Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO | ||
| Descritores: | ARRESTO DIREITO A TORNAS | ||
| Nº do Documento: | RP202510133226/11.8TBVNG-B.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA PARCIAL | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Em sede cautelar, o 376.º/3 do Código de Processo Civil concede ao juiz a possibilidade de emendar eventual erro na qualificação da medida, de corrigir o erro na forma de procedimento utilizada e ainda de, na decisão final, não estar vinculado à medida individualizada pelo requerente, dispondo de liberdade para aplicar aquela que entender mais adequada à tutela do direito apresentado. II - A decisão que qualifica juridicamente o fundamento creditório do arresto como sendo em benefício da herança, na sequência de um requerimento cautelar em que se invocam créditos sobre a requerida na esfera jurídica da requerente e, simultaneamente, da herança, não padece de nulidade por incongruência com o pedido, sem prejuízo da eventualidade de erro de julgamento. III - É admissível a decisão sobre a matéria de facto referente ao arresto, ou a qualquer outro procedimento cautelar, tomada essencialmente ou unicamente com base na prova e nos factos apurados no processo principal. IV - O herdeiro dispõe na sua esfera jurídica do direito à herança, logo que a aceite, e simultaneamente ao seu quinhão no património hereditário, o qual é susceptível de expressão pecuniária, de possível transmissão e, densificado no direito a tornas, de objecto de tutela mediante procedimento cautelar de arresto. V - Perspectivada a título de defesa da herança, a acção cautelar deve ser intentada por todos os herdeiros, nos termos do art. 2091.º do CC, mas a decisão que proceda a tal qualificação jurídica, quando foram alegados e apurados créditos a título pessoal, apenas incorre em erro de julgamento. VI - Uma das circunstâncias mais relevantes para a afirmação do periculum in mora no arresto é a dimensão do passivo da pessoa contra quem ele é requerido, em especial por confronto com uma situação de exiguidade do respectivo activo, por ser susceptível de, perante o reconhecimento do direito da contraparte, segundo máximas de experiência comum e considerando as demais circunstâncias do caso, impelir o devedor à ocultação ou à dissipação do seu património. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 3226/11.8TBVNG-B.P1 ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL): Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo 1.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca 2.º Adjunto: António Mendes Coelho RELATÓRIO. Por apenso ao processo de inventário instaurado por óbito do seu pai, AA, veio BB, titular do NIF ..., residente na Rua ..., em São João da Madeira, intentar procedimento cautelar de arresto, contra CC, portadora do NIF ..., com domicílio na Avenida ..., ...., ..., em Vila Nova de Gaia e viúva do inventariado. Pediu o arresto da fracção autónoma, designada pela letra AY, destinada a habitação, 6º andar esq., do prédio urbano sito na Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia, de todas as quantias em dinheiro que a requerida possua depositadas em contas à ordem ou a prazo, ou aplicadas em seguros ou produtos financeiros, junto de instituições bancárias ou financeiras a operar em Portugal, e dos usufrutos da requerida em três fracções autónomas. Alegou, em resumo, que sobretudo a partir do ano de 1999, a requerida começou a revelar um grande ascendente sobre o seu marido, o inventariado, falecido a 13/8/2010, nos últimos dez anos da vida de quem as visitas familiares passaram a escassear, mercê de obstáculos colocados pela requerida, que nunca permitiu à requerente ou outra pessoa da família pudesse ficar sozinha com o seu pai, que por seu turno revelava cada vez maior degenerescência neurológica. Por outro lado, de toda a prova produzida nos autos principais, apura-se que à data de 15/12/1990 a requerida não era detentora de bens imóveis, acções ou quotas de sociedades comerciais, não detinha poupanças relevantes, nem sequer auferia rendimentos, verificando-se que a sentença proferida a 17/2/2025 nesse processo comprova a sonegação de bens por parte da requerida, resultante da míngua relação de bens que ela, como cabeça de casal, havia apresentado em 10/07/2012, forçando o Tribunal a descobrir quase toda a informação que cabia à requerida fornecer até à prolação da sentença acima referida e que determinou a real composição da relação de bens. Da qual resulta a existência “de créditos sobre a cabeça de casal, ora requerida CC, em montante global de € 634.967,51” (art. 54 do RI), créditos que “a herança tem sobre requerida” (art. 65 do RI), que “sem considerar aqui o valor da verba nº 7 ainda por avaliar (o Mercedes), e já somada do valor das três doações sujeitas a colação, a soma dos outros bens (considerando o valor das avaliações dos imóveis) perfaz € 1.034.191,59” (art. 56 do RI) e que a proceder o incidente de sonegação de bens, com os efeitos previstos no art. 2096.º do CC, no inventário apenso, o quinhão da requerida será na ordem dos € 134.000,00 (art. 59 do RI). Para além disso, “toda a censurável conduta da requerida, ao longo do processo de inventário, leva à conclusão de que esta tudo fez, tudo tentou fazer, no sentido de que a requerente não viesse a herdar do património do seu falecido pai tudo aquilo a que legitimamente tinha direito”, pelo que, “tudo aponta para que, daqui em diante, pior vá suceder … no sentido da requerida tudo fazer para nada, ou o menos possível, ter de pagar à requerente seja a que título for”. Em consequência, concluiu pela presença dos “requisitos desta providência cautelar, a existência de um crédito contra o arrestado e que o credor tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito” (arts. 96 e segs. do requerimento inicial). Na sequência, sem audição da parte contrária, foi proferida decisão que, julgando totalmente procedente o presente procedimento cautelar, decretou o arresto, em benefício da herança deixada aberta por óbito de AA, de quem a requerente é herdeira, da fracção autónoma, designada pela letra AY, destinada a habitação, 6º andar esq., do prédio urbano sito na Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia, de todas as quantias em dinheiro que a requerida possua depositadas em contas à ordem ou a prazo, ou aplicadas em seguros ou produtos financeiros, junto de instituições bancárias ou financeiras a operar em Portugal, e dos usufrutos da requerida em três fracções autónomas. * E dessa decisão, inconformada, veio a requerida interpor recurso, admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo (cfr. despacho de 11/7/2025).Nas suas alegações, a requerida culminou com as seguintes conclusões: 1) A recorrida requereu procedimento cautelar de arresto contra a recorrente, invocando expressamente a qualidade de credora pessoal e alegando crédito próprio no valor mínimo de €280.000,00. 2) A recorrida fundamentou integralmente o seu pedido na necessidade de proteger a garantia patrimonial do seu alegado crédito pessoal contra a recorrente, nos termos do artigo 391.º do Código de Processo Civil. 3) A recorrida atribuiu à causa o valor de €280.000,00, correspondente ao montante do seu alegado crédito pessoal. 4) A recorrida nunca invocou, em qualquer momento do requerimento inicial, estar a agir em representação da herança de AA. 5) A recorrida nunca alegou ter legitimidade derivada da qualidade de herdeira para representar a herança contra outro herdeiro. 6) O tribunal de primeira instância julgou procedente o arresto, mas decretou-o “em benefício da herança deixada aberta por óbito de AA”. 7) O tribunal fundamentou a sua decisão em alegados créditos da herança contra a recorrente no montante de €634.967,51. 8) O tribunal julgou pedido diverso do formulado, decidindo o arresto “em benefício da herança” quando a recorrida requereu arresto para garantir alegado crédito pessoal; 9) O tribunal violou o artigo 609.º do Código de Processo Civil ao julgar pedido substancialmente diverso do formulado pela recorrida. 10) Verificou-se incongruência manifesta entre o pedido de arresto para garantir crédito pessoal da recorrida e a decisão de arresto em benefício da herança. 11) O tribunal alterou unilateralmente a causa de pedir, passando de direito de crédito pessoal para direito hereditário, configurando julgamento extra petita. 12) A discrepância entre o valor do alegado crédito pessoal (€280.000,00) e os créditos da herança invocados na sentença (€634.967,51) demonstra tratar-se de situações jurídicas completamente distintas. 13) As alegadas irregularidades patrimoniais invocadas pela recorrida para fundamentar o periculum in mora datam de 2009-2010, ou seja, ocorreram há mais de quinze anos. 14) O perigo da demora deve ser presente e efetivo, não baseado em factos históricos ocorridos há mais de quinze anos. 15) Inexistem elementos probatórios de risco atual de dissipação patrimonial por parte da recorrente. 16) O decurso temporal descaracteriza completamente qualquer urgência cautelar que justifique a medida de arresto. 17) O tribunal violou o artigo 391.º, n.º 1 do Código de Processo Civil ao não verificar a existência de periculum in mora atual e iminente. 18) A recorrida carece de legitimidade para requerer o procedimento, seja como pretensa credora pessoal, seja como representante da herança; 19) A recorrida carece de legitimidade ativa nos termos dos artigos 30.º e 391.º, do Código de Processo Civil. 20) A recorrida não é credora pessoal da recorrente, confundindo direito hereditário com direito de crédito. 21) A recorrida nunca poderia representar validamente a herança contra outro herdeiro, violando-se o regime do artigo 2078.º do Código Civil. 22) Existe conflito de interesses manifesto entre a recorrida (herdeira) e a recorrente (cabeça de casal), impedindo qualquer representação unilateral da herança. 23) Era necessário litisconsórcio ativo necessário ou nomeação de administrador especial da herança para validamente representar os interesses hereditários. 24) O tribunal violou os artigos 30.º e 391.º, do Código de Processo Civil e o artigo 2078.º do Código Civil. 25) A fundamentação é viciosa por circularidade, baseando o arresto na sentença do inventário que visa proteger, sem análise própria dos pressupostos cautelares. 26) O tribunal limitou-se a reproduzir a factualidade do inventário, omitindo completamente a ponderação sobre adequação e necessidade da medida cautelar. 27) O tribunal violou o artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil ao não fundamentar autonomamente a decisão cautelar. Finalizou com o pedido de que seja julgado procedente o recurso e seja anulada ou revogada a sentença recorrida. * A requerente do procedimento não apresentou contra-alegações.O tribunal recorrido, no cumprimento ao disposto no art. 617.º do CPC, julgou não verificada a arguida nulidade da sentença (cfr. despacho de 9/9/2025). Nada obsta ao conhecimento da apelação, a qual foi admitida no regime e com os efeitos legalmente previstos. * OBJECTO DO RECURSO.Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC). Assim sendo, importa em especial apreciar: a) se a decisão recorrida padece de nulidade por ter julgado para além ou em objecto diverso do pedido (conclusões 1 a 12); b) se existe ou não periculum in mora (conclusões 13 a 17); c) se a requerente carece de legitimidade activa para o procedimento, seja a título pessoal, seja como representante da herança (conclusões 18 a 24); e d) se ocorre vício na fundamentação da decisão, por se ter limitado a reproduzir a factualidade do inventário (conclusões 25 a 27). * FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.Importa considerar os factos julgados provados em primeira instância, sem prejuízo do que resulte da apreciação dos fundamentos do recurso: 1. Na sentença proferida nos autos principais foi fixada como provada a seguinte factualidade: A. O inventariado AA nasceu a ../../2928; faleceu a 13 de agosto de 2010. B. Faleceu no estado de casado em segundas núpcias com DD (que adotou o apelido ...), com quem contraiu casamento a 15 de dezembro de 1990, sob o regime imperativo de separação de bens. C. DD é a aqui cabeça de casal. D. O inventariado deixou 2 filhos: a requerente do inventário BB, nascida a ../../1957; e EE, nascido a ../../1983. E. O inventariado, por documento datado de 29 de março de 1999, vendeu a FF, GG e HH um lote de 40378 ações ao portador representativas do capital social da sociedade A..., S.A., NIPC ..., pelo preço de 93.080.000$00 (ou €464.281,08). F. Por documento da mesma data, o inventariado vendeu à sociedade A..., S.A., NIPC ..., um lote de 17820 ações ao portador, representativas da própria adquirente, pelo valor de 106.920.000$00 (ou €533.314,71). G. Por escritura pública de 20.11.2000, o inventariado cedeu à A..., S.A., pelo preço de dezoito milhões de escudos (ou €89.783,62), as quotas de que era titular na “B..., Lda.” e, pelo preço de dois milhões de escudos (ou €9.975,96), o crédito por suprimentos prestados, no valor de 2.101.325$00, à mesma “B...”. H. AA era, entre o mais, titular junto do então Banco 1..., S.A, da conta de depósitos à ordem n.º ...; e da conta de depósitos poupança n.º .... I. AA tinha, no início de 2010, os seguintes produtos financeiros de capitalização: a. apólice Banco 1... Vida n.º ... – Banco 1... Euro Renda 2002 2.ª série - no valor, em 1.3.2010, de €266.531,11; b. apólice Banco 1... Vida n.º ... – Banco 1... Euro Renda 2002 4.ª Série – no valor, em 1.3.2010, de €126.513,53; e c. Apólice Banco 1... – Vida Nº ... – Ppr/E Banco 1... – no valor, em 1.3.2010, de €2.547,38. J. A 6.4.2010 foi creditado na conta de depósitos à ordem do Banco 1... n.º ... o valor de €261.062,80 pelo resgate da apólice Banco 1... Vida n.º ... – Banco 1... Euro Renda 2002 2.ª série. K. O montante de €260.000,00 foi, no mesmo dia, transferido para conta bancária titulada pela cabeça de casal, que o fez seu. L. A 31.5.2010 foi creditado na conta de depósitos à ordem do Banco 1... n.º ... o valor de €124.673,08 pelo resgate da apólice Banco 1... Vida n.º ... – Banco 1... Euro Renda 2002 4.ª Série. M. Dois dias depois, a 2.6.2010, o montante de €124.673,08 foi transferido para conta bancária titulada pela cabeça de casal, que o fez seu. N. A primeira ficha de assinaturas da conta de depósitos à ordem do Banco 1... acima referida na qual consta a identificação da cabeça de casal data de 29.10.1996. O. O inventariado era o beneficiário da apólice ... junta da C... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A. P. Na sequência de pedido de resgate antecipado, foi liquidado a 18.3.2010, através de transferência bancária para a conta de DO junto do Banco 2... com o n.º ..., titulada pelo inventariado, a quantia de €6.739,50. Q. Essa conta de depósitos à ordem, que atingiu a 30.3.2010 o saldo de €14.435,22, apresentou, por força de levantamentos em numerário e apresentações de cheques a pagamento, a 31.3.2010, a quantia de €0,16, não tendo, até ao final do ano de 2010 atingido valor superior a €105,07. R. Por ordem da cabeça de casal, foi sacado da conta do Banco 1... n.º ..., pelo cheque n.º ..., datado de 15.4.2009, a quantia de €14.000,00. S. Por ordem da cabeça de casal, foi sacado da conta do Banco 1... n.º ..., pelo cheque n.º ..., também datado de 15.4.2009, a quantia de €90.000,00, que a cabeça de casal fez sua. T. Mostra-se registada pela apresentação de 13.8.2001, a aquisição, por compra, a favor de AA, do veículo Mercedes ..., matrícula ..-..-IO. U. Mostra-se, por apresentação de 18.2.2010, registada a aquisição a favor da cabeça de casal, por compra ao inventariado, do veículo Mercedes E300 turbodiesel, 2996cc, matrícula ..-..-IO. V. A cabeça de casal nunca declarou comprar ao inventariado o Mercedes ..., nem lhe entregou qualquer preço pela compra. W. Por escritura pública de 10.2.2000, o inventariado e a cabeça de casal declararam comprar a II e JJ, que declararam vender, pelo preço declarado recebido de 18.000.000$00 e 800.000$00 [valor global de €93.774,00], respetivamente, a fração “G”, correspondente a habitação no 2.º andar direito do Edifício A com entrada pelo número ... da Avenida ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia; e a fração “CT” correspondente a lugar de garagem na cave, com entrada pelo n.º ..., ambas do prédio descrito na CRP sob o n.º ..., e inscrito sob o artigo .... . X. Foi o inventariado que pagou a totalidade do preço. Y. Por escritura pública de 25.3.2004, o inventariado e a cabeça de casal, com autorização da requerente do inventário, declararam, reservando, na proporção das respetiva quotas, o usufruto, vender ao interessado EE, que declarou comprar, “a raiz ou nua-propriedade” das frações “G” e “CT”, pelo preço, respetivamente, de €70.000,00 e €3.546,00. Z. EE não pagou qualquer preço, designadamente ao inventariado, pela compra da “raiz ou nua-propriedade” das frações. AA. Por escritura pública de 31.5.1999, o inventariado e a cabeça de casal, ambos em representação do interessado AA, e a cabeça de casal também em nome próprio, declararam em representação do interessado AA, e pelo preço de 5.500.000$00 (€27.433,88), comprar a “nua-propriedade” da fração autónoma designada pela letra “A” do prédio descrito na CRP de São João da Madeira sob o n.º ..., inscrito na matriz sob o n.º .... BB. E declarou a cabeça de casal comprar, por 5.500.000$00 (€27.433,88), o usufruto da mesma fração. CC. Nessa escritura declararam ainda o inventariado e a cabeça de casal que: “o preço da nua-propriedade comprado pelo menor é pago com o produto que ao longo dos anos o mesmo recebeu dos pais e familiares nos seus aniversários e outras datas festivas”. DD. Foi o inventariado que pagou o preço da compra do usufruto para a cabeça de casal. EE. Por escritura de 29.1.1993, o inventariado e a cabeça de casal, ambos em representação do interessado AA, e a cabeça de casal também em nome próprio, declararam comprar a. a cabeça de casal: pelo preço de 2.200.000$00 (€10.973,55), o usufruto da fração autónoma designada pela letra “AN”, correspondente a habitação, do prédio descrito na CRP de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...; b. em representação do interessado AA: “a raiz ou nua-propriedade” da mesma fração, pelo preço de 4.000.000$00 (€19.951,91). FF. O preço, quer da “nua-propriedade”, quer do usufruto, foi pago pelo inventariado. GG. Por escritura pública de 30.7.2010, a cabeça de casal declarou comprar, pelo preço de €75.000,00, logo declarado recebido, a fração autónoma designada pelas letras “AY” destinada a habitação no 6.º esquerdo frente do prédio com entrada pelo n.º ... da Rua ..., do prédio urbano descrito na CRP de Vila Nova de Gaia sob o n.º .... HH. O preço foi pago com dinheiro propriedade do inventariado. II. A cabeça de casal, por cheque datado de 4.1.2010, sacou do Banco 3..., de conta titulada pelo inventariado, a quantia de 20 mil euros. JJ. O inventariado doou à requerente BB a quantia de €49.998,00. * Por outro lado, não existiram factos julgados não indiciariamente apurados.* O DIREITO.A) Sobre a invalidade da sentença. Resulta das disposições conjugadas dos arts. 609.º/1 e 615.º/1, al. e), do CPC, que a sentença não pode, sob pena de nulidade, condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir. Trata-se de clara manifestação do princípio do dispositivo e densificação da norma do art. 3.º/1 do CPC, segundo o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. Implicando por consequência que “o objeto da sentença coincide assim com o objeto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido” (cfr. J. Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, À luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 321). Todavia, não se impõe com carácter absoluto, face à previsão de algumas excepções e, desde logo, em sede de decisões cautelares, nas quais o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida (art. 376.º/3 do CPC). Ora, por via desta norma, o legislador consagra “uma quebra no princípio do dispositivo”, permitindo desde logo ao juiz “a possibilidade de emendar eventual erro na qualificação da medida”, como também “corrigir um erro na forma de procedimento utilizada” e ainda, inclusivamente, “na altura em que profere a decisão, não está vinculado à concessão da medida cautelar individualizada pelo requerente, tendo liberdade para integrar na decisão a medida que entender mais adequada a tutelar a situação e determinar aquilo que melhor favoreça a conservação do direito do requerente” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 3.ª ed., pp. 332-4). Ao ponto de tornar lícito que, requerido o arrolamento de bens, “em caso de alegação de justo receio da perda da garantia patrimonial, nada obsta a que o juiz determine quer a alteração da forma de procedimento, quer a efectivação do arresto” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 334, nota 560). Tanto bastaria, segundo pensamos, para afastar a invalidade arguida pela recorrente e que ela fez assentar na circunstância de, alegadamente, a requerente ter deduzido o pedido invocando, expressamente, a qualidade de credora pessoal, e a decisão ter decretado o arresto “em benefício da herança deixada aberta por óbito de AA, de quem a requerente é herdeira”. Acresce que a arguição da recorrente olvida que, tendo sido requerido o arresto, foi essa a providência, precisamente, que o tribunal decretou e, portanto, em concordância prática com o pedido da parte. De modo que, nesse pressuposto, as referências “em benefício da herança deixada aberta por óbito de AA, de quem a requerente é herdeira”, contidas no dispositivo da decisão de primeira instância, traduzem mera qualificação do fundamento creditório da medida imposta que, embora sendo dispensáveis, por nada acrescentarem ao efeito útil e jurídico da providência, são processualmente admissíveis na tutela cautelar, ao abrigo do art. 376.º/3 do CPC, e mesmo em qualquer outra espécie de acção. Como refere a melhor doutrina, é justificada a “admissibilidade de uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático-jurídico que este pretende alcançar”, “sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado”, desde que não condene em “bens ou direitos materialmente diferentes” (cfr. C. Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, pp.795-6). Em acréscimo, sempre se dirá que existem vários segmentos da alegação da requerente do arresto que desmentem a ideia preconizada pela recorrente no sentido de o pedido cautelar ter sido deduzido com base exclusivamente no crédito pessoal detido sobre a requerida. É o que se passa, entre outros passos, quando no requerimento inicial se alude à existência “de créditos sobre a cabeça de casal, ora requerida CC, em montante global de € 634.967,51” (art. 54 do RI), créditos que “a herança tem sobre requerida” (art. 65 do RI), que “sem considerar aqui o valor da verba nº 7 ainda por avaliar (o Mercedes), e já somada do valor das três doações sujeitas a colação, a soma dos outros bens (considerando o valor das avaliações dos imóveis) perfaz € 1.034.191,59” (art. 56 do RI) e que a proceder o incidente de sonegação de bens, com os efeitos previstos no art. 2096.º do CC, no inventário apenso, o quinhão da requerida será na ordem dos € 134.000,00 (art. 59 do RI). É certo que, noutra parte, a alegação da requerente aponta para a afirmação de um crédito próprio, designadamente, ao afirmar que aos herdeiros, ela e o interessado EE, a requerida terá sempre de pagar quantia não será inferior a € 280.000,00 (arts. 87 e 88 do RI). Tal como ao mencionar a “acentuada diferença entre o crédito da requerente sobre a requerida” (art. 103) e ainda, como preconiza a recorrente, mediante a indicação do valor da causa em montante que corresponde ao seu referido crédito pessoal ou individual. Isso não obnubila, no entanto, e muito naturalmente, a matéria anterior alegada pela requerente e, assim sendo, apenas pode querer significar, afinal, a invocação jurídica de dois direitos de crédito, o da herança e o pessoal, para fundamentar o pretendido arresto. Em função dos quais, ao decretar a providência, o tribunal optou por considerar apenas um deles, aquele de que é titular a herança, como lhe era lícito ao abrigo do disposto nos arts. 5.º/3, 376.º/3 e 609.º do CPC. Improcede, em consequência, a questão da alegada incongruência entre o pedido para garantir o crédito pessoal da recorrida e a decisão que decretou o arresto em benefício da herança. Ponto decisivo para a legalidade da decisão, porém, é saber se a requerente dispõe de legitimidade para obter semelhante medida, seja no plano processual, seja materialmente, mas essa constitui já questão diversa, também suscitada no recurso e que cumpre tratar adiante. Antes dela, porém, e apesar de a recorrente o ter invocado em último lugar, é mister averiguar, seguindo a ordem prevista no art. 608.º/1 do CPC, aplicável mercê da remissão do art. 663.º/2, o alegado vício da fundamentação da decisão, por se ter limitado a reproduzir a factualidade do inventário, pois é susceptível de inquinar a validade da sentença recorrida. Ou seja, importa indagar sobre a admissibilidade da decisão sobre a matéria de facto referente ao arresto, ou a qualquer outro procedimento cautelar, ser tomada essencialmente ou unicamente com base na prova e nos factos apurados no processo principal. É sabido que, em princípio, o contrário não é possível, certo que, nos termos do art. 364.º/4 do CPC, nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal. Todavia, a preocupação do legislador com a consagração desta norma e a ausência de outra que proíba a valoração, no procedimento cautelar, da prova produzida no processo principal, constitui o primeiro sinal, sem prejuízo da fragilidade que em geral é atribuída ao argumento a contrario sensu, de que a censura da recorrente carece de fundamento. Para além do exposto, é sabido que a prova cautelar não obedece à mesma exigência do processo principal, bastando-se com um juízo perfunctório ou de séria probabilidade a que o legislador, no art. 365.º/1 do CPC, chama “prova sumária do direito ameaçado”. Para significar que “o pressuposto da probabilidade séria supera os meros indícios, mas fica aquém do nível de convicção necessário para decretar a inversão do contencioso (art. 369.º, nº1) e ainda mais longe do que se revela necessário para o reconhecimento do direito na ação principal” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, p. 429). Ou, no dizer da jurisprudência, está em causa a imposição de “uma menor exigência probatória nos procedimentos cautelares, em confronto com o que se passa nas ações”, e que é justificada pela “necessidade de celeridade que lhes está subjacente, a par da circunstância de não determinarem, em regra, uma resolução definitiva do litígio, uma vez que se encontram dependentes de uma ação já proposta ou a propor, apresentando um caracter instrumental em relação a esta, visando acautelar o seu efeito útil” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/3/2025, relatora Inês Moura, processo 2163/25.3T8LSB.L1-2, acessível em dgsi.pt). Ora, se assim é, somos levados a concluir que nada obsta a que essa prova sumária, de menor exigência, seja influenciada, ou mesmo determinada em exclusivo, com recurso à análise dos factos da sentença e dos meios probatórios que, de maior solenidade, foram produzidos no âmbito do processo principal. Algo que, ademais, encontra claro respaldo na regra do art. 421.º do CPC sobre o aproveitamento das provas produzidas noutro processo. Por força da qual, e como refere a jurisprudência, “a prova constituenda, ou seja, a prova obtida num processo através de depoimentos ou perícias, só pode ser valorada num outro processo contra a mesma parte, se, para além do mais (designadamente, no que concerne à validade da sua aquisição), tiver sido obtida com respeito pelo princípio da audiência contraditória” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/2/2025, relator João Diogo Rodrigues, processo 1915/19.8T8PVZ-G.P1, disponível na mesma base de dados). E desde que, acrescentamos nós, tenha sido produzida com mais ou iguais garantias exigidas para o processo na qual as provas são depois consideradas. Tanto mais que esse aproveitamento da prova é ainda estimulado pela exigência, mercê do disposto no art. 364.º do CPC, de que a acção cautelar seja apensada aos autos principais, traduzindo, pois, uma vantagem mais, que a lei consente e fomenta, da apensação dos dois processos. Ora, tais requisitos estão verificados no caso presente, uma vez que nada foi apontado quanto ao cumprimento do contraditório a respeito da prova produzida no processo de inventário, ao qual a acção cautelar está apensa e que, perante as mesmas partes, ficou subordinada a garantias pelo menos semelhantes às que se impõe no procedimento cautelar. No dizer da doutrina, “se analisarmos a influência que o processo principal pode exercer no procedimento e questionarmos se o juiz, quando profere a decisão cautelar, deve ou não ponderar, entre outros, os elementos e decisão constantes do processo principal (…) a resposta, neste caso, é afirmativa”. Para explicar que “aquando da prolação da decisão cautelar, o juiz não deixará de relevar a decisão favorável ou desfavorável que eventualmente já tenha sido proferida no processo principal, mesmo que ainda não tenha transitado em julgado” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas cit., pp. 154-6). O que inclui, em coerência, quer os fundamentos, quer os meios probatórios produzidos nos autos principais, quer, logicamente, os factos que com base neles ali foram julgados demonstrados e cuja consideração no procedimento cautelar não está impedida por qualquer norma ou instituto jurídico. Improcede, pois, a questão da invalidade da fundamentação da decisão e do emprego feito dos factos decididos e das provas produzidas no processo principal. * B) Sobre o acerto da decisão que decretou o arresto.Neste capítulo é justificado aglutinar as restantes questões suscitadas no recurso, uma em torno da legitimidade (processual e material) da requerente, seja a título pessoal, seja como representante da herança, para obter o arresto, e a outra, se não ficar prejudicada pela resposta à primeira, relativa à verificação do requisito do periculum in mora. A respeito da primeira, afirma a recorrente que a contraparte “carece de legitimidade ativa nos termos dos artigos 30.º e 391.º, do Código de Processo Civil, pois não é credora pessoal da recorrente, confundindo direito hereditário com direito de crédito”. No entanto, sabemos que o interesse em demandar relevante para a aferição da legitimidade ad causam é atribuído, nos termos do art. 30.º/1 e 3 do CPC, ao sujeito activo da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Donde que se afigura manifestamente contraditório, salvo o devido respeito, que a requerida defenda que a contraparte invocou, expressamente, a qualidade de sua credora pessoal (conclusão 1 segs.) e, ao mesmo tempo, sustente que ela carece de legitimidade processual por afinal não deter aquela qualidade. O que verdadeiramente está em causa, pois, neste ponto, é a legitimidade substantiva, que é alheia ao regime previsto no art. 30.º do CPC e que, em sede de arresto, depende do apuramento de factos que tornem provável a existência do crédito, de acordo com os arts. 391.º e segs. do mesmo diploma. E assim se compreende, segundo pensamos, a referência pela recorrente ao art. 391.º do CPC e a afirmação de que, dela, a recorrida não é credora pessoal. Para significar que, na verdade, aquilo que ela discute, mesmo sem o afirmar de forma expressa, é a questão da titularidade do direito de crédito. Parece-nos, porém, que a recorrente confunde a existência do direito com a sua iliquidez, certo que a requerente, com a aceitação da herança, dispõe na sua esfera jurídica do direito sucessório sobre ela e, simultaneamente, do direito ao seu quinhão no património hereditário do seu falecido pai. O qual é susceptível de expressão pecuniária e de possível transmissão, sendo somente a respectiva composição concreta e quantitativo que não estão ainda exactamente determinados, o que acontecerá com a finalização da partilha, embora com efeitos retroactivos. Na verdade, decorre do art. 2050.º do Cód. Civil que o domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação desta, independentemente da sua apreensão material (nº1), bem assim que os efeitos da aceitação retroagem ao momento da abertura da sucessão (nº2). Ao passo que, mercê do disposto no art. 2119.º do CC, feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos. Daí decorrendo que “a aquisição sucessória dá-se por força da aceitação. Com a vocação, o chamado adquire unicamente o direito de aceitar (ou de repudiar) os direitos e obrigações do de cujus, que são adquiridos só com a aceitação. Antes desta, os bens estão à entrada da esfera jurídica do sucessor, só entrando nesta mediante aceitação”. Em consequência, “sendo cada um dos herdeiros considerado, desde o momento da abertura da sucessão, sucessor únicos dos bens que lhe foram atribuídos (art. 2119.º do CC), a partilha assume um carácter declarativo. Cada herdeiro já tinha um direito aos bens do seu lote, que adquire diretamente do autor da sucessão. Tudo se passa como se esses bens (exatamente esses bens) tivessem sido sempre seus”. Daqui resultando, “nomeadamente, a validade dos actos de disposição praticados por um dos co-herdeiros em relação aos bens que lhe venham a caber na partilha” (cfr. D. Leite de Campos e M. Martinez de Campos, Lições de Direito das Sucessões, 5.ª ed., pp. 150 e 225-6). E, simultaneamente, a evidente licitude dos actos de disposição ou alienação do direito ao quinhão hereditário que possam realizar-se antes da partilha. Da mesma forma, já se decidiu na jurisprudência, em inventário para separação de meações, mas em lição plenamente aplicável ao nosso caso, que “dissolvido o casamento, qualquer dos cônjuges tem já na sua esfera jurídica o direito a uma quota que representa metade do património comum, não obstante se não saiba que bens em concreto virão a compor a referida quota, sendo que a partilha é apenas o acto destinado a fazer cessar a indivisão”. E por isso “não pode, a pretexto de ainda não existir tal direito mas apenas uma expectativa, ser indeferida a providência cautelar de arresto instaurada por um dos cônjuges com vista a garantir a sua quota na meação dos bens comuns, quando o outro antes de ser instaurada a acção divórcio procedeu ao levantamento de todas as quantias monetárias existentes em contas solidárias de ambos, não havendo no acervo patrimonial bens capazes de preencher aquela quota” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 9/3/2020, relator Manuel D. Fernandes, proc. 1336/19.2T8VCD.P1, disponível na citada base de dados). É certo que o direito à quota hereditária e aos respectivos bens, que já se consolidaram na esfera jurídica da requerente, não se confundem com o direito de crédito por tornas sobre a requerida. Todavia, resulta do disposto no art. 362.º/2 do CPC que o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor. Ora, como essa norma é aplicável ao arresto, nos termos do art. 376.º/1 do CPC, nada obsta, a nosso ver, a que através deste procedimento especificado se tutele o crédito que, à vista dos factos provados, com toda a probabilidade, será afirmado no processo de inventário a esse título a favor da requerente, visto que, embora não se trate propriamente de uma acção constitutiva, os seus efeitos são na prática equivalentes quanto à constituição do direito a tornas, a título de mera densificação do direito ao quinhão hereditário. Ou, como se afirma no citado Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 9/3/2020, “da mesma forma que o eventual crédito por tornas será apenas um procedimento destinado a dar concretização ao direito à referida quota ideal no caso de se vir a verificar o respectivo condicionalismo (…), verificando-se que no âmbito do inventário para partilha do património comum a recorrente como cabeça-de-casal apresentou uma relação de bens onde relaciona “Dinheiro” correspondente a activos existentes em 03/11/2016 no valor de € 169.909,95 e 23 verbas, das quais 17 móveis e 2 móveis sujeitos a registo, sendo que os móveis são simples electrodomésticos e dois automóveis com pouca expressão valorativa, e alegando ela na presente providência que o referido montante pecuniário foi subtraído pelo recorrido das respectivas contas sem o seu conhecimento e autorização em data anterior ao divórcio, torna-se evidente não existir no acervo patrimonial comum valores suficientes para preencher a quota da recorrente sem o recurso a tornas, emergindo assim o seu direito de crédito sobre o recorrido” (sublinhado no original). Sem confusão possível, por isso, com a tutela de um crédito futuro, que a doutrina arreda do arresto e que se reporta a situações onde, diversamente, se destaca “a formulação de um juízo de probabilidade quanto à sua constituição dependente de eventos futuros e incertos” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 2.ª ed., p. 185). É sintomático, neste sentido, aliás, que a recorrente não enfrente a questão da constituição do direito a tornas a favor da recorrida. Tal como se tenha abstido de afirmar em qualquer segmento das suas alegações e conclusões a presença no caso dos autos de um crédito futuro, marcado pela característica essencial de depender de eventos incertos e que a decisão proferida no inventário afasta liminarmente. No entanto, se os argumentos expostos conduzem à improcedência da arguição da ilegitimidade da requerente a título pessoal, seja no plano processual, seja do ponto de vista substantivo, já nos parecem procedentes as considerações tecidas no recurso quanto à falta de legitimidade activa daquela, em ambos os planos, a título de representante da herança. Com efeito, é inegável que no requerimento inicial, apesar de afirmar a existência de créditos da herança sobre a requerida, a requerente em momento algum alegou estar a agir em representação da herança. Da mesma forma, segundo entendemos, é indiscutível que a providência cautelar dos autos não representa a acção de petição da herança que, ao abrigo do art. 2078.º/1 do CC, pode ser movida por qualquer herdeiro em representação da herança sem que o demandado possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro. É que, como resulta do disposto no art. 2075.º/1 do CC, o herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título. Ora, à vista da letra do art. 2075.º/1 do CC, é evidente que, como afirma a doutrina, “o Código limitou o tratamento substantivo da petição da herança ao contencioso suscitado entre a pessoa que se considera verdadeiro herdeiro e o possuidor que, arrogando-se também a qualidade de herdeiro ou invocando outro título, ou até sem qualquer título, tenha em seu poder todos os bens da herança ou parte deles” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, p. 131). O que, manifestamente, não é versado no nosso procedimento, no âmbito do qual foi requerido, para defesa de um direito de crédito, o arresto de bens próprios da requerida e quanto aos quais nenhum herdeiro afirmou pertencerem à esfera patrimonial da herança. Razões pelas quais, segundo entendemos, assiste razão à recorrente na parte onde sustenta que, a título de representação da herança, a acção teria de ser intentada por todos os herdeiros, ainda que a requerida mediante representante especial, posto que, nos termos do art. 2091.º do CC, a defesa dos direitos hereditários, fora dos casos especiais previstos nas normas anteriores, deve ser feita conjuntamente por todos os herdeiros. Todavia, isso apenas significa que a qualificação jurídica preconizada pelo tribunal recorrido, ao afirmar que o arresto era decretado “em benefício da herança deixada aberta por óbito de AA, de quem a requerente é herdeira”, consubstancia erro de julgamento. Afastada que está, com base na argumentação anterior, a eventualidade de determinar a nulidade ou qualquer outra invalidade da decisão, a referida qualificação deve simplesmente considerar-se errada, mesmo que, em simultâneo, tal erro seja afirmado por uma questão de ilegitimidade processual e substantiva que não existiria sem ele. Sem contender, pois, com a regularidade e acerto da decisão que decretou o arresto, por implicar a mera alteração do fundamento creditório que, no plano jurídico, deve ser reconhecido para o efeito e que, a nosso ver, como se disse, radica em direito próprio da requerente. Assim sendo, procedem as conclusões 21 a 23, mas dessa procedência apenas resulta a correcção da decisão recorrida, a operar através da eliminação do segmento em que se reporta ao benefício da herança deixada aberta por óbito de AA, de quem a requerente é herdeira. A manutenção da decisão de decretar o arresto no caso pressupõe, porém, que o requisito do periculum in mora esteja verificado, o que, sendo contestado pela recorrente, nos conduz à apreciação da última questão colocada no recurso, de acordo com a ordem prescrita pelo art. 608.º do CPC. Em geral, a exigência de semelhante requisito resulta do disposto no art. 362.º/1 do CPC que, para a providência cautelar comum, estabelece que ela pode ser requerida sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito. Ao passo que, no plano específico do arresto, deriva da previsão legal nos termos da qual o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer a providência (art. 391.º/1 do CPC). Por outro lado, na sua concreta aferição e como afirma a jurisprudência, “o preenchimento do requisito enunciado pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que permita antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito, e o seu critério de avaliação não pode assentar em simples conjeturas, em meras suposições ou em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor, devendo necessariamente basear-se em factos ou em circunstâncias concretas que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata” (cfr. Ac. da Relação do Porto de 14/9/2021, relator Carlos Querido, proc. 465/21.7T8VCD.P2, em dgsi.pt). Ora, uma das circunstâncias mais relevantes para o efeito é a dimensão do passivo da pessoa contra quem o arresto é requerido, em especial por confronto com uma situação de exiguidade do respectivo activo, por ser susceptível, segundo máximas de experiência comum, de impelir o devedor à ocultação e à dissipação do património que, face ao art. 601.º do CC, representa a garantia geral do cumprimento das obrigações. Como refere a doutrina, “a actual ou iminente superioridade do passivo relativamente ao activo constituirá certamente um dos elementos através dos quais se pode reconhecer uma situação de perigo justificativa do arresto, embora deva ser afastado o funcionamento automático desse factor” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas cit., IV Vol., p. 188). No caso dos autos, o elenco dos factos provados desde a alínea J e seguintes demonstra inequivocamente a existência de um passivo significativo que onera a requerida, resultante do dever de restituição de tudo o que por ela foi recebido a título de liberalidade, no âmbito do casamento em regime imperativo de separação de bens, por nulidade (art. 1762.º do CC), tal como do dever de pagamento de tornas aos demais herdeiros e, desde logo, à requerente. Paralelamente, é possível concluir pela existência de uma situação de exiguidade e inferioridade do activo da requerida, na medida em que os factos provados não indicam a titularidade de qualquer património para além daquele que, de valor claramente inferior ao passivo, foi nomeado para o arresto. A par da presença desse factor, acompanhamos a decisão recorrida quando salienta a verificação de outro, no sentido de que o receio de perda da garantia patrimonial também se funda na “atitude [da requerida] de afastar da herança todo o património que dela faz parte e de que indevidamente se apropriou”. Afastará da herança, tudo o indicia, nos mesmos termos em que afastou do processo o conhecimento de todo o património do falecido”. E sendo certo que a manutenção dessa atitude perdurou, pelo menos, até ao momento em que foi proferida a decisão, de 17/2/2025, que reconheceu os débitos da requerida perante a requerente e a herança, daí resulta que a argumentação da recorrente quanto à falta de actualidade da sua conduta é, salvo o devido respeito, desprovida de qualquer adesão à realidade dos factos. Em consequência, é justificado considerar verificado o requisito do periculum in mora, ficando a procedência do recurso limitada às conclusões 21 a 23, com a inerente improcedência das demais. Atendendo, porém, à ausência de qualquer relevância dessa procedência no plano da utilidade económica e prática do recurso, face à manutenção da decisão que decretou o arresto, crê-se que ela não deverá ter qualquer impacto na responsabilidade por custas, que assim deve caber por inteiro à recorrente. * DECISÃO:Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a apelação, altera-se a decisão recorrida, mediante a eliminação do segmento no qual refere “em benefício da herança deixada aberta por óbito de AA, de quem a requerente é herdeira”; em tudo o mais, na improcedência da apelação, confirma-se a decisão que decretou o arresto. Custas pela recorrente, atento o seu essencial decaimento, no plano da utilidade económica e prática do recurso (art. 527.º do CPC). * SUMÁRIO ……………………………… ……………………………… ……………………………… (o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico) Porto, d. s. (13/10/2025) Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo Teresa Fonseca Mendes Coelho |