Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUELA MACHADO | ||
Descritores: | CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA INCUMPRIMENTO DEFINITIVO RESOLUÇÃO DO CONTRATO | ||
Nº do Documento: | RP20240620968/22.6T8PPFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. II - A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o disposto no art. 607.º, nº 3 do Código do Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final, sendo que só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil. III - No âmbito de um contrato promessa de compra e venda, não ocorre uma situação de incumprimento definitivo, quando o prédio em causa se mostrava disponível, com todas as condições acordadas, cumpridas, e estando os réus na disponibilidade de cumprirem na íntegra o contrato promessa. IV - Se a promitente-compradora decidiu enviar aos réus, uma carta através da qual comunicava a resolução do contrato promessa por incumprimento dos promitentes-vendedores, invocando não ter sido possível formalizar a escritura de compra e venda por falta de documentação, mas se de toda a prova produzida e de todos os elementos que constam dos autos se pode concluir que o contrato definitivo só não foi concluído porque a mesma não logrou obter o crédito bancário que pretendia, situação a que os réus são alheios, até porque a obtenção de crédito nem sequer consta do contrato promessa como uma qualquer condição para a celebração do contrato definitivo, improcede a sua pretensão de receber o sinal em dobro V - Já os promitentes-vendedores que perante a mora da promitente-compradora, interpelaram a mesma, dando-lhe prazo razoável para cumprir, com a advertência de que considerariam o contrato promessa definitivamente incumprido decorrido tal prazo, assiste-lhes o direito à resolução do contrato promessa, fazendo sua a quantia recebida a título de sinal. (da responsabilidade da Relatora) | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Apelação 968/22.6T8PFR.P1 Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO AA, solteira, maior, portadora do cartão de cidadão nº ..., contribuinte nº ...12, residente na Rua .... Paços de Ferreira, intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra 1. BB, viúva, contribuinte nº ...34, residente na ..., ..., Paços de Ferreira; 2. CC, casada, contribuinte n.º ...02, residente na Rua ..., ..., ..., ..., Paços de Ferreira; 3. DD, casado, contribuinte n.º ...93, residente na Rua ..., R/C, ..., Paços de Ferreira; 4. EE, casada, contribuinte n.º ...71, residente na Rua ..., ..., Paços de Ferreira; 5. FF, casada, contribuinte n.º ...78, residente na Rua ...., ..., Paços de Ferreira; e 6. GG, casado, contribuinte n.º ...21, residente na Rua ..., ..., Paços de Ferreira, Pedindo que, na procedência da ação, os réus sejam condenados no pagamento das seguintes quantias, acrescidas dos respetivos juros de mora à taxa legal em vigor vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento: a) € 19.000,00 a título de restituição de sinal em dobro; b) € 218,40 a título das despesas suportadas pela autora com esta situação; c) € 7.500,00 pelos danos não patrimoniais causados à autora. Para o efeito, a autora alegou que celebrou com os réus um contrato-promessa de compra e venda de uma fração autónoma, que os réus não cumpriram, ao não facultar à autora a licença de utilização do imóvel. Os réus, por sua vez, alegam que quem incumpriu o contrato-promessa foi a autora, pelo que, com fundamento no incumprimento culposo e definitivo pela autora, do contrato promessa e consequente resolução, formulam pedido reconvencional, através do qual pretendem fazer seu o sinal prestado pela autora. * Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, onde, a final, se decidiu:A- Decido julgar a ação inteiramente improcedente e, em consequência, absolvo os réus dos pedidos pela autora formulados. B- Decido julgar a reconvenção inteiramente procedente e, em consequência: - Declaro o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a autora e os réus definitivamente incumprido e resolvido; - Declaro o direito dos réus a fazerem sua a quantia de nove mil e quinhentos euros, entregue pela autora a título de sinal. C – Condeno a autora no pagamento das custas processuais, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil. * Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.Formulou, a autora, as seguintes conclusões das suas alegações de recurso: “DA MOTIVAÇÃO: I. A decisão de que se recorre enferma, no nosso entendimento de vários vícios, nomeadamente quanto à nulidade da sentença, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615.º n.º 1 al. b)), normativo que se mostra assim violado. II. Quanto ao julgamento da matéria de facto que nos casos que se apontarão adiante estão em contradição com a prova produzida, e como tal levaram a que erradamente fossem dados como provados factos para os quais a prova aponta em sentido oposto e dados factos como não provados cuja prova é a realizada em sede de audiência de julgamento, nomeadamente no que tange aos pontos A, C, D, E, F, I, J e K da matéria dada como provada que deveria ter sido dada como não provada. (existe, aqui, certamente lapso, já que os factos em causa foram dados como não provados). III. Bem como quanto à matéria de Direito, que em função da prova produzida e por via disso deveria ter levado a decisão diversa, culminando com a condenação dos Réus no pedido. IV. O ponto 9 dá como provado os e-mails de 18 de janeiro e 16 de fevereiro de 2022, documentos 5 e 6 junto aos autos, onde consta como provado que a autora solicitou à imobiliária a entrega da documentação do imóvel até ao final do mês de fevereiro. V. O ponto 13 dá como assente que a imobiliária requereu em 26/10/2021, à Camara Municipal ..., certidão de isenção de licença de utilização do imóvel. VI. O ponto 14, dá como assente que apenas em 22 de março de 2022, a Câmara emitiu a certidão referida no ponto 13 supra mencionado, mas não dá como assente a data em que essa mesma certidão foi remetida, ou não, à Autora. VII. Atentos os factos provados agora mencionados (9, 13 e 14), não se entende como o Tribunal a quo dá como não provado que a Autora avisou a imobiliária da urgência da licença porque as taxas de financiamento iriam alterar. VIII. Se não houvesse esta comunicação entre as partes, porque então ocorreu a reunião em janeiro e a troca e emails posterior onde se retrata exatamente a situação do crédito, seja no banco que a Autora já iniciara o processo seja num que a imobiliária indicasse? IX. Foi também dado como não provado (ponto C) que a autora não podia marcar a escritura sem a documentação necessária para obter o crédito, mas tal facto deveria ter sido claramente dado como provado, dada a clara existência de prova. X. Uma vez que existe um documento nos autos, a atestar essa mesma realidade e, por outro lado, um depoimento da funcionária da instituição bancária em causa (Sr.ª HH), que explica todo o processo da requisição do crédito. XI. Certo é que o ponto C deveria ter sido dado como provado. XII. Do referido depoimento também foi possível perceber que a obtenção do crédito bancário era condição fundamental para a realização do negócio, como era conhecimento dos Réus ab initio. XIII.O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”. XIV. O próprio doc. 3 junto com a petição inicial, representa o email trocado entre o banco e a imobiliária para avançar com o negócio. XV. Esclareça-se a posição dos Réus é sempre na pessoa da imobiliária, pois nem na outorga do contrato promessa de compra e venda houve contacto entre as partes, pois se atentarmos ao próprio contrato (cf. doc. 1 da petição) nem sequer está assinado pelos Réus, pois assinaram em momento posterior, nunca tendo chegado uma cópia final à posse da Autora. XVI. Logo, o ponto D deveria ter sido dado como provado. XVII. Relativamente ao ponto E, dado como não provado, não poderia ter sido qualificado como tal, uma vez que os encargos postos em causa constam do doc. 10. XVIII. Derivado do estado anímico da autora, que na época se encontrava grávida, e com gravidez de risco e dado como não provado nos pontos E., I. e J., ficou demonstrado no depoimento da testemunha II. XIX. Relativamente ao facto indicado não provado no ponto K. encontra-se relatada e demonstrada através do doc. 7, isto é, trata-se de um e-mail da própria instituição bancária que relata essa situação. XX. São claras as contradições entre a prova produzida em sede de julgamento, corroborada pelos documentos e a sentença proferida. XXI. Mas ainda assim, analisando a motivação alegada, para a tomada de decisão cumpre apontar os seguintes aspetos, o pedido de crédito realizado pela autora teve dois momentos, primeiro para a habitação e seguidamente para obras. XXII. A necessidade de mudança de habitação, confirmada em sede de audiência de julgamento e dada como provada e prendeu-se ao facto de a Autora ter engravidado. XXIII. Relativamente à questão da marcação da escritura, a douta sentença de que se recorre, limita-se a indicar que a Autora não marcou a escritura como constava da escritura de contrato promessa como sua obrigação, no entanto desvalorizou o constante de toda a prova documental assim como, a prova testemunhal que foi consistente no que a este ponto concerne, na pessoa do Sr. JJ. XXIV. No nosso entendimento, ficou provado e que a Autora por razões imputáveis unicamente à imobiliária, não lhe foi possível marcar a escritura, até porque, quando se recorre a crédito bancário, e tal foi explicado e corroborado por prova testemunhal, as escrituras são realizadas pela própria instituição bancária. XXV. O intuito da Autora que sempre agiu de boa-fé, era realizar a compra do imóvel, e não agendar uma escritura apenas e só por agendar. XXVI. Não estava na disponibilidade da Autora marcar a escritura, mas sim da entidade bancaria. XXVII. Toda a raiz do presente litígio reside neste ponto, e não podemos olvidar que apesar do documento camarário só em março de 2022 ter sido por esta entidade emitido, o pedido do mesmo foi realizado em outubro de 2021, e a imobiliária foi sempre sido notificada, alertada para o facto de que a proposta de empréstimo bancário nas condições acordadas, apenas se manteria até fevereiro de 2022. XXVIII. Reitere-se a importância de ser a entidade bancária quem realiza as escrituras nestas situações, não pode ser à Autora imputada a falta do agendamento, mas sim à imobiliária por não diligenciar pela obtenção atempada do documento solicitado e indispensável para a entidade bancaria poder marcar e realizar a escritura do imóvel em causa nos presentes autos. XXIX. Quanto ao estado anímico da Autora, basta pensarmos pelo sensu comum, numa mulher que esteja grávida e a passar por uma situação análoga, em que por inércia ou irresponsabilidade de terceiros, vê-se na iminência de perder quer o imóvel que escolheu para poder habitar em função da necessidade de mais espaço para a família em crescimento, quer a preocupação de perda de crédito e do sinal pago com recurso a ajuda de familiares para a aquisição do referido imóvel. XXX. Portanto, existiu efetivamente produção de prova coesa e consistente para se poder apurar pela não imputação de responsabilidade da Autora, e consequentemente a existir responsabilidade ser imputada à imobiliária pelo facto da escritura ter de ser realizada no caso em concreto pela entidade bancária e não o ter sido por falta de um documento responsabilidade da imobiliária. DO DIREITO: XXXI. O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”. XXXII. A prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e deverá ser valorada conforme se estabelece no art. 466.º n.º 3 do NCPC, isto é, deverá ser apreciada livremente pelo tribunal. XXXIII. O artigo 604º n.º 3 do Código de Processo Civil concretiza a materialização do princípio da imediação de prova, pois, este artigo dita, no âmbito da audiência final, quais os atos de prova que devem ser realizados ou ser presentes perante o juiz, uma vez que, nessa fase, ele terá de apreciar e pronunciar-se, quanto às provas produzidas na sequência da sua produção, quais os factos que se consideram provados e quais os factos que se consideram não provados (artigo 607º n.º 4 Código de Processo Civil), portanto, é aqui, nesta fase, que existe um contacto direto entre o juiz e a prova. XXXIV. É um princípio que tem especial relevo na primeira instância uma vez que é nela que é efetuada a produção de prova, mas também poderá atuar na segunda instância nos casos previstos da alínea a) e b) do n.º 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil. XXXV. O princípio da imediação da prova decorre da prossecução da verdade material e do princípio da livre apreciação de prova e é conditio sine qua non para a sua admissibilidade lógica. O objetivo do presente princípio é que o juiz dê prevalência às provas mais diretas e mais recentes por se considerarem mais fidedignas, em detrimento das provas a produzir com recurso a ilações/deduções que são de carácter indiciário, portanto, não tão fidedignas por não serem diretamente percecionadas pelo juiz, ou às provas remotas que não sejam tão recentes por já poderem ter sofrido deturpações. XXXVI. É após a produção de prova e a tomada de posição das partes, que é possível, ao juiz, aderir a uma determinada verdade, contudo, essa possibilidade não terá tantas hipóteses de estar correta quanto a oralidade permite, pois através do discurso adotado pelas partes poderá aferir-se com maior probabilidade a descoberta da verdade, dado que o juízo retirado do discurso das partes, acerca da veracidade ou da falsidade das suas alegações ou afirmações, será mais preciso, portanto terá uma probabilidade maior de alcançar a verdade. XXXVII. Através do discurso direto é possível percecionar determinadas características do discurso como a espontaneidade do orador, a vivacidade do seu discurso, a distância que o orador coloca ao relato, o nervosismo, sobre o qual terá sempre de se relevar alguma parte dadas as circunstâncias do orador que nunca se viu sentado numa sala de audiências, bem como as suas expressões faciais, o que apenas é aferível através do discurso direto e, que irá permitir alcançar uma maior probabilidade de correspondência com a verdade material do que as provas materiais, uma vez que não são diretamente percecionadas pelo juiz. XXXVIII. Posto isto, verificamos que a ideia chave deste princípio é a aproximação do juiz à matéria probatória por ser diretamente percecionada pelo mesmo, portanto mais fidedigna e com maior possibilidade de atingir a verdade material. XXXIX. No caso de que se recorre verifica-se que este princípio poderia e deveria ter sido seguido pois o seu cerne valoriza uma análise profunda e atenta a produção de prova realizada sobretudo em sede de primeira instância. XL. Na produção da prova oral que se realizou na audiência de julgamento de cuja sentença se recorre, não foram valorados nem o conteúdo, nem a espontaneidade, continuidade e complementaridade dos depoimentos, porque se analisados com as peças processuais e documentos juntos certamente geraria decisão antagónica à tida. XLI. É certo que a prova é um elemento essencial da sentença, dado que a mesma é formada pelos factos provados e não provados, mas é também um elemento essencial na formação da convicção do juiz, pois são as provas que, no seu âmago, irão convencer o juiz na obtenção da verdade. XLII. Portanto, o seu juízo decisório será formado pelas provas que o convenceram, de que atingiu a verdade do litígio, mesmo que apenas tenha atingido a verdade formal. XLIII. Posto isso, podemos afirmar que prova e convicção do juiz, são dois conceitos intimamente ligados, já que a prova, em todas as suas aceções, ajuda a formar a convicção do juiz, portanto, a decisão final é formada através dos factos provados em processo. XLIV. A prova testemunhal, apesar de falível e precária, é aquela que, na prática, assume a maior importância, por ser a única a que pode recorrer-se na demonstração da realidade de muitos factos. O Tribunal, não podendo prescindir de tal meio de prova, deve ter «prudente senso crítico» no interrogatório e na ponderação do depoimento testemunhal, relembrando o vetusto brocardo do Digesto «testium fides diligenter examinanda». XLV. Conforme diz Antunes Varela no seu Manual de Processo Civil a prova testemunhal é considerada, sob vários aspetos, a prova mais importante de entre aquelas que são admitidas por lei. Recorde-se que testemunha é a pessoa que, não sendo parte na ação nem seu representante, é chamada a narrar (declaração de ciência) as suas perceções de factos passados – o que viu, o que ouviu, o que observou, o que sentiu. XLVI. Não obstante não ser uma “prova rainha” em virtude dos muitos fatores externos que a podem deturpar, a prova testemunhal possui um relevo legal inquestionável e fundamental para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, razão pela qual deve ser analisada pelo julgador de forma atenta e dentro do seu poder de livre apreciação e interliga-la com as demais provas e acima de tudo entre si, existindo várias testemunhas, numa busca dos pontos comuns e mais verosímeis possíveis dentro das leis da experiencia, de forma ao julgador poder sentenciar com a maior certeza e fundamentação probatória coerente e fidedigna possível, mediante ao que aos seus olhos foi produzido. XLVII. Salvo melhor opinião, e pelo exposto nos factos do presente recurso, a prova testemunhal produzida permitia largamente que a meritíssima Juiz “a quo” conclui-se de forma diferente, bastando para o efeito que tivesse valorado toda a prova testemunhal, depoimentos e declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, que juntamente com os restantes meios de prova teria conduzido a decisão diferente da que foi decidida e que a este Venerando Tribunal da Relação se requer tal análise. Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V Exas., deve o presente Recurso ser recebido e, por via dele, e de todos os considerandos nele versados de facto e de direito, considerá-lo totalmente procedente, revogando a douta sentença de que se recorre, com o que se fará a sã, boa e costumeira JUSTIÇA!”. Os Recorridos apresentaram contra-alegações, concluindo pela manutenção da sentença recorrida. * Após os vistos legais, cumpre decidir. * II - DO MÉRITO DO RECURSO 1. Objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, são as seguintes as questões a apreciar: - Se a sentença enferma de nulidade, nomeadamente a prevista na al. b), do nº 1, do art. 615.º do CPC; - Se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas, pelo que deve ser alterada a decisão da matéria de facto; - Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito. * 2. Sentença recorrida 2.1. O Tribunal de 1ª Instância considerou provada a seguinte matéria de facto: “1. A autora e os réus celebraram, no dia 19/10/2021, contrato-promessa de compra e venda do imóvel urbano destinado a habitação, composto por casa de rés-chão e primeiro andar, quintal e logradouro, sito no lugar ..., Rua ..., Paços de Ferreira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o nº ...62, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art.º ...44 da Freguesia .... 2. A título de sinal, princípio e formalização do contrato-promessa, a autora pagou € 9.500,00, em conformidade com a cláusula 2ª, n.º 3, do contrato-promessa. 3. De acordo com o n.º 4 da cláusula 2ª do contrato-promessa, “A restante quantia em dívida no valor de 85 500,00 (oitocentos e cinco mil e quinhentos euros), será paga pela Segunda aos Primeiros Outorgantes, no acto da outorga da compra e venda definitiva, mediante a entrega de um cheque bancário”. 4. Consta da cláusula terceira do contrato-promessa o seguinte: “1. A compra e venda definitiva será realizada no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data da outorga do presente contrato promessa; 2. Competirá à Segunda Outorgante, marcar data, hora e local para a realização do procedimento que formalizará o contrato ora prometido e informar aos Primeiros Outorgantes, com a antecedência mínima de 5 (cinco) dias, podendo este prazo ser comunicado pela mediadora imobiliária; 3. O prazo para a celebração da compra e venda definitiva poderá ser alterado por convenção das partes a formalizar em aditamento ao presente contrato”. 5. De acordo com a cláusula 6ª, “Todas a notificações que venham a ser necessárias na vigência do presente contrato serão efectuadas para as moradas que constam na identificação dos Outorgantes, por carta registada, com aviso de recepção à outra parte.” 6. Na cláusula décima (licenciamento) do contrato-promessa, ficou consignado que o imóvel em causa foi construído em 1971, pelo que, nos termos do Regulamento Geral das Edificações Urbanas em Paços de Ferreira, se encontrava isento de alvará de utilização. 7. Após a outorga do contrato-promessa, a autora diligenciou pela obtenção de crédito bancário. 8. A 25 de Outubro de 2021, a instituição bancária solicitou à mediadora imobiliária a apresentação, para segunda fase da celebração do contrato, posterior à primeira fase do pedido de crédito, a licença de utilização do imóvel. 9. Por e-mails de 18 de Janeiro de 2022 e 16 de Fevereiro de 2022, a autora solicitou à mediadora imobiliária a entrega da documentação do imóvel até ao final desse mês para evitar os custos de uma segunda avaliação do imóvel pelo banco, sob pena de resolução do contrato-promessa. 10. A 10 de Março de 2022, a autora comunicou aos réus a resolução do contrato-promessa por incumprimento dos promitentes vendedores. 11. No dia 24 de Março de 2022, os réus responderam à missiva da autora de 10 de Março de 2022, informando-a de que tinham a documentação necessária para a celebração do contrato prometido. 12. A autora queria comprar uma casa para ter mais espaço para a família. 13. A imobiliária “A... Unipessoal Lda” requereu, em 26/10/2021, à Câmara Municipal de Paços de Ferreira, certidão de isenção de licença de utilização do imóvel objecto do contrato-promessa. 14. O município de Paços de Ferreira emitiu a 22 de Março de 2022 certidão de onde consta que o imóvel objecto do contrato-promessa não se encontra sujeito a licença de utilização. 15. A autora não comunicou aos réus a data, hora e local da escritura de compra e venda nem no prazo acordado de sessenta dias a partir de 19/10/2021 nem posteriormente nem solicitou a prorrogação de tal prazo. 16. Por carta datada de 24 de Março de 2022, os réus, para além de informarem a autora de que tinham toda a documentação necessária à outorga da escritura de compra e venda, advertiram-na de que, caso não os avisasse da data, local e hora de tal escritura no prazo de quinze dias, perderiam o interesse que tinham no negócio e considerariam o contrato-promessa definitivamente não cumprido por culpa da autora.”. 2.2. E deu como não provados os factos seguintes: “A. Durante as semanas posteriores a 25 de Outubro de 2021, a autora avisou o mediador imobiliário “A... Unipessoal Lda”, conhecido no giro comercial como B..., de que havia urgência na entrega da licença porque, no final de Fevereiro de 2022, as taxas iriam aumentar e o banco deixaria de financiar 90% do imóvel (condição para a realização do contrato de compra e venda) para passar a financiar apenas 80%. B. Os réus começaram a diligenciar pela obtenção dos documentos necessários junto do Município no início do ano de 2022. C. A autora não podia marcar a escritura pública de compra e venda sem a documentação necessária à obtenção do crédito à habitação. D. A obtenção de crédito bancário era condição sine qua non para a autora realizar o negócio jurídico definitivo, o que sempre foi do conhecimento dos réus. E. A autora suportou encargos com o processo de pedido de crédito bancário – início do processo e avaliação do imóvel - no montante de € 218,40. F. Em virtude do comportamento dos réus, desde janeiro de 2022, a autora vive num constante estado de nervosismo, ansiedade, stress e preocupação. G. A autora não consegue suportar as novas condições do crédito bancário existentes desde Março de 2023. H. A autora não consegue suportar o valor das obras em virtude da inflação dos preços desde o início de 2022. I. A autora ficou triste, frustrada e revoltada com a postura dos réus. J. Têm sido várias as crises de ansiedade e de pânico que a autora tem sofrido em virtude da postura dos réus, carecendo muitas vezes de auxílio, ainda mais no seu estado de grávida de risco. K. Por os réus não terem entregue à autora a licença de utilização até ao fim de Fevereiro de 2022, esta perdeu as condições de crédito previamente acordadas e os orçamentos obtidos para as obras no imóvel, face ao agravamento dos preços.”. 2.3. E motivou a decisão de facto, nos seguintes termos: “C – Motivação dos factos provados Os documentos juntos pelas partes revelaram-se importantes para a prova de alguns dos factos alegados, para além da demais prova que será objecto de alusão. Assim, o contrato promessa de compra e venda celebrado entre a autora e os réus e respectivas cláusulas encontra-se documentado a fls. 11 verso e seguintes. O pagamento do sinal mediante a emissão do cheque de fls. 15 verso, foi admitido pelos réus. Tanto o e-mail de funcionária do banco Banco 1..., datado de 25 de Outubro de 2021, como o documento bancário contendo a avaliação do imóvel objecto do contrato-promessa, do qual consta como data do pedido 12 de Novembro de 2021, permitem confirmar que o pedido de concessão de crédito bancário pela autora é posterior à data do contrato-promessa. O e-mail de 25 de Outubro de 2021, elaborado pela testemunha HH, funcionária do banco Banco 1... e dirigido à mediadora imobiliária, para além de confirmado pela sua autora, encontra-se junto aos autos a fls. 16. Os pedidos formulados pela autora, em Janeiro e Fevereiro de 2022, dirigidos à mediadora imobiliária constam dos e-mails de fls. 19 e 20 verso. A comunicação dirigida pela autora aos réus de resolução do contrato-promessa corresponde às cartas de fls. 22 a 25, as quais os réus confirmaram na sua contestação ter recebido e respondido por via da carta constante do processo a fls. 25 verso e que a autora em julgamento admitiu ter recebido. Tanto a autora como a sua amiga KK, de um modo que nos pareceu objectivo, deram conta do interesse da autora em mudar para uma casa com melhores condições de habitabilidade do que a actual para a sua família. Da certidão de fls. 39 verso, emitida em 22 de Março de 2022 pela Câmara Municipal de Paços de Ferreira, consta a informação de que foi a mediadora imobiliária quem, em 26 de Outubro de 2021, solicitou a respectiva emissão, resultando ainda da mesma a não sujeição do imóvel objecto do contrato-promessa a licença de utilização. A testemunha LL, de um modo objectivo e profissional, enquanto sócio gerente da sociedade mediadora imobiliária que acompanhou este processo, confirmou ter solicitado a referida certidão ao Município em 26 de Outubro de 2021, acrescentando que o Município apenas em Março do ano seguinte emitiu a certidão porque, devido à pandemia por Covid-19, a autarquia teve muitos dos seus funcionários em confinamento. A autora, nas declarações que prestou em julgamento, confessou não ter marcado a escritura de compra e venda nem ter comunicado aos réus a respectiva marcação. D – Motivação dos factos não provados Foi por ausência de elementos probatórios nesse sentido que os factos descritos em A, E, G, H e K ficaram por demonstrar. Remete-se para a motivação constante da secção anterior quanto aos motivos pelos quais não ficou provado que os réus apenas tenham diligenciado pela emissão da certidão camarária no início do ano de 2022. Ficou por demonstrar que o agendamento da escritura pública de compra e venda tenha ficado dependente da obtenção da documentação que instruía o crédito à habitação, na medida em que a obtenção de crédito à habitação constitui facto alheio às condições constantes do contrato-promessa e porque, pelo menos, os documentos respeitantes à “fase 1”, ou seja, à fase do pedido de crédito à habitação, foram disponibilizados, atentando no teor do e-mail do banco de fls. 16, que distingue a documentação atinente a essa fase da documentação respeitante à fase da celebração do contrato, como confirmou com profissionalismo a funcionária do banco Banco 1..., tendo acrescentado que o banco não sabia que o imóvel não se encontrava dispensado da licença de utilização. O sócio gerente da sociedade mediadora imobiliária que acompanhou este negócio acrescentou, tendo em conta a sua experiência profissional, que nem todos os notários exigem para a realização da escritura de compra e venda a certidão de isenção de licença de utilização, desde que, consultada a certidão do registo predial, verifiquem que aquela se encontra dispensada, no que foi secundado, de forma desapaixonada e objectiva, pela testemunha MM, funcionária da mesma mediadora no departamento que trata dos documentos necessários à realização da escritura de compra e venda. De todo o modo, tratava-se de um documento atinente à fase da celebração do contrato de compra e venda e não à fase da concessão do crédito bancário. Nessa mesma linha de raciocínio, sublinha-se que nem consta do contrato-promessa qualquer cláusula atinente à necessidade e essencialidade para a autora da obtenção de crédito bancário como condição de cumprimento do contrato-promessa nem foi produzida prova no sentido que os réus foram sequer informados dessa essencialidade para a autora. Questionada a autora sobre os alegados ataques de pânico e ansiedade que o contrato-promessa sob análise lhe causou, ela própria não o confirmou, respondendo apenas, de forma vaga e muito pouco segura “um bocadinho”. Por outro lado, a indignação demonstrada pela autora pareceu residir na postura da mediadora, em quem diz ter confiado, e não dos réus. Finalmente, o namorado da autora, apenas afirmou que a autora andou com stress durante este período, o que é bem diverso do alegado pela autora.”. * * 3. Da nulidade da sentença Nas conclusões das suas alegações veio a recorrente invocar que a decisão recorrida enferma de vários vícios, “nomeadamente quanto à nulidade da sentença, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615.º n.º 1 al. b)), normativo que se mostra assim violado”. Apreciando: O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade da sentença, dispondo que: “1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. 2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura. 3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior. 4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”. Posto isto, é unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615.º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (vide Ac. do TRG de 04.10.2018, disponível em dgsi.pt). Ou seja, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito, invocada pela apelante, está relacionada com o disposto no art. 607.º, nº 3 do Código do Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. Contudo, conforme foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 3157/17.8T8VFX.L1.S1, de 03-03-2021 (disponível em gdsi.pt): “Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”. Acresce que, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.”. Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 19/14.4T8VVD.G1.S1, de 22-01-2019, se conclui em termos idênticos: “1. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”. Ou seja, só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão, quando exista uma falta absoluta de fundamentação, ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial. Não é claramente o que ocorre no caso, como, aliás, resulta da fundamentação de facto transcrita supra, onde o Tribunal a quo menciona os meios de prova a que atendeu para tomar a decisão da matéria de facto que tomou, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados, sendo que, relativamente à decisão de direito, indica os preceitos legais a ter em consideração, tendo em conta as questões a resolver, analisa a matéria de facto apurada, e tira daí as conclusões de direito. Assim, sem necessidade de outras considerações, conclui-se que não ocorre a invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação. * 4. Do erro de julgamento Nas conclusões de recurso veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]” O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação. No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação, indica a prova a reapreciar, bem como a decisão que sugere, mostrando-se, assim, suficientemente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância (sublinhado nosso). No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida. Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396.º do Código Civil. E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova. Posto isto, analisada a prova documental e ouvida a prova gravada, cabe analisar se assiste razão à apelante, na parte da impugnação da matéria de facto. Como resulta das respetivas conclusões do recurso, a recorrente entende que deve ser alterada a matéria de facto dada como não provada nas alíneas A, C, D, E, F, I, J e K, factos não provados que entende deverem ser considerados como provados. No que diz respeito à alínea A) dos factos não provados, tem o seguinte teor: A. Durante as semanas posteriores a 25 de Outubro de 2021, a autora avisou o mediador imobiliário “A... Unipessoal Lda.”, conhecido no giro comercial como B..., de que havia urgência na entrega da licença porque, no final de Fevereiro de 2022, as taxas iriam aumentar e o banco deixaria de financiar 90% do imóvel (condição para a realização do contrato de compra e venda) para passar a financiar apenas 80%. Entende a apelante que este facto deveria ter sido dado como provado, face aos factos dados como provados nos pontos 9., 13., e 14. Mas não tem razão, desde logo porque o facto em causa na alínea A), não contraria os referidos nos pontos da matéria de facto provada, referidos, estando o facto não provado em causa, relacionado com a questão do aumento das taxas e com a percentagem de financiamento, factos sobre os quais não foi feita qualquer prova e não resultam dos emails mencionados pela apelante. Mantém-se, pois, como não provado o facto que consta da alínea A). Foi dado como não provado que “C. A autora não podia marcar a escritura pública de compra e venda sem a documentação necessária à obtenção do crédito à habitação.”. E que “D. A obtenção de crédito bancário era condição sine qua non para a autora realizar o negócio jurídico definitivo, o que sempre foi do conhecimento dos réus.” Relativamente ao facto não provado C), o facto objetivo em si não resulta provado, nem face ao teor do documento referido pela apelante - email de 8 de março de 2022, nem se retira do depoimento da testemunha HH. Afigura-se evidente que pode ser marcada uma escritura de compra e venda sem recorrer sequer ao crédito. Mas mesmo no caso concreto, objetivamente, era possível marcar a escritura, até porque resulta do documento número 3 junto com a petição inicial, email de 25 de outubro de 2021, que a questão do crédito habitação era, no caso, prévia à marcação da escritura, por razões óbvias, mas é independente da última, não dependendo sequer da apresentação da mesma documentação. O facto, aliás, não tem a virtualidade de demonstrar o que a apelante pretende, ou seja, retirar à autora a responsabilidade pela não marcação atempada da escritura, já que se não obteve o crédito em tempo, tal não se deveu a qualquer situação a resolver pelos réus, os quais eram alheios à obtenção/concessão do crédito pela apelante, crédito que não chegou a ser concedido, não tendo havido decisão do Banco 1... sobre o mesmo, como foi referido pela testemunha HH. Já quanto ao facto não provado D), entendemos que resulta da prova que consta dos autos que, efetivamente, a obtenção de crédito bancário seria condição para a autora, para a realização do negócio jurídico definitivo, mas já não que tal fosse do conhecimento dos réus desde o início, desde logo, porque nada é referido no contrato promessa, sendo este o documento que os vincula. Face aos factos provados 7, 8 e 9, (7. Após a outorga do contrato-promessa, a autora diligenciou pela obtenção de crédito bancário. 8. A 25 de Outubro de 2021, a instituição bancária solicitou à mediadora imobiliária a apresentação, para segunda fase da celebração do contrato, posterior à primeira fase do pedido de crédito, a licença de utilização do imóvel. 9. Por e-mails de 18 de Janeiro de 2022 e 16 de Fevereiro de 2022, a autora solicitou à mediadora imobiliária a entrega da documentação do imóvel até ao final desse mês para evitar os custos de uma segunda avaliação do imóvel pelo banco, sob pena de resolução do contrato-promessa.), podemos concluir que a imobiliária acabou por saber, porque esteve envolvida na obtenção dos documentos necessários, que a apelante pretendia obter um crédito habitação, mas nada resulta que os réus tivessem sabido disso desde o início, nomeadamente, que a obtenção do crédito fosse uma condição para a celebração do contrato definitivo, caso em que deveria constar do contrato promessa celebrado, o que não ocorre. Mantém-se, assim, também esta matéria de facto como não provada Impugnam os réus, seguidamente, o facto não provado E) que refere “A autora suportou encargos com o processo de pedido de crédito bancário – início do processo e avaliação do imóvel - no montante de € 218,40.”. Concorda-se com a apelante, quando refere que tal facto se mostra provado pelo teor do documento número 10 junto com a petição inicial, constituído pelo extrato bancário da conta da apelante, onde constam dois movimentos com esse valor total, associados ao contrato com o número ...60, o qual, como resulta do documento número 7, diz respeito ao com trato que tratava a concessão do crédito à habitação referido. Procede, assim, a impugnação deste facto. Os factos não provados F), I) e J), têm o seguinte teor: F. Em virtude do comportamento dos réus, desde janeiro de 2022, a autora vive num constante estado de nervosismo, ansiedade, stress e preocupação. I. A autora ficou triste, frustrada e revoltada com a postura dos réus. J. Têm sido várias as crises de ansiedade e de pânico que a autora tem sofrido em virtude da postura dos réus, carecendo muitas vezes de auxílio, ainda mais no seu estado de grávida de risco. Estes factos têm a ver com o estado anímico da apelante, como a mesma refere no seu recurso, pretendendo que se mostram provados face ao depoimento da testemunha II, seu companheiro, que disse que a mesma andava stressada, e nada mais, nomeadamente o que consta dos factos em causa. Acresce que, se nem sequer se provou que o estado anímico da apelante era o que foi, precisamente, dado como não provado, menos se provou ainda que tal estado, ainda que existisse, tivesse resultado do comportamento dos réus, o que ninguém referiu e não se pode retirar da demais factualidade apurada, já que os réus, representados pela imobiliária, tudo fizeram para levar o negócio a bom termo. Nada há, pois, a alterar. Finalmente, o facto não provado K), que refere “Por os réus não terem entregue à autora a licença de utilização até ao fim de Fevereiro de 2022, esta perdeu as condições de crédito previamente acordadas e os orçamentos obtidos para as obras no imóvel, face ao agravamento dos preços.”, também deve ser mantido como tal. Desde logo, ao contrário do que a apelante refere, do documento número 7 não resulta que a apelante perdeu as condições de crédito acordadas, apenas constando que foi cancelado o processo de financiamento e que para lhe dar seguimento, será necessário abrir novo processo com os custos inerentes, e muito menos, resulta desse documento que a apelante perdeu os orçamentos para as obras que nem sequer são referidos. E também não se mostra suficiente o depoimento da testemunha II, para dar o facto como provado, até porque o seu depoimento se mostra pouco claro ou esclarecedor, e contraria outras provas, como o próprio documento e o documento número 3, do qual resulta que para a concessão do crédito não era necessário tal documento, apenas sendo exigido para a celebração da escritura. Improcede, deste modo, a impugnação da matéria de facto, com exceção do ponto E) que se considera provado. * * 5. Decisão de Direito A apelante discorda da sentença proferida em 1ª Instância, pretendendo que a mesma seja revogada e substituída por outra que condene os réus no pedido. Tendo em conta a pretensão da autora e a contestação dos réus, está em causa nos autos decidir se foram os réus, ou antes a própria autora, quem incumpriu as obrigações que para si resultavam do contrato em causa nos autos e se, consequentemente, a autora tem direito a receber em dobro, o sinal que pagou, ou os réus podem fazer sua a quantia entregue a título de sinal. A análise das questões colocadas implica que, previamente, se caracterize o referido contrato. Do teor das suas cláusulas resulta que o contrato contém elementos típicos da promessa de compra e venda de um imóvel. Com efeito, as partes acordaram que, mediante determinado preço, os réus prometiam vender à autora e esta prometia comprar aos réus o prédio identificado nos autos, tendo a autora procedido à entrega de determinada quantia a título de sinal e princípio de pagamento. Este tipo de obrigações contratuais é característico do contrato de compra e venda, nos termos dos arts. 874.º e seguintes do Código Civil. Assim, o contrato celebrado entre a autora e os réus é um típico contrato promessa de compra e venda, que se rege pelas normas do art. 410.º do Código Civil e pelas regras do contrato de compra e venda (arts. 874.º e seguintes do mesmo diploma legal). O contrato em causa foi formalizado por documento escrito, assinado pelos outorgantes, em observância da exigência legal de forma a que alude o nº 2 do art. 410.º do Código Civil – exigência que resulta do facto de o contrato prometido respeitar à compra e venda de imóvel, para a qual a lei exige a forma especial de escritura pública ou documento particular autenticado (art. 875.º do Código Civil) – sendo certo que a inobservância das formalidades previstas no nº 3 do art. 410.º do Código Civil não pode ser conhecida nem tomada em conta oficiosamente pelo tribunal, segundo o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, constante do Assento nº 3/95, publicado no Diário da República, I Série-A, de 22/04/95, pelo que é perfeitamente válido. Tendo sempre em mente a pretensão das partes, diremos, ainda, que dispõe o art. 441.º do Código Civil, que no contrato promessa de compra e venda se presume que tem caráter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço. Por sua vez, dispõe o nº 2 do art. 442.º do Código Civil, no que para a resolução do caso interessa, que se quem constitui o sinal (promitente comprador) deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; já se o não cumprimento do contrato for devido a este último, ou seja, ao promitente-vendedor, tem o promitente comprador a faculdade de exigir o dobro do que prestou. Ou seja, tendo a autora celebrado contrato promessa de compra e venda com os réus, tendo procedido à entrega da quantia de € 9 500,00, correspondente a parte do preço, tal quantia presume-se que tem carácter de sinal, presunção que não foi ilidida, tendo, antes, sido aceite tal facto. Aqui chegados, cabe, então, apreciar a questão controvertida e que se prende com o incumprimento do contrato promessa descrito. Importa não esquecer que podendo as partes, “dentro dos limites da lei”, “fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver” (cfr. art. 405º, nº 1, do Código Civil), contratando, ficam vinculadas ao seu conteúdo. Com efeito, “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei” (cfr. art. 406º, nº 1, do diploma legal citado), o que significa que “o devedor tem de realizar a prestação a que está adstrito respeitando os três princípios que enformam o cumprimento das obrigações: terá de agir nos termos impostos pela boa-fé (art. 762º, nº 2, do Código Civil), de forma a que a sua atuação não venha a causar prejuízos ao credor; a prestação deverá ser cumprida pontualmente (arts. 406º, nº 1 e 762º, nº 1, do Código Civil), no sentido de ter de se ajustar, em todos os aspetos, ao que era devido; e salvo convenção, disposição legal ou uso em contrário, a prestação deverá ser efetuada integralmente (art. 763º do Código Civil) e não por partes”(cfr. Pedro Romano Martinez, in “Da cessação do contrato”, Almedina, 2ª Edição, p. 127). Como refere este autor, “no fundo, dir-se-á que o incumprimento corresponde à violação dos princípios pacta sunt servanda, segurança jurídica e boa-fé”. Assim sendo, sempre que o devedor não cumpra a prestação ou a cumpra em desrespeito de qualquer dos princípios referidos, estar-se-á perante uma situação de não cumprimento do dever obrigacional. No que concerne ao contrato promessa, considera-se o mesmo cumprido quando, vencidas as obrigações, os obrigados à celebração do negócio prometido concluem este nos termos convencionalmente estabelecidos, o que supõe não apenas que celebrem tal negócio, como que este não sofra de qualquer vício ou disfunção suscetível de afetar a posição jurídico-patrimonial visada por cada um dos credores, relativamente à qual ele dispunha de uma expetativa jurídica. O cumprimento da promessa traduz-se, pois, na conclusão do contrato definitivo projetado, que, em regra, produzirá os seus efeitos ex nunc. Continuando a fazer apelo ao autor supra, citado, “as regras gerais relativas ao não cumprimento culposo constam dos artigos 798.º e 799.º do Código Civil, de onde sobressai uma ideia de incumprimento em sentido amplo, abrangendo três modalidades (mora, cumprimento defeituoso e incumprimento definitivo); além disso, presume-se a culpa do devedor, culpa que é apreciada nos termos gerais (art. 799.º referido)”. O incumprimento definitivo enquadra-se numa situação de responsabilidade contratual do devedor e, como tal, baseia-se na culpa, apesar de presumida (cfr. art. 799.º, nº 1, do Código Civil). Se a prestação não foi definitivamente cumprida, parte-se do pressuposto de que o devedor atuou ilícita e culposamente (ainda que a culpa seja presumida) causando danos ao credor. Estar-se-á perante o incumprimento definitivo sempre que a prestação não tenha sido realizada e já não possa vir a sê-lo posteriormente. De acordo com o disposto no art. 808.º, n.º 1, do Código Civil, são duas as causas que podem estar na origem de tal situação: o credor perdeu objetivamente o interesse no cumprimento da prestação ou decorreu o prazo suplementar (admonitório) de cumprimento estabelecido pelo accipiens (acrescenta-se muitas vezes uma terceira causa: declaração expressa do devedor em não querer cumprir). Se o credor perder o interesse – objetivamente, nos termos do nº 2 do preceito indicado – na prestação, não se justifica que o solvens a pretenda realizar, na medida em que, sendo a satisfação do interesse do credor o fim para o qual a obrigação foi constituída, se este fim não se pode obter por culpa do devedor, estar-se-á perante um caso de incumprimento definitivo. Mas o credor pode também estabelecer um prazo razoável para o devedor realizar a prestação após o seu vencimento, findo o qual esta se considera definitivamente incumprida; por isso se designa “prazo admonitório”. De outra forma, o credor que não tivesse perdido o interesse na prestação ficaria indefinidamente adstrito à relação obrigacional que o ligava à contraparte e, principalmente em contratos sinalagmáticos, tal indeterminação poderia acarretar consequências nefastas para a parta cumpridora. Note-se que na interpelação de prazo admonitório, além da consequência de se considerar a prestação definitivamente incumprida, por economia de meios, pode incluir-se a declaração condicional de resolução do contrato, caso em que, transformando-se a mora em incumprimento definitivo pelo decurso do prazo suplementar, preenche-se a condição suspensiva e o contrato resolve-se (cfr. Pedro Romano Martinez, in “Da cessação do contrato”, Almedina, 2ª Edição, p. 142). Quando o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito, já não é necessário que o credor lhe estabeleça um prazo suplementar para haver como incumprido definitivamente o contrato. Bastará a declaração do devedor, embora se esta for efetuada antes do vencimento e não estiverem verificados os pressupostos da perda do benefício do prazo (art. 780º, nº 1, do Código Civil), o incumprimento definitivo só se verifica na data do vencimento se, na realidade, até esse momento o devedor não tiver realizado a prestação. Nestes dois últimos casos, o regime do não cumprimento definitivo funciona em alternativa à realização coativa da prestação. Assim, por exemplo, se o prazo suplementar estabelecido pelo credor não for respeitado pelo devedor, aquele pode optar entre as regras do incumprimento definitivo e as da ação de cumprimento e de execução específica. No caso dos autos, verificava-se, desde logo, que não ocorria uma situação de incumprimento definitivo, uma vez que o prédio em causa se mostrava disponível, com todas as condições acordadas, cumpridas, e estando os réus na disponibilidade de cumprirem na íntegra o contrato promessa. Invoca a apelante que não podia ser realizada a escritura de compra e venda por falta de declaração de isenção de licença de utilização do imóvel objeto do contrato. Mas não entendemos que assim seja. Quanto ao documento referido pela apelante, licença de utilização, ficou, desde logo, consignado no contrato promessa que o imóvel se encontra isento de alvará de utilização. E não se diga que a escritura não podia ser marcada sem esse documento, cuja declaração de isenção era exigida pelo Banco escolhido pela apelante para a concessão do crédito à habitação, mas não é sempre exigido pelos Cartórios Notariais, sendo também certo que, ao contrário do que a apelante refere, não corresponde à verdade que quando se recorre a crédito bancário, as escrituras sejam obrigatoriamente realizadas pela própria instituição bancária, já que nada impede que a escritura seja agendada diretamente no Cartório Notarial que dirá quais os documentos necessários, bastando, depois, que no dia da escritura esteja presente um representante da instituição bancária. Sucede que, no caso em apreciação resulta que, antes da celebração da escritura de compra e venda, a autora teria que ter concluído com o banco que escolheu, a questão do crédito à habitação, o que não aconteceu, já que o crédito nunca chegou a ser apreciado/concedido, e tal nada teve que ver com a falta de documentos a obter pelos réus, nomeadamente de isenção de licença de utilização que apenas era solicitada para a fase seguinte de realização da escritura, e nem mesmo com a questão da retificação das áreas que podia ser dispensada pelo Banco, como ficou claro face ao depoimento da testemunha que é funcionária do banco. Não se vê, assim, que tivesse havido alguma atuação voluntária, ilícita e culposa da parte dos réus, ou a falta de atuação, que tivesse levado ao incumprimento do contrato, tendo os mesmos, antes pelo contrário, e através da imobiliária, diligenciado no sentido de resolver todas as questões que foram surgindo, como a retificação das áreas, a solicitação do documento de isenção de licença, apesar de já constar do contrato promessa que não era necessária tal licença de utilização, e mesmo a disponibilidade para ajudar na obtenção do crédito, bem ora junto de outra entidade bancária. Já quanto à atuação da autora/apelante, resulta que se a mesma não podia agendar a escritura dentro do prazo acordado, como lhe cabia por força do contrato promessa, devia ter dado disso conhecimento e solicitado o aditamento do contrato, como consta da cláusula terceira do mesmo. Sucede que, a apelante decidiu, no dia 10 de março de 2022, enviar aos réus, uma carta através da qual comunicava a resolução do contrato promessa por incumprimento dos promitentes-vendedores, invocando não ter sido possível formalizar a escritura de compra e venda por falta de documentação, assunto sobre o qual já nos pronunciámos supra. Ora, nos termos legais referidos, a atitude a tomar pela apelante deveria ter passado por marcar a escritura atempadamente, como lhe cabia, ou, então, a existir algum incumprimento por parte dos réus, o que se entende não ocorrer, invocar a perda de interesse no cumprimento do contrato, ou fixar um prazo razoável aos réus, para o cumprimento, caso houvesse da parte destes alguma recusa em cumprir o contrato promessa celebrado. O certo é que de toda a prova produzida e de todos os elementos que constam dos autos se pode concluir que o contrato definitivo só não foi concluído porque a apelante não logrou obter o crédito bancário que pretendia, situação a que os réus são alheios, até porque a obtenção de crédito nem sequer consta do contrato promessa como uma qualquer condição para a celebração do contrato definitivo. Já quanto ao pedido reconvencional formulado pelos réus, ficou provado que a autora nem agendou a escritura de compra e venda dentro do prazo de sessenta dias nem comunicou aos réus tal agendamento com a antecedência contratualmente prevista, como era seu dever. E, não procedendo a alegação de que a escritura só não foi agendada porque faltava a declaração de isenção de licença de utilização, a qual, provavelmente, nem seria exigível se a escritura fosse marcada num cartório notarial, mas antes que tal situação resultou de a apelante não ter logrado obter o financiamento bancário de que necessitaria, os réus atuaram como se lhes impunha. Perante a mora da promitente-compradora, interpelaram a mesma, dando-lhe prazo razoável para cumprir, com a advertência de que considerariam o contrato promessa definitivamente incumprido decorrido tal prazo. Posto isto, bem andou a decisão recorrida, ao julgar improcedente a ação e procedente a reconvenção, tudo nos termos do disposto no art. 442.º, nº 2 do Código Civil. Deve, pois, manter-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos. * * III- DISPOSITIVO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo da apelante (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC). Porto, 2024-06-20 Manuela Machado Francisca Mota Vieira Isoleta de Almeida Costa |