sempre inferior, situando-se nos 225,00€; a soma destas parcelas era, ainda assim, superior às auferidas pelo autor – 1161,00€ até Março e 1180,00€ a partir daí; o referido FF auferiu ainda diuturnidades, no valor mensal de 120,00€ mensais, ascendendo a soma das três parcelas a 1281,00 € e 1300,00€, respectivamente.
A partir de Setembro, quando o autor passou a exercer funções no poker não bancado, ao passo que FF manteve as funções anteriores, tudo se alterou para aquele.
FF manteve inalterado o único subsídio que lhe era pago, bem como as diuturnidades, tendo o seu vencimento base passado para 974,00€ a partir de Abril de 2019; este vencimento base e o referido subsídio ascendiam a 1199,00€, a que acresciam as diuturnidades, num total de 1319,00 €.
Já o autor, embora mantendo um vencimento mais baixo, que passou para 863,00€ em Abril de 2019, viu o seu subsídio de adjunto de chefe de sala aumentado para 352,00€ (o que, desde já se refira, credibiliza o depoimento da testemunha MM, a qual afirmou que o subsídio das chefias do poker era superior ao das restantes chefias em cerca de 150,00€), pelo que a soma destas duas parcelas passou a ser maior do que a somas das mesmas parcelas auferidas por FF (sem contar as diuturnidades recebidas por este, certamente devidas pela sua antiguidade). Acresce que o autor passou a receber um segundo subsídio de função, que no mês de Setembro de 2018 foi de 634,00€, mas que a partir daí se fixou nos 1400,00€.
Comparando agora os referidos rendimentos do autor com os rendimentos auferidos por BB, que lhe sucedeu nas funções relativas ao poker não bancado, verificamos que este, embora com vencimentos base superiores aos auferidos pelo autor (sendo certo que dizem respeito a momentos temporais posteriores), no ano de 2021 auferiu um único subsídio, que nunca ultrapassou os 400,00€ mensais – superior ao subsídio auferido por FF, mas muito inferior aos subsídios auferidos pelo autor – e no ano de 2022 apenas auferiu subsídios no primeiro trimestre (desconhecendo-se por que razão não auferiu qualquer subsídios nos restantes meses do ano), igualmente superiores ao subsídio que era pago a FF, mas muito inferiores aos que eram pagos ao autor.
Do exposto decorre que, enquanto o autor e FF exerceram as mesmas funções, ambos auferiram um único subsídio, sendo o do autor um pouco superior (embora o vencimento base fosse inferior). Quando o autor passou a exercer funções no poker bancado, o subsídio que o autor recebia em comum com FF passou a ser ainda mais elevado, certamente para o compensar da maior exigência destas funções. Mas as alterações não se quedaram por este aumento, tendo o autor passado a receber um segundo subsídio, com um valor imensamente superior ao primeiro.
Alargando a nossa comparação ao funcionário BB, verificamos que, sendo a mesma a categoria profissional dos três, os subsídios pagos ao autor (a partir de Setembro de 2018) e a BB eram superiores ao subsídio pago a FF, o que apenas encontra justificação na circunstância de exercerem funções no poker não bancado. Mas os subsídios pagos ao autor sempre foram muito superiores aos pagos a BB. Esta circunstância sugere que o autor foi compensado por algo mais do que a maior exigência do trabalho desempenhado.
A isto acresce que o segundo subsídio que o autor passou a receber a partir de Setembro de 2018 tem um valor superior ao que aqui é reclamado a título de gratificações.
Deste modo, cremos que está ultrapassada a dúvida que determinou a produção da nova prova que vimos analisando.
Claro que esta nova prova não confirma, por si só, o facto descrito na al. I) dos factos julgados não provados. Mas a sua concatenação com a demais prova anteriormente produzida demonstra esse facto com a segurança necessária.
A prova anteriormente produzida já apontava nesse sentido, isto é, que para além de compensar o autor pela maior exigência das funções no poker não bancado, os subsídios que este passou a auferir também se destinavam a compensá-lo pela perda da gratificações que a autora/recorrente lhe vinda pagando. Isso mesmo já havia sido afirmado pelos representantes da autora HH e CC, bem como pelas testemunhas MM e JJ. E o mesmo decorria da análise da acta de 14.09.2021.
Menos concludente se revelou a testemunha DD (e não KK, como por lapso se referiu no anterior acórdão), pois apenas confirmou que os fiscais-chefes do casino de ... recebem um subsídio de função e que este é superior quando exercem funções no jogo de poker não bancado.
Todavia, como dissemos no acórdão anteriormente proferido, a testemunha NN, que exerce funções de adjunta de chefe de sala ou fiscal-chefe, embora tivesse confirmado que foi aumentada quando passou para o jogo de poker não bancado, afirmou que nunca lhe disseram que esse aumento era para compensar a perda das gratificações, assim lançando dúvidas sobre a finalidade do referido subsídio de função. Tais dúvidas foram alimentadas pelo próprio depoimento da testemunha MM, pois embora tenha afirmado que a empresa decidiu compensar o réu/recorrido pela perda de gratificações, admitiu que a atribuição do subsídio também teve em conta a maior responsabilidade e a maior disponibilidade exigida aos fiscais-chefes ou adjuntos de chefe de sala em funções no poker não bancado, acabando mesmo por referir que aquele subsídio não será retirado se a autora vier a pagar as gratificações ao recorrido.
Mas estas dúvidas estão agora sanadas, atenta a leitura que fazemos dos documentos juntos.
Relativamente à testemunha NN, desconhecendo-se os termos do seu aumento, admite-se que apenas tenha sido compensada pela maior exigência do lugar e não pela perda de gratificações, como parece ter sucedido com BB.
Quanto à afirmação da testemunha MM, de que o subsídio não será retirado se a autora pagar as gratificações ao recorrido, para além da resposta ter sido dada pelo advogado que estava a inquirir a testemunha, limitando-se esta a confirmar a resposta assim adiantada, não resulta claro se pretendeu afirmar que a concessionária do casino não irá exigir ao réu a devolução, total ou parcial, dos subsídios já pagos ou se pretendeu afirmar que os subsídios que eventualmente se vencessem após o pagamento das gratificações não seriam cortados ou reduzidos. Ora, cremos que apenas esta última hipótese – de manter intactos os mesmos subsídios após o reinício do pagamento das gratificações pela autora – poderia revelar com clareza que tais subsídios nada tinha a ver com estas gratificações, sendo certo a mesma apenas se poderia fundamentar num juízo de prognose póstuma da testemunha, pois resultou da prova produzida em audiência de julgamento que o autor já não exerce as mesmas funções.
Seja como for, cremos ser suficientemente claro que a testemunha quis afirmar que os referidos subsídios se destinavam a compensar simultaneamente a maior exigência das novas funções e a perda das gratificações, o que é corroborado pela restante prova produzida, inclusivamente a acta de 14.09.2021.
Acresce que, como também decorre da prova que vimos analisando, maxime do depoimento da testemunha MM, esta atitude da concessionária está longe de ser uma atitude altruísta. A referida concessionária tinha interesse em colocar o réu no poker, dada a grande procura deste jogo e os lucros que gerava, mas esta pretensão esbarrava na circunstância de a autora deixar de pagar gratificações ao réu.
Também não cremos que a circunstância de a autora ter cativado os valores que teria de pagar ao autor caso lhe viesse a ser reconhecido o direito às gratificações contrarie a análise que vimos fazendo. Aquela foi, sem dúvida, uma atitude cautelosa, que se compreende, na medida em que a autora, muito provavelmente, não teria outra forma de pagar essas gratificações que não fosse exigir aos demais funcionários a devolução do que lhes tinha sido distribuído a mais. Mas nada nos diz a respeito dos termos em que foi acordada a atribuição ao réu de funções no poker bancado. E a verdade é que, até hoje, a autora se recusou a entregar ao réu as gratificações em discussão.
Veio, porém, o réu/recorrido juntar aos autos um documento, subscrito pela A..., onde esta afirma que os subsídios que vinham sendo pagos ao réu «tinham a seguinte componente funcional como pressuposto de recebimento:
Subsídio de adjunto chefe de sala
Tem como funções assegurar a regularidade da exploração dos jogos tradicionais e manter a disciplina dos empregados e dos frequentadores bem como coadjuvar o chefe de partida substituindo-o nos seus impedimentos e ausências.
Subsídio de função – Poker
Subsídio processado tendo em conta o aumento de amplitude de funções e responsabilidade decorrente da organização, chefia e controlo dos Torneios de Poker».
Não cremos, porém, que este documento afaste a leitura que fizemos da restante prova produzida.
Desde logo porque foi elaborado em resposta a um pedido do réu, desconhecendo-se os termos em que esse pedido foi formulado e que podem ter influenciado a forma como a resposta foi dada.
Mas também porque a alusão a “Torneios de Poker” se revela equívoca, tendo em conta que, como vimos, a participação do réu nesses torneios não era, pelo menos em parte, compensada por subsídios regulares, mas antes pelas gratificações já antes aludidas.
De todo o modo, uma coisa é a componente funcional que serve de pressuposto ao recebimento de um subsídio remuneratório – que, por definição, corresponde a funções desempenhadas pelo beneficiário desse subsídio –, outra bem diferente são as razões concretas que, no contexto da negociação, conduzem à determinação do montante desse subsídio. Assim, afirmar-se que o “subsídio de função – poker” tem como pressuposto funcional «o aumento de funções e responsabilidades decorrente da organização, chefia e controlo dos Torneios de Poker» não invalida que o valor desse subsídio tenha sido negociado tendo em conta a perda das gratificações distribuídas pela CDG.
Por tudo quanto ficou exposto, entendemos que ficou provado o facto descrito na al. I) dos factos não provados, o qual deverá, assim, transitar para os factos provados.
1.3. Pelo exposto, na procedência parcial da impugnação da decisão da matéria de facto, decide-se:
- Alterar a redacção do ponto 20) dos factos provados, nos seguintes termos:
20. Na divisão aludida supra em 10), desde janeiro de 2018 o R. ficou adstrito à chefia da sala de jogos tradicionais do Casino de ... na categoria de fiscal-chefe.
- Manter inalterada a redacção do ponto 34. dos factos provados;
- Eliminar a al. A) dos factos não provados;
- Eliminar al. I) dos factos não provados e aditar aos factos provados um ponto com a seguinte redacção:
36) O R. auferia remuneração superior à dos outros profissionais que exercem funções na sala de jogos tradicionais como compensação pela não perceção de gratificações.
*
2. O direito
2.1. Questiona-se neste recurso se o autor, que tem a categoria profissional de fiscal-chefe ou adjunto de chefe de sala e que exerce funções no jogo de “poker não bancado” e do “poker não bancado em modo de torneio”, tem direito a receber as gratificações relativas à sala de jogos tradicionais do Casino de ..., que incumbe à autora distribuir.
As regras de distribuição das gratificações dadas pelos frequentadores das salas de jogos tradicionais e das salas privativas de máquinas dos casinos estão consagradas na Portaria n.º 1159/90, de 27 de Novembro, alterada pelas Portarias n.º 129/94, de 1 de Março, e 355/2004, de 5 de Abril.
Por sua vez, as normas de distribuição das gratificações relativas às salas de bingo estão, actualmente, previstas no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 31/2011, de 4 de Março, e na Portaria n.º 128/2011, de 1 de Abril.
A referida Portaria n.º 1159/90 foi publicada na vigência da versão originária do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro (doravante denominado “Lei do Jogo”), ao abrigo seu artigo 79.º, n.º 3. No que concerne às gratificações relativas às salas de jogos tradicionais manteve, na sua essência, as regras que constavam do Despacho Normativo n.º 24/89, de 17 de Fevereiro (publicado no Diário da República, I série, n.º 62, de 15 de Março de 1989), que havia sido emitido ao abrigo do artigo 13.º, § 1.º, do Decreto n.º 41812, de 9 de Agosto de 1958, na redacção dada pelo Decreto n.º 43044, de 2 de Julho de 1960. No que concerne às gratificações respeitantes às salas privativas de máquinas, veio colmatar a lacuna que então se registava na respectiva regulamentação. A referida Portaria n.º 1159/90 está dividida em 3 partes, a primeira dedicada às regras gerais, a segunda às salas de jogos tradicionais e a terceira às salas privativas de máquinas.
Nas palavras de Vasco António Vilares Roque (A Lei do Jogo e seus Regulamentos Anotada e Comentada, Coimbra, 2011, p. 595), nos diplomas regulamentares antes mencionados «são estabelecidas as regras especiais de distribuição mensal das gratificações nas diversas salas de jogos, distinguindo-as em função das diferentes modalidades de jogo nelas exploradas. A distribuição processa-se, em cada uma das salas ou modalidades de jogos, nos termos dos respectivos diplomas e preceitos regulamentares».
Tais regulamentos apenas aludem, de forma expressa, às salas de jogos tradicionais, às salas privativas de máquinas e às salas de bingo, ignorando a existência de salas mistas, certamente porque a lei apenas contemplou este tipo de salas após a sua aprovação, mais concretamente em 1995, por força das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro na Lei do Jogo, nomeadamente no artigo 32.º deste diploma.
Com excepção das salas de jogo do bingo, onde continua a não ser possível explorar outras modalidades de jogo de fortuna ou azar (cfr. artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 31/2011, de 4 de Março), com a entrada em vigor daquele diploma de 1995, para além de se manter a referência à possibilidade de existirem salas reservadas a determinados jogos e jogadores, passou a prever-se expressamente a instalação de salas mistas, com jogos tradicionais e máquinas (em termos a definir, no tocante ao tipo de jogos a praticar e à relação entre o número de máquinas e de mesas de jogo a instalar, em regulamento da Inspecção-Geral de Jogos), bem como a instalação de máquinas nas salas de jogos tradicionais.
Como refere o autor antes citado em anotação ao artigo 32.º da Lei do jogo (cit., p. 403), «a lei facult[a] uma ampla permissividade na escolha do modelo das salas de jogo a explorar, indo ao encontro das opções de gestão de cada concessionária de exploração»; «além das salas de jogo definidas como tradicionais e das salas de jogo de máquinas electrónias, em que os jogos são oferecidos ao público separadamente, o preceito do n.º 2 veio também possibilitar a criação de novas salas de jogo com características distintas, nomeadamente assentes na oferta misturada das diferentes modalidades de jogo, com a preponderância de uma ou outra modalidade, como é o caso das salas mistas estabelecido na alínea b), ou de uma oferta residual de jogos em máquinas nas salas de jogos tradicionais, como é o caso da alínea c). Efectivamente, estes novos tipos legais de salas de jogos vieram possibilitar uma oferta mais diversificada, com jogos apresentados de forma isolada ou misturados com outros em proporções variáveis caso a caso, o que sempre contempla a expectativa de abranger um maior número de solicitações do público, que corresponde a um certo intuito de optimização de meios e fins».
Tornou-se, assim, claro que a aplicação das regras de distribuição das gratificações não pode assentar no local ou sala física onde decorre cada um dos jogos que geram aquelas gratificações, mas antes na própria classificação de cada um desses jogos. É, igualmente, claro que esta classificação dos jogos também não pode assentar naquele local ou sala física onde são praticados.
No mesmo sentido se pronuncia o autor que vimos citando, afirmando o seguinte (cit., 605 e 606):
«Tal como ocorre para a definição do quadro de pessoal das salas de jogos, de que trata o art. 77.º (…), também para o efeito de distribuição das gratificações se verifica que a regulamentação em vigor é omissa em relação às salas mistas, onde se exploram, conjuntamente, jogos tradicionais e em máquinas electrónicas. Efectivamente, os diplomas regulamentares que tratam da distribuição das gratificações não contemplam, na sua expressão literal, as salas mistas, pelo simples facto destas só terem tido existência legal muito posteriormente, com a sua introdução no texto do art. 32.º do Decreto-Lei n.º 10/95. A sua existência legal data, assim, do ano de 1995, embora, na prática, a sua criação efectiva só tenha vindo a ocorrer no ano de 2002.
Porém, (…) é por demais evidente (…) que a terminologia legal usada de salas de jogos tradicionais e de salas privativas de máquinas tem subjacente a modalidade de jogo em si, pelo que é de inteira razoabilidade considerar que à falta de designação legal expressa se deva entender que as gratificações recebidas se hão-de considerar reportadas aos empregados das categorias profissionais inerentes à exploração das diversas modalidades dos jogos, ou seja, aos empregados adstritos aos jogos tradicionais ou aos jogos em máquinas, qualquer que seja a sala em que as modalidades são exploradas no estabelecimento de casino, por ser aos jogos que o pessoal efectivamente se destina, para dar cumprimento às tarefas da sua execução e regular funcionamento».
O mesmo autor prossegue, preconizando que o serviço de inspecção condicione «a autorização da abertura de salas mistas a uma interpretação extensiva do diplomas que regulam a distribuição das gratificações, por forma a ser considerada a sua referência feita aos empregados de jogos tradicionais, dos jogos em máquinas e do jogo do bingo, com o que deve ser afastada a valorização extremada da terminologia por salas, impedindo a indevida valorizado [sic] do particular em detrimento do essencial, que é, sem dúvida, a modalidade de jogos a explorar. A distribuição das gratificações deverá, assim, ser prosseguida por empregados de modalidades de jogos e não por salas de exploração».
Atento o exposto, impõe-se aferir qual a modalidade de jogo em que se insere o jogo de poker não bancado, que o réu/recorrido considera integrado nos jogos tradicionais, ao contrário da autora recorrente, que o considera excluído dessa modalidade.
Antes de mais refira-se que, ao contrário do que parece entender a recorrente, os tribunais não estão vinculados à interpretação que o Ministro da tutela faça das normas contidas na Portaria n.º 1159/09, de 27 de Novembro (ou de qualquer outro acto normativo) por força do disposto no artigo 3.º dessa Portaria. Os tribunais estão, naturalmente, sujeitos à lei, como decorre da própria definição da independência judicial ínsito no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Mas nenhuma lei nem nenhum acto normativo infra-legal submete os tribunais à interpretação preconizada por qualquer outra entidade, pública ou privada, sob pena de violação daquele princípio constitucional da independência dos tribunais. O único limite a esta independência é, precisamente, a sujeição à lei, mas já não a interpretação que dela fazem outras entidades, inclusivamente o poder executivo.
Assim, afigura-se de meridiana clareza que a norma do artigo 3.º da Portaria 1159/09 não tem como destinatários os tribunais, mas sim as entidades directamente interessadas na distribuição das gratificações.
Cremos que é, precisamente, neste pressuposto que Vasco António Vilares Roque, no seguimento do excerto anteriormente citado (loc. cit.) afirma que, «em prossecução do expressamente estabelecido na Portaria n.º 1159/90 relativamente à distribuição de gratificações pelos profissionais de jogos dos casinos, a fazer em função dos cargos, profissões e categorias dos sectores de actividade que literalmente designou por salas de jogos tradicionais e por salas privativas de máquinas, compete também ao Serviço de Inspecção de Jogos desencadear formalmente o mecanismo de interpretação autêntica a que está subordinado aquele diploma, por força do seu n.º 3, propondo a sua interpretação extensiva, por forma a que o termo salas nele anteposto aos sectores de actividade, seja entendido extensivamente aos empregados que prestam funções em cada uma delas, mas relativamente às modalidades de jogos, de forma a aproximar o sentido literal da lei do que ela pretendeu efectivamente abranger».
Também não tem qualquer razão a recorrente quando afirma que o poker não bancado não é um jogo de fortuna e azar equiparável aos ditos jogos tradicionais, porque é jogado entre os jogadores inscritos e não contra a concessionária, o prémio é previamente estabelecido e a concessionária não corre qualquer risco de perda no jogo. Estas são as características que o definem como um jogo não bancado, mas não excluem a sua caracterização como um jogo tradicional pois, como veremos melhor infra, são vários os jogos não bancados que se integram nos jogos tradicionais (cfr. artigo 4.º, n.º 1, da Lei do Jogo).
Carece, igualmente, de fundamento a afirmação da recorrente de que o poker não bancado não configura um jogo de fortuna e azar, mas antes um jogo de destreza intelectual, porque, ao contrário daqueles, estes não dependem exclusivamente da sorte. Desde logo porque, como também veremos melhor infra, a legislação vigente expressamente qualifica o poker não bancado como um jogo de fortuna e azar – cfr. Portaria n.º 217/2007, de 26 de Fevereiro, por via da qual foi autorizada pelo governo a exploração nos casinos do jogo de fortuna ou azar póquer não bancado, nas variantes «omaha» e «hold'em. Mas também porque aquelas afirmações desconsideram e contrariam as definições legais de jogos de fortuna e azar («aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte», nos termos do artigo 1.º da Lei do Jogo) e de modalidades afins do jogo de fortuna ou azar (que o artigo 159.º da mesma lei define como «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida».
Clarificadas estas questões, adiantando a nossa leitura das normas pertinentes, desde já afirmamos que não nos suscita qualquer dúvida que o poker não bancado deve ser classificado como um jogo tradicional.
De harmonia com o artigo 4.º, n.º 1, da Lei do Jogo, nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;
b) Jogos bancados em bancas simples: black jack/21, chukluck e trinta e quarenta;
c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;
d) Jogo bancado: keno;
e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;
f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
O n.º 3 do mesmo artigo acrescenta que compete ao membro do Governo da tutela autorizar a exploração de novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e após parecer da Inspecção-Geral de Jogos.
Por sua vez, o artigo 5.º do mesmo diploma legal dispõe que as regras de execução para a prática dos jogos de fortuna ou azar serão aprovadas por portaria do membro do Governo da tutela, mediante proposta da Inspecção-Geral de Jogos, ouvidas as concessionárias.
Estas regras constam, actualmente, da Portaria n.º 217/2007, de 26 de Fevereiro – que, como vimos, também autorizou a exploração nos casinos do jogo de fortuna ou azar póquer não bancado, nas variantes «omaha» e «hold'em» e que revogou a anterior Portaria n.º 817/2005, de 13 de Setembro – com o adimento introduzido pela Portaria n.º 401/2015, de 9 de Novembro.
Aquela Portaria n.º 217/2007 está dividida em 3 Títulos: o primeiro dedicado aos Jogos bancados, o segundo dedicado aos Jogos não bancados e o terceiro aos jogos de máquinas automáticas.
Segundo Altina Rento e Abel Laureano (Direito do Jogo (Legislação Anotada), Lisboa, 1991, p. 25 (nota ao artigo 4.º), «[j]ogos bancados são aqueles em cujo resultado o explorador (banca) é parte interessada. Contrapõem-se-lhe os jogos não bancados, cujo resultado é indiferente para o explorador. Assim, por exemplo, na roleta (jogo bancado) os jogadores apostam contra a banca e quando ganham esta perde; no bacará chemim de fer (jogo não bancado) o casino «aluga» instalações, material e pessoal aos jogadores (para que estes joguem entre si), a troco duma quantia estabelecida em percentagem fixa relativamente ao valor das apostas em jogo».
De acordo com esta classificação o bingo é, naturalmente, um jogo não bancado, como também decorre do disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. e), da Lei do Jogo. Contudo, não está regulado na Portaria em análise, mas antes no Decreto-Lei n.º 31/2011, de 4 de Março, até pelas especificidades que apresenta. Mas, para além de breves alusões, não nos determos na análise do respectivo regime jurídico, visto não estar em causa nestes autos.
Regressando à análise da Portaria n.º 217/2007, verifica-se que o título relativo aos jogos bancados está dividido em 3 capítulos, dedicados aos Jogos de roleta (Roleta americana e Roleta francesa), Jogos de dados (Banca francesa, Craps e Cussec) e Jogos carteados (Blackjack/21, Póquer sem descarte, Bacará ponto e banca e Bacará ponto e banca/Macau).
O título relativo aos jogos não bancados tem um capítulo único com a mesma epígrafe, subdividido em 2 secções, dedicadas ao Bacará chemin de fer e ao Póquer não bancado, contendo a secção dedicada ao Póquer não bancado 5 subsecções (Regras gerais, Variante omaha, Variante hold’em, Variante póquer sintético e Jogos em modo de torneio).
Por fim, o título dedicado às Máquinas automáticas contém um capítulo único, com a mesma epígrafe.
Como vemos, nem a Lei do Jogo, nem a Portarias que a regulamentam fornecem a definição de jogo tradicional.
Contudo, a concatenação das normas que regulam a distribuição das gratificações – assentes, como vimos, na categorização dos jogos de fortuna e azar e das modalidades afins como jogos tradicionais, de máquinas ou de bingo – com as normas que definem as regras de execução dos jogos de fortuna e azar e modalidades afins – assentes na sua categorização como Jogos bancados, Jogos não bancados (aqui se incluindo o jogo de bingo) ou Jogos de máquinas – revela-nos com uma evidência cristalina que na categoria de jogos tradicionais cabem os jogos bancados e não bancados, com excepção do bingo, havendo uma natural correspondência entre os conceitos de “jogos de máquinas” utilizados nos dois regimes normativos, o mesmo sucedendo com o conceito de jogo de bingo utilizado no artigo 4.º, n.º 1, al. e), da Lei do Jogo, no Decreto-Lei n.º 31/2011, de 4 de Março, e na Portaria n.º 128/2011, de 1 de Abril.
Neste mesmo sentido se pronunciaram Altina Rento e Abel Laureano (cit., p. 43), afirmando que «[j]ogos tradicionais, para este diploma [referindo-se à Lei do Jogo], são todos os mencionados no seu art. 4.º, à excepção do bingo e dos jogos em máquinas», ali se incluindo o poker não bancado, por força da remissão feita as Portarias antes analisadas.
Mas o direito às gratificações em causa não depende apenas do exercício de funções na sala de jogos tradicionais, ou melhor, no sector dos jogos tradicionais. Depende ainda da categoria profissional do trabalhador.
De harmonia com o disposto no ponto 1-A)-d), da parte II, da Portaria 1159/90, entre os trabalhadores das salas de jogos tradicionais que têm direito à percepção de gratificações incluem-se os empregados de banca e os auxiliares de banca ali discriminados, incluindo-se no elenco dos primeiros os que têm a categoria profissional de fiscal-chefe, também denominada adjunto de chefe de sala (cfr. CCT infra identificada).
A respeito das categorias profissionais dos trabalhadores das salas de jogo, diz-se o seguinte Vasco António Vilares Roque em anotação do artigo 79.º da Lei do Jogo (cit., p. 579): «As categorias profissionais e os conteúdos funcionais dos trabalhadores das salas de jogo eram (e são), por isso, as estabelecidas nas cláusulas 3.ª e 8.ª daquele Contrato Colectivo de Trabalho [referindo-se ao CCT celebrado entre a Associação Portuguesa das Empresas Concessionárias das Zonas de Jogo e o Sindicato dos Profissionais de Banca nos Casinos e outro, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª Série, n.º 3, de 15 de Agosto de 1991, revisto em 08.09.1992, 08.08.1998, 15.08.2000, 23.08.2001 e 29.08.2002], com remissão para o seu anexo I, sobre sectores, profissões, cargos e categorias, e para o seu anexo III, sobre a estrutura dos níveis de qualificação, com a inerente diferenciação de funções. Os trabalhadores eram (e são) classificados por cargos, profissões e categorias nos sectores dos jogos tradicionais, dos jogos em máquinas e do jogo do bingo, que na expressão literal daquele contrato foram designadas por sala de jogos tradicionais, sala de máquinas de jogo (slot mchines) e sala de bingo».
Ora, resultando dos factos provados que o réu tem, actualmente, a categoria profissional de fiscal chefe e que exerce, desde Setembro de 2018, funções no jogo de poker não bancado, ou seja, no sector dos jogos tradicionais, não restam dúvidas e que tem direito a receber a sua quota parte nas gratificações dadas pelos frequentadores da sala de jogos tradicionais do Casino de ....
Foi, também, esta a conclusão do tribunal a quo, que nesta parte merece o nosso aplauso.
2.2. Sucede que, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, julgou-se provado que o réu auferia remuneração superior à dos outros profissionais que exercem funções na sala de jogos tradicionais como compensação pela não perceção de gratificações (cfr. ponto 36 dos factos provados), conforme foi alegado pela autora/recorrente.
Perante este facto, consideramos ser aqui aplicável a doutrina do acórdão desta mesma secção Tribunal da Relação do Poto, de 16.01.2018 (proc. n.º 368/16.7T8ESP.P1, rel. Vieira e Cunha), que passamos a citar: «Nestes termos, o animus solvendi de uma obrigação é de presumir – cf. Prof. Menezes Cordeiro, Tratado - Dtº das Obrigações, III (2010), pg.259, não podendo tal obrigação presumida deixar de ser a que foi reclamada no presente processo pelos AA. [pelo réu reconvinte, no nosso caso] Além de que o cumprimento da obrigação por terceiro se mostra genericamente admissível, nos termos do artº 767º nº1 CCiv, a discussão juscivil passará assim para o campo da iniciativa da entidade patronal que cumpriu a obrigação perante o seu trabalhador, com a discussão relativa à sua possível sub-rogação, enquanto terceiro (artºs 589ºss. CCiv), ou do ressarcimento da entidade patronal por via do enriquecimento sem causa, nos diversos aspectos que conformam este instituto».
A obrigação da aqui autora perante o réu está, assim, extinta pelo cumprimento por terceiro, o que determina a improcedência do pedido reconvencional.
Mas determina, igualmente, a total procedência do pedido da autora, com fundamento no enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473.º do CC.
Dispõe assim este artigo 473.º:
«1 – Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2 – A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
Para existir enriquecimento sem causa é, assim, necessário que haja um enriquecimento, um empobrecimento, um nexo causal ou correlação entre um e outro e, ainda, a falta de causa justificativa da deslocação patrimonial verificada – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, p. 399 e seguintes) o enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (preço da alienação de coisa alheia; lucro da edição de obra alheia ou da representação de peça alheia; recebimento de prestação não devida, porque a obrigação nunca existiu ou já havia sido cumprida ou fora cedida entretanto; bens adquiridos ou benfeitorias realizadas pelo gestor; etc.); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária (instalação em casa alheia; apascentação do rebanho próprio em prédio de outrem; consumo de alimentos pertencentes a terceiro; utilização da assinatura de outrem no teatro ou no ópera; etc.); outras, ainda, na poupança de despesas (A, por exemplo, alimenta o descendente de B, porque julga erroneamente tratar-se do seu filho).
De acordo com o ac. do STJ de 24.03.2017 (proc. n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1), «[p]ode (…) dizer-se que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa».
De harmonia com o disposto no artigo 474.º do CC, a acção de enriquecimento é sempre subsidiária ou residual. Não pode haver acção alternativa. O empobrecido só pode lançar mão da acção de enriquecimento se a lei não lhe facultar outros meios para ser ressarcido. Só depois de se apurar que as normas directamente reportadas ao litígio (v.g. nulidade, anulação do negócio jurídica, repetição do indevido, reivindicação) não garantem a tutela da situação em concreto é que pode recorrer-se complementarmente ao instituto do enriquecimento.
No presente caso não suscita dúvidas que os factos apurados demonstram a ocorrência de um enriquecimento do recorrido à custa de um empobrecimento da recorrente, sem causa justificativa, pois apurou-se que a autora recorrente, por mero lapso (cfr. ponto 12 dos factos provados) pagou ao réu recorrido a quantia de 248,53€ a título de gratificações que este já tinha recebido da sua entidade patronal, que havia assumido o encargo de as pagar.
Estes factos revelam, portanto, uma correlação ou nexo causal entre a redução do activo patrimonial da autora recorrente e o aumento do activo patrimonial do réu recorrido. Mas também revelam a inexistência de causa para este enriquecimento, pois nenhuma norma ou princípio jurídico justifica que o réu receba duas vezes a mesma prestação.
Assim, na ausência de outro instituto jurídico apto a corrigir o desequilíbrio assim detectado, está justificado o recurso ao enriquecimento sem causa para restabelecer o equilíbrio patrimonial rompido pelo duplo pagamento.
Atento tudo quanto ficou exposto, na procedência da apelação, importa julgar totalmente improcedente o pedido reconvencional e totalmente procedente o pedido da autora, condenando o réu a devolver-lhe a quantia de 248,53€.
Consequentemente, as custas, tanto da acção como do recurso, serão suportadas integralmente pelo recorrido, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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III. Decisão
Pelo exposto, na total procedência da apelação, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e, consequentemente:
- Julgam procedente o pedido da autora e condenam o réu a devolver-lhe a quantia de 248,53€;
- Julgam improcedente o pedido reconvencional e absolvem a autora do mesmo.

Custas pelo réu recorrido.

Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 10 de Outubro de 2023
Artur Dionísio Oliveira
João Proença
Maria Graça Mira