Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14366/20.2T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: FIANÇA
INTERPRETAÇÃO
SUBLOCAÇÃO
Nº do Documento: RP2022101314366/20.2T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Havendo dúvidas na interpretação da declaração de prestação da fiança, designadamente quanto à amplitude das obrigações garantidas, deve prevalecer o sentido mais favorável ao fiador.
II - Nada se dizendo no termo de fiança, a fiança prestada para garantia das obrigações do sublocatário no contrato de sublocação não garante o pagamento das rendas relativas a meses anteriores à prestação da fiança e vencidas antes dessa prestação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:14366.20.2T8PRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
F..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede no Loteamento ..., ..., Fafe, instaurou acção declarativa com processo comum contra R..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede no Porto, AA, contribuinte fiscal n.º ..., e BB, contribuinte fiscal n.º ..., estes últimos residentes em ..., ..., Vila Nova de Famalicão, pedindo a condenação solidária dos réu a pagar à autora 48.282,86€, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que na qualidade de locatária financeira de um imóvel sito em ..., Porto, celebrou com a ré um contrato de sublocação do imóvel, para o exercício da industria, com início em 1/3/2020, pelo prazo certo de 3 meses a renovar automática e sucessivamente por períodos iguais e sucessivos, mediante a renda mensal de 8.000,00€, a vencer no 1º dia útil do mês àquele a que disser respeito, ficando estipulado que se a 1ª ré se constituísse em mora a autora teria direito a uma indemnização de 20% do valor da dívida.
Em 14/7/2020, a autora e os réus celebraram um aditamento ao contrato, aditando-lhe uma cláusula mediante a qual os 2º e 3º réus prestaram fiança à 1ª ré, quanto ao cumprimento de todas as obrigações, designadamente, quanto ao pagamento de rendas, indemnizações ou quaisquer outras dívidas, as quais assumiram solidariamente, com renúncia expressa ao benefício da excussão prévia.
Sucede que a 1ª ré entregou à autora o prédio no dia 4/9/2020 sem cumprir o prazo de aviso prévio de 30 dias, sem ter pago as rendas dos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro desse ano, e sem ter pago a electricidade que consumiu no local no montante de 282.56€.
Os réus foram citados e apresentaram contestação.
Nesta defenderam a improcedência da acção, alegando para o efeito: a invalidade da fiança por indeterminabilidade do seu objecto, uma vez que as obrigações tinham carácter futuro e não estavam perfeitamente determinadas, nem tão pouco eram determináveis, por não existir qualquer critério acordado para o efeito; a inexigibilidade da divida aos 2º e 3º réus porque estes nunca foram notificados, na qualidade de fiadores, do atraso alegado pela autora no pagamento das rendas e dos valores em dívida; a inexigibilidade aos 2º e 3º réus do pagamento das rendas vencidas em momento anterior a ao aditamento porque estes não assumiram qualquer obrigação de pagamento relativamente às dividas já vencidas nesse momento; impugnam ainda que sejam devedores do valor da electricidade ou da indemnização peticionada, a qual foi fixada em alternativa à resolução por falta de pagamento da renda.
Findos os articulados, a instância foi julgada extinta quanto à ré R..., S.A., por inutilidade superveniente da lide decorrente da declaração de insolvência da ré.
Oportunamente foi realizado julgamento e proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e os 2.º e 3.º réus condenados, solidariamente, a pagarem à autora a quantia de 16.000,00€, relativos à renda do mês de Agosto de 2020 e ao incumprimento do pré-aviso, acrescida dos juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos, estamos perante um contrato de arrendamento para fim não habitacional sendo-lhe aplicável o regime previsto nos artigos 1108.º e seguintes do CC.
2. São obrigações principais do senhorio a obrigação de: a) entregar ao arrendatário a coisa arrendada; e b) assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina (art.1031º do CC).
3. Por sua vez, a primeira e mais elementar obrigação principal do arrendatário consiste na obrigação de pagar a renda ao senhorio (art. 1038º, al. a) do CC).
4. Com efeito, ficou assente que a sociedade R..., S.A., não liquidou as rendas devidas pela ocupação do imóvel nos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto de 2020 (cfr. facto provado em 4)), o que corresponde ao montante de 32.000,00€.
5. Sucede que, por aditamento ao contrato de sublocação, outorgado em 14/7/2020, os Réus AA e BB, prestaram fiança à sociedade R..., S.A.
6. A fiança constitui uma garantia pessoal das obrigações, passando o património de um terceiro – o fiador – a responder, cumulativamente com o património do devedor, pelo pagamento da dívida (art. 627º, nº 1, do CC).
7. No presente recurso, está em causa o problema de interpretação da cláusula de constituição de fiança, nomeadamente, saber se os fiadores pretenderam responder, nos termos da fiança, por todas as obrigações constituídas, nomeadamente, se a sua vinculação retroagia a Março de 2020 (data do contrato original), ou se a vinculação nasceu apenas no dia 14/7/2020 (data da outorga do aditamento ao contrato de sublocação).
8. Na douta sentença sindicada entendeu-se que a interpretação do teor da cláusula de constituição da fiança, tendo em conta o sentido da declaração que seria apreendido pelo declaratário normal, medianamente instruído e diligente, com aplicação dos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1 ambos do CC, é de que os Réus se obrigaram a garantir o pagamento das rendas vencidas após 14/07/2020.
9. Salvo o devido respeito por opinião em contrário, a apelante entende que a interpretação feita pelo Tribunal a quo não tem qualquer base na letra da fiança e é completamente contrária à interpretação que as próprias partes dela fazem e redunda numa manifesta violação do princípio da boa-fé.
10. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. – 236º, nº 1 do CC.
11. Ainda, se fosse o caso de dúvida sobre o sentido da declaração, porque o negócio é oneroso, teria de prevalecer o sentido que conduzisse ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do C.C.) e naturalmente este é o de o senhorio receber do fiador o que lhe é devido, quando actue de boa-fé.
12. No caso, estando em causa, essencialmente, a interpretação de uma cláusula de um aditamento a um contrato de sublocação, o sentido da mesma – a indiciar a prestação de uma fiança – não pode considerar isoladamente o seu teor, devendo ainda atender ao conjunto das estipulações desse aditamento no seu todo e no enquadramento da regulamentação atinente do contrato original, tendo ainda em conta o propósito prosseguido pelas partes e as razões que estiveram na base desse aditamento.
13. De uma exegese meramente literal do texto da cláusula de prestação de fiança, colhe-se, desde logo, a ideia de que os fiadores/apelados, nos termos da fiança, se responsabilizaram pelo pagamento de todas as quantias que viessem a ser devidas pela sociedade R..., S.A., retroagindo a Março de 2020, ou seja, à data da outorga do contrato original.
14. E o certo é que, para além da alteração aí especificada, relativa à constituição da prestação da fiança, manteve-se integralmente o restante clausulado do contrato.
15. Ponderando o estabelecido, consideramos que a interpretação da cláusula contratual que consagra a constituição da fiança e da qual emerge a responsabilidade do fiador deve estender-se às obrigações moldadas pela versão contratual original.
16. Aliás, foi na consideração e na vigência desse contrato original que o fiador avaliou o risco da responsabilidade assumida.
17. Ou seja, parece-nos óbvia a extensão da fiança, pretendendo os fiadores garantir integralmente, desde o início do contrato de arrendamento o pagamento das rendas e indemnizações que eventualmente viessem a ser reclamadas pela senhoria.
18. Tanto assim é que, na data em que outorgaram o aditamento ao contrato de sublocação, os fiadores, na qualidade de representantes legais da sociedade R..., S.A., sabiam que naquela data, a aludida sociedade, já devia à senhoria as rendas de Maio, Junho e Julho, o que, demonstra inequivocamente que os mesmos estavam conscientes e assim quiseram declarar, que a fiança introduzida os vinculava quanto ao bom cumprimento de todo o contrato, desde o contrato original.
19. Ou seja, esteve imanente ao pensamento e à vontade das partes, no essencial, a ideia de continuidade do contrato de arrendamento.
20. Perante estas circunstâncias ou coeficientes, haverá de concluir-se, até mesmo por actuação do vector da boa fé (que se presume ter sido adoptado pelas partes), que as partes, pretenderam assumir o bom cumprimento do contrato de arrendamento desde o seu início, tanto mais que, a constituição da cláusula da fiança foi um complemento ao contrato anterior, celebrado em 1/3/2020.
21. É este, com efeito, o sentido que um declaratário normal, com as qualidades acima apontadas, atribuiria às referidas declarações negociais, tendo em conta o contexto e as circunstâncias em que foram proferidas e o conjunto das cláusulas contratadas, sendo também esse o sentido que mais se ajusta ao texto desta cláusula no seu todo.
22. Mesmo que assim não se entenda, o que não se concebe nem concede, ainda que não fosse viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio, há que lançar mão do art. 237º do CC, que dispõe para os casos duvidosos.
23. Sendo inegável que estamos perante um negócio oneroso, consideramos que, ponderado o negócio concluído na sua globalidade, o sentido (interpretação) conducente ao Maior equilíbrio das prestações é de que os fiadores se obrigaram a garantir o pagamento de todas as rendas, desde Março de 2020, tanto mais que, a sociedade R..., S.A., usufruiu integralmente do gozo do imóvel nos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto (impedindo a autora de arrendar o imóvel a terceiros), sendo que, era sua obrigação (contraprestação) o pagamento do preço.
24. De qualquer forma, e ainda que os elementos de interpretação não conduzissem ao resultado atrás indicado, restaria então concluir que não era de todo possível descortinar a intenção real das partes.
25. E, nesse caso, sempre haveria que recorrer à regra do artº 342º, nº 1, CC e decidir que a autora logrou a demonstração do direito que se arroga – de que a ré R..., S.A., não liquidou as rendas devidas pela ocupação do imóvel nos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto de 2020 (cf. facto provado em 4), pelo que, os réus, como fiadores e principais pagadores, deveriam ser condenados a pagar solidariamente, não só a renda correspondente ao mês de Agosto de 2020, como foram, mas também as rendas correspondentes aos meses de Maio, Junho e Julho de 2020.
26. A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos artigos 236º, nºs 1 e 2, 237º, nº2, 238º, nºs 1 e 2, 342º, nº1 e 627º, nºs 1 e 2, todos do CC.
27. Pelo que, deve ser proferido douto acórdão que revogando a sentença recorrida, julgue a acção parcialmente procedente por provada, condenando os réus solidariamente a pagarem à autora as rendas de Maio, Junho e Julho de 2020, num total de 24.000,00€, mantendo no mais a douta sentença recorrida.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se em consequência a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que, julgue a acção parcialmente procedente por provada, condenando os réus solidariamente a pagarem à autora as rendas de Maio, Junho e Julho de 2020, num total de 24.000,00€, mantendo no mais a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a fiança prestada compreende também a obrigação de pagamento das rendas relativas a meses anteriores à prestação da fiança e vencidas antes da prestação desta.

III. Os factos:
Ficaram provados os seguintes factos:
1. Em 1/3/2020, a autora declarou sublocar e a sociedade R..., S.A. declarou aceitar o imóvel situado na Rua ..., no Porto, destinado a indústria, pelo período de 3 meses, com início em Março/2020, prorrogável por iguais e sucessivos períodos, mediante a entrega mensal da quantia de 8.000,00 euros a entregar “no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior aquele a que respeita”.
2. Mais acordaram que:
A oposição à renovação e a denúncia por qualquer das partes terão de ser efectuadas com 1 mês de antecedência.” – cláusula 2.ª, §2
Constituindo-se a segunda outorgante (a sociedade R..., S.A.) em mora a primeira outorgante (a autora) exige, além das rendas em atraso, uma indemnização igual a 20% do valor em dívida.”
3. E, 14/7/2020, a autora, a sociedade e os réus subscreveram um escrito que intitularam de “aditamento ao contrato de sublocação” com o seguinte teor:
1. Os outorgantes acordam em aditar a seguinte cláusula com a seguinte redacção:
O terceiro outorgante (os réus) presta fiança à 2.ª outorgante (a sociedade) quanto ao seu bom cumprimento e que na qualidade de fiador e como principal pagador da 2.ª outorgante se obriga perante a 1.ª outorgante (a autora) ao cumprimento do mesmo, quanto ao pagamento da renda e de indemnizações porventura reclamadas pela senhoria, pelo que assume solidariamente com a segunda outorgante o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, mantendo-se a fiança válida enquanto perdurar o contrato, seus eventuais aditamentos e renovações ou as suas prorrogações até efectiva restituição do arrendado livre de pessoas e bens e mesmo que a renda seja aumentada um ou mais vezes e perdure mais de cinco anos, desde já renunciando ao benefício da excussão prévia.
2. Acordam ainda os outorgantes em manter em vigor todas as cláusulas do aludido contrato de arrendamento outorgado em 1 de Março de 2020 e não alteradas nem modificadas neste aditamento.”
4. A sociedade R..., S.A. não liquidou as rendas devidas pela ocupação do imóvel nos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto de 2020.
5. A sociedade R..., S.A. procedeu à entrega das chaves do imóvel à autora no dia 4/9/2020, por ter sido esta a data definida pela autora para a sua recepção quando a sociedade comunicou, no final do mês de Agosto, que queria proceder à entrega daquelas.
6. A sociedade R..., S.A. não entregou qualquer quantia que fosse devida pelo mês de Setembro/2020.
7. A sociedade R..., S.A. não comunicou à autora a sua intenção de entregar o imóvel com uma antecedência de 30 dias.
8. Com o referido em 3., os réus não assumiram a obrigação de procederem ao pagamento das dívidas vencidas.
9. Os réus nunca foram notificados, na qualidade de fiadores, do atraso no pagamento das rendas e dos valores em dívida, tendo a interpelação escrita, datada de 14/8/2020, sido dirigida à sociedade R..., S.A. e reencaminhada para os seus legais representantes, os réus.

IV. O mérito do recurso:
A causa de pedir alegada pela autora para fazer responder os réus pela obrigação de pagamento da renda e da indemnização pela mora no pagamento daquela emergente de um contrato de sublocação celebrado entre a autora e outra sociedade é constituído pela relação jurídica de fiança que os réus prestaram no aludido contrato em relação às obrigações da sublocatária.
Essa fiança foi celebrada entre a autora e os réus posteriormente à celebração do contrato de arrendamento, não sendo, portanto, simultâneos os contratos de sublocação (entre a autora e a sublocatária) e de fiança (entre a autora e os fiadores da sublocatária). A sublocação foi celebrada em 01/03/2020, a fiança apenas em 14/7/2020.
Quando a fiança foi prestada já se encontrava constituída a obrigação pecuniária de pagamento da renda, como inclusivamente já se encontravam vencidas e por pagar várias rendas, mais concretamente as rendas de Maio, Junho e Julho.
A fiança foi celebrada através de um aditamento ao contrato de sublocação cuja redacção é a seguinte:
«1. Os outorgantes acordam em aditar a seguinte cláusula com a seguinte redacção:
O terceiro outorgante (os réus) presta fiança à 2.ª outorgante (a sociedade) quanto ao seu bom cumprimento e que na qualidade de fiador e como principal pagador da 2.ª outorgante se obriga perante a 1.ª outorgante (a autora) ao cumprimento do mesmo, quanto ao pagamento da renda e de indemnizações porventura reclamadas pela senhoria, pelo que assume solidariamente com a segunda outorgante o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, mantendo-se a fiança válida enquanto perdurar o contrato, seus eventuais aditamentos e renovações ou as suas prorrogações até efectiva restituição do arrendado livre de pessoas e bens e mesmo que a renda seja aumentada um ou mais vezes e perdure mais de cinco anos, desde já renunciando ao benefício da excussão prévia.
2. Acordam ainda os outorgantes em manter em vigor todas as cláusulas do aludido contrato de arrendamento outorgado em 1 de Março de 2020 e não alteradas nem modificadas neste aditamento.»
Esta redacção não esclarece se os réus garantiram não apenas as rendas que se viessem a vencer em data posterior à prestação da garantia, mas também as rendas que nessa data já se encontravam vencidas. É esse aspecto relativo ao âmbito da fiança que divide as partes.
Refira-se que o texto da cláusula que expressa a vinculação dos réus é complexo, consentindo dúvidas mesmo quanto à exacta qualificação jurídica dessa vinculação, melhor dizendo, se a mesma consubstancia apenas uma fiança ou é algo diferente para mais.
De todo o modo, quer nos articulados da acção quer agora nas alegações de recurso, as partes estão de acordo quanto a tratar-se de uma fiança apenas. E como o que importa ao desfecho da acção e do recurso é apenas determinar se o âmbito objectivo desse vínculo compreende também as rendas que à data da subscrição do aditamento ao contrato já se encontravam constituídas e vencidas, acaba por não ser determinante discutir essa qualificação jurídica.
Partindo, pois, do pressuposto de que é (apenas) de uma fiança que se trata, vejamos o aspecto em que se centra a discussão.
Na sentença recorrida afirma-se que «tendo em consideração o teor da cláusula de constituição da fiança constante do contrato e a interpretação que dela se tem de fazer (com o sentido da declaração que seria apreendido pelo declaratário normal, medianamente instruído e diligente), com aplicação dos art.ºs 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, ambos do Código Civil, dúvidas não podem subsistir que os réus se obrigaram a garantir o pagamento de todas as quantias que viessem a ser devidas pela sociedade R..., S.A. à autora por virtude desse contrato de arrendamento, mas apenas as vencidas após 14/7/2020. Na verdade, do documento subscrito pelos réus e onde se constituem fiadores da sociedade R..., S.A. nada consta que permita que se conclua que a sua vinculação deveria retroagir a Março/2020, pelo que apenas é lícito concluir que a vinculação destes nasceu no dia 14/7/2020, não abrangendo incumprimentos passados.»
A sentença recorrida conclui assim, por via da interpretação da declaração dos dadores da garantia e por aplicação do disposto nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, que não constando da declaração qualquer menção a créditos vencidos em data anterior à prestação da garantia esta apenas cobre os créditos vencidos depois da prestação.
A recorrente opõe-se a esse resultado interpretativo, fundamentalmente chamando a atenção para o facto de a fiança ter sido prestada mediante um aditamento ao contrato de sublocação, quando os fiadores eram conhecedores do contrato e da situação de incumprimento existente (eram os legais representantes da sociedade devedora), sinal inequívoco de que estavam conscientes e quiseram declarar que a fiança os vinculava quanto ao bom cumprimento do contrato desde o seu início em Março de 2020.
Sustentam ainda que se não fosse viável chegar a um resultado claro sobre a interpretação da fiança haveria que aplicar o que dispõe o artigo 237.º do Código Civil para os casos duvidosos e como no caso estamos perante um contrato oneroso a interpretação deve conduzir ao maior equilíbrio das prestações, isto é, que os fiadores se obrigaram a garantir o pagamento de todas as rendas, desde Março de 2020.
Quid iuris:
A primeira observação que se impõe é a de que a recorrente não impugnou decisão sobre a matéria de facto e dos factos provados consta o seguinte: «8. Com o referido em 3. [leia-se, a prestação da fiança através do aditamento ao contrato de sublocação], os réus não assumiram a obrigação de procederem ao pagamento das dívidas vencidas
Esta redacção não é a mais feliz na medida em que não revela, e devia revelar, se o facto se reporta à vontade real dos garantes [“não assumiram” = “não quiseram assumir”] ou traduz apenas a conclusão a que o tribunal chegou por interpretação da declaração e, neste caso, qual o critério seguido para alcançar esse resultado.
A doutrina e a jurisprudência têm há várias décadas uma posição consolidada sobre a questão de saber se a interpretação dos contrato é uma «questão de facto» ou uma «questão de direito».
Castanheira Neves, in Questão-de-Facto - Questão-de-Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, Almedina, 1967, páginas 334 e 335, escreveu o seguinte: «Abstraindo de uma primeira e radical posição da doutrina - hoje de todo superada- que tinha incondicionalmente por «questão-de-facto» qualquer concreto juízo jurídico sobre as declarações negociais, já porque a própria «subsunção» delas seria questão-de-facto, já porque as regras interpretativas, mesmo as prescritas na lei, não seriam verdadeiras normas jurídicas, vemos que [sic] o pensamento actualmente comum (a doutrina tradicionalmente dominante) a acordar nos pontos seguintes. E unânime o aceitar-se a averiguação do facto da «declaração de vontade» (da sua emissão e existência empíricas, por forma oral, escrita, ou por qualquer outro modo de comportamento), e da intenção psicologicamente efectivas (reais) das partes, e bem assim a averiguação das «circunstâncias», precedentes, concomitantes ou ulteriores do negócio, como averiguações e determinações seguramente «de facto». Não se discute também, por outro lado, que a preterição das regras legais interpretativas e do mesmo modo a estrita «subsunção» - a qualificação do negócio segundo os tipos negociais legalmente previstos e a imediata aplicação dos preceitos jurídicos que os regulam – caiem [sic] de imediato no domínio da «questão do direito». As dúvidas – e, portanto, o problema – vêm a localizar-se na questão de saber se a actividade puramente interpretativa, a determinação do sentido juridicamente relevante das declarações negociais - a interpretação em sentido estrito - se reduzirá a uma averiguação ou apuramento de factos, em último termo à actividade probatória, ou se não manifestará antes uma intenção e um juízo especificamente jurídicos».
Na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/2014, proc. n.º 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, in www.dgsi.pt, entre muitos outros assinalou o seguinte: «… em sede de interpretação de negócios jurídicos, crendo-se ser este o entendimento uniformemente assumido por este Supremo, constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, isto é, a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts 236.º, nº 1 e 238.º, nº 1 do CC, competindo ao Supremo apreciar se a Relação, na actividade interpretativa, observou esses critérios legais, se se conteve ou não dentro dos limites dos mesmos. E daí que o apuramento da vontade real do declarante e o conhecimento dessa vontade pelo declaratário constitua matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, que, por isso, o Supremo não pode reapreciar; envolvendo já matéria de direito a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos citados arts. 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1. Com efeito, a determinação/indagação da real intenção dos contraentes ou a sua actuação concreta, quer no acto de vinculação negocial (emissão de declaração negocial expressa ou tácita), quer no desenvolvimento ou execução do “iter negotii” (“lex contractus”), constitui «a se» matéria de facto cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias. Só quando se encontre em causa a interpretação (efectuada pelas instâncias) de uma declaração negocial segundo (ou por aplicação de) critérios normativos – de harmonia com a teoria da impressão do destinatário, acolhida no nº 1 do artº 236.º – é que a questão passa a ser de direito, como tal já podendo e devendo ser conhecida e sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça.»
Seguindo esta posição, se aquele ponto da matéria de facto se reportar à vontade real, uma vez que a decisão de o julgar provado não foi impugnada, esta Relação está vinculada à decisão da 1.ª instância e tem de aceitar que a vontade real dos garantes era essa.
Ao invés, se se reportar ao resultado da interpretação da declaração por aplicação dos critérios legais uma vez não apurada a vontade real dos intervenientes, esta Relação, não obstante a falta daquela impugnação, não está impedida de alcançar um resultado interpretativo distinto uma vez que se moverá em sede de pura matéria de direito na qual goza de inteira liberdade.
A motivação da decisão de julgar provado esse ponto foi, segundo a própria sentença, a seguinte: «A demonstração do facto descrito no ponto 8 resultou do texto da declaração de vontade de constituição da fiança pelos réus e do preceituado pelo art.º 393.º, n.º 1 do Código Civil. Ou seja, a prova testemunhal produzida sobre este facto, concretamente se a fiança se destinou a vigorar apenas para futuro ou se deveria retroagir à data da celebração do contrato de arrendamento, não pode ser atendida, porquanto tendo a constituição da fiança sido reduzida a escrito, tal como o contrato de arrendamento, em conformidade com o preceituado pelo art.º 628.º, n.º 1 do Código Civil, a prova da declaração de vontade, do seu teor, do seu objectivo não pode ser feita através de testemunhas tendo de resultar do contexto da declaração escrita. Ora, nessa circunstância e ainda que a testemunha CC, sócio e funcionário da autora, tenha referido que como não haviam sido pagos os meses de Maio e de Junho o gerente da autora entrou em contacto com os legais representantes da ré para se responsabilizarem pelos valores em dívida e das rendas, a verdade é que do documento subscrito pelos réus e onde se constituem fiadores da sociedade R..., S.A. nada consta que permita que se conclua que a sua vinculação deveria retroagir a Março/2020, pelo que apenas é lícito concluir que a vinculação destes nasceu no dia 14/7/2020, não abrangendo incumprimentos passados
A leitura que fazemos desta motivação é que a Mma. Juíza a quo desconsiderou o único meio de prova produzido sobre a intenção dos garantes na prestação da garantia (mediante o argumento de que não era admissível a prova por testemunhas) e concluiu aquilo que julgou provado através de uma operação de pura interpretação.
Com efeito, seria um erro lógico-jurídica retirar da não prova de um facto positivo (o sentido do depoimento era a demonstração de que os garantes quiseram garantir as rendas já vencidas e em dívida) a prova do facto negativo inverso, razão pela qual, supondo que o raciocínio foi o correcto, a redacção do ponto provado advém exclusivamente do teor da declaração, rectius, da interpretação da mesma já que nenhum outro meio de prova foi arrolado para demonstração da vontade real.
Assim, independentemente de saber se o aludido ponto devia mesmo ser expurgado da matéria de facto (declarado não escrito) por não constituir, afinal de contas, uma questão-de-facto e só deverem constar da fundamentação de facto de uma sentença factos e não questões de direito ou puras conclusões jurídicas, o que podemos concluir é que, mesmo sem impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a redacção do aludido ponto não obsta a que por aplicação das regras constantes dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil possamos concluir diferentemente do assinalado no aludido ponto 8.
Acrescente-se que mesmo segundo o artigo 236.º do Código Civil a vontade real do declarante só é determinante para a fixação do sentido da declaração quando a mesma for conhecida (ou cognoscível) do declaratário (artigo 236.º, n.º 2), pelo que o apuramento dessa vontade é insuficiente para fechar a tarefa interpretativa se não for possível concluir outrossim que o declaratário a conhecia (ou devia conhecer).
Por outro lado, o objecto da interpretação é a declaração ou comportamento declarativo, ou seja, não é a vontade, mas sim a sua expressão.
Para Carlos Ferreira de Almeida, in Contratos IV, Funções. Circunstâncias. Interpretação, Almedina, 2011, página 261, no domínio das normas legais relativas à interpretação dos negócios jurídicos, a «vontade» não é sinónimo de desejo, propósito ou aspiração, antes, tendo antes o significado de «intenção significativa de ser relevante e de intenção de ser compreendido».
Para Rui Pinto Duarte, in A Interpretação dos Contratos, Almedina, 2016, página 56, isso significa que a «vontade real do declarante» é o mesmo que o significado que o declarante pretendeu que o destinatário apreendesse ou, de modo diverso, não sendo a vontade, enquanto fenómeno psicológico, escrutinável, a referência à mesma tem de ser tomada como referência a manifestações (ou demonstrações) suas, signos dessa vontade, cognoscíveis e carecidas de interpretação como quaisquer outros signos».
Para C. A. Mota Pinto, Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, in Teoria Geral do Facto Jurídico, 5.ª edição, 2020, Gestlegal, página 443, «o intérprete não vai pesquisar a vontade efectiva do declarante, mas um sentido exteriorizado ou cognoscível através de certos elementos objectivos. O objecto da interpretação não é a vontade como «facto da vida anímica interior», mas a declaração como acto significante. É uma interpretação normativa e não uma interpretação psicológica. Não se dá relevo necessariamente à vontade real do declarante, nem sequer necessariamente à vontade real do declaratário. Não estamos perante uma mera averiguação de factos; há que averiguar factos, mas a conclusão, a partir deles, é valoração jurídica e critério normativo».
A interpretação das declarações negociais é a actividade dirigida a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios formados pelas declarações, a determinar o conteúdo das declarações de vontade e os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações. Essa interpretação não foi deixada ao critério do julgador, antes deve ser feita segundas regras e critérios legais que entre nós se encontram definidos nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.
Para os autores citados por último, loc. cit., página 444, o nosso sistema legal adoptou, com desvios, a «doutrina da impressão do destinatário» nos termos da qual «a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante» (artigo 236.º, n.º 1). Releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer. A prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário é, todavia, objecto, na lei, de uma limitação, … para que tal sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele (artigo 236.º, n.º 1, in fine)
Ainda segundo estes autores, loc. cit., página 446, «o Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. De acordo com o critério propugnado quanto ao problema do tipo do sentido negocial decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, Manuel de Andrade referia «os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.». Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo, podem assinalar-se outras, designadamente «os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído».
No Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Coordenação de Carvalho Fernandes e Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2014, 537, afirma-se que «mesmo quando o significado das palavras e expressões utilizadas é aparentemente claro e inequívoco, pode não ser esse o sentido juridicamente relevante; basta que a isso leve a consideração de outros elementos ou circunstâncias atendíveis. Noutros termos, o sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto. A lei não limita, em geral, os elementos ou circunstâncias susceptíveis de serem levados em conta na interpretação. Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (artigo 238.º). No âmbito desses elementos de informação ou circunstâncias, que, apesar de meios auxiliares da interpretação, podem revelar-se decisivos, cumpre assinalar: (i) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) as práticas negociais gerais, os usos, especialmente relevantes no comércio internacional, e as concepções do tráfico que tenham relação com o negócio em causa; (vi) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (vii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado
Resulta do regime estabelecidos nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil que em geral, se a vontade real dos declarantes for conhecida é de acordo com ela que a declaração vale (artigo 236.º, n.º 2). Porém, no caso dos negócios formais, o sentido a atribuir à declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º, n.º 1); um sentido que não tenha essa correspondência mínima só será aceite quando a vontade real dos declarantes for conhecida e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem à sua aceitação (artigo 238.º, n.º 2). Não sendo conhecida a vontade real dos declarantes, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, atribua à declaração (artigo 236.º, n.º 1). Em caso de dúvida, se se tratar de negócio oneroso, prevalece o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações e se se tratar de negócio gratuito o sentido que for menos gravoso para o disponente (artigo 237.º).
Uma vez que nos encontramos perante uma garantia pessoal e mais propriamente uma fiança, importa ainda olhar especificamente para os problemas que a interpretação da declaração do garante suscita.
Januário da Costa Gomes in Assunção Fidejussória de Dívida. Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, página 744/745, escreveu que podem suscitar-se «várias situações de dúvida sobre o sentido e o alcance da declaração do terceiro dador de garantia. Essas dúvidas são, grosso modo, de dois tipos: dúvidas de delimitação dentro do universo das garantias, mas tomando a fiança como ponto de referência … dúvidas, digamos, externas – e dúvidas – digamos internas – sobre o efectivo alcance da declaração do garante, uma vez concluído, pelas regras da interpretação, que estamos face a uma fiança. O problema … é um problema de interpretação da declaração negocial. […] A fiança, como negócio que é, está naturalmente sujeita a tais regras [o autor refere-se ao regime do artigo 236.º e seguintes do Código Civil]. […] interessa destacar … o facto de a especificidade do negócio jurídico fiança ter consequências específicas a nível da interpretação da declaração do fiador. O facto, …, de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração tendente à prestação de fiança dever ser interpretada de forma estrita. Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do artigo 237 CC – “dicotomizado” entre os negócios gratuitos e os onerosos – mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante. Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração “cobrir”, inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas. […] Uma vez firmado que a garantia em causa é uma fiança, as dúvidas (internas) que poderão surgir na interpretação da declaração deverão, de acordo com o mesmo critério, ser resolvidas por estoutro princípio: in dúbio pro fideiussore. As dúvidas que possam surgir, neste particular – não dúvidas subjectivas, mas, antes, dúvidas com suporte objectivo, após a interpretação da declaração nos termos legais (artigo 236 CC) – podem dizer respeito a qualquer aspecto da vinculação fidejussória, desde o tempo de vinculação, ao âmbito da responsabilidade, passando pelo sentido de qualquer cláusula acessória. (sublinhados nossos).
O mesmo autor, loc. cit, página 711, nota 99, a propósito das situações em que a fiança é delimitada temporalmente e do significado que essa baliza pode encerrar, escreveu que a limitação temporal tem o sub-sentido de o fiador apenas garantir o cumprimento das obrigações que se vencerem no decurso do prazo, ainda que tenham sido constituídas em data anterior à constituição da fiança. E acrescenta tratar-se de «um sub-sentido pouco usual e que não poderá ser adoptado na dúvida: o que é normal é que o fiador garanta, ab ovo, o cumprimento das obrigações que se constituam após (ou com) a constituição da fiança». Para o autor trata-se de um «problema ... estritamente de interpretação negocial»
Dito isto estamos em condições de apreciar o caso concreto e decidir com que sentido interpretar o texto da garantia.
Conforme já se assinalou, a redacção do texto mediante o qual a garantia foi prestada não esclarece se os réus garantiram para além das rendas que se viessem a vencer em data posterior à prestação da garantia, também as rendas que nessa data já se encontravam vencidas e por pagar.
Tal como Januário Gomes entendemos que o normal é que a fiança seja prestada para garantia apenas das obrigações que se constituam após ou com a constituição da fiança. A razão parece óbvia: a fiança é um negócio de risco, no qual o fiador assume o risco de ter de vir a ser ele a pagar a dívida do devedor principal, mas com a expectativa de que isso não será necessário porque confia que o devedor principal cumprirá com as suas obrigações.
Se o fiador já sabe que houve incumprimento de obrigações vencidas por parte do devedor, ele já não pode ter essa expectativa ou confiança. Nessa situação o fiador não pode sequer acreditar que se vier a pagar ao credor, o devedor principal o reembolsará depois, já que se este tem condições para efectuar o pagamento (ou obter recursos para o fazer) então o normal seria que não tivesse entrado em incumprimento perante o credor. Desse modo, nessa situação o seu risco da prestação da fiança aumenta exponencialmente, acabando a intervenção do garante por redundar verdadeiramente não numa garantia, mas numa responsabilização pessoal directa e imediata pela dívida.
Faz, portanto, sentido que esse âmbito da vinculação do garante seja manifestado de forma clara e inequívoca. Repare-se que o artigo 628.º do Código Civil exige não apenas que a fiança seja prestada pela forma exigida para a obrigação principal, mas ainda e cumulativamente que a vontade de prestar fiança seja «expressamente declarada». Esta exigência tem por objectivo, segundo a doutrina (v.g. Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Almedina, Coimbra, 1995, página 512 e seguintes) não apenas tornar mais certa a declaração e facilitar o trabalho interpretativo, mas ainda a chamada “função de aviso”, isto é, assegurar que o fiador se encontra devidamente avisado do perigo da fiança.
A isso acresce, segundo Januário Gomes, loc. cit., página 470, o objectivo de «num campo de tão graves consequências para o fiador, por um lado, evitar que se suscitem dúvidas sobre o propósito da vinculação; por outro, garantir que a atenção do fiador, aquando da vinculação, se centra directamente na assunção da fiança, de modo a possibilitar cabalmente a inteligência da sua vinculação, o que normalmente não acontecerá quando a atenção primeira ou directa do sujeito está centrada noutro efeito». Sendo assim, parece dever entender-se que nos casos em que o âmbito da fiança excede o normal e encerra um risco substancialmente agravado em relação à situação comum, também a assunção desse excesso ou acréscimo de risco seja manifestada de forma expressa e inequívoca.
A recorrente objecta com a circunstância de a fiança ter sido prestada mediante um aditamento ao contrato e de nesse aditamento terem sido corroboradas as cláusulas do mesmo.
Não cremos que esse facto seja relevante. A prestação da garantia através do próprio texto do contrato cujas obrigações são objecto da garantia via evitar questões sobre o conhecimento do fiador da natureza e extensão das obrigações que vai garantir. O mais que resulta dessa formalização da fiança é que ele não vai mais poder alegar que desconhecia a origem, natureza ou extensão das obrigações que garantiu. Essa circunstância não torna o fiador parte no contrato garantido, ele continua a ser apenas parte no acordo que estabeleceu com o credor para prestar a garantia. Em qualquer caso, o âmbito da cobertura da garantia é aquele que a declaração de prestação de fiança definir, não aquele que o contrato garantido prever.
A circunstância de no momento da prestação da fiança os fiadores conhecerem o contrato e a situação de incumprimento do mesmo já então existente não indicia que a fiança visou garantir igualmente as obrigações já incumpridas. Pelo contrário, o facto de essa situação ser do conhecimento quer do credor, que certamente esteve na origem da exigência da fiança, quer dos garantes, tornava mais premente a necessidade de o termo de fiança regular esse aspecto de forma clara e natural que o fizesse. Por isso, ao invés do que sustenta a recorrente, a falta de alusão a esse aspecto no termo de fiança mais indicia que o âmbito deste fosse o normal ou comum: cobrir apenas as obrigações que no âmbito do contrato garantido se viessem a constituir após a prestação da fiança.
Por fim, a recorrente argumenta com a aplicação da regra do artigo 237.º do Código Civil que manda que na dúvida sobre o sentido da declaração prevaleça nos negócios onerosos o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações, isto é, que os fiadores se obrigaram a garantir o pagamento de todas as rendas, desde Março de 2020.
Como vimos já, atenta a natureza e os riscos da fiança, a doutrina entende que na interpretação da declaração do fiador este critério deve ser substituído pelo critério in dúbio pro fideiussore.
Acresce que aquele argumento da recorrente dá como assente aquilo que carecia de demonstrar, isto é, que a fiança é, no caso concreto, um negócio oneroso.
À partida, devendo distinguir-se o contrato donde emergem as obrigações garantidas (contrato de sublocação que tem como partes unicamente a recorrente e a sociedade ré entretanto declarada insolvente) da fonte jurídica da prestação de fiança (o acordo estabelecido entre a sublocadora e os réus garantes para que estes prestassem a fiança) e do própria prestação da fiança (havendo quem defenda estar-se perante um acto unilateral que emerge do aludido acordo mas não se confunde com ele) não é fácil identificar prestação que se apresente como contrapartida para os fiadores da prestação da fiança, a qual é indispensável para que se possa sustentar que a finança é um negócio oneroso.
Voltemos a Januário Gomes e à sua tese de doutoramento (loc. cit.) que constitui o estudo mais significativo da doutrina portuguesa sobre a fiança. A páginas 389 e seguintes, afirma o autor:
«A classificação dos negócios jurídicos entre onerosos e gratuitos é incómoda, como acontece, aliás, com as classificações dicotómicas. […] sobretudo desde Antunes Varela, que as noções extremas de onerosidade e gratuitidade não são capazes de retractar as situações existentes no domínio das atribuições patrimoniais, assim como é reconhecido que a determinadas relações podem ser simultaneamente aplicáveis princípios próprios da onerosidade e princípios próprios da gratuitidade. [...] A dificuldade de classificação é acrescida nos casos de relações contratuais inseridas em operações mais amplas, sejam elas triangulares ou quadrangulares. Entre nós, Mota Pinto salientou o “especial interesse e dificuldade” da qualificação como gratuita ou onerosa dos negócios “cujos efeitos atingem distintamente o património de mais de dois sujeitos”. Mas já Galvão Teles relevara o facto de a onerosidade e a gratuitidade serem conceitos de relação, podendo um contrato ser oneroso nas relações das partes entre si e gratuito nas relações com terceiros (e vice-versa); e exemplifica: “O contrato de fiança celebrado entre o fiador e o credor traz ao devedor afiançado uma atribuição patrimonial (o que é sobretudo patente nos hipóteses em que, sem a fiança, o devedor não alcançaria crédito): atribuição as mais das vezes gratuita, mas nalguns casos onerosa, como se o devedor paga ao fiador uma retribuição pelo encargo que assume e risco que corre’’.»
E acrescenta: «O caso da fiança é, na realidade, um caso problemático … […] A priori, não se mostra difícil a caracterização da fiança; sendo a existência de uma retribuição indiferente para o tipo, a fiança tout court – o contrato fiador-credor – tanto pode ser gratuita quanto onerosa. […] é perfeitamente aceitável que a intervenção fidejussória (que até pode ser feita à revelia do devedor) seja remunerada pelo próprio credor, que na avaliação do risco de ver incumprida a obrigação pelo devedor e da insolvência deste, prefere “perder” as atribuições patrimoniais que concede ao prestador de garantia ... […] Nesse caso, não sofre naturalmente dúvidas o carácter oneroso do contrato de fiança, já que o credor e o fiador são mutuamente beneficiários de atribuições patrimoniais e sujeitos passivos de sacrifícios patrimoniais. […] Mota Pinto, depois de reconhecer a autonomia tipológica dos negócios que integram o triângulo da operação fidejussória, considera que eles “estão, todavia, em concreto, ligados por um nexo económico e teleológico, pois as partes têm a intenção de os coordenar para um escopo comum”; daí que, para o autor, os mesmos integram um negócio complexo, produto de uma coligação de negócios”, no qual “cada uma das atribuições patrimoniais é – nas relações dador de garantia-credor – um acto oneroso, por, segundo a intenção das partes, ser o correspectivo, a contrapartida da outra”. Também Antunes Varela aborda a questão, realçando o carácter decisivo da atribuição patrimonial; assim “se a concessão da garantia é remunerada, mediante contraprestação adequada, como sucede na fiança bancária, a fiança é onerosa; se a contraprestação não existe, como ocorre na generalidade dos casos de fiança civil, a fiança é gratuita”.»
Conclui: «A qualificação da fiança retribuída pelo devedor e erigida pelo credor (como normalmente ocorre) em condição de financiamento àquele, não pode deixar de reflectir a singularidade da operação fidejussória, na sua complexidade de operação triangular; mas, por outro lado, pode ter de prescindir das relações estranhas ao estrito contrato de fiança. Assim, se se discute, no estrito âmbito da acção interposta pelo credor contra o fiador (tendo em vista a satisfação do seu crédito) qual é a lei aplicável (artigo 42/2), parece ser de aplicar o regime dos contratos onerosos, atendendo-se à complexa operação de fiança, já que a prestação de fiança, erigida em condição de concessão do crédito, integra economicamente a “contraprestação” de que beneficia o credor. Idêntica conclusão seria de formular se fosse necessário e possível lançar mãoe nos termos em que a regra in dúbio pro fideiussore permitisse (que não permite) a sobrevivência de situações de dúvida – da norma subsidiária que é o art. 237, atenta a posição do concedente de crédito que não vê a fiança e, mais globalmente, a operação financeira como gratuita.» (sublinhados nossos).
Ora no caso estamos perante uma fiança civil, prestada por não profissionais, na qual não existe notícia de ter sido estabelecida qualquer contrapartida (a suportar pelo credor ou pelo beneficiário da garantia) pela prestação da garantia. É certo que os garantes são legais representantes da sociedade beneficiária da garantia, mas cremos que dessa qualidade não podemos retirar que os garantes sejam igualmente beneficiários das prestações devidas à sociedade pelo credor no âmbito do contrato de sublocação, sob pena de introduzirmos aqui uma despersonalização jurídica da sociedade sem fundamento que a justifique. Daí apenas retiramos que os garantes tinham interesse na prestação da garantia, mas esse interesse (pessoal, económico, familiar, etc.) há-de estar naturalmente presente na prestação de qualquer garantia por não ser concebível que uma pessoa sem nenhum interesse se dispunha a garantir obrigações alheias.
Por conseguinte, tudo aponta que, para o efeito que nos ocupa, a fiança é, no caso concreto, gratuita, o que levaria, em caso de aplicação do disposto no artigo 237.º do Código Civil a fazer prevalecer o sentido menos gravosos para o disponente, que no caso é o fiador, ou seja, o sentido de não estar incluída na garantia a obrigação de pagamento das rendas constituídas e vencidas antes da prestação da fiança. No entanto, como se procurou demonstrar, a mesma conclusão impõe-se não por aplicação dessa disposição, mas por aplicação do princípio interpretativo próprio do direito das garantias: in dúbio pro fideiussore.
Eis porque improcede a argumentação da recorrente e com ela o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, o qual vai condenado a pagar aos recorridos, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que estes suportaram e eventuais encargos.
*
Porto, 13 de Outubro 2022.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 709)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]