Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
309/11.8TYVNG-N.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
AFETAÇÃO DO GERENTE DE DIREITO NÃO INTERVENTIVO
Nº do Documento: RP20220222309/11.8TYVNG-N.P2
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE resulta que não foi objetivo do legislador excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto da qualificação da insolvência como culposa, mas sim estendê-la a atos praticados por administradores de facto;
II - A circunstância de o gerente de direito não exercer, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, não o isentava das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito, de, designadamente, apresentar a sociedade à insolvência, de cumprir com o dever de colaboração, de elaborar as contas anuais ou de assegurar o cumprimento destes deveres;
III – O alheamento do gerente de direito relativamente aos destinos da sociedade constitui, por si só, violação dos deveres gerais que se lhe impunham nessa qualidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 309/11.8 TYVNG-N.P2
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 1
Apelação
Recorrente: AA
Recorrido: Min. Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Por sentença de 29.10.2011, devidamente transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “C..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., Vila do Conde declarando-se aberto o incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno, nos termos do art. 36º, nº 1, al. i) do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE].
Em 21.8.2015, a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentou o parecer a que alude o art. 188º, nº 3, do CIRE, propondo a qualificação da insolvência como culposa, nos termos do art. 186º, nºs 1, 2, als. a), b), f), g), h) e i) e 3, als. a) e b) do mesmo diploma, com afetação do sócio gerente AA.
Para o efeito, alegou o seguinte:
- Desconhece o paradeiro do sócio-gerente, o qual não contactou a Administradora da Insolvência, apesar das diligências por esta levadas a cabo, quer telefónica, quer pessoalmente;
- Incumpriu o dever de elaborar as contas anuais e de depósito das mesmas;
- Apesar dos bens indicados no balancete, não foi possível à Administradora da Insolvência proceder à apreensão da maior parte deles, uma vez que nas instalações da insolvente laborava a “X..., Lda.”;
- Em março de 2011 foram efetuadas duas vendas de imobilizado à empresa “Y..., Lda.”, cujo único sócio é o sócio-gerente da insolvente;
- Por fim, incumpriu ainda o dever de requerer a insolvência.
Por seu lado, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de subscrever, na íntegra, o parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência.
Devidamente citados a insolvente e o requerido, este apresentou a sua oposição em 9.4.2019, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
A devedora não deduziu oposição.
Foi proferido despacho saneador, admitida a prova e designada data para julgamento.
Este efetuou-se com observância das formalidades legais.
Proferiu-se depois sentença que:
a) Qualificou como culposa a insolvência de “C..., Lda.”;
b) Declarou afetado pela qualificação da insolvência como culposa o seu gerente AA;
c) Declarou AA, inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de dois anos;
d) Determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela pessoa afetada pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
Inconformado com o decidido interpôs recurso de apelação o gerente da insolvente, AA, sobre o qual viria a incidir acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 13.4.2021 que determinou a remessa dos autos à 1ª instância, ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 2, al. d) do Cód. de Proc. Civil, a fim de que a Mmª Juíza “a quo” proceda à análise crítica das provas produzidas relativamente aos factos provados e não provados.
Remetidos os autos à 1ª Instância, a Mmª Juíza “a quo” deu cumprimento ao determinado, tendo proferido nova sentença em 17.9.2021 cuja parte decisória reproduziu a da anterior sentença.[1]
Novamente inconformado o gerente da insolvente, AA, voltou a interpor recurso, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 27/09/2021, constante de fls.., além do mais, no pressuposto de que “…o Requerido praticou os factos integradores das alíneas a), b), f), g) e i) do n.º 2 do art. 186º do CIRE...”, decidiu:
“a) Qualifica-se como culposa a insolvência de “C..., Lda.”;
b) Declara-se afectado pela qualificação da insolvência como culposa o seu gerente AA;
c) Declara-se AA, pelo período de 2 (dois) anos, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detido pela pessoa afectada pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.”
2 - Porém, não tem razão.
3 - Com o presente recurso, além do mais, tem-se em vista não apenas a interpretação e aplicação da lei aos factos dados como provados, mas também a reapreciação da prova produzida v.g. documental e testemunhal (gravada), visando a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para efeitos do disposto v.g. no [art.] 662º do C.P.C..
4 - Quanto à matéria de facto em causa é a que consta dos pontos 5, 6, 9., 10., 11.,na medida em que se considera que a mesma foi, ao ser dada como provada, incorrectamente julgada, pois impõem uma análise diversa da sufragada na douta sentença em crise - o que, desde já, se invoca para todos os efeitos legais v.g. error in judicando, error facti, error juris.
5 - Mutatis mutandis, relativamente à matéria constante dos artigos 11º, 12º, 14º, 21º, 22º, 23º, 30º, 31º, 33º, 34º, 37º, 38º, da oposição, e bem assim atender aos documentos juntos sob os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, com aquele articulado e cujo conteúdo, por celeridade e economia processual, se dá aqui como reproduzido e integrado para todos os efeitos legais, matéria controvertida que se entende como relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e que, implícita e erradamente, foram dados como não assentes.
6 - Como consequência da pretendida alteração da matéria dada como provada, e com o aditamento e valoração da que se encontra sob os mencionados artigos da oposição (e documentos juntos), em qualquer caso, proceder a nova subsunção jurídica por forma à improcedência da acção (qualificação), ou, se tal não se entender – o que se admite somente por mera hipótese de raciocínio -, julgar procedente a oposição v.g. o pedido de não afectação do ora recorrente.
7 - Realizada a audiência de discussão e julgamento, o tribunal considerou assentes os seguintes factos: [segue-se a transcrição da factualidade assente constante da sentença recorrida].
8 - A fundamentação invocada pelo digníssimo tribunal, quanto à “… factualidade sob os nºs 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 10 encontra-se provada com base nos documentos correspectivamente indicados.”
9 - Quanto aos “documentos” atendidos pelo tribunal v.g. pretensamente para dar como provado os factos enunciados sob 10., ou seja, o “doc.4 junto ao requerimento de 16.08.2016”,
10 - A verdade é que perscrutado o invocado “doc.4”, este revela-se inidóneo, isto é não prova os factos que o tribunal a quo fez constar no ponto 10, como se alcança da sua simples leitura, das declarações da Sr.ª Administradora BB (cfr. Acta Julgamento de 12/10/2020, cujo depoimento foi gravado no sistema multimédia usado no sistema informático deste tribunal H@bilus media studio, tendo como iniciado pelas 09 horas e 48 minutos e terminado pelas 10 horas e 25 minutos), e depoimento da testemunha CC, cujo depoimento se encontra gravado no sistema multimédia usado no sistema informático deste tribunal h@bilus media studio, tendo como iniciado pelas 10 horas e 26 minutos e terminado pelas 11 horas e 08 minutos, depoimentos que aqui se dão por reproduzidos e integrados para todos os efeitos legais.
11 - Ademais, por alguma razão o Digníssimo Tribunal a quo proferiu, em 21/05/2019, o despacho de fls...a convidar a Sr.ª Administradora a concretizar precisamente a questão das vendas a que fez menção nas alíneas 18 e 19, do seu relatório, ou seja, o supracitado documento 4, admitindo-se ali, implicitamente, que tal documento não seria suficientemente idóneo para prova de tais factos.
12 - Em face do exposto, não podemos deixar de concluir que a apreciação que o tribunal fez das supracitadas provas em confronto foi errónea e até mesmo contraditória – o que se invoca para todos os efeitos legais.
13 - O mesmo sucede com a matéria dada como assente sob o ponto 11., como resulta da análise dos documentos 1, 2 e 3, juntos com o requerimento apresentado pela Sr.ª Administradora em 16/08/2016, quando confrontados com os aludidos depoimentos e com a demais informação constante dos autos v.g. consulta bases de dados da Seg. Social de base dados A.T., de fls..., A.R., assinado pelo recorrente, de fls.., informação “não certificada de 2011.12.28”, junta da C. R. Comercial relativa à firma “X...”.
14 - Do que resulta que a resposta dada à questão de facto pelo tribunal a quo é, data venia, errada, na medida em que não extrai dos factos analisados o seu verdadeiro sentido e alcance jurídico.
15 - Pois o verdadeiro sentido quanto a tal matéria encontra-se vertido nos artigos 7º, 8º e 9º, da oposição, que deverá ser considerada provada por via da valoração dos supracitados elementos probatórios.
16 - O Digníssimo Tribunal a quo consignou no ponto “6. O pai do requerido, Sr. DD, era o gerente de facto da insolvente, bem como, era sócio da sociedade da X..., Lda., que laborava/laborou na sede da insolvente.
17 - Esta matéria (Sr. DD, era o gerente de facto da Insolvente, bem como era sócio da sociedade da X..., Lda.) traduz-se numa leitura singela e reducionista da factualidade que se encontra subjacente, nomeadamente a alegada nos artigos 13º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, da oposição, incluindo o que se encontra narrado nos respectivos documentos juntos, tudo com relevância para a descoberta da verdade e boa decisão da causa,
Pois,
18 - Para que, fundada e inequivocamente, o Tribunal a quo pudesse concluir pelo putativo carácter culposo da insolvência, pela violação do dever de requerer a insolvência, e pela imputação ao ora recorrente da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respectiva conduta – até porque, data venia, esta radicará sempre na presunção de uma culpa funcional justificada pela intervenção directa e efectiva do titular do órgão social da sociedade devedora -, era imperioso o Digníssimo Tribunal a quo analisar, ponderar e valorar criticamente aquela matéria – o que não sucedeu e que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
19 - Por conseguinte, os factos constantes dos citados documentos são relevantes – até pela particularidade de corroborarem o único testemunho que o recorrente conseguiu, face aos anos passados sobre tais eventos e limitações processuais/legais decorrentes do artigo 25º do CIRE -, pelo que deveriam ter sido, desde logo, valorados na douta sentença sub judice, quanto mais não fosse em atenção ao princípio do inquisitório (cfr. 411º, C. P. C.), imposto plenamente nos presentes autos (cfr.11º, CIRE) - o que se alega para todos os efeitos legais.
20 – Factualidade que sempre complementaria a matéria (diga-se meramente conclusiva), inserta no ponto 5, dos factos dados como provados, uma vez que inexiste qualquer factualidade que a realmente sustente – o que se invoca para todos os efeitos legais.
21 – Com efeito, o recorrente não teve qualquer envolvimento, directo ou indirecto, nos “negócios” da insolvente v.g. na alegada venda dos “bens indicados no balancete” (13/2010) pela “C..., Lda.” à “Y...”(cfr. artigo 13º da oposição);
22 - Por maioria de razão, e em face da prova existente nos autos, não corresponde à verdade e realidade dos factos o enunciado no ponto 9. dos factos assentes – o que se alega para todos os efeitos legais.
23 – Já que tudo era dirigido (naquelas sociedades comerciais), orientado e exercido pelo senhor DD, sem qualquer intervenção do ora recorrente, que não tinha qualquer poder de decisão substancial na insolvente C..., Lda. (cfr. artigo 17º. Oposição).
24 - Nada significando para o tribunal o conteúdo do documento 1, junto com a oposição, cujo conteúdo aqui se dá como reproduzido e integrado, através da qual o recorrente lhe “conferiu plenos poderes de gerência”, em 1 de novembro de 2008.
25 - Sendo certo que daquele documento resulta que o ora recorrente era e sempre foi única e exclusivamente “gerente nominal”, num plano estritamente formal, inexistindo nos presentes autos, nos autos principais e seus apensos uma única prova de qualquer acto de disposição ou de administração de acordo com o objecto social da devedora/insolvente - a não ser os “actos presumidos pelo CIRE”, mas que, data venia, afrontam a verdade, a realidade dos factos e os mais elementares princípios de justiça.
26 - Em face da prova produzida e existente nos autos, o tribunal da 1ª instância deveria ter dado como não provada a matéria dos pontos 5, 6, 9., 10., 11., na medida em que o ora recorrente a considera, além do mais, incorrectamente julgada e valorada, ao ser dada como provada, conforme defendido pelo recorrente – o que se invoca para todos os efeitos legais.
27 - E, por sua vez, atender e dar como provada a matéria alegada pelo oponente/recorrente nos artigos 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 33º, 34º, 35º, da oposição, nos termos defendidos pelo recorrente.
28 - Não o tendo feito, deverá esse Venerando Tribunal, sempre e em qualquer caso alterar as correspondentes respostas, nos termos dos poderes que a lei lhe confere, v.g. artigo 662º do CPC, visto estarem reunidos nos autos todos os pressupostos legais para o efeito – o que se requer e no que se confia seja doutamente decidido.
29 - Razão pela qual deverá proceder o presente recurso quanto à decisão da 1ª instância, no que respeita à questão de facto.
Por outro lado,
30 - Na fundamentação jurídica exarada na douta sentença sub judice, considerou-se o ora recorrente afectado pela qualificação em análise, grosso modo:
“...que, muito embora a gerência de facto da sociedade fosse do pai do Requerido, DD, impõe-se a afectação do requerido AA, pelas razões supra expostas: ele foi responsável, enquanto gerente de direito, pela prática dos factos apurados...”.
“Assim, o requerido praticou os factos integradores das alíneas a), b), f), g) e i) do n.º 2 do art. 186º do CIRE.”
31 - Com o devido respeito, não podemos aceitar a visão (dos factos) que se encontra efectuada pelo tribunal, até porque a actuação e participação das pessoas ali citadas na vida da empresa insolvente é abissalmente diferente, como se demonstrou supra.
32 - Daí que uma formulação do juízo de condenação do recorrente, no fundo, em termos idênticos, iguais, sem nenhuma distinção com o aludido DD (“gerente de facto”), e ainda que este não tenha sido demandado – note-se: não por “culpa” do ora recorrente -, é clamorosamente ofensiva aos princípios de justiça e de direito v.g. por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e adequação – o que se invoca para todos os efeitos legais.
33 - Dito isto, e sempre com ressalva de melhor opinião, a conclusão a tirar é a de que, realmente, não se verificam fundamentos para a qualificação como culposa da insolvência, e, tão pouco para julgar o recorrente afectado por tal qualificação.
34 - A decisão sub judice não é factualmente nem juridicamente exacta (o que se alega para efeito do artº 615º nº 1 al. c), do C.P.C.) e, por isso, deve ser revogada e substituída por outra que declare o carácter fortuito da insolvência e subtraia o ora recorrente às consequências da afectação.
35 - Do exposto, resulta que em face da prova produzida e perante a audição do constante da gravação fonográfica, verifica-se que o Digníssimo Tribunal a quo desvalorizou quase a totalidade do depoimento da testemunha inquirida quanto aos aludidos artigos 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 33º, 34º, 35º, da oposição, e documentos juntos, nos termos supra narrados pelo Recorrente, e que mereciam ser dados como provados.
36 - Por outro lado, a matéria dos pontos 5, 6, 9., 10., 11., na medida em que foi incorrectamente julgada e valorada, ao ser dada como provada, e na forma como o foi, impunham uma resposta diversa daquela que mereceu - o que se invoca para todos os efeitos legais.
37 - A decisão recorrida, atenta a factualidade provada nos autos deveria ter declarado não afetado pela qualificação da insolvência o recorrente, com as legais consequências.
38 - Outrossim, tendo por base pressupostos factuais deturpados, considerou que o ora recorrente incumpriu os deveres de apresentação à insolvência e de elaborar as contas anuais no prazo legal e submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na CRC nos exercícios subsequentes, conforme previsto no n.º 3, alíneas a) e b) do artº 186º do CIRE – apesar de na douta sentença desenvolver a respectiva fundamentação (“por todo o exposto, no caso sub judice, verificam-se as hipóteses previstas nas als. a), b), f), g) e i) do nº2 e n.º 3 als. a) e b) do artigo 186.º do CIRE..”), a verdade é que, na sua parte final e decisória, tal normativo é omitido (n.º 3, alíneas a) e b) do artº 186º do CIRE), ficando o ora recorrente por saber se, ainda assim, tal fundamentação estará na base da sua afectação – o que se invoca para todos os efeitos legais v.g. artigo 615 nº1 al. c),do C.P.C..
39 - Em boa verdade não há elementos factuais no sentido de que tenha ocorrido o incumprimento generalizado susceptível de accionar a presunção juris et de jure do conhecimento por parte do recorrente da situação de insolvência.
40 - Da mesma forma que faltam factos que permitam situar no tempo o conhecimento – ou a obrigação de conhecimento – da situação de insolvência por parte do recorrente.
41 - Em suma, a actuação do ora recorrente deverá ser analisada á luz do artigo 186º nº1, ou seja, exigindo-se sempre uma actuação (omissão) intencional dolosa da sua parte – o que não se encontra minimamente provado nos presentes autos.
Por conseguinte,
42 - Nos termos v.g. do 662º. do C.P.C., a decisão ora recorrida proferida v.g. sobre a matéria de facto alegada supra, deverá ser alterada por esse Venerando Tribunal, uma vez que os elementos fornecidos pelo processo impõem uma decisão diversa, conforme defendido pelo ora recorrente.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, uma vez que a sentença recorrida violou por erro de interpretação e aplicação os aludidos preceitos legais, nomeadamente arts. 186º nº 2 als. a), b), f), g) e i) e nº 3 als. a) e b), 18º e 20º, todos do CIRE, arts. 607º nº 4, 615º nº 1, als. b), c) e d), 412º, 413º e 414º todos do Cód. do Proc. Civil e arts. 342º nº 1 e 346º, “in fine”, do Cód. Civil, devendo por isso ser revogada (ou anulada, conforme se entenda), e substituída por outra que decida no sentido ora defendido pelo recorrente.
O Min. Público apresentou contra-alegações que finalizou com as seguintes conclusões:
1) A Mmª Juíza fundamentou, de forma completa a razão porque considerou toda a factualidade considerada provada e fez uma correcta adequação de toda essa factualidade às normas convocadas;
2) Os factos n.ºs 5, 6 e 9 encontram-se documentados e reforçados com os depoimentos prestados em audiência;
3) Nenhum reparo deve ser atribuído à circunstância de se ter dado como provados os factos n.ºs 10 e 11, na medida em que apenas resultam da realidade que a Administradora de Insolvência encontrou, conjugada com a restante factualidade confirmada.
4) A “Procuração”, alegadamente emitida em 1 de Novembro de 2008, junta com a oposição neste incidente de qualificação, mais não é que um mero documento particular, desconhecendo-se quaisquer circunstâncias de tempo, modo e lugar em que tal documento foi elaborado.
5) Não podia, pois, o Tribunal, atribuir qualquer efeito decisivo a esse documento, designadamente, para os fins pretendidos pelo recorrente.
6) Ademais, os alegados factos que, segundo o recorrente, deveriam ser aditados e/ou alterados à matéria de facto mais não são que conclusões para as quais o Tribunal não dispõe de elementos suficientes bastantes ou são contrários à factualidade efectivamente apurada.
7) A existência de um gerente de facto a gerir a sociedade insolvente, não afasta a responsabilidade do gerente de direito prevista no art.º 186.º do CIRE, sendo imputável ao recorrente, enquanto responsável directo da sociedade, as condutas apuradas e subsumíveis às várias alíneas dos n.ºs 2 e 3 desse normativo.
Pronunciou-se assim pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Nulidade da sentença recorrida (art. 615º, nº 1, c) do CPC);
II – Impugnação da matéria de facto;
IIIQualificação da insolvência como culposa;
IVAfetação do gerente de direito pela qualificação da insolvência.
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É a seguinte a factualidade dada como assente na sentença recorrida:
1. Em 31.03.2011, EE requereu a declaração de insolvência de C..., Lda. – cf. petição inicial dos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Por sentença de 20.10.2011, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de C..., Lda., nomeado A.I. e designada data para realização da assembleia de credores cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Na data designada para assembleia de credores, em 12.12.2011, a mesma não se realizou devido à falta de elementos por parte da A.I. para elaborar o relatório do artº 155º do CIRE, pelo que foi designada nova data, o dia 05.01.2012, na qual foi constituída comissão de credores e deliberado o prosseguimento dos autos para liquidação do activo.
4. A Devedora foi constituída em 26.06.2007, com o capital social de €20.000,00, está matriculada na CRC com o n.º ........., com sede na Rua ..., ..., Vila do Conde, tinha como objecto social a fabricação de mobiliário de madeira com design para outros fins, compreende a fabricação de mobiliário de madeira para sala de estar, quartos de dormir e fins diferentes das actividades anteriores; serviços de carpintaria, compreende a fabricação de uma grande variedade de produtos de madeira…; serviços de construção civil.
5. Na Conservatória do Registo Comercial, o requerido AA consta como gerente da insolvente, bem como da sociedade Y..., Lda..
6. O pai do requerido, Sr. DD, era o gerente de facto da insolvente, bem como era sócio da sociedade X..., Lda., que laborava/laborou na sede da insolvente.
7. O registo de prestação de contas encontra-se efectuado relativamente aos anos de 2008 e 2009, não tendo sido apresentado do ano de 2010; o ano de 2010 encontra-se encerrado embora não tenha sido efectuado o seu cumprimento fiscal anual.
8. Da análise da actividade económica da empresa desde 2008, 2009 e 2010, verifica-se que o passivo sofreu um aumento de 2008 para 2009 e uma redução em 2010; as vendas foram diminuindo desde 2008 a 2010 e os resultados líquidos dos exercícios sofreram uma queda abrupta de 2008 para 2010, cfr. melhor resulta do relatório da A.I. do artº 155º do CIRE, junto aos autos principais.
9. Foram apreendidos os bens constantes do auto de apreensão de bens junto ao apenso J, porém, não foi possível à A.I. apreender a maior parte dos bens indicados no balancete porque, onde antes laborava a insolvente, agora é a sede da X..., Lda., cujo um dos sócios é o Sr. DD, pai do requerido, cfr certidão da CRC junta ao parecer da A.I., porém, os bens não foram suficientes, tendo o processo sido declarado encerrado nos termos no artº 232º do CIRE. 10. Em Março de 2011 (no mês em que foi requerida a insolvência) foram efectuadas duas vendas de imobilizado pela insolvente, consumadas à empresa Y..., Lda. (em 2010 tinha sede nas instalações da insolvente), cujo único sócio é AA, que também acumula as funções de gerente e sócio gerente da insolvente, sendo a sede desta sociedade na Rua ..., r/ch, ..., Vila do Conde, cfr. doc. 4 junto ao requerimento de 16.08.2016.
11. Apesar das diversas tentativas para contactar o sócio gerente da insolvente, através de várias deslocações à sede, cartas, telefone e de um colaborador da A.I., com vista à obtenção de informações para o processo de insolvência, as mesmas foram infrutíferas, desconhecendo-se o paradeiro daquele, nem o requerido contactou por alguma forma a A.I., cfr. docs. 1, 2 e 3 juntos ao requerimento de 16.08.2016.
12. Foram reclamados créditos por trabalhadores, entidades bancárias, Estado, ISS e fornecedores num total de €434.884,03, cfr. relação definitiva de créditos do apenso K.
13. Por sentenças de 20.03.2012, 29.05.2012, 03.07.2012, 04.03.2013 e 02.12.2013, transitadas em julgado, foram julgados verificados créditos do MºPº no valor de €1.800,00; 4.080,00; 166,60; 188,40 e 1.803,20, respectivamente, cfr. apensos A, C, D, F e I.
14. Por sentenças de 15.06.2015 e 26.01.2017, transitadas em julgado, foi julgado verificado o crédito reclamado pelo FGS, nos montantes de €6.395,87; 2.780,40 e 4.870,31, respectivamente, cfr. apensos L, M e O.
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Foi considerado não provado o seguinte facto:
a) O gerente de direito tenha violado o dever de manter a contabilidade organizada
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Passemos à apreciação do mérito do recurso
I - Nulidade da sentença recorrida (art. 615º, nº 1, c) do CPC)
O recorrente, na sua alegação recursiva, vem suscitar a nulidade do art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, porquanto na sentença recorrida se considerou que foram incumpridos os deveres de apresentação à insolvência e de elaboração das contas anuais [alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE], sendo que na parte final e decisória estes dois normativos são omitidos.
Esta nulidade verifica-se quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade e obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Da leitura da detalhada fundamentação de direito da sentença recorrida decorre que no primeiro segmento, referente à qualificação da insolvência, se considerou esta como culposa com referência às alíneas a), b), f), g) e i) do nº 2 e a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
Já no segundo segmento, relativo à afetação pela qualificação da insolvência, ao decidir-se no sentido desta afetação abranger o aqui requerido AA, certamente por lapso, fez-se apenas alusão às alíneas do nº 2 do art. 186º do CIRE tendo-se ignorado as do nº 3.
No entanto, da leitura da sentença na sua globalidade, conclui-se que essa afetação se fundou em todas aquelas alíneas, o que transparece de várias passagens da mesma, como por exemplo esta referente à qualificação da insolvência com base na alínea a) do nº 3: “No caso vertente, demonstrou-se que o gerente de direito AA, da sociedade devedora não requereu a declaração de insolvência desta, sendo certo que a mesma foi decretada a requerimento de um credor. (…)” – pág. 17 da sentença.
E mais adiante no segmento respeitante à afetação pela qualificação escreveu o seguinte a Mmª Juíza “a quo”: “No caso em apreço, entendemos que muito embora a gerência de facto da sociedade fosse do pai do requerido, DD, impõe-se a afectação do Requerido AA, pelas razões supra expostas: ele foi responsável, enquanto gerente de direito, pela prática dos factos apurados (…) tem-se como certo que qualquer gerente, por poucas competências que tenha na área da contabilidade, é responsável pelo que se passa com ela, pois apresenta (ou não) os documentos necessários à sua elaboração ao TOC e da mesma se inteira pelo menos na prestação de contas; o gerente médio não pode “esconder-se” por trás de afirmações de desconhecimento…se desconhece não pode ser gerente; e o gerente é o responsável último pelo que se passa na sociedade, nada tendo sido alegado ou provado no sentido de que o gerente se opôs, por exemplo, à forma como estava a ser elaborada a contabilidade (…).” – pág. 20 da sentença.
Consideramos assim que foi propósito da Mmª Juíza “a quo” que a afetação do requerido AA pela qualificação de insolvência se apoiasse nas acima indicadas alíneas tanto do nº 2 como do nº 3 do art. 186º do CIRE.
Consequentemente, não se vislumbra qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, tal como não se vislumbra a ocorrência de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
De resto, a decisão propriamente dita limitou-se a qualificar a insolvência como culposa e a declarar afetado por essa qualificação o seu gerente AA, o que significa que em ambos os casos o decidido se fundou em idênticas alíneas, pois se tal não fosse a intenção da Mmª Juíza “a quo” esta, por não coincidentes, teria procedido à discriminação dessas alíneas no segmento decisório.
Conclui-se assim no sentido de que a sentença recorrida não se mostra inquinada pela nulidade arguida pelo recorrente.
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II Impugnação da matéria de facto
O recorrente, nas suas alegações de recurso, procedeu à impugnação da matéria de facto, sustentando que os seus pontos 5, 6, 9, 10 e 11 deverão ser dados como não provados.
Nesse sentido indicou excertos dos depoimentos prestados pela Sr.ª Administradora da Insolvência, BB e também pela testemunha CC.
Procedemos à audição integral destes depoimentos.
BB, Administradora da Insolvência, disse que quando foi decretada a insolvência foram às instalações da insolvente e verificaram que esta já lá não estava. Estava lá outra firma, cujo gerente não se encontrava no local. Contactou então com o pai do aqui requerido, que assim se apresentou, mas este nunca lhe disse que era o gerente de facto. A empresa que lá estava a funcionar era a “X...”, da qual um dos sócios era o próprio pai do requerido, Sr. DD. Mais refere que contactou também com o contabilista, sempre por mail, que lhe enviou alguns elementos e foi através desses elementos que se conseguiu aperceber das relações entre a “Y...” e a “X...” e de duas vendas que teriam ocorrido, mas que não conseguiu identificar o que efetivamente era. As duas vendas teriam sido entre uma firma e outra e o gerente era o mesmo. Esclarece que nas vezes que lá foi nunca viu o Sr. AA. O pai limitou-se a dizer que ele estava ausente. Teve, porém, contactos com a mandatária da insolvente. Sublinha que entre as firmas existiam relações familiares e estavam todas no mesmo sítio. O contabilista nunca lhe enviou documentos em suporte de papel porque não os tinha. O que tinha estava no computador. Salienta também que só foram apreendidos dois veículos.
CC é tia do requerido. Disse que o pai do requerido (Sr. DD) não podia ter nada em nome dele porque estava endividado. A testemunha, inclusive, emprestou o seu nome a uma das empresas do Sr. DD, que funcionava na mesma sede, mas já não se recorda do nome desta, acrescentando que saiu dela em 2010. Nessa sociedade estava também o AA, mas quem geria era o pai dele, cunhado da testemunha. O sobrinho não percebia de nada, embora fosse lá trabalhador em carpintaria. Era muito novo e não chegou a fazer o 9º ano. As sociedades funcionavam todas no mesmo local. Quando saiu da sociedade o DD pediu-lhe para assinar uma procuração e a testemunha negou-se a fazê-lo. Nunca viu nenhum recibo de vencimento em nome do AA. Referiu ainda que o AA se zangou com o pai por causa do divórcio deste e foi viver para casa da tia, ora testemunha, o que sucedeu em meados de 2010. Deixou então de ter contacto com o pai e de ir às empresas. O AA nunca se ausentou para o estrangeiro. Não conhece o contabilista. O seu cunhado era do género “eu posso e mando, eu é que sei!”. O AA esteve mais presente nas instalações entre 2008 e 2010, mas não foi na parte administrativa, foi a trabalhar nos móveis. Referiu ainda a testemunha não ter tido contacto com as contas das sociedades.
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O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil estabelece que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
A Relação goza assim de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
Por conseguinte, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[2]
Vejamos então cada um dos pontos factuais impugnados pelo recorrente.
a) O nº 5 [Na Conservatória do Registo Comercial, o requerido AA consta como gerente da insolvente, bem como da sociedade Y..., Lda.] decorre da documentação proveniente do Registo Comercial – fls. 58/59 e 64 e segs. – que confirma o seu conteúdo, devendo, por isso, manter-se na factualidade provada.
b) Quanto ao nº 6 [O pai do requerido, Sr. DD, era o gerente de facto[3] da insolvente, bem como era sócio da sociedade da X..., Lda., que laborava/laborou na sede da insolvente] importa desde logo referir que a circunstância do pai do requerido, DD, ser gerente de facto da insolvente é também invocada pelo próprio requerido na sua oposição – cfr., por ex., arts. 17º, 20º, 21º, 26º e 27º.
A testemunha CC referiu igualmente que quem geria, de facto, a insolvente era o pai do requerido, DD, sendo que dos elementos informativos provenientes da Conservatória do Registo Comercial – fls. 48/49 – flui ainda que este era sócio da “X...”.
A Sr.ª Administradora da Insolvência, BB, disse, por seu turno, que a “X...” funcionava nas instalações da insolvente e a testemunha CC afirmou que as sociedades funcionavam todas no mesmo local.
Como tal, o nº 6 permanecerá na matéria de facto assente.
c) O nº 9 [Foram apreendidos os bens constantes do auto de apreensão de bens junto ao apenso J, porém, não foi possível à A.I. apreender a maior parte dos bens indicados no balancete porque, onde antes laborava a insolvente, agora é a sede da X..., Lda., cujo um dos sócios é o Sr. DD, pai do requerido, cfr certidão da CRC junta ao parecer da A.I., porém, os bens não foram suficientes, tendo o processo sido declarado encerrado nos termos no artº 232º do CIRE] funda-se em elementos documentais constantes do processo, designadamente do apenso J – auto de apreensão – e também no teor dos elementos informativos provenientes da Conservatória do Registo Comercial – fls. 48/49.
A não apreensão da maior parte dos bens indicados no balancete é apontada pela Sr.ª Administradora da Insolvência, que salientou só terem sido apreendidos dois veículos.
Assim, o nº 9 manter-se-á também na factualidade provada.
d) Quanto ao nº 10 [Em Março de 2011 (no mês em que foi requerida a insolvência) foram efetuadas duas vendas de imobilizado pela insolvente, consumadas à empresa Y..., Lda. (em 2010 tinha sede nas instalações da insolvente), cujo único sócio é AA, que também acumula as funções de gerente e sócio gerente da insolvente, sendo a sede desta sociedade na Rua ..., r/ch, ..., Vila do Conde, cfr. doc. 4 junto ao requerimento de 16.08.2016] verifica-se que o mesmo assentou no relatório apresentado pela Sr.ª Administradora da Insolvência para os efeitos do art. 155º do CIRE onde se escreveu o seguinte:
“…após análise de alguns documentos e informações prestadas quer pelo credor – F..., Lda., quer pelo anterior TOC, verificou-se que em Março de 2011, ou seja no mês em que foi requerida a insolvência foram efectuadas duas vendas de imobilizado.
As vendas foram consumadas à empresa “Y..., Lda.”, sendo os valores da primeira venda de 9.528,75€ e da segunda venda de 17.343,00€ (ambos os valores já com IVA incluído).”
Por despacho de 21.5.2019, a Mmª Juíza “a quo” determinou a notificação da Sr.ª Administradora da Insolvência para concretizar/identificar os bens da devedora que foram objeto de cada uma destas duas vendas, tendo esta informado o seguinte:
“- A informação relativamente às vendas foi prestada por escrito em 2011 pelo Contabilista da empresa à data.
- Na informação fornecida não constava a identificação dos bens, mas somente a indicação das vendas a dinheiro nº 1 e nº 2 e o respetivo valor acrescido de IVA, bem como o destinatário das vendas que foi a Y....
Com vista a esclarecer o tribunal, contactou-se o Sr. Contabilista, para que disponibilizasse a identificação dos bens objeto da venda a dinheiro, bem como o envio das respetivas cópias.
Em resposta foi transmitido que dos registos no software de contabilidade não consegue aferir o que estava transcrito nas respetivas faturas recibos (VD).”
No seu depoimento, a Sr.ª Administradora da Insolvência confirmou o teor desta informação, aludindo à ocorrência destas duas vendas, mas sem conseguir concretizar os bens a que se referiam. Disse ainda que o contabilista nunca lhe enviou os documentos respeitantes a tais vendas em suporte de papel.
Sucede que estes elementos probatórios, todos assentes no que foi transmitido aos autos pela Sr.ª Administradora da Insolvência, são insuficientes para que se possa dar como provado que em Março de 2011 foram efetuadas duas vendas de imobilizado pela insolvente à “Y...”.
Com efeito, o afirmado em diversos momentos processuais pela Sr.ª Administradora da Insolvência, não se encontra suportado em qualquer elemento documental que permita confirmar que essas duas vendas à “Y...” se verificaram e quais os bens que pelas mesmas foram abrangidos.
A ocorrência de tais vendas terá assim que transitar para os factos não provados, mantendo-se, contudo, como provado, com base nos elementos documentais provenientes do registo comercial (fls. 58/59 e 64 e segs.), que em março de 2011 AA era sócio e gerente da “Y...”, que esta sociedade tinha a sua sede na Rua ..., ..., Vila do Conde e que o referido AA era também sócio e gerente da insolvente.
Deste modo, a redação do nº 10 passará a ser a seguinte:
“Em março de 2011 AA era sócio e gerente da “Y...” e também sócio e gerente da insolvente, sendo a sede da “Y...” na Rua ..., r/ch, ..., Vila do Conde.”
Simultaneamente, passará a constar como não provado que:
“b) Em março de 2011 foram efetuadas duas vendas, consumadas, de imobilizado pela insolvente à empresa Y..., Lda.”
e) No tocante ao nº 11 [Apesar das diversas tentativas para contactar o sócio gerente da insolvente, através de várias deslocações à sede, cartas, telefone e de um colaborador da A.I., com vista à obtenção de informações para o processo de insolvência, as mesmas foram infrutíferas, desconhecendo-se o paradeiro daquele, nem o requerido contactou por alguma forma a A.I., cfr. docs. 1, 2 e 3 juntos ao requerimento de 16.08.2016] há a salientar que a realização de diligências infrutíferas com vista a contactar o sócio-gerente da insolvente – o requerido AA - decorre do próprio depoimento da Sr.ª Administradora da Insolvência e das cartas que lhe foram remetidas na sequência da declaração de insolvência para a sua residência constante da respetiva certidão do registo comercial – Rua ..., ..., Matosinhos – cfr. fls. 22/23, 26/27 e 64 e segs. – e que vieram devolvidas com a indicação “mudou-se”.
Aliás, a Administradora da Insolvência das várias vezes que se deslocou às instalações da insolvente nunca lá o encontrou, tendo obtido a informação, do próprio pai, de que o requerido se encontraria ausente.
Para além disso, resulta da consulta do processo principal que a apresentação da contestação ao pedido de insolvência, em 27.4.2011, foi feita com base em procuração forense emitida pelo aqui recorrente AA, daí fluindo que este teria necessariamente que conhecer, desde essa altura, a pendência deste processo.
Porém, apesar deste necessário conhecimento, o requerido nunca entrou em contacto com a administradora da insolvência de forma a prestar-lhe colaboração.
Assim, consideramos ser inequívoco que a Sr. Administradora da Insolvência fez diversas tentativas para contactar o requerido, sócio-gerente da insolvente, designadamente através de deslocações à sede da sociedade e do envio de cartas, o que se revelou infrutífero, não tendo conseguido apurar do seu atual paradeiro. Tal como é inequívoco que o requerido, mesmo conhecendo a pendência do processo, nenhum contacto estabeleceu com a administradora da insolvência.
Por isso, o nº 11 permanecerá na factualidade provada.
f) Pretende ainda o recorrente que seja aditada à matéria de facto provada a que por ele foi alegada na sua oposição e que consta dos seus arts. 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 33º, 34º e 35º.
Nestes artigos o recorrente procura desvalorizar a sua participação na vida e nos negócios da insolvente, uma vez que tudo era dirigido por DD, seu pai, sendo que todas as decisões eram tomadas por este.
Quem praticava os atos necessários ao giro comercial das sociedades era o DD que, inclusive, exigiu do aqui requerido uma procuração a conferir-lhe plenos poderes de gerência, procuração que se encontra junta a fls. 78 e na qual figura como data de emissão o dia 1.11.2008.
Assim, nesta perspetiva, o requerido não passaria de um mero funcionário, obedecendo às ordens, instruções e direção do DD.
Ouvida em julgamento, a testemunha CC procurou menorizar o seu sobrinho, o aqui requerido, dizendo, designadamente, que este não percebia de nada, daí resultando que ele não teria capacidade para gerir uma empresa.
No entanto, não poderá deixar de se salientar que, apesar de ter sido emitida procuração a DD pelo aqui requerido a fim de representar a insolvente em juízo, com poderes especiais para confessar, transigir e desistir em quaisquer ações em que seja parte interessada (fls. 78), a procuração que viria a acompanhar a oposição à insolvência apresentada pela insolvente não se mostra emitida por DD, mas sim pelo próprio requerido.
Situação que afasta a total menorização deste, afirmada de forma pouco convincente pela testemunha CC, e retira significado à procuração datada de 1.11.2008, atendendo a que não foi o DD a emitir a procuração forense utilizada para a insolvente intervir no processo de insolvência, mas sim o requerido AA.
Entendemos, pois, que do alegado pelo requerido na sua oposição nada haverá a acrescentar à matéria de facto provada, sendo certo que da mesma já consta o aspeto mais relevante desta oposição – o pai do requerido era o gerente de facto da insolvente (nº 6) – sem que, contudo, a prova produzida permita concluir factualmente no sentido de que o requerido na vida da sociedade tinha o papel de mero funcionário, sem qualquer independência ou capacidade decisória.
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Por conseguinte, a impugnação fáctica obterá parcial procedência com a alteração da redação do nº 10 que passará a ser a seguinte:
“Em março de 2011 AA era sócio e gerente da “Y...” e também sócio e gerente da insolvente, sendo a sede da “Y...” na Rua ..., r/ch, ..., Vila do Conde.”
Por outro lado, aos factos não provados será aditada a alínea b) com a seguinte redação:
“Em março de 2011 foram efetuadas duas vendas, consumadas, de imobilizado pela insolvente à empresa Y..., Lda.”
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III Qualificação da insolvência como culposa
Na sentença recorrida procedeu-se à qualificação da insolvência como culposa com referência às alíneas a), b), f), g) e i) do nº 2 e a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
É a seguinte a redação deste artigo:
1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188º.
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4. O disposto nos nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
(…)”
Cabe desde logo sublinhar que todos estes comportamentos só relevam para a qualificação da insolvência como culposa se tiverem ocorrido até três anos antes do início do processo de insolvência e face à letra do nº 2 do art. 186º, onde se afirma que a insolvência se considera «sempre» culposa, se ocorrer qualquer dos comportamentos elencados nas suas alíneas, deve entender-se que nele se estabelecem presunções inelidíveis, “juris et de jure”. Neste sentido aponta, além do advérbio «sempre», o confronto com o texto do nº 3 do mesmo preceito, onde tal palavra não é usada, donde se conclui que as presunções deste número são elidíveis, “juris tantum”, segundo a regra geral do nº 2 do art. 350º do Cód. Civil.[5]
Entendendo-se que no nº 2 do art. 186º do CIRE se prevêem presunções juris et de jure de insolvência culposa, uma vez que a lei consagra aqui uma presunção de existência de culpa grave e também uma presunção de nexo de causalidade dos comportamentos aí previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não sendo admitida a produção de prova em contrário[6] [7], há, então, que apurar se no caso “sub judice”, face à factualidade assente, se poderão ter como preenchidas as suas alíneas a), b), f), g) e i).
As alíneas a) e b) reportam-se a situações em que os administradores, de direito ou de facto, tenham destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor ou quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.
Ora, não tendo ficado provado, após reapreciação dos meios probatórios constantes dos autos, que a insolvente tenha procedido a duas vendas de imobilizado em março de 2011 à “Y...” terá que se afastar o preenchimento destas duas alíneas.
Tal como, por não se terem provado estas duas vendas de imobilizado à “Y...”, se terá que afastar também o preenchimento da alínea f), que se reporta a situações em que os administradores, de direito ou de facto, tenham feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse direto ou indireto.
Todavia, permanecem como preenchidas as alíneas g) e i).
A alínea g) refere-se aos casos em que os administradores, de direito ou de facto, tenham prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
Conforme afirma a Mmª Juíza “a quo” a empresa já tinha diversos problemas económicos há algum tempo, não tendo disponibilidade para liquidar as dívidas que possuía e os compromissos assumidos. Contudo, apesar desta situação, a gerência prosseguiu a atividade da sociedade, nada tendo feito para controlar a situação, o que conduziu à sua insolvência – cfr. factos provados 1, 8 e 12 a 14.
Por seu turno, a alínea i) refere-se ao incumprimento reiterado pelos administradores, de direito e de facto, dos deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer a que se refere o nº 3 do art. 188º do CIRE.
Ora, esse incumprimento resulta do facto provado 11, do qual decorre que a Sr.ª Administradora da Insolvência, sempre infrutiferamente, procurou contactar o sócio-gerente da insolvente, através de várias deslocações à sua sede, de cartas e de telefone, tal como este nunca contactou com a referida administradora.
Mas a insolvência será ainda culposa em virtude do preenchimento, face à factualidade assente, das alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
Com efeito, o gerente da insolvente incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência [al. a)], vindo a mesma a ser decretada a requerimento de um credor, quando é certo que sobre a empresa já incidiam diversas dívidas e em montantes variados.
Em suma, a empresa já há algum tempo que tinha problemas económicos e financeiros, não apresentando solvabilidade para liquidar as suas dívidas ou assumir o cumprimento dos seus compromissos, tendo ainda a Sr.ª Administradora da Insolvência constatado que quando se dirigiu às suas instalações a empresa já aí não laborava, estando lá instalada uma outra empresa, a “X...” – cfr. factos provados 1, 9 e 12 a 14.
E se a alínea a) se mostra preenchida o mesmo sucede com a alínea b), atendendo a que foi incumprida pelo respetivo gerente a obrigação de elaborar as contas anuais, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Incumprimento este que flui do nº 7 da matéria de facto, onde se deu como provado que não foram elaboradas as contas relativas ao ano de 2010.
Conclui-se, assim, que, pese embora a alteração efetuada na factualidade provada e não provada que conduziu ao não preenchimento das alíneas a), b) e f) do nº 2 do art. 186º, a qualificação da insolvência como culposa é de manter com base nas alíneas g) e i) do nº 2 e a) e b) do nº 3 do dito art. 186º.
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IV - Afetação do gerente de direito pela qualificação da insolvência
Em termos de solução de direito, o recorrente insurge-se também contra o decidido por, na sentença recorrida, ter sido afetado pela qualificação da insolvência como culposa, uma vez que não teve qualquer intervenção na tomada de decisões da insolvente, sendo um mero trabalhador que obedecia às ordens e instruções de seu pai, o qual funcionava como o “gerente de facto” da sociedade.
Vejamos então.
Do ponto de vista factual, está provado tão-somente que o requerido AA era gerente da sociedade insolvente, sendo o seu pai, DD, o gerente de facto – cfr. nºs 5 e 6.
Ou seja, o requerido era gerente de direito e não de facto.
A questão que aqui se discute é então a de saber se um gerente de direito, que o não é de facto, pode ou não ser abrangido pela qualificação da insolvência como culposa.
Da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE verifica-se que não foi objetivo do legislador excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto da qualificação da insolvência como culposa, mas sim estendê-la a atos praticados por administradores de facto - cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 22.10.2019, proc. 327/15.7 T8VNG-B.P1; Ac. Rel. Porto de 10.12.2019, proc. 124/10.6 TYVNG-A.P1; Ac. Rel. Porto de 26.11.2019, proc. 524/14.2 TYVNG-B.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.[8]
RUI ESTRELA DE OLIVEIRA[9] afirma que a lei pretende, por relevantes razões de segurança jurídica, que haja coincidência, concreta e prática, entre os conceitos de administrador de direito e administrador de facto, pelo que a administração de facto não deixa de ser um fenómeno indesejado. Por isso, o administrador de direito, quando não o seja de facto, encontra-se ainda assim obrigado a cumprir um conjunto de deveres que impendem sobre os administradores societários em geral.
Tal como estatui o art. 72º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais, «os gerentes ou os administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.»
Este artigo, numa manifestação da responsabilidade contratual, prevê a individualização da responsabilidade – os sujeitos responsáveis são os titulares do órgão administrativo (gerentes ou administradores) e não o próprio órgão. E os gerentes, os administradores ou diretores são responsáveis por factos próprios – cfr. Ac. Rel. Coimbra de 22.11.2016, CJ, ano XLI, tomo V, págs. 23/29.
Como assinala COUTINHO DE ABREU[10], “os administradores têm poderes-função, poderes-deveres, gerem no interesse da sociedade, têm os poderes necessários para promover este interesse.” “Os deveres impostos aos administradores para o exercício correcto da administração começam por ser, como actividade, o dever típico e principal de administrar e representar a sociedade…”, sendo que este dever genérico apenas encontra densidade nos deveres fundamentais elencados nas alíneas a) e b) do art. 64º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais: o dever de cuidado e o dever de lealdade.[11]
No que toca ao dever de cuidado as suas principais manifestações (ou subdeveres) consistem no i) dever de controlar, ou vigiar, a organização e condução da atividade da sociedade, as suas políticas, práticas, etc.; no ii) dever de se informar e de realizar uma investigação sobre a atendibilidade das informações que são adquiridas e que podem ser causa de danos, seja por via dos normais sistemas de vigilância, seja por vias ocasionais (produzindo informação ou solicitando-a por sua iniciativa). Sucede que estes dois subdeveres podem muitas vezes conjugar-se, reconduzindo-se ao subdever, global e uno, de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade.[12]
Assim, a circunstância de o gerente de direito não exercer, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, neste caso o seu pai, não o isentava das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito, de, designadamente, apresentar a sociedade à insolvência, de cumprir com o dever de colaboração, de elaborar as contas anuais ou de assegurar o cumprimento destes deveres.
Aliás, a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade que caracterizam a atuação do aqui requerido constituem, só por si, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto gerente da insolvente - cfr. Ac. Rel. Coimbra de 22.11.2016, CJ, ano XLI, tomo V, págs. 23/29.
Deste modo, a mera invocação de que a gerência era de facto exercida por uma outra pessoa não dispensava o requerido, gerente de direito, dos seus deveres para com a sociedade e não tem a virtualidade de o afastar da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE.
Por conseguinte, é também de manter a decisão recorrida na parte em que considerou afetado pela qualificação da insolvência como culposa o aqui requerido, não se vislumbrando nesta decisão a ofensa a qualquer princípio constitucional, designadamente o da proporcionalidade.
O recurso interposto pelo requerido é assim de julgar improcedente.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo requerido AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.

Porto, 22.2.2022
Eduardo Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Nesta parte decisória cometeu-se, porém, um manifesto erro de escrita ao não se inserir na redação da sua alínea c) a palavra “inibido” [pelo período de 2 (dois) anos, para o exercício do comércio], erro que aqui se retifica – cfr. art. 614º do Cód. de Proc. Civil.
[2] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 823 e 825.
[3] A expressão “gerente de facto” apesar do seu pendor conclusivo não deixa de se reportar a uma realidade factual e que relativamente ao pai do requerido, DD, não é objeto de discussão neste processo, até por ser admitida pelo próprio recorrente.
[4] Assinala-se que as alterações introduzidas no regime da qualificação da insolvência pela Lei nº 9/2022, de 11.1. ainda não serão tidas em conta, porque apenas entrarão em vigor no dia 11.4.2022 – cfr. art. 12º.
[5] Cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, pág. 262.
[6] Cfr., por ex., na jurisprudência, Acórdãos Rel. Porto de 18.6.2007, p. 0730992; Rel. Porto de 27.11.2007, p. 0723926; Rel. Porto de 3.3.2009, p. 0827686; Rel. Coimbra de 19.1.2010, p. 132/08.7TBOFR-E.C1, Rel. Guimarães de 29.6.2010, p. 1965/07.7TBFAF-A.G1; Rel. Lisboa de 10.5.2011, p. 1166/08.7TYLSB.B.L1-7; Rel. Porto de 27.2.2014, p. 1595/10.6TBAMT-A.P2, Rel. Porto de 28.9.2015, p. 1826/12.8TBOAZ-C.P1 e Rel. Porto de 1.6.2017, proc. 35/16.1T8AMT-A.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. também na doutrina, MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., pág. 284 e MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 7ª ed., págs. 154/155.
[8] O mesmo se diga da previsão do art. 189º, nº 2, al. a) do CIRE [«2. Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: a) Identificar as pessoas , nomeadamente administradores, de direito ou de facto (…), afectadas pela qualificação (…)»], uma vez que a referência aí feita aos administradores de facto não faz com que os administradores de direito que não exerçam funções de facto sejam excluídos da qualificação como sujeitos afetados – cfr. CATARINA SERRA, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, 2019, pág. 157 e Ac. Rel. Porto de 6.9.2021, proc. 908/12.0TYVNG-A.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[9] “O Incidente de qualificação de insolvência, a insolvência culposa”, e-book do CEJ, in cej.mj.pt.
[10] “Responsabilidade Civil dos administradores de sociedade”, 2ª ed., Almedina, 2010, pág. 25, nota 30.
[11] Cfr. RICARDO COSTA, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, coordenação de Coutinho de Abreu, IDET, vol. I, Almedina, págs. 727/728.
[12] Cfr. RICARDO COSTA, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, ibidem, pág. 732.