Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA CECÍLIA AGANTE | ||
Descritores: | DEPÓSITO BANCÁRIO DESCOBERTO EM CONTA FORMA | ||
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Nº do Documento: | RP20181009199770/12.7YIPRT.P2 | ||
Data do Acordão: | 10/09/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º850, FLS.182-189) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O descoberto em conta não supõe um acordo expresso do titular da conta de bancária, podendo derivar de meras relações de facto, mas a instituição de crédito pode exigir ad nutum a solvência do respetivo saldo. II - O descoberto em conta resulta de uma tolerância do banco, que permite ao seu cliente o levantamento ou movimentação a débito da conta sem que a mesma esteja aprovisionada, reconduzível a uma concessão de crédito bancário, que gera a obrigação de restituir a quantia mutuada. Não quadra na figura do “descoberto em conta” o saldo negativo que resulta apenas de débitos levados a cabo pelo banco relativos a juros e despesas bancárias de diversas operações bancárias, designadamente de serviços de avaliação, imposto de selo, IVA e comissões bancárias. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 199770/12.7YIPRT Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 2 Acórdão Banco B…, S.A, que sucedeu ao C…, S.A., com sede na Rua …, .., …. - … Lisboa, intentou contra D…, L.da, com sede em Av. …, …, …, …. - … Santo Tirso, a presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia €10.933,17 (dez mil, novecentos e trinta e três euros e dezassete cêntimos), acrescida dos juros vencidos, até 7.12.2012, no montante de €782,33 (setecentos e oitenta e dois euros e trinta e três cêntimos), originada por um descoberto bancário utilizado pela Ré e não pago.Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório A Ré, devidamente citada, apresentou contestação, impugnando os factos alegados pela Autora em sede de requerimento inicial e pedindo a improcedência da ação. Subsidiariamente, invocou ser titular de um crédito sobre o Autor e, nessa medida, formulou a operatividade da compensação. Procedeu-se à realização de julgamento com observância das formalidades legais e foi pronunciada sentença que declarou a ação improcedente. O Banco B…, S.A., não se conformando com a sentença, dela recorreu, assim concluindo a sua alegação: «I. Atentos os factos provados 1 a 3, impunha-se ao Tribunal decisão diversa. II. O descoberto em conta é a situação que se gera quando, numa conta corrente subjacente a uma abertura de conta, o banqueiro admite um saldo a seu favor, isto é um saldo negativo para o cliente, sendo que tem vindo a ser reconhecido que tal operação pode resultar de um acordo prévio com o titular da conta ou existir independentemente de tal acordo. III. Ocorrendo um descoberto em conta, este fica sujeito ao regime do contrato de mútuo, dado a sua natureza ser semelhante à do contrato de depósito bancário. IV. No caso dos Autos, a conta apresenta saldo negativo entre 02.08.2011 a 11.09.2012 por vários movimentos respeitantes essencialmente a juros devedores, despesas de débito, serviços de avaliação, comissões e importo de selo. V. No entanto, o descoberto materialmente realizado pelo Banco não desresponsabiliza o seu titular, no caso, a Ré, quanto ao seu pagamento. VI. Tendo o Tribunal dado como provado o teor dos extractos não podia concluir que a Ré, enquanto titular da conta, não é responsável pelo pagamento do descoberto que os mesmos reflectem apenas e porque tais movimentos não foram expressamente ordenados por aquela. VII. Sendo certo que também releva o facto de a Ré antes da presente acção nunca ter reclamado do seu teor perante o Banco. VIII. Sendo certo que os extractos bancários da conta são prova bastante da quantia em dívida, nos termos do § único do D.L. n.º 32765, de 29 de Abril de 1943, aplicável à situação sub judice. IX. Por outro lado, igualmente não tem relevância o período de tempo em que decorreram os movimentos, pois que, tem vindo a ser entendido que esta prática bancária se pode prolongar no tempo – veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03.11.2005, disponível em dgsi.pt. X. De onde se conclui que a Autora cumpriu o ónus da prova dos factos constitutivos do seu invocado direito, que resultam provados nos factos 1 a 3, pelo que deveria o Tribunal a quo condenar a Ré ao pagamento do valor peticionado. XI. Ao decidir, como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto no D.L. n.º 32765, de 29 de Abril de 1943, art. 342.º do C.Civ.. Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de vossas excelências, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a douta decisão recorrida, com o que se fará JUSTIÇA!». Em resposta, a Recorrida finaliza a sua alegação do seguinte modo: «1. Carece de fundamento a posição defendida pelo Autor no seu recurso, devendo a douta sentença ser mantida e negado provimento ao recurso. Por outro lado, e no que toca à ampliação do objeto do recurso, caso tivesse provimento o recurso do Autor, 2. Teria de ser conhecido também o pedido de compensação efetuado pela Ré contra o Autor, sendo que, conforme resulta da matéria de facto dada como provada – e foi já objeto de várias decisões entre as partes, juntas aos autos – o Autor incorreu em responsabilidade pré-contratual perante a Ré, e foi devido às garantias do Autor que logo em inícios de 2010 os créditos que detinha sobre a Ré (e seus representantes legais) não ficaram regularizados, impedindo também o recebimento da margem de lucro que a Ré (e seus representantes) iriam obter naquele negócio (€750.000,00); 3. Não fosse a atuação do ora recorrente, teria sido feito o negócio que consta dos factos provados pelo valor de €3.600.000,00, e com tal valor toda a dívida ao Autor ficaria liquidada e ainda sobrariam €750.000,00, sendo este o resultado líquido (ativo recebido, menos o passivo a liquidar ao Banco); 4. Por outras palavras, não fosse a atuação do Autor, a Ré e seus representantes legais – que, em conjunto, eram devedores ao Autor de €2.850.000,00 – teriam desde logo liquidado aquele valor do passivo que tinham perante o Autor, e ainda teriam embolsado €750.000,00, e até por isso nem sequer existiria qualquer razão para os débitos feitos pelo Autor na conta bancária da Ré, pois que toda a situação estaria resolvida; 5. Conforme lapidarmente se refere no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, junto aos autos, no Processo 4708/12.0TBGMR-A.G2 (pág. 65), “é óbvio que a “posição em que estaria” o Réu “se não fosse a conduta” do Autor implica necessariamente a reposição no seu património do valor de €3.600.000,00, atribuído como preço dos dois imóveis cuja venda a terceiros o Autor frustrou; e a utilização desse montante para pagamento da dívida global consolidada que o dito Réu (e as Sociedades que representa) têm para com ela, de €2.850.000,00, já que igual e necessariamente reportada ao início da actuação ilícita e culposa da Autora; e só assim resulta “a vantagem real e líquida” de €750.000,00, reconhecida na sentença em causa como tendo de ser paga pela aí Autora ao aí Réu.” 6. A posição da Ré (e seus representantes) perante o Autor passou de uma situação negativa no valor de €2.850.000,00, para uma posição positiva de €750.000,00 (€3.600.000,00 - €750.000,00 = €2.850.000,00). 7. Daí que, caso procedesse o recurso do Autor, sempre o valor que lhe fosse reconhecido teria de ser compensado com o crédito da Ré e seus representantes legais, nada havendo assim a pagar pela Ré.» II. Objeto recursivo A temática do recurso é delimitada pelas conclusões da alegação do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso (artigos 635º/4 e 639º/1 e 3 do Código de Processo Civil, doravante designado “CPC”). Assim, as questões a resolver, extraídas daquelas conclusões e das conclusões da alegação da Recorrida, são as seguintes:1. O descoberto em conta e os seus efeitos jurídicos. 2. A compensação formulada pela Ré, a título subsidiário. III. Fundamentação de facto 1. A Ré é titular da conta de depósitos à ordem n.º …………../.., no C…, S.A..2. Tal conta à ordem apresentava em 11.09.2012 um débito no montante de €10.933,17 (dez mil, novecentos e trinta e três euros e dezassete cêntimos). 3. Dá-se por integralmente reproduzida a relação de movimentos constante de fls. 231 a 232, para todos os efeitos legais. 4. A Ré tem como gerente inscrito E…, conforme teor de fls. 8 a 15. 5. O referido legal representante legal da Ré, por si e como representante de várias sociedades, estabeleceu diversas relações com o C…, no âmbito das quais contrataram vários financiamentos. 6. Dentre outros bens, foram dados de hipoteca ao C… dois edifícios situados na freguesia de …, que eram antigos edifícios industriais, descritos na Conservatória do Registo Predial sob os números 612 e 765, conforme teor de fls. 269 a 274, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 7. O edifício descrito na Conservatória sob o n.º 765 inicialmente pertencia ao referido E… e o outro à ora Ré. 8. No dia 26 de fevereiro de 2010 iria decorrer a Assembleia Municipal de … que iria aprovar o Plano de Pormenor da Zona Envolvente da …, conforme teor de fls. 275 a 277. 9. O que iria tornar viável edificar nos prédios referidos anteriormente um Healt Club e ainda uma unidade de alojamento. 10. Factos que eram do conhecimento geral do legal representante da Ré. 11. Sabendo da referida viabilidade, o legal representante da Ré e esposa já haviam dado entrada na Câmara Municipal de … dos projetos daquele empreendimento. 12. Assim, o legal representante da Ré, com o conhecimento do Autor, transmitiu a propriedade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 765 para o nome da Ré, de modo a que os projetos apresentados na Câmara Municipal fossem aprovados unicamente em nome da Ré. 13. O objetivo do legal representante da Ré era o de levar a efeito aquele empreendimento ou alienar a própria empresa Ré, a quem pertenciam os edifícios. 14. Aquele Plano de Pormenor foi aprovado na Reunião da Assembleia Municipal de Vizela de 26 de fevereiro de 2010, conforme teor do edital n.º 563/2010, publicado no dia 1 de junho de 2010, na 2.ª série, n.º 106, do D.R., conforme teor de fls. 274 a 277. 15. Nessa altura, a Ré recebeu uma proposta de um grupo económico espanhol para alienar os dois prédios em questão, pelo valor de €3.600.000 (três milhões e seiscentos mil euros), a fim daquele grupo edificar o empreendimento ali previsto. 16. A Ré aceitou aquela proposta e contactou o Autor, informando-o daquela proposta e da alienação que pretendiam fazer dos prédios. 17. Por essa altura, havia pedido ao Autor que fosse feita uma consolidação de toda a dívida de que eram responsáveis até então junto daquele banco, a qual em janeiro/fevereiro de 2010, ascendia a cerca de €2.850.000 (dois milhões e oitocentos e cinquenta mil euros), pelo que, o legal representante da Ré, com a celebração do negócio referido em 15. liquidaria todas as suas responsabilidades junto do Autor, bem como das sociedades, designadamente da Ré, e obteria ganho de cerca de €750.000 (setecentos e cinquenta mil euros). 18. Entretanto, o legal representante da Ré foi contactado pelo Autor, tendo sido informado de que havia possibilidade de um outro negócio que envolvia aqueles dois edifícios para o qual era necessária a colaboração da Ré e dos seus legais representantes. 19. Surgiu um outro interessado, de nome F…, em adquirir aqueles dois edifícios, ou as quotas da Ré, com recurso ao crédito bancário e em parceria com o Autor. 20. Tendo sido o legal representante da Ré sido informado que tal interessado teria já um acordo com a câmara municipal de …, no sentido de permutar aqueles dois edifícios por um outro edifício naquela cidade, denominado “…”, para o qual a Câmara desenvolveria um projeto de arquitetura. 21. Local onde a Câmara Municipal iria permitir edificar um empreendimento de “Hotel Spa”, com 5 estrelas, com um conjunto de equipamentos abastecidos por águas termais. 22. Permitindo ainda, em parte do logradouro existente no prédio em questão, a implantação de um loteamento com capacidade para seis lotes de moradias unifamiliares, ou seja, uma volumetria de construção superior à prevista para os prédios da Ré. 23. E por isso, o Autor ou aquele interessado adquiririam os edifícios e celebrariam a permuta com a Câmara Municipal do edifício “…”, como era pretensão da própria Câmara. 24. Edifício esse que, tendo em conta, a volumetria de construção prevista tinha um valor consideravelmente superior aos edifícios da Ré. 25. Levando a efeito aquele empreendimento previsto para o edifício em questão, a Câmara Municipal iria depois reabilitar as margens do Rio …, demolindo aqueles edifícios industriais que adquiriria em permuta. 26. Pelo que, aquela permuta era essencial para a concretização do negócio com a Câmara Municipal. 27. Face à clara manifestação do Autor do seu interesse no mesmo e do apoio/parceria do interessado F… no desenvolvimento daquele projeto, o legal representante da Ré acabou por aceitar não vender a empresa com os edifícios ao dito grupo espanhol, pelo valor de €3.600.000 (três milhões e seiscentos mil euros). 28. Tendo acordado com o Autor e com aquele F… que os alienaria ao Autor e/ou referido F…, conforme o Autor pretendesse e que a sua dívida e das empresas, nomeadamente da Ré, ao Autor ficava consolidada até à formalização do negócio. 29. O tempo foi passando e o Autor estudava se os imóveis seriam diretamente transmitidos para si ou para o referido F…. 30. Entretanto, aquele F…, no âmbito do acordo que fez com a Câmara Municipal e com o Autor, passou a dispor daqueles edifícios e fez uma série de demolições. 31. Em julho de 2010, para que fosse celebrada a escritura, o Autor mandou fazer uma avaliação aos edifícios da Ré, na qual foi atribuído aos edifícios, no estado em que se encontravam, o valor de €3.600.000 (três milhões e seiscentos mil euros), conforme teor de fls. 278 a 287, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 32. Em inícios de 2011, o Autor solicitou ao legal representante da Ré que transmitisse a propriedade daqueles dois imóveis para o Autor, através de dação em cumprimento. 33. De modo a que, depois, a permuta com a Câmara Municipal da “…” fosse feita diretamente pelo Autor e pelo referido F…, sem que houvesse já intervenção da Ré. 34. Uma vez que tanto quanto era do conhecimento do legal representante da Ré, o Autor é que adquiriria aquela “…” na permuta depois de adquirir a propriedade dos prédios da Ré e financiaria o Sr. F… ou uma imobiliária de que o mesmo era sócio para a sua aquisição e para a construção do empreendimento. 35. Sendo que para tal, e para garantia da Ré e dos seus legais representantes, o Autor celebraria um contrato relativo aos mesmos prédios pelo valor de €3.750.000, sendo que o valor que excedia o montante da dívida consolidada do legal representante da Ré e das empresas, nomeadamente da Ré, em janeiro de 2010, reverteria para eles. 36. Tendo, por isso, sido efetuado registo provisório de aquisição dos dois imóveis a favor do Autor, em fevereiro de 2011, nos termos indicados pelo Autor, conforme teor de fls. 269 a 274. 37. Em agosto de 2011, foi efetuado novo registo provisório de aquisição dos imóveis a favor do Autor, por dação em cumprimento, já que o negócio se mantinha em pé. 38. Depois de vários avanços e retrocessos por parte do Autor, o legal representante da Ré, em meados de 2012, foi confrontado com a posição do Autor de que deixara de ter interesse no negócio tal como já havia sido acordado. 39. Afirmando que os imóveis, em face da crise do setor imobiliário, deixaram de ter o valor que tinham anteriormente e por isso pretendiam que o legal representante da Ré e a esposa celebrassem um novo acordo de pagamento dos montantes em dívida, acordo no qual teria de intervir o F…, na qualidade de fiador. 40. Sendo que o acordo que pretendia passava por o F…, em janeiro de 2013, que seria o novo prazo de vencimento da dívida estabelecido pelo Autor, passaria a deter as quotas da Ré e os edifícios de que a sociedade é proprietária, assumindo a divida do legal representante da Ré e da esposa e das empresas que representavam, junto do Autor, pelos valores da consolidação em finais de 2009, de modo a que o Autor emitisse os distrates relativos aos vários bens do legal representante da Ré e esposa sobre os quais mantém hipoteca, à exceção daqueles dois prédios da Ré. 41. Sendo este F… quem compensaria o legal representante da Ré e esposa pelos valores que tinham sido acordados para o negócio, também através de financiamento do Autor quando o negócio com a Câmara estivesse formalizado. 42. No entanto, face à ausência por parte do Autor de garantias perante aquele F… de que avançaria com o processo de financiamento e que autorizaria a permuta da propriedade dos edifícios da Ré com o edifício do “…”, aquele F… decidiu não assinar os contratos. B. Matéria de facto não provada a) Que Autora e Ré tenham contratualizado uma taxa de juro de 28%; b) Que os movimentos identificados em 3. tenham sido efetuados e provocados (a pedido) pela Ré. IV. Fundamentação de direito Na concretização do pedido formulado na ação, os factos provados reduzem-se à titularidade da Ré de uma conta de depósitos à ordem junto do banco Autor, com o número ……………/... E no âmbito da sua movimentação pela Ré, essa conta apresentava, em 11.09.2012, um débito no montante de €10.933,17 (dez mil, novecentos e trinta e três euros e dezassete cêntimos) (n.ºs 1 a 3 da fundamentação de facto). Quadro factual de que emerge uma diversidade de subsunção jurídica: enquanto a sentença recorrida entende que não se verifica um descoberto em conta, caracterizado por uma situação pontual e não por uma situação que se prolonga por mais de um ano, o Recorrente pugna pelo enquadramento dos factos provados na figura jurídica do descoberto em conta.A relação bancária entre as partes, retratada nos factos provados, cinge-se à abertura de uma conta à ordem, reconduzido a um contrato de depósito bancário à ordem, no que as partes não dissentem. É amplamente debatida a natureza jurídica do contrato de depósito bancário, sendo reputado como um mútuo ou como depósito irregular, mas a doutrina e a jurisprudência portuguesas dominantes qualificam o depósito bancário de dinheiro ou valores equivalentes como depósito irregular, sujeito às regras do depósito mercantil[1]. Aliás, o artigo 1205º do Código Civil qualifica de depósito irregular o depósito que tem por objeto coisas fungíveis, em que a restituição é feita, não in natura, mas em género, qualidade e quantidade[2]. Depósito irregular que tem como característica a transmissão do domínio da coisa para o depositário e a obrigação deste de restituir o valor equivalente, convertendo-se a obrigação de restituição de específica em genérica[3]. Há, ainda, entre nós quem o considere como um contrato sui generis, não enquadrável em qualquer modelo típico, forjado na prática bancária e ulteriormente reconhecido como um contrato nominado, embora de características específicas[4]. Dum ou doutro modo, o contrato de depósito bancário corresponde a um negócio jurídico bilateral, com a natureza quoad constitutionem, que exige a entrega de dinheiro. É, pois, um contrato real, cuja perfeição só se alcança através da prática material da entrega de dinheiro (artigos 1185.º, 1205.º e 1206.º do Código Civil)[5]. Contudo, o contrato de depósito bancário supõe um outro que o antecede, o de abertura de conta, que postula elementos próprios de conta corrente, com a emissão contínua de extratos de conta e correspetivo saldo, por forma a que o cliente possa ser informado da contabilização[6]. Abertura de conta que é tida como o negócio bancário nuclear, definido como um contrato outorgado entre o banqueiro e o cliente, mediante o qual ambos assumem deveres recíprocos no que concerne a diversas práticas bancárias, que decorrentemente podem desenvolver-se da sua celebração[7]. Quando numa conta-corrente subjacente a uma abertura de conta existe um saldo a favor do banqueiro e negativo para o cliente, estamos perante o que comummente se designa por descoberto em conta. No fundo, é uma operação bancária através da qual o banco permite que o cliente saque para além dos fundos que ali tem disponíveis, até certo limite, por determinado período de tempo, sem depender de prévio e expresso acordo[8]. Acordo que existe independentemente de qualquer vinculação escrita, sendo que o banco pode exigir o seu reembolso a qualquer momento, salvo se foi acordado prazo para tal, situação que é sujeita ao regime do mútuo oneroso. Por regra, o descoberto em conta não é formalmente negociado entre as partes, antes corresponde a uma situação fáctica em que o cliente vai ordenando ao banco a disponibilização de quantias superiores ao seu saldo e o banco, sem a tal estar obrigado, satisfaz as ordens do cliente, porque confia na sua solvabilidade. Operação também designada por “facilidades de caixa”, que tem em vista obviar a dificuldades de tesouraria do cliente e que se funda em meras relações contratuais de facto[9]. Donde seja recorrente afirmar-se que o descoberto resulta de uma tolerância do banco, que permite ao seu cliente o levantamento ou movimentação a débito da conta sem que a mesma esteja aprovisionada, reconduzível a uma concessão de crédito bancário, que gera a obrigação de restituir a quantia mutuada. Em suma, pode asseverar-se que o banco consente que o seu cliente saque, para além do saldo existente na conta de que é titular, operação que corresponde à concessão de crédito. O descoberto em conta não tem necessariamente «por base um acordo expresso, mas antes o caráter muitas vezes fortuito, ou temporário, da mera falta de saldo bastante (saldo disponível insuficiente, mas já coberto pelo saldo contabilístico) ou, então, a confiança que o cliente merece ao Banco para que este satisfaça um pagamento não provisionado»[10]. Portanto, como o descoberto em conta, ao invés do típico mútuo bancário, não carece de acordo escrito ou de assentimento formal do depositante, é irrelevante que tenha ficado por demonstrar que os movimentos da conta, no período em causa, foram pedidos ou provocados pela Ré. Só que, na situação factual delineada, o banco Autor não consentiu que a Ré, mesmo sem ter a conta provisionada, efetuasse pagamentos ou levantamentos, cobrasse cheques ou, de algum modo, “impelisse” o banco a solver os seus compromissos através daquela conta. Por isso mesmo, no requerimento inicial, o Autor limita-se a alegar que a dívida resulta de “movimentos efetuados e provocados pela requerida” e, após a oposição, junta os extratos da conta bancária relativos ao período de 02.08.2011 e 11.09.2012 (fls. 231 a 232). Porém, tais extratos, como afirma o banco Recorrente na sua alegação, revelam terem sido debitados na conta somente juros de diversas operações bancárias, despesas bancárias, designadamente de serviços de avaliação, imposto de selo, IVA e comissões bancárias. Quadro factual que não encaixa na figura do “descoberto em conta” a que apela o Autor. Com efeito, os débitos registados não representam uma operação de facilidade de tesouraria, pois a Ré não beneficiou de qualquer disponibilidade monetária que possa corresponder a um mútuo bancário. O lançamento a débito das despesas, juros e impostos, referentes a operações que não vêm concretizadas, não podem ser solvidas por esta via, sob pena de o banco, unilateralmente, debitar na conta despesas de diversificada origem e sob a capa de descoberto em conta ficar liberado do ónus de demonstrar a causa debendi. Ademais, sendo o descoberto em conta uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito, que ocorre sempre que o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta, com ou sem acordo prévio com o titular da conta, os factos elencados não correspondem à matriz das facilidades de tesouraria. Aliás, nem sequer foi alegado, e não foi demonstrado, que a Ré tenha beneficiado da “falta do saldo” peticionado para cobrir as obrigações pecuniárias resultantes de autorizações de débito por si transmitidas ao banco para lançamento naquela concreta conta à ordem. Vale por dizer que não resulta da matéria alegada pelo Autor e, portanto, dos factos provados que a Ré, voluntariamente, tivesse retirado sua conta de depósitos à ordem as quantias em causa, em termos de a deixar com saldo negativo a cargo do depositário, de modo a que este se tornasse credor da depositante[11]. Só com operações dessa natureza, e não com lançamentos a débito do próprio banco, resultantes de outras operações bancárias, estaríamos perante “overdraft”, como refere o direito anglo-saxónico[12]. Neste contexto, também nos parece relevante o argumento da sentença recorrida no sentido de que o descoberto pressupõe uma situação pontual e, no caso, os lançamentos a débito ocorreram durante o período de um ano. Na verdade, assevera-se que «Na sua forma mais típica, o descoberto é tolerado pelo banqueiro, por curto período, como modo de facilitar, momentaneamente a tesouraria de certos clientes»[13]. De todo o modo, o mais relevante é que as operações de débito realizadas pelo banco Autor não correspondem ao descoberto em conta, porque o saldo negativo para o cliente, consentido pelo banco, não resultou de ordem da cliente, pois não foi a Ré que ordenou a disponibilização de quantias superiores ao saldo da sua conta, satisfazendo o banco, sem a tal ser obrigado, as suas ordens do cliente, por confiar na sua solvabilidade[14]. Os lançamentos realizados pelo banco em nada se assemelham a uma concessão de crédito à cliente, pelo que o seu eventual direito à restituição das quantias em causa tem de ser fundado nas operações bancárias que, em concreto, as determinaram, por forma a legitimar a sua cobrança. Argumentário que conduz à improcedência das razões aduzidas pelo Recorrente, saí advindo a confirmação da sentença recorrida, designadamente no tocante à invocada compensação pela Ré, cuja formulação subsidiária prejudica a sua análise (artigo 608º/2 ex vi artigo 663º/2, ambos do CPC). Regime de custas: As custas da apelação são suportadas pelo Autor apelante (artigo 527º/1 do CPC). V. Dispositivo Perante o relatado, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.Custas do recurso a cargo do Autor recorrente. * Porto, em 09 de outubro de 2018. Maria Cecília Agante José Carvalho Rodrigues Pires _______ [1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume, II, Coimbra Editora, 3ª ed., pág. 783. [2] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 782. [3] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 783. [4] Vasco Lobo Xavier e Ângela Coelho, Depósito bancário a prazo, levantamento antecipado, in RDES, ano 14, 1988, pág. 300. [5] Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, pág. 93. [6] Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, 2ª ed., pág. 447; Almeno de Sá, Direito Bancário, Coimbra Editora, 2008, pág. 18. [7] Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 500. [8] In www.dgsi.pt: Ac. de RL de 29.04.2010, processo 168061/08.9YIPRT.L1-6. [9] José Maria Pires, Direito Bancário, II, Rei dos Livros, pág.242; Menezes Cordeiro, ob. cit. pág. 541; in www.dgsi.pt: Ac. RL de 28.05.2015, processo 198/14.0TVLSB.L1.S1. [10] José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Juris (2004), pág. 317; in www.dgsi.pt: Acs. de STJ de 12.11.2009, processo 340/06.5TBPNH.C1.S1; RL de 13.09.2012, 4771/09.0YYLSB-A.L1.S1. [11] In www.dgsi.pt: Ac. da RL de 09.7.2014, processo 519/10.5TYLSB-BA.L1-6. [12] Paula Ponces Camanho, Contrato de Depósito Bancário, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, Direito Bancário, pág. 112. [13] Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 590. [14] In www.dgsi.pt: AC: do STJ de 12.11.2009, processo 340/06.5TBPNH.C1.S1. |