Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2503/22.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DE LOCATÁRIO
MORTE DO ARRENDATÁRIO
CÔNJUGE
NRAU
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RP202207132503/22.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Independentemente de o art. 1068.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 6/2006, de 27/02, se aplicar apenas aos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU ou também aos contratos celebrados anteriormente, para tal norma jurídica se aplicar a um contrato de arrendamento celebrado antes da Lei n.º 6/2006 é indispensável que a relação conjugal do arrendatário ainda subsistisse na data em que entrou em vigor a mencionada redacção do art. 1068.º do Código Civil.
II - A aplicação da norma pressupõe que o arrendamento seja celebrado apenas por um membro de um casal já constituído ou que, tendo sido celebrado pelo arrendatário no estado de solteiro, este venha, entretanto, a contrair casamento, e, em qualquer circunstância, que o casamento não se dissolveu antes de aquela redacção da norma entrar em vigor.
III - A transmissão da posição de arrendatário por morte do anterior titular tem de ser aferida em função da lei em vigor no momento em que ocorre o facto constitutivo desse direito: o óbito do titular do arrendamento.
IV - Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes de 1962 (antes da aprovação do RAU), aplica-se à transmissão por morte o regime do artigo 57.º do NRAU.
V - Tendo já ocorrido uma transmissão, do primitivo arrendatário para o respectivo cônjuge, não é possível nova transmissão a partir da transmissária da posição contratual.
VI - O artigo 26.º do NRAU, ao mandar aplicar o regime de transmissão por morte do artigo 57.º do NRAU, bem como a interpretação deste preceito no sentido de excluir que o arrendamento se transmita de novo por morte do cônjuge do primitivo arrendatário para um filho de ambos, não são inconstitucionais por violação do «princípio da igualdade consagrada no artigo 13º da CRP» ou do «princípio da segurança e da efectivação de direitos previsto no artigo 2º da mesma lei fundamental».
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:2503.22.7T8PRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
H..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em Vila Nova de Gaia, instaurou acção judicial contra AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente no Porto, formulando contra esta os seguintes pedidos:
«a) se reconheça o direito de propriedade da autora sobre o imóvel … denominado Bairro ..., sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ... da freguesia ..., registado a seu favor pela AP. ... de 2015/12/07;
b) se declare a caducidade do contrato de arrendamento habitacional que vigorava entre a autora e BB, por morte da locatária;
c) se condene a ré a restituir à autora o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
d) se condene a ré ao pagamento da quantia mensal de €510,52, … a título de indemnização pela sua ocupação desde 01.01.2022 até efectiva entrega, ou, em alternativa,
e) se condene a ré ao pagamento da quantia mensal de €205,38, a título de indemnização pela ocupação do imóvel desde 01.01.2022 até efectiva entrega, e
f) se condene a ré no pagamento … juros de mora sobre o valor do montante da indemnização fixada, desde a data do respectivo vencimento mensal, até efectivo e integral pagamento.»
Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que é proprietária de uma casa que integra o Bairro referido no pedido, onde está compreendida uma habitação que há mais de 60 anos foi arrendada para habitação pelo pai da ré; que por morte deste o arrendamento se transmitiu para a sua mulher e mãe da ré, a qual também faleceu entretanto, vindo o arrendamento a caducar, apesar do que a ré se recusa a entregar a habitação à autora.
A ré foi citada e apresentou contestação defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que o arrendamento se transmitiu da mãe para si, pelo que é legítima a sua recusa em entregar o arrendado.
Realizada audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e decidido o seguinte:
«a. Declara-se a autora, H..., Lda., proprietária do prédio urbano … descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto na ficha n.º ... – ..., integrado, designadamente, pelo edifício denominado casa n.º ..., inscrito na matriz urbana sob o art. ... da União de Freguesias ... e ..., Porto;
b. Declara-se caducado o contrato de arrendamento … com efeitos em 31 de Dezembro de 2021.
c. Condena-se a ré … a entregar à autora … casa n.º ..., desocupado e no estado próprio de uma prudente utilização até à data de trânsito em julgado da sentença;
d. Condena-se a ré a no pagamento à autora da(s) quantia(s) mensal(is) equivalente(s) ao dobro da renda, no valor de € 205,38 (…), por cada mês de ocupação, desde 1 de Janeiro de 2022 e até à entrega efectiva … casa n.º ..., às mesmas se imputando, respectivamente, as quantias que a ré tenha vindo a entregar à autora desde tal data, ….»
Do assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida, ao negar a qualidade de inquilina transmitente dessa à mãe da ré, desconsiderando a aplicação do artigo 1068.º do C.C., violou o disposto no n.º 2 do artigo 12.º do mesmo C.C. e os artigos 13.º e 36.º, 3, da Constituição da República;
2. A mesma douta decisão, ao considerar que a alteração do art. 57.º do NRAU produzida pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, omitindo a menção expressa de que a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário verifica-se ainda por morte do cônjuge a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento impede essa transmissão, desatendeu ao espírito da lei claramente vertido no seu art. 1.º, fazendo uma interpretação inadequada do referido artigo 57.º do NRAU, assim violando o art. 9.º-1 do C.C.;
3. A sentença recorrida, ao interpretar incorrectamente o art. 57.º do NRAU negando a transmissão do arrendamento por morte do cônjuge a quem fora transmitido, agrediu o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança ínsito no art. 2.º da CRP, pois, aquando da morte do pai da Ré, esta criou a legítima expectativa de vir a suceder a sua mãe na qualidade de arrendatária da casa onde a família vivia e vive.
Sem conceder,
4. A admitir-se a interpretação - como o faz a sentença de que se discorda - que o art. 57.º do NRAU invalida a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, então o artigo 26.º do mesmo NRAU, ao determinar que ao contrato em causa se aplique esse artigo 57.º, interpretado nos termos em que o faz a sentença recorrida, revela-se inconstitucional por manifesta violação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança emergente do art. 2.º da CRP.
Acresce que
5. A interpretação restritiva do art. 57.º do NRAU, ao tratar diferentemente os descendentes conforme sejam do cônjuge que subscreve o contrato ou do cônjuge sobrevivo, resulta inconstitucional por manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da CRP.
Termos em que, e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a acção improcedente por não provada, absolvendo a Ré do pedido.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se por morte da mãe, que, por morte do seu marido e arrendatário, lhe havia sucedido na posição de arrendatária, o arrendamento para habitação se transmitiu ainda para a filha sobreviva;
ii) Se a resposta negativa a essa questão jurídica viola preceitos e princípios constitucionais.

III. Os factos:
O tribunal de 1.ª instância considerou não controvertidos nem carecidos de prova os seguintes factos:
1 – A autora, pela AP. ... de 2015/12/07, tem registada a seu favor a aquisição do prédio urbano denominado Bairro ..., sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto na ficha n.º ... – ..., integrado, designadamente, pelo edifício denominado casa n.º ..., inscrito na matriz urbana sob o art. ... da União de Freguesias ... e ..., Porto.
2 – Em data anterior a 1962, o pai da ré, CC, tomou de arrendamento o edifício correspondente à casa n.º ..., com destino a habitação da sua família.
3 – Em 2005, por falecimento de CC, sucedeu-lhe como arrendatária sua mulher, mãe da ré, BB, conforme sentença proferida no processo n.º 4658/18.6T8VNG, nesta parte não alterada pelo Acórdão final proferido nos mesmos autos pelo Tribunal da Relação do Porto, junto aos autos e que aqui se dá por transcrito.
4 – Em 23 de Setembro de 2019, por decisão final proferida no processo n.º 4658/18.6T8VNG, o Tribunal da Relação do Porto decidiu que o contrato de arrendamento não transitou para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012.
5 – Em .../.../2021, faleceu BB.
6 – Com data de 7 de Abril de 2021, a ré remeteu à autora uma carta comunicando o falecimento da sua mãe em .../.../2021.
7 – Em 15 de Abril de 2021, a autora, por meio de mandatário, remeteu à ré a carta, por esta recebida, junta aos autos, onde consta, além do mais que qui se dá por transcrito:
«Deste modo, tendo caducado o arrendamento com a morte da S. Mãe, em .../.../2021, o Artigo 1053.º do Código Civil estipula um prazo de 6 meses para V. Exa. restituir o imóvel livre de pessoas e bens.
A este respeito, o artigo 8.g da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção que lhe foi dada peta Lei n.º 75-A/2020, de 30 de Dezembro, estabelece uma suspensão dos efeitos da caducidade até 30 de Junho de 2021, pelo que, caso V. Exa. pretenda beneficiar deste regime de transição, tem o direito de restituir o imóvel até 31 de Dezembro de 2021. (…)
De referir que, até ao momento da restituição do imóvel, V. Exa. deverá, nos termos do artigo 1045.º do Código Civil, continuar a pagar o valor da renda mensal, a título de indemnização, sendo que, caso não proceda a restituição até 31 de Dezembro de 2021, a indemnização mensal será elevada ao valor do dobro do valor da renda (estando, em tal caso, sujeita ainda ao despejo judicial do locado), o que seria, naturalmente, importante evitar.»
8 – Em .../.../2021, o valor da renda mensal era de €102,69, valor que a ré tem entregue mensalmente à autora.
9 – Em 11 de Janeiro de 2022, foi pela ré efectuado a última entrega do valor de €102,69 anterior à propositura da acção.
10 – A ré ocupa actualmente a casa n.º ....

IV. O mérito do recurso:
A questão jurídica que a decisão do presente litigio coloca consiste em saber se a posição de arrendatário que o pai da ré adquiriu por via da celebração de um contrato de arrendamento urbano para habitação e que por morte dele se transmitiu para a mãe da ré, se transmitiu depois novamente para a ré, na sequência da morte da mãe.
No fundo, trata-se de saber se essa posição só podia ser transmitida por morte do arrendatário uma vez, do primitivo arrendatário para o seu familiar em melhor posição (o cônjuge sobrevivo), ou se apesar de ter havido já essa transmissão ainda é possível nova transmissão por morte, agora do arrendatário sucessor para outro familiar (o filho, no caso também filho do primitivo arrendatário).
Os dados temporais relevantes para a decisão dessa questão são os seguintes: o contrato de arrendamento foi celebrado pelo pai da ré «em data anterior a 1962»; a morte do pai da ré ocorreu no ano de 2005 e a morte da mãe da ré ocorreu no ano de 2021.
Estes dados temporais permitem já concluir o seguinte com relevo para o apuramento do regime jurídico aplicável:
i) o contrato de arrendamento foi celebrado antes do início de vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro;
ii) o facto constitutivo do direito à transmissão do arrendamento por morte do pai da ré (o seu óbito) ocorreu antes do início de vigência do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro) e
iii) o facto constitutivo do direito invocado pela ré à transmissão do arrendamento por morte da mãe (o óbito da mãe) ocorreu depois da entrada em vigor das alterações ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) introduzidas pela legislação nos anos de 2012 (Lei n.º 31/2012, de 14-08, em vigor a partir de 12-11-2012), de 2014 (Lei n.º 79/2014, de 19-129, em vigor a partir de 18-01-2015) e de 2019 (Lei n.º 13/2019, de 12-02, em vigor a partir de 13-02-2019).
Refira-se ainda um aspecto que seria necessário para consentir alguma da argumentação jurídica da recorrente, mas que de qualquer modo, como veremos, no caso acaba por ser irrelevante. Referimo-nos ao facto de não ter sido alegado pela ré, que opôs ao direito de propriedade da autora a titularidade do direito ao arrendamento por transmissão por morte, se o contrato de arrendamento foi celebrado pelo pai no estado de solteiro ou de casado com a mãe da ré, nem qual o regime de bens a que esse casamento estava subordinado.
Em bom rigor, antes de determinar o âmbito ou a extensão da transmissibilidade do arrendamento por morte do arrendatário, necessitamos de identificar o arrendatário, o que não suscita dúvidas se este for singular (um único arrendatário) mas já suscita questões se ele for plural (mais que um arrendatário), designadamente por a qualidade de arrendatário, adquirida originariamente por uma pessoa, se ter comunicado ao respectivo cônjuge, o que pode interferir com aquela transmissibilidade (para esse feito, o primitivo arrendatário será não apenas o cônjuge que celebrou o arrendamento mas também o respectivo cônjuge).
A comunicabilidade do direito ao arrendamento no âmbito de um casamento encontra-se prevista no artigo 1068.º do Código Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, que aprovou o NRAU. Nos termos dessa norma, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente. Por conseguinte, se de alguma forma fosse possível sustentar a aplicação desta normal legal à situação dos autos, para com base na mesma concluir que a mãe da ré também era «arrendatária primitiva» (em resultado da comunicabilidade do direito) era indispensável que a ré tivesse alegado em que data os seus pais casaram (antes ou depois da celebração do arrendamento, antes ou depois do Código Civil de 1966) e qual o regime de bens a que o seu casamento ficou subordinado. Sem esses dados não é possível concluir que de acordo com o regime de bens vigente nessa relação conjugal o direito ao arrendamento se teria comunicado à mãe da ré.
De qualquer modo cremos bem que a questão não pode sequer colocar-se pela simples razão de que até à alteração do artigo 1068.º do Código Civil pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, não existia norma legal da qual resultasse aquela comunicabilidade.
Ao invés, quer a redacção inicial do artigo 1110.º do Código Civil de 1966, quer posteriormente a redacção do artigo 83.º do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321 -B/90, de 15/10, afastavam de forma expressa da comunhão de bens no casamento o direito ao arrendamento para habitação. A primeira destas normas dispunha que «seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge»; a segunda estabelecia em termos idênticos que «seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge».
Apesar de, como nos dão conta Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito Família, Introdução, Direito Matrimonial, vol. I, 5.ª edição, página 638, esta solução ter gerado as maiores reservas e críticas, certo é que apenas em 2006 foi instituída na ordem jurídica portuguesa o princípio da comunicabilidade do arrendamento habitacional ao cônjuge do arrendatário.
Existe alguma discussão sobre se o artigo 1068.º do Código Civil na redacção da Lei n.º 6/2006, de 27/02, se aplica apenas aos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU (nesse sentido, na doutrina, António Menezes Cordeiro (coord.), Leis do arrendamento urbano anotadas, Almedina, 2014,páginas 155 e 522, Luís Menezes Leitão, Arrendamento urbano, 8ª ed., Almedina, 2017, página 118, nota 112, e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso, João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Novo regime anotado e legislação complementar, 3ª edição, Quid Iuris, 2009, páginas 300-301, e na jurisprudência os Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.05.2012, de 23.09.2014 e de 9.12.2014, in www.dgsi.pt) ou também aos contratos celebrados anteriormente (nesse sentido, na doutrina, Maria Olinda Garcia, O arrendatário invisível — A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação”, in Scientia Iuridica, tomo LXV, n.º 342, 2016, páginas 416-418, e, na jurisprudência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01.03.2018 e de 13.04.2021 e da Relação de Lisboa de 05.05.2020, in www.dgsi.pt).
Todavia, o que parece evidente é que para aquela norma jurídica se aplicar a um contrato de arrendamento celebrado antes da Lei n.º 6/2006 é indispensável ao menos que a relação conjugal do arrendatário ainda subsistisse na data em que entrou em vigor a redacção do artigo 1068.º do Código Civil resultante da Lei n.º 6/2006, de 27/02.
Com efeito, nos termos da segunda parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, quando a nova lei vem dispor directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, a nova lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor; em caso algum a nova lei tem a virtualidade de repor relações jurídicas já extintas para efeito de modificar o respectivo conteúdo e impor uma nova liquidação dessa relação jurídica.
A aplicação da norma legal pressupõe que o arrendamento seja celebrado apenas por um membro de um casal já constituído ou que, tendo sido celebrado pelo arrendatário no estado de solteiro, este venha, entretanto, a contrair casamento. Em qualquer circunstância, se o casamento se dissolveu antes de aquela redacção do artigo 1068.º do Código Civil entrar em vigor, a comunicabilidade do arrendamento não se coloca mais porque com a extinção do casamento cessaram por completo as relações patrimoniais entre os cônjuges aquela norma é uma norma relativa às relações patrimoniais no âmbito do casamento.
Como refere Rute Teixeira Pedro, Da comunicabilidade da posição de arrendatário por força do regime de bens - uma reflexão crítica sobre o artigo 1068.º do Código Civil Português, in Revista Electrónica de Direito, Outubro 2017, n.º 3, esta norma, «constituindo uma norma sobre o regime de bens, (…) deveria aplicar-se apenas a relações matrimoniais que venham a celebrar-se depois da entrada em vigor da lei, em harmonia com as limitações advenientes da vigência, entre nós, do princípio da imutabilidade previsto no art. 1714.º». A mesma autora acrescenta e parece-nos que bem que a norma em causa «será decisiva para qualificar as posições jurídicas contratuais de arrendatário que sejam adquiridas até ao momento em que se extinguem as relações patrimoniais entre os cônjuges. Aplica-se, portanto, na operação de qualificação de posições jurídicas de arrendatário de que os cônjuges já sejam titulares ao tempo da celebração do casamento e aquelas que venham a ser adquiridas, por qualquer um deles, até à cessação das relações patrimoniais que ocorre nos termos definidos no art. 1688.º que deve ser conjugado, quanto à dissolução do casamento por divórcio, com a regra do art. 1779.º (..). Já não se aplicará a posições jurídicas que se adquiram posteriormente a esse momento».
Ora no caso, o óbito do pai da ré e arrendatário ocorreu ainda em 2005, antes da entrada em vigor do NRAU, ou seja, o respectivo casamento dissolveu-se antes de a ordem jurídica permitir a comunicabilidade do arrendamento habitacional por ele celebrado. Uma vez extinto o casamento por óbito de um dos cônjuges, cessaram os efeitos patrimoniais do casamento, pelo que os bens ou direitos que na pendência do casamento não se comunicaram ao outro cônjuge, não podem vir posteriormente a adquirir a natureza de bem comum.
Esta conclusão não apenas não viola como sobretudo respeita o disposto no artigo 12.º do Código Civil que em caso algum permite que a aplicação retroactiva da nova lei sobre o conteúdo de certas relações jurídicas vá ao ponto de abranger relações jurídicas já extintas na data em que a nova lei entra em vigor. Para ver o absurdo da solução oposta que a recorrente defende basta pensar no seguinte: se assim fosse e se, entretanto, viesse a ser aprovada outra nova lei, agora de sentido contrário, também se faria a sua aplicação retroactiva com essa amplitude?; e, nesse caso, quando se consolidaria a relação de liquidação da relação extinta?; nunca …?.
Afigura-se-nos igualmente que esta conclusão não pode representar em caso algum, como defende a recorrente, uma violação do princípio constitucional da igualdade.
A propósito deste princípio, lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 303/202, de 27.04.2022:
«11. Constitui entendimento abundante e reiterado deste Tribunal que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento (e sua medida) sem justificação racional e bastante. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 362/2016, em síntese da posição do Tribunal sobre o parâmetro da igualdade, na sua dimensão de proibição do arbítrio, aqui invocada:
«Numa perspectiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objectos que se comparam em função de um aspecto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objectos a comparar; é o pressuposto da respectiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objectos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os actos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjectivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que, contudo, se não repercuta no trato diverso – e desrazoavelmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjectivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
Assim sendo, sob pena de se entender que qualquer alteração das consequências jurídicas que o legislador entende num dado momento associar a um determinado facto jurídico, segundo o seu legítimo critério democrático e a sua avalização contemporânea, gera uma violação do princípio da igualdade ao proporcionar para futuro um efeito jurídico diferente do que era proporcionado anteriormente, no mínimo teremos de aceitar que a comparação que pode gerar o tratamento desigual desconforme só pode estabelecer-se entre relações jurídicas que subsistem à data da entrada em vigor da nova lei de modo a que o tratamento desigual seja dispensado ao mesmo tempo a relações subsistentes e assim pessoas nas mesmas condições se defrontem com efeitos jurídicos distintos não justificados pelas diferenças dos respectivos estados ou condições.
A aplicação da solução da comunicabilidade do arrendamento para habitação contratado por pessoa cujo casamento tenha sido celebrado depois da entrada em vigor da redacção actual do artigo 1068.º do Código Civil que estabelece aquele efeito ou cujo casamento foi celebrado antes, mas subsiste nessa data, proporciona a todos os casais constituídos e não dissolvidos após a aprovação da lei o mesmo tratamento, sendo que é apenas a esses que importa aferir se o tratamento desigual é injustificado.
A circunstância de os casamentos já dissolvidos nessa data não terem tido o mesmo tratamento que a legislação vem posteriormente a dispensar às relações conjugais, por ter sido distinto o regime legal a que aquelas relações conjugais estiveram subordinadas, não constitui qualquer tratamento desigual constitucionalmente relevante. A comparação só pode ser feita entre casamentos celebrados e não dissolvidos no momento da avaliação, não entre relações jurídicas presentes e relações jurídicas pretéritas, não entre relações jurídicas nas quais a modificação da solução legal importa transformações que podem ser desigualadoras, arbitrárias, injustificadas e relações jurídicas que por estarem extintas não vêm o seu regime jurídico modificado.
Dito isto podemos concluir pela improcedência da primeira questão suscitada no recurso.
Afastada a qualidade de co-titular do contrato de arrendamento (por comunicabilidade) da mãe da ré, alcança-se que a mesma adquiriu a posição de arrendatária ao suceder nessa posição por morte do seu marido e titular originário do contrato. É com base nesse pressuposto que se deve decidir a outra questão suscitada, qual seja a se por morte da mãe, essa posição contratual se transmitiu de novo para a ré.
A transmissão da posição de arrendatário por morte do anterior titular tem de ser aferida em função da lei em vigor no momento em que ocorre o facto constitutivo desse direito, ou seja, o óbito do titular do arrendamento (nesse sentido, DD, Até que a morte nos separe? A transmissão da posição contratual por morte do arrendatário no contrato de arrendamento urbano para habitação. Reflexões à luz da jurisprudência recente dos tribunais superiores, in Revista Electrónica de Direito, Outubro 2017, n.º 3, afirmando «que em cada situação haverá que aplicar a lei vigente no momento em que ocorreu o facto juridicamente relevante, no caso a morte do arrendatário inicial ou dos arrendatários transmissários»). A recorrente, aliás, também concorda com essa interpretação jurídica.
No caso, portanto, está em causa a aplicação do regime de transmissão do arrendamento por morte do arrendatário em vigor em 28.02.2021, data em que ocorreu a morte da mãe da ré e da qual esta defende ter adquirido a posição de arrendatário.
Quer a decisão recorrida quer a recorrente consideram aplicável o regime do artigo 57.º do NRAU. Assim é, de facto, na medida em que tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes de 1962, isto é, antes da aprovação do RAU, ele ficou sujeito ao regime transitório do Capítulo II do Título II do Novo Regime do Arrendamento Urbano, onde se inclui o artigo 57.º relativo precisamente à transmissão por morte. Acresce que se trata não do artigo 57.º na sua redacção inicial, mas sim na sua redacção actual que incorpora as alterações introduzidas, sucessivamente, pelo artigo 4.º da Lei n.º 31/2012, de 14.08, em vigor a partir de 12.11.2012, pelo artigo 3.º da Lei n.º 79/2014, de 19.12, em vigor a partir de 18.01.2015, e pelo artigo 4.º da Lei n.º 13/2019, 12.02, em vigor a partir de 13.02.2019.
Este aspecto é determinante no caso em virtude da modificação que a Lei n.º 31/2012 introduziu no aludido artigo 57.º do NRAU.
Na sua versão inicial, quanto à transmissão por morte no arrendamento para habitação o artigo 57.º dispunha do seguinte modo:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
4 - A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 ou nos termos do número anterior.
Com a Lei n.º 31/2012, a redacção do preceito passou a ser a seguinte:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respectivo concelho quanto ao resto do País.
4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
Como se vê, estas alterações consistiram numa maior definição dos parentes a favor dos quais a transmissão pode ocorrer, na exclusão da transmissão quando o beneficiário da transmissão disponha de casa própria ou arrendada numa determinada área, na definição do regime a que o contrato passa a estar sujeito uma vez operada a transmissão.
Foi ainda alterado um aspecto determinante para o caso dos autos. Referimo-nos à eliminação do n.º 4 da norma que na sua versão inicial permitia a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 ou nos termos do número anterior, por exemplo por morte do cônjuge do primitivo arrendatário, possibilidade que a reforma de 2012 eliminou e não tornou até hoje a constar da norma.
Em qualquer das versões a norma apenas admite a transmissão a partir do «primitivo arrendatário», ou seja, da pessoa que celebrou o contrato de arrendamento, iniciando a relação locatícia na qual depois se coloca a questão da transmissão para outrem. Porém, lida a versão inicial da norma no seu todo, deduzia-se que em alguns casos era ainda possível uma segunda e terceira transmissão do arrendamento (cf. José Diogo Falcão, A transmissão do arrendamento para habitação por morte do arrendatário no NRAU, in Revista da Ordem dos advogados, n.º 67, III, 2007, páginas 1163-1194). O n.º 4 da norma consentia com efeito que depois da transmissão do primitivo arrendatário para o familiar preferente (que no caso de sobreviveram ambos os ascendentes seria primeiro para o mais velho deles e depois para o outro) por morte deste o arrendamento se transmitisse ainda para os filhos ou enteados do primitivo arrendatário designados nas várias alíneas do n.º 1.
É precisamente desta transmissão que a ré pretende, no caso, beneficiar, atenta a circunstância de o contrato ter sido celebrado pelo pai (não se provou que o tivesse sido por pai e mãe e já vimos que não se comunicou a esta) e de por morte dele já ter havido a transmissão para a mãe. Todavia, esse grau de transmissão não está contemplado na redacção aplicável do artigo 57.º do NRAU, a qual apenas permite uma transmissão por morte do primitivo arrendatário e a partir deste (em rigor ainda pode haver uma segunda transmissão, mas só de um dos ascendentes para o outro e desde que ambos tenham sobrevivido ao arrendatário primitivo). Essa transmissão tem lugar em benefício de um dos familiares do primitivo arrendatário elencados na norma, sendo que esse elenco constitui uma ordenação preferencial, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
No caso, houve já a transmissão do primitivo arrendatário (o pai da ré) para o respectivo cônjuge (a mãe da ré e à data familiar com preferência no direito à transmissão), pelo que não é possível nova transmissão a partir da anterior transmissária da posição contratual, já que a lei não a prevê e a transmissão constitui uma excepção ao regime regra da caducidade do arrendamento por morte do arrendatário.
A recorrente tenta atalhar a esta conclusão com um conjunto de argumentos que, salvo melhor opinião, não colhem.
Em primeiro lugar, a revogação do n.º 4 do artigo 57.º do NRAU não foi feita pela Lei n.º 13/2019, foi feita pela Lei n.º 31/2012. Acresce que o facto de o legislador assinalar no artigo introdutório de uma lei que com ela persegue um determinado objecto não autoriza o intérprete a considerar tacitamente acolhida pelo diploma toda e qualquer solução que iria mais longe do que aquela que o legislador depois consagrou de modo expresso nas respectivas disposições. Pelo contrário, a redacção das disposições parece representar o grau e a medida em que o legislador entendeu concretizar o objectivo a que se propôs, razão pela qual terão de ser aspectos de outra ordem a permitir vislumbrar lacunas ou insuficiências no diploma que justifiquem interpretações extensivas ou analógicas.
Em segundo lugar, a redacção da norma é clara, a transmissão só ocorre por morte do primitivo arrendatário. Como refere José Diogo Falcão, loc. cit., página 7, a propósito da expressão “primitivo arrendatário”, «porque o art. 57.º, contrariamente ao art. 1106.º do Código Civil, se refere ao primitivo arrendatário, os beneficiários da transmissão serão apenas aqueles que, à data da morte do primitivo arrendatário, ou da pessoa a quem tenha sido transmitida esta posição por cessão da posição contratual, estejam previstos nas várias alíneas do art. 57.º. Isto é, a transmissão do arrendamento para habitação por morte do arrendatário só se processa, em princípio, por uma vez e a favor do cônjuge do primitivo arrendatário, da pessoa que com o primitivo arrendatário vivesse em união de facto, do ascendente do primitivo arrendatário que com ele convivesse há mais de um ano, ou do filho ou enteado do primitivo arrendatário que se encontre nas situações previstas nas alíneas d) ou e) do n.º 1 do art. 57.º. Em todas as outras hipóteses não subsumíveis na previsão desta norma, é o interesse do senhorio que prevalece, caducando o contrato de arrendamento.».
Fora das situações em que a lei consente expressamente nova transmissão (o caso de sobreviveram ambos os ascendentes) só tem lugar uma transmissão, a transmissão do primitivo arrendatário que faleceu para o seu familiar situado à frente na ordem de prioridade. É certo que nesse caso o contrato não cessa, mantém-se, mas o contrato continua a ser o mesmo, apenas se altera um dos respectivos sujeitos, pelo que após aquela transmissão não é mais possível haver nova transmissão “por morte do primitivo arrendatário” (essa já houve e, como a morte, só pode ser uma).
Defende, no entanto, a recorrente que o artigo 26.º do NRAU, ao mandar aplicar o regime de transmissão por morte do artigo 57.º do NRAU, bem como a interpretação deste preceito no sentido de excluir que o arrendamento se transmita de novo por morte do cônjuge do primitivo arrendatário para um filho de ambos, são inconstitucionais por violação do «princípio da igualdade consagrada no artigo 13º da CRP» e do «princípio da segurança e da efectivação de direitos previsto no artigo 2º da mesma lei fundamental», na medida em que «à luz do previsto neste artigo 85.º do RAU, a Ré adquiriu a legítima expectativa de lhe vir a ser transmitida a posição do arrendatário seu pai, aquando da morte de sua mãe.
Quid iuris?
No Acórdão 196/2010, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a «constitucionalidade do artigo 57.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, com o sentido de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), quando a morte do arrendatário tenha ocorrido posteriormente à entrada em vigor do NRAU», em termos que depois transpôs no Acórdão n.º 346/2011 para a situação de o contrato ter sido celebrado antes do RAU, como aqui sucede.
Naquele Acórdão o tribunal Constitucional começa por fazer a história do regime da transmissão do arrendamento por morte em termos que aqui parece oportuno repetir parcialmente:
«Apesar da regra ser a caducidade do contrato de arrendamento de prédio urbano, para habitação, no caso de morte do arrendatário, o legislador, atendendo a que o agregado familiar deste é quase sempre beneficiário desse contrato e, muitas vezes, comparticipa até na satisfação da respectiva contraprestação, vem, desde há bastante tempo, a admitir a transmissão por morte da posição contratual do inquilino para os elementos desse núcleo familiar.
No Código de Seabra, a regra era a transmissão sucessória da posição de arrendatário (artigo 1619.º).
Com a I Grande Guerra surgiu a necessidade de garantir a conservação da casa de habitação não só aos mobilizados e suas famílias, como a todos os afectados pela grave crise económica resultante daquele conflito mundial, tendo sido implementadas medidas legislativas proteccionistas dos arrendatários.
Assim, após inicialmente o Decreto n.º 1.079, de 23 de Novembro de 1914, destinado a vigorar enquanto subsistir a crise que o motiva (artigo 6.º), ter limitado os aumentos de renda na renovação dos contratos (artigos 1.º e 2.º), a Lei n.º 828, de 28 de Setembro de 1917, aprovada para vigorar enquanto durar o estado de guerra e até seis meses depois de assinado o tratado de paz (artigo 9.º), proibiu os senhorios de intentarem acções de despejo que se fundem em não convir-lhes o contrato de arrendamento (artigo 2.º), consagrando deste modo a imposição da automática prorrogação legal dos arrendamentos, medida que apesar de ter sido adoptada com um cunho transitório, havia de marcar este tipo contratual durante quase todo o século XX.
Perante a inoperância dos prazos acordados pelas partes para o termo dos contratos de arrendamento urbanos, se a regra da transmissão, por sucessão, da posição do arrendatário ainda se manteve no regime aprovado pelo Decreto n.º 5.411, de 17 de Abril de 1919 (artigo 34.º), já a Lei n.º 1662, de 4 de Setembro de 1924 (artigo 1.º, § 1.º, 3.º), apenas admitiu essa transmissão para o cônjuge do arrendatário ou parente legitimário que com ele habitasse no arrendado há mais de 6 meses na data da sua morte, de modo a evitar a duração infinita dos contratos de arrendamento, assegurada por sucessivas transmissões sucessórias da posição do arrendatário, sem quaisquer limitações.
Após discussão acesa no domínio desta legislação sobre o número de vezes que se podia transmitir o mesmo arrendamento, por morte do inquilino (vide apontamentos sobre esta discussão, em Pinto Loureiro, “Tratado da Locação”, pág. 170-173, do II vol., ed. de 1947, da Coimbra Editora) o artigo 46.º, da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, veio admitir uma única transmissão a favor do cônjuge do primitivo arrendatário, dos seus ascendentes ou descendentes que com ele vivessem há um ano, e apenas permitiu, excepcionalmente, uma segunda transmissão a favor dos ascendentes ou descendentes do primitivo arrendatário, quando tivesse existido uma primeira transmissão a favor do cônjuge sobrevivo do primeiro arrendatário. Como opinou a então Câmara Corporativa “não pode aceitar-se a solução de criar à volta do arrendamento, e à custa alheia, uma verdadeira instituição vincular”, havendo razões “para limitar um regime odioso que, segundo certos entendimentos, parece transformar o arrendamento, à custa do senhorio, num vínculo perpétuo em benefício da família do arrendatário”.
Em 1966, o Código Civil, no artigo 1111.º, que passou a regular esta matéria, veio ampliar a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário para todos os parentes ou afins na linha recta, além do cônjuge, desde que com ele vivessem no arrendado há, pelo menos, um ano.
O Decreto-Lei n.º 293/77, de 20 de Julho, passou a não limitar o número de transmissões possíveis, eliminando do artigo 1111.º o termo “primitivo”, pelo que a morte de qualquer arrendatário, sendo ou não já ele um transmissário do arrendamento, originava nova e ilimitada transmissão da posição contratual.
O Decreto-Lei n.º 328/81, de 4 de Dezembro, veio repor o regime anterior, reintroduzindo o termo “primitivo” no artigo 1111.º, o que foi mantido pela Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, que acrescentou à classe dos transmissários a pessoa unida de facto ao primitivo arrendatário, que com ele vivesse há mais de 5 anos.
O RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, regulou a transmissão do direito ao arrendamento para habitação no artigo 85.º, sem se afastar muito da solução mais recente do Código Civil.
A Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, (artigo 5.º), veio diminuir o período de duração da união de facto, que permitia a transmissão do arrendamento para o companheiro do arrendatário falecido, para dois anos, tendo a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, (artigo 5.º), estendido a união de facto a casais do mesmo sexo e melhorado a posição do unido de facto na ordem de preferências da transmissão.
Por sua vez, a Lei n.º 6/2001, também de 11 de Maio, veio estender a transmissão do arrendamento a todas as pessoas que convivessem com o arrendatário falecido nos dois anos anteriores à sua morte em economia comum.
[…] O NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nas suas normas finais, no artigo 59.º, n.º 1, dispôs que o novo regime por si implantado se aplicava aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor (27 de Junho de 2006), bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo contudo do estabelecido nas normas provisórias.
Ora, nestas últimas normas o artigo 26.º, n.º 2, determina que, relativamente aos contratos celebrados durante a vigência do RAU, se aplica o disposto no artigo 57.º, que regula a transmissão por morte do arrendamento para habitação, o qual também é aplicável aos contratos de arrendamento celebrados anteriormente à vigência do RAU, por força do disposto no artigo 28.º.
Assim, relativamente ao regime da transmissão da posição contratual do arrendatário habitacional, por morte deste, o NRAU consagrou uma solução aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor, introduzida no artigo 1106.º, do Código Civil, e outra aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, constante do seu artigo 57.º. […]»
Sopesando depois o juízo de conformidade deste regime com a Constituição da República Portuguesa, entendeu o Tribunal Constitucional o seguinte:
«2.4. O princípio da igualdade
Conforme acima já se constatou o NRAU consagrou dois regimes de transmissão do arrendamento habitacional por morte do arrendatário. Um aplicável aos contratos celebrados que são posteriores à sua entrada em vigor e que consta da nova redacção do artigo 1106.º, do C.C., e outro, transitório, constante do artigo 57.º, do NRAU, aplicável aos contratos anteriormente celebrados.
Este último regime é mais restritivo, relativamente à admissibilidade da transmissão do arrendamento, do que aquele que é aplicável aos novos contratos de arrendamento, …
[…] A diferença de regimes a operar sincronicamente tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, ao contrário do que sucede na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU. Enquanto nestes, com excepção dos contratos de duração limitada previstos no artigo 98.º e seg., do RAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto essa for a vontade do arrendatário, como ocorre com o contrato de arrendamento sub iudice, nos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o prolongamento da relação contratual já não lhe pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário. Nestes novos contratos, o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado (artigo 1096.º, n.º 2, e 1097.º, do C.C.), ou não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos (artigo 1101.º, c), do C.C.).
Na verdade, o alcance do direito à transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional está intimamente conexionado com o grau de tutela conferido ao interesse na continuidade da relação contratual. Quando o senhorio deixa de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, perdem sentido todos os resguardos e limitações que rodeavam o direito à transmissão com vista a atenuar o impacto negativo que ela ocasionava nos interesses do senhorio (Sousa Ribeiro, na ob. cit., pág. 764-765,).
Por isso existe uma diferença decisiva no regime da generalidade dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, relativamente àquele que disciplina os contratos posteriormente outorgados, que fundamenta e justifica as diferenças de tratamento jurídico da admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário consagradas no artigo 1106.º, do C.C., para os novos contratos, e no artigo 57.º, do NRAU, para os contratos pré-existentes.
Essa diferença já não se descortina entre os contratos de duração limitada celebrados na vigência do RAU e os novos contratos celebrados ao abrigo do NRAU, mas isso é uma questão que não releva para a decisão do presente recurso, uma vez que o contrato aqui em causa é um contrato sujeito ao regime da renovação obrigatória.
Ora, como ensinam J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 399, da 4.ª Edição revista, da Coimbra Editora), no apuramento das violações ao princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio, importa ter presente que «(...) a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infracção” do princípio do arbítrio.»
Tendo sido apurado um suporte material bastante para o tratamento desigual sincrónico apontado pelo Recorrente, não se pode considerar que essa distinção viole o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da C.R.P.
2.5. O princípio da confiança
O Recorrente também acusa a interpretação normativa impugnada de não ter respeitado o princípio da confiança ínsito ao Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da C.R.P., uma vez que com a sua aplicação foram defraudadas as expectativas que lhe foram criadas pelo regime estabelecido no RAU e que foram determinantes para a sua permanência no arrendado. [Nota: no caso é igualmente invocada a frustração das expectativas criadas pela legislação pretérita do artigo 85.º do RAU].

Efectivamente, … o RAU (artigo 85.º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário, para os descendentes que vivessem com este em economia comum há mais de um ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.
O NRAU (artigo 57.º) alterou este regime, passando a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%.
Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-a somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento.
Como neste caso a morte da arrendatária ocorreu em 29-11-2007, ou seja, posteriormente à data da entrada em vigor do NRAU, em 27 de Junho de 2006, a decisão recorrida, socorrendo-se do critério que a transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário é regulada pela lei vigente à data da morte, aplicou o disposto no artigo 57.º deste diploma, …
Tem sido entendido que os preceitos que desde o princípio do século XX estabelecem as regras do arrendamento de prédios urbanos, vêm consagrando um regime de severas limitações à liberdade contratual, impondo importantes restrições e vínculos à autonomia da vontade privada, de modo a assegurar uma política de justiça social. Neste domínio as partes não são encaradas pela lei como contraentes, mas enquanto membros de uma determinado grupo social (inquilinos e senhorios), cujos interesses, pela sua relevância na dinâmica da sociedade, importa reger em abstracto, independentemente do acto que deu origem à situação em concreto. É este carácter público e de forte incidência político-social da legislação sobre o contrato de arrendamento que exige que também ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede perante os interesses comunitários, sendo por isso a lei nova de aplicação imediata aos contratos pré-existentes.
Nesta linha e tendo ainda presente que os interessados na transmissão do arrendamento não intervieram na outorga do respectivo contrato, tem sido aplicado uniformemente pela jurisprudência o critério de que o regime da transmissão por morte da posição do arrendatário é o definido pela lei que está em vigor à data do evento que determina essa transmissão – o óbito do arrendatário – e não pela lei que vigorava na data em que foi celebrado o contrato.
O recorrente fundamenta a existência das expectativas que teriam sido afectadas pela aplicação do regime previsto no artigo 57.º, do NRAU, no facto da lei que estava em vigor quando ele vivia no arrendado com a mãe lhe assegurar a transmissão do arrendamento, caso a sua mãe viesse a falecer, o que, inclusive, teria pesado na sua decisão de permanecer no arrendado.
O Tribunal Constitucional tem dito que a afectação de expectativas legítimas resultantes duma alteração legislativa só é inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar, não sendo a mesma ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.
Nesta situação, a incerteza do momento da morte, aliada ao facto das condições exigidas pelo RAU se reportarem a esse momento (convivência com o arrendatário no ano anterior à sua morte) não permite de modo algum que se reconheça como legítima qualquer expectativa de transmissão do arrendamento alicerçada apenas num juízo de prognose que tem por base a manutenção hipotética de todos os dados de facto e de direito até à data da morte do arrendatário.
Na verdade, só nesse momento é que era possível constatar se estavam ou não preenchidos os requisitos da transmissibilidade, pelo que não tem fundamento a constituição anterior de qualquer posição de confiança merecedora de protecção.
Na época em que o Recorrente viveu … no arrendado, durante a vigência do RAU, a ordem jurídica não lhe permitiu, num juízo de razoabilidade, a formação de qualquer expectativa legítima de que ele iria suceder na posição de arrendatário que pudesse limitar a aplicação de qualquer alteração legislativa nesse domínio, ocorrida antes do óbito da mãe, no sentido de não admitir essa sucessão.
O recorrente podia depositar esperanças ou até expectativas de natureza política, de que nunca tendo o legislador limitado a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário no período anterior à sua morte, nomeadamente em função da idade ou do grau de incapacidade, essa orientação legislativa não viesse a ser tomada. Mas esses sentimentos ou convicções não têm relevância jurídica e não podem pesar na delimitação da área de liberdade de conformação do legislador.
Daí que também não se mostre violado pela interpretação normativa sindicada o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático.»
Refira-se que o Tribunal Constitucional já se tem naturalmente ocupado inúmeras vezes das exigências inerentes à previsão constitucional do princípio da igualdade (artigo 13.º), constituindo jurisprudência estabilizada daquele Alto Tribunal que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente como arbitrário, sem fundamento material, havendo que precisar o sentido da igualdade jurídica. No Acórdão n.º 362/2016, afirma-se a esse propósito o seguinte:
«[…] Numa perspectiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objectos que se comparam em função de um aspecto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objectos a comparar; é o pressuposto da respectiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objectos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias.
[…] Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011: “[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os actos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 –, que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjectivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, ‘racionais’. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do ‘merecimento’ – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador”.»
Foi esta jurisprudência que os mencionados Acórdão n.º 196/10 e 346/10 aplicaram e à luza da qual concluíram, como nos concluímos, no sentido de a aplicação do regime do artigo 57.º do NRAU, apesar das diferenças em relação aos regimes do artigo 85.º do RAU e do artigo 1106.º do Código Civil (que, note-se, também são diferentes entre si), não gerar por via dessas diferenças uma violação do principio da igualdade
Quanto ao princípio da protecção da confiança, no Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal Constitucional assinalou que o princípio da segurança jurídica inclui na sua vertente material a confiança, mas para que esta seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Estes dois critérios, depois expressos em inúmeros outros Acórdãos do Tribunal Constitucional, reconduzem-se a quatro diferentes requisitos ou testes. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção. Por isso, disse-se, por exemplo no Acórdão nº 287/90, que tendo em conta a autorevisibilidade das leis, não há um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados.
Também no Acórdão n.º 345/2009, o Tribunal Constitucional escreveu o seguinte:
«Como diz GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., pág. 257), "o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida". Por isso desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito". O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo a ideia de protecção de confiança) pode formular-se do seguinte modo: os indivíduos têm o direito de poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.
Apontam-se como suas refracções mais importantes, seguindo o mesmo Autor, as seguintes: (1) relativamente a actos normativos, a proibição de normas retroactivas restritivas de direitos e interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais, a inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração, a tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos.
O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, em inúmeros acórdãos, que o princípio do Estado de direito democrático (consagrado no artigo 2.° da Constituição) postula "uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas", razão pela qual "a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiada opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica" (cfr., entre outros, o acórdão n.º 303/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., pág. 65).
(...) A expressão "segurança jurídica" é utilizada em vários sentidos para designar um dos fins ou valores do Direito, dos quais podem destacar-se os seguintes (Mário Bigotte Chorão, Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. V, pág. 646): a) a ordem imanente à existência e funcionamento do sistema jurídico (segurança pelo ou através do Direito); b) situação de cognoscibilidade, estabilidade e previsibilidade do Direito, de modo a poder cada um saber aquilo a que deve ater-se na ordem jurídica (segurança do Direito ou certeza do Direito); c) salvaguarda dos cidadãos perante o poder do Estado (segurança perante o Direito)."»
De acordo com este entendimento da jurisprudência constitucional, o princípio geral da segurança jurídica aponta para o reconhecimento a todo o indivíduo do “direito de poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico” (cf. Acórdão n.º 345/09).
Enquanto manifestação do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, o princípio geral da segurança jurídica impetra “uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.
Por isso, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiada opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica" (cf., por todos, Acórdão n.º 303/90).
A lesão da tutela da confiança exige, por isso, num primeiro momento, que, ao editar a norma contestada, o legislador ordinário haja intervindo em sentido contrário às legítimas expectativas que os particulares depositavam na continuidade da ordem jurídica, na sua duração estável e na previsibilidade da sua mutação; num segundo momento, tal lesão pressupõe que a solução adoptada, para além de implicar uma afectação “intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada” daqueles “mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático” (cf., por todos, Acórdão n.º 330/93), não encontre justificação na “necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes” de acordo a matriz ponderativa para que aponta o princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição” (cf. Acórdão n.º 187/2013 e Acórdão n.º 293/2017).
No caso, parece certo que estes requisitos não estão todos reunidos. Não se vê, por exemplo, nem a recorrente o indica que o Estado tenha adoptado comportamentos passíveis de gerar nos privados «expectativas» de que o regime do artigo 85.º do RAU iria manter-se ad eternum. Pode, ao invés, reter-se da sucessiva modificação do regime jurídico do contrato que estamos perante matéria de sensibilidade social e política, continuamente sob escrutínio, polémica e mutação em função das prioridades que em cada momento o legislador define para a regulação do mercado do arrendamento.
Também não foi sequer alegado que planos de vida investimento terá feito a ré com base nessa confiança e na expectativa legítima do que seria a postura do Estado a esse nível, sendo certo que a esse nível não bastaria sustentar que a recorrente viveu sempre ou parte da sua vida no arrendado, na companhia dos pais e nem isso de facto sabemos.
Isto disto, podemos concluir que para além de procederem as objecções de natureza constitucional à selecção e interpretação dos preceitos ordinários que regem sobre a transmissibilidade do arrendamento por morte da mãe da ré, essa selecção e interpretação se mostra correcta e colhe a nossa adesão, razão pela qual a decisão recorrida deve ser confirmada, improcedendo o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, sendo da responsabilidade do IGFEJ o pagamento à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 13 de Julho de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 697)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]