Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1467/12.0PHMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE FURTO
NATUREZA PARTICULAR
ALTERAÇÃO DA LEI
PRAZO PARA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
NOTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP201402191467/12.0PHMTS.P1
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Às normas processuais materiais é aplicável o princípio constitucional da retroactividade da lei penal mais favorável, e da irretroactividade desfavorável, não valendo, quanto a elas, o principio tempus regit actum, da aplicação imediata da lei vigente à data da prática dos actos, estabelecido no artigo 5º, n.º 1 do Código de Processo Penal, cujo âmbito de aplicação se restringe às leis processuais de natureza meramente formal.
II – O actual n.º 2 do artigo 207° do Código Penal, ao transformar de semi-públicos, em particulares alguns tipos legaius, é norma processual material.
III – Porque a nova lei se apresenta como mais favorável ao arguido tem aplicação retroactiva.
IV – No âmbito da lei nova, o Ministério Público carece de legitimidade para prosseguir com a acção penal pois que a ofendida, que havia apresentado queixa, não se constituiu assistente e nem deduziu acusação particular.
V – Apesar da alteração legislativa não pode, sem mais, declarar-se a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal.
VI – Tal solução agrava, de forma insuportável, a posição da ofendida que, também na lei nova, continua a ser a titular do direito criminalmente protegido e, não obstante, não teve sequer oportunidade para cumprir os requisitos de que, aquela mesma lei, passou a fazer depender o procedimento criminal. Deverá, por isso, a ofendida ser advertida da obrigatoriedade de se constituir assistente e dos procedimentos a observar, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 246º do Código de processo Penal.
VIII – O prazo peremptório para a constituição como assistente, conta-se a partir daquela advertência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1467/12.0PHMTS.P1
Matosinhos

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
2ª secção

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 1467/12.0PHMTS, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Matosinhos, o Ministério Público, em 30 de março de 2013, deduziu acusação, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, contra B…, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal.
Recebidos os autos no tribunal, foi proferido despacho datado de 13 de junho de 2013, com o seguinte teor:
“O Tribunal é competente.
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Da falta de legitimidade do Ministério Público:
O Ministério Público deduziu, em 30.03.2013, acusação contra a arguida B…, imputando-lhe a prática de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.°, n.º 1, do CP, alegando factos que traduzem a subtração de bens móveis por um único agente, em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente a coisas móveis expostas de valor diminuto (não excede uma unidade de conta, que é de € 102,00) e com recuperação imediata dos bens.
Acontece que, com a entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21.02 (que, segundo o art. 6.° dessa Lei, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação), o crime imputado à arguida nos presentes autos passou a assumir natureza particular, conforme decorre da atual versão do art. 207. °, n.º 2, do CP, onde se dispõe que: "No caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao publico, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas ".
E, na verdade, os factos da acusação preenchem todos os pressupostos exigidos pelo art. 207.°, n.º 2, do CP, para que o crime assuma natureza particular, tal como supra referido.
Assim sendo, mostrando-se a nova lei mais favorável à arguida, impõe-se a sua aplicação imediata, nos termos do art. 2.°, nº 4, do CP (sendo que tal resultado seria o mesmo pela via da aplicação do art. 5º, nº 1, do CPP, caso se entendesse a alteração meramente adjectiva).
Destarte, estando já em vigor a nova Lei ao tempo em que foi deduzida a acusação dos presentes autos, era exigível a constituição como assistente do ofendido e a dedução de acusação particular, para que assistisse legitimidade ao Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal, nos termos dos arts. 48.° e 50.° do CPP.
Nestes termos, o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal sem prévia constituição como assistente e dedução de acusação particular da ofendida – o que não sucedeu nos presentes autos –, uma vez que o crime em causa tem natureza particular, o que implica a falta de uma condição de procedibilidade, com a consequente extinção do procedimento criminal.
Decisão.
Nestes termos, o tribunal declara a ilegitimidade do Ministério Público para promover o presente procedimento criminal contra a arguida acima identificada pela prática do crime de furto, p. e p. pelo art. 203.°, n.º 1, do CP, julgando extinto, por essa razão, o procedimento criminal contra a arguida.
Notifique.
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
“a) O Mm.º Juiz a quo considerou na sua douta decisão que o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal pelo crime de furto, desacompanhado do ofendido constituído assistente, tendo ordenado o arquivamento dos autos;
b) O Ministério Público discorda de tal decisão, pretendendo ver o despacho proferido a fls. 44-45, revogado, e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos e designe dia para julgamento;
No verdade,
c) Se aquando da apresentação de queixa o ofendido tinha legitimidade para o procedimento criminal, a publicação da Lei Nova (LN) que mudou a natureza do crime de semi-público para particular, em nada alterou a validade da queixa apresentada;
d) Admitir que com a entrada da LN em vigor, o Ministério Público deixaria de ter legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal, se desacompanhado do ofendido, entretanto obrigatoriamente convertido em assistente, oneraria a posição processual do ofendido com o pagamento de uma taxa, e com obrigações e consequências que não tinha quando manifestou primitivamente a sua intenção de perseguir criminalmente o arguido;
e) Gerando um manifesto agravamento da posição processual do ofendido sendo indiferente para a posição processual do arguido [que em nada ganha com a nova natureza do mesmo crime, podendo até mesmo perder, colocando-se nas mãos de uma entidade interessada no destino do processo], constituindo assim uma quebra na unidade do sistema jurídico, e resultando numa aplicação retroactiva da lei, constitucionalmente proibida;
f) Assim, defendemos que tendo-se iniciado validamente o procedimento criminal ao abrigo da lei antiga (LA), cujo crime assumia natureza semi-pública, se a nova lei (LN) vier converter o crime em particular, tal não afecta a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação, não sendo exigível ao ofendido qualquer acto de “reforço de legitimidade”, designadamente o de se constituir assistente.
g) Temos assim como inequivocamente bom que, o Ministério Público iniciou os autos ainda quando o crime assumia natureza semi-pública, pelo que, considerar como fez o Mmº Juiz, que é de aplicar tout court a LN, quando o procedimento criminal se iniciou, à data, com toda a legitimidade do Ministério Público, e daí, retirar a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação quanto àqueles factos, constitui uma violação dos art.ºs 2º, nº 4, 115º, nº1, 116º e 117º, do Código Penal.
h) Pugna-se assim pela revogação do despacho que decidiu rejeitar a acusação, substituindo-se por um outro que a receba e designe data para audiência de discussão e julgamento.”
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 30.09.2013.
A arguida não respondeu.
Nesta Relação, o Ex.mo. Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, concluindo que:
“Neste conspecto, falece legitimidade ao MP para acusar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 48º e 50º, ambas do CPP, pelo que não vemos razão para censurar o despacho “sub judicio” cf. págs. 44-45.
Somos assim de parecer, que o recurso do MP, revelando manifesta improcedência, deve ser rejeitado – ut CPP 420º, nº 1, al. a).”
Foi cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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1. Questão a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir, é a de saber se a entrada em vigor de lei nova, que altera a natureza de um crime, de semi público para particular, implica, ou não, a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação, sem a prévia constituição do ofendido como assistente e dedução de acusação particular.
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2. Da acusação deduzida pelo Ministério Público, em 30.03.2013, consta a seguinte factualidade e imputação jurídica:
(transcrição)
“No dia cinco de Outubro de 2012, cerca das 14.20 horas, a arguida dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "C…", sito na Rua …, …, em Matosinhos.
No interior daquele estabelecimento a arguida retirou do local de exposição para venda ao público: cinco embalagens de carne de picanha, no valor total de 96,63 € e escondeu-as sob as roupas que trajava.
Após, a arguida passou a linha das caixas, onde se procede ao pagamento das aquisições e não apresentou aquelas embalagens para pagamento do preço, incorporando-as, dessa forma, no seu património.
Na saída do estabelecimento, a arguida foi interceptada pela testemunha, que recuperou os bens.
O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de, pela forma supra descrita, integrar o mencionado bacalhau na sua esfera patrimonial, contra a vontade do legítimo dono.
Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, praticou o arguido, em autoria material, um crime de furto p. e p. nos art.º 203º, nº 1 do C. Penal.”
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3. Apreciação do recurso
A questão que se coloca, prende-se com a entrada em vigor, em 21 de março de 2013, da Lei 19/2013 de 21 de fevereiro, que alterou o artigo 207º do Código Penal, introduzindo-lhe um nº 2, com a seguinte redação:
“No caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas”.
Antes disso, não havendo norma equivalente a esta, os crimes de furto previstos e puníveis pelo artigo 203º do Código Penal, mesmo que verificado o circunstancialismo agora descrito no transcrito nº 2 do artigo 207º, dependiam apenas de queixa, nos termos do nº 3 do artigo 203º do Código Penal; (a não ser que se verificasse, também, o particular condicionalismo das alíneas a) ou b) do artigo 207º do Código Penal)
Ocorreu, assim, uma alteração legislativa que conferiu natureza particular a crimes de furto que, antes, tinham natureza semi pública.
No caso dos autos, o procedimento criminal, que se iniciou em 14 de novembro de 2012 com queixa da sociedade ofendida, reporta-se a furto praticado pela arguida, no dia 5 de outubro de 2012, num estabelecimento comercial de hipermercado, em horário de expediente, tendo por objeto carne aí exposta para venda ao público, de valor inferior a uma UC (ou seja, de valor diminuto, nos termos da al. c) do artigo 202º do Código Penal), a qual foi de imediato recuperada. (Não se verificando, também, o circunstancialismo da alínea b) do nº 1 do artigo 207º do Código Penal, já que, contrariamente ao sustentado pelo Ministério Público nesta instância, dos autos não resulta o imediatismo da utilização do objeto do furto, nem que o mesmo se destinasse à satisfação de necessidade indispensável da agente, cônjuge, ascendente, descendente, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges)
Assim, integrando a factualidade em causa nos autos o crime de furto simples, previsto e punível pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal, temos que, à data da sua prática e até à entrada em vigor, em 21 de março de 2013, da já referida Lei nº 19/2013, de 21.02, o respetivo procedimento criminal estava apenas dependente de queixa (cfr. artigo 49º, nº 1 do Código de Processo Penal). A partir de 21 de março de 2013, com a entrada em vigor daquela Lei, o procedimento criminal passou a depender de acusação particular, nos termos prescritos no artigo 50º do Código de Processo Penal.
Pelo que, não tendo a ofendida se constituído assistente nos autos, nem deduzido acusação particular, quando o Ministério Público, em 30 de março de 2013, deduziu a acusação, à luz da lei nova (então já vigente) carecia de legitimidade para prosseguir a ação penal, nos termos conjugados dos artigos 203º, nº 1 e 207º, nº 2 do Código Penal e 50º do Código de Processo Penal.
Isto, muito embora no âmbito da lei antiga, mas vigente à data da prática do crime, da dedução da queixa e do início do procedimento criminal, a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação se verificasse sem necessidade da prévia dedução de acusação particular pelo assistente.
Estamos, pois, perante uma sucessão de leis no tempo, passando a resolução do caso sub judice, precisamente por determinar qual a lei aplicável.
Vejamos.
A acusação particular, tal como a queixa, ao mesmo tempo que constituem pressupostos processuais, tendo por isso natureza adjetiva, são também, simultaneamente, condições materiais de responsabilização penal do agente, vertente em que assumem natureza substantiva. Por esse motivo, é habitual classificarem-se as normas que respeitam à disciplina da queixa e da acusação particular, como sendo de natureza processual material, tendo os pressupostos nelas contidos de ser apreciados ao longo de todo o procedimento processual, (Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 4ª edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 106).
Precisamente neste sentido, ensina também Figueiredo Dias que, "Relativamente a certos pressupostos processuais, porém, o seu conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teologia e as intenções político-criminais que lhes presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser. Por isso, o regime de tais pressupostos é regulado essencialmente na parte geral do Código Penal e, na verdade, no capítulo respeitante às consequências jurídicas do crime. Como tal, é exacto que tais pressupostos não são elementos do tipo, não exercem qualquer influência sobre a ilicitude, não assumem relevo para a culpa, nem tão pouco, devem ser vistos como condições de punibilidade. Mais ainda: eles são estranhos ao tipo legal de crime e não estão cobertos, por isso, pelo conteúdo jurídico- susbtantivo do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, se bem que possam já revelar para efeitos de determinação do regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente” (in Direito Penal Português As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, pág. 663.)
De tudo assim decorrendo, ser aplicável às normas processuais materiais o princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais favorável, e da irretroatividade desfavorável. Não valendo, quanto a elas, o principio tempus regit actum, da aplicação imediata da lei vigente à data da prática dos atos, estabelecido no artigo 5º, nº 1 do Código de Processo Penal, cujo âmbito de aplicação se restringe às leis processuais de natureza meramente formal.
Por conseguinte, o atual nº 2 do artigo 207º do Código Penal, ao transformar a natureza de um crime semi público em particular, é uma norma processual material, na medida em que veio acrescentar um pressuposto adicional de procedibilidade: constituição do ofendido como assistente e dedução de acusação particular. Tornando, por essa via, objetivamente mais difícil o procedimento, que passou a ficar totalmente dependente de vontade particular, demitindo-se o Estado de intervir oficiosamente, o que revela, inclusive, uma evidente opção de política criminal que se aproxima do movimento de descriminalização.
Sendo assim, temos de concluir que a lei nova se apresenta como mais favorável ao arguido e, como tal, tem aplicação retroativa.
Ora, in casu, no âmbito da lei nova, a partir de 21.03.2013 (data da sua entrada em vigor), o Ministério Público carecia de legitimidade para prosseguir com a ação penal, sem que antes a ofendida, que já havia apresentado queixa, se constituísse assistente e deduzisse acusação particular, nos termos conjugados dos artigos 203º, nº 1 e 207º, nº 2 do Código Penal e 50º do Código de Processo Penal.
Contudo, declarar a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal, como foi feito no despacho recorrido, não pode ser a solução, pois tal equivaleria a uma autêntica descriminalização dos factos, o que, manifestamente, não foi querido pela lei nova.
Para além de, com essa solução, se agravar de forma insuportável a posição da ofendida que, também na lei nova, continua a ser a titular do direito criminalmente protegido e, não obstante, não teve sequer oportunidade para cumprir os requisitos de que, aquela mesma lei, passou a fazer depender o procedimento criminal.
É que, não podemos olvidar que o cumprimento da finalidade visada pelo legislador com a alteração da lei, implica, necessariamente, que a ofendida tenha de ser advertida da obrigatoriedade de se constituir assistente e dos procedimentos a observar, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 246º do Código de Processo Penal. Contando-se o prazo (peremtório) para a constituição como assistente, precisamente a partir daquela advertência (nº 2 do artigo 68º do Código de Processo Penal).
Ora, nos autos, a dita advertência não foi, nem podia ser feita, no momento próprio, que era o da denúncia, por então o crime denunciado ter natureza semi pública. Mas, como a advertência do ofendido da obrigatoriedade de se constituir assistente é ato obrigatório no procedimento por crimes particulares, deveria ter sido feita a partir do momento em que entrou em vigor a lei nova, que alterou a natureza do crime para particular.
A omissão dessa notificação, integra uma falta de promoção do processo penal, nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal. É que, mesmo nos crimes particulares, o procedimento criminal não é um procedimento privatístico, sendo o Ministério Público a única entidade que o promove, ainda que com as restrições do artigo 50º do mesmo diploma.
Pelo que, nos crimes particulares, a promoção do processo penal passa, necessariamente, pela advertência e informação do ofendido da obrigatoriedade da sua constituição como assistente e dos procedimentos a observar, já que a constituição como assistente é, nesses casos, condição de procedibilidade.
Não tendo tal advertência sido feita, e tendo o Ministério Público deduzido acusação sem a prévia dedução de acusação particular pela ofendida constituída assistente, não há dúvida que não promoveu o processo nos termos e segundo as regras legais do artigo 48º do Código de Processo Penal (que remete expressamente para o artigo 50º quanto aos crimes particulares). Assim ocorrendo uma falta de promoção de processo por crime particular, o que integra assim a nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 119º do Código de Processo Penal.
Tal nulidade, nos termos do disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal, torna inválida a omissão da advertência à ofendida para se constituir assistente no prazo legal, o que, por sua vez, acarreta a invalidade da própria acusação pública, cuja oportunidade está dependente da reação da ofendida àquela advertência (neste sentido, cfr. o acórdão desta Relação, de 18.12.2013, proferido no processo nº 236/13.4PHMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt).
O recurso procede assim parcialmente, ainda que por motivos diversos dos invocados, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare nula a acusação pública e determine o envio dos autos ao Ministério Público, para sanar a nulidade decorrente da falta de cumprimento do disposto nos artigos 68º, nº 2 e 246º, nº 4 do Código de Processo Penal (advertência à ofendida para se constituir assistente no prazo de 10 dias) e após, se for o caso disso, proferir o despacho a que se refere o artigo 285º, também do Código de Processo Penal
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que declare nula a acusação publica e determine o envio dos autos ao Ministério Público para sanar a nulidade decorrente da falta de cumprimento do disposto nos artigos 68º, nº 2 e 246º, nº 4 do Código de Processo Penal (advertência à ofendida para se constituir assistente no prazo de 10 dias) e após, se for o caso disso, proferir o despacho a que se refere o artigo 285º, também do Código de Processo Penal.
Sem custas.
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Porto, 19 de fevereiro de 2013
Elaborado e revisto pela relatora (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão