Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1378/23.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: PROVA PERICIAL
OBJETO DA PERÍCIA
Nº do Documento: RP202510281378/23.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A recorrente não pode invocar a omissão do convite ao aperfeiçoamento de requerimento probatório que não foi por ela apresentado.
II - Na fixação do objeto da perícia, os fundamentos para o juiz indeferir questões suscitadas pelas partes são os previstos no art. 476º nº 2 do C.P.C., ou seja, serem as mesmas inadmissíveis ou irrelevantes.
III - A perícia que o tribunal recorrido admitiu é uma perícia em pessoa para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psicofísica no âmbito do direito civil e as questões suscitadas pelas partes que não digam respeito a este tipo de perícia são inadmissíveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1378/23.3T8PVZ.P1

Sumário
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Na presente ação declarativa que AA move contra Dr. A..., S.A. e BB, e em que são intervenientes B..., S.A. e C... - Companhia de Seguros, S.A., a R. BB interpôs recurso do despacho proferido a 3 de outubro de 2025 que fixou o objeto da perícia, despacho esse do seguinte teor:
«A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam.
O perito apenas pode verificar o que existe à data da realização da perícia, o que já existiu e que seja verificável através de um qualquer registo ou sobre o que é provável que possa vir a acontecer e, aqui, sempre com um grau de previsibilidade relativo.
A perícia médico-legal deferida, a realizar à pessoa da A, pelo INML, é isso mesmo, perícia à pessoa, com vista a apurar de eventuais danos decorrentes do procedimento médico a que foi sujeita, não perícia ao procedimento médico em si.
Assim sendo, o Tribunal fixa como objeto da perícia, o seguinte:
- quesitos indicados pela A (fls. 11v a 13): 1, 6, 10 a 25, indeferindo-se os demais;
- quesitos indicados pela 1ª Ré (fls. 105v a 110): 7 a 9, 13, 39 a 42, 51, indeferindo-se os demais por se tratar de matéria conclusiva ou que não cabe no âmbito da perícia médico--legal.»
Na alegação de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
(…)
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Resulta dos presentes autos que, na petição inicial, foi requerido “Exame Médico Pericial à Autora a realizar no Instituto de Medicina Legal de Guimarães, para resposta aos quesitos” seguintes:
«1. É possível determinar a que tipo de exame e cirurgia a Autora foi submetida e os métodos utilizados na realização desse exame e cirurgia feitos no dia 9/03/2021 na Clínica Dr. A... em Santo Tirso?
2. Que tipo de procedimentos devem ser realizados antes da realização do referido exame e/ou cirurgia?
3. Que tipo de procedimentos devem ser realizados durante a realização do referido exame e/ou cirurgia?
4. Que tipo de procedimentos devem ser realizados após realização do referido exame e/ou cirurgia?
5. Após a realização do referido exame é necessário efetuar algum tratamento ou fazer alguma medicação?
6. Decorrência do exame e da cirurgia realizada à Autora, que condição clínica se veio a verificar?
7. Em que é que se traduz a condição clínica “Pneumoperitoneu volumoso”? A mesma pode decorrer da realização de uma colonoscopia e/ou de uma polipectomia endoscópica? É consequência de uma condição natural ou causada por mão humana?
8. Em linguagem mais simples, a situação clínica “Pneumoperitoneu volumoso” significa “rompimento ou perfuração do intestino”?
9. Essa condição clínica põe em perigo eminente a vida do doente? Pode provocar a falência de órgãos vitais? Pode provocar a morte?
10. É possível determinar e identificar que tipo de lesões foram causadas à Autora?
11. A que se deveram tais lesões?
12. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas, a Autora padece das seguintes sequelas?
i. Enorme fadiga para o desenvolvimento das mais elementares atividades, nomeadamente caminhar, subir escadas, falar, levantar-se, vestir-se, efetuar a sua higiene pessoal, carregar compras, fazer a limpeza doméstica;
ii. Dores ao nível da virilha;
iii. Falta de força dos membros inferiores, esquerdo e direito, não conseguindo estar muito tempo de pé;
iv. Parestesias e disestesias ao nível dos membros inferiores, com especial incidência na perna esquerda.
v. Desconforto em tarefas fisiológicas básicas do dia-a-dia, tais como defecar ou urinar.
13. As referidas sequelas exigem esforços suplementares no dia-a-dia da Autora, uma vez que apresenta limitações na realização de trabalhos pesados e mesmo em tarefas básica do dia-a-dia?
14. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas, a Autora viu a sua alimentação alterada, nomeadamente evitando comida condimentada, bebidas alcoólicas, sal, devendo fazer uma alimentação à base de cozidos e grelhados?
15. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas, que alterações houve nos atos da vida diária da Autora? E na vida afetiva, social e familiar?
16. Em consequência direta e necessária do exame efetuado, a Autora correu perigo de morte, sofreu de dores intensas e prolongadas quer no momento do acidente, como durante o internamento hospitalar e posteriormente, durante os tratamentos efetuados e ainda hoje sofre de dores?
17. Qual o quantum doloris?
18. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas e da cirurgia de que teve que ser objeto, a Autora padece de uma cicatriz de 2 cm na região lateral esquerda lombar, outra de 1 cm na parte inferior da região lateral esquerda lombar e outra de 3 cm na região umbilical?
19. Padece de algum dano estético? Qual o grau?
20. A realização de cirurgia laparoscopia exploradora com rafia da laceração a que foi alvo a Autora com anestesia geral, pode provocar dores fortes e inflamação na laringe?
21. Como consequência direta e necessária do acidente, a Autora ficou a padecer de uma Incapacidade Geral Permanente? De quanto?
22. É possível determinar o período de ITA?
23. Qual a data da consolidação médico-legal das lesões?
24. As lesões sofridas pela Autora impediam, durante o período da ITA, de realizar tarefas domésticas?
25. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas, a Autora sofre de perturbação psíquica por stress pós-traumático?»
Resulta também dos autos que, a 1 de julho de 2024, foi proferido despacho do seguinte teor:
“Por não impertinente nem dilatória, o tribunal admite a realização da perícia médico- -legal requerida pela A, a realizar pelo Gabinete Médico-Legal do INML de Guimarães.
Notifique-se as demais partes para se pronunciarem quanto ao objeto da perícia.”
Resulta ainda dos presentes autos que, notificadas para se pronunciarem sobre o objeto da perícia, a R. BB propôs a sua ampliação e a R. sociedade aderiu à perícia requerida pela A. com a ampliação proposta pela R. BB, sendo os quesitos apresentados os seguintes:
«1- O procedimento de colonoscopia em questão nos autos foi realizado a pedido da médica assistente da Autora, Dra. CC, conforme melhor resulta da requisição junta como documento nº 1 da contestação da 2ª Ré?
2- O procedimento de colonoscopia com polipectomia foi efectuado no âmbito de uma credencial de MCDT (“Meios complementares de diagnóstico e terapêutica”) do SNS (Serviço Nacional de Saúde), mais comumente apelidado de “P1”?
3- Esta credencial de MCDT de colonoscopia compreende um pacote de procedimentos que inclui a Colonoscopia Total, a Sedação e outros cinco procedimentos terapêuticos: a biopsia transendoscópica, a polipectomia endoscópica, a injeção de fármacos, a aplicação de clips e a tatuagem?
4- Este procedimento requisitado, no Centro de Saúde da Autora, pela sua médica de família, é considerado o “gold standard” na deteção de pólipos, especialmente porque proporciona a imediata ressecção endoscópica?
5- A colonoscopia promove o diagnóstico, permite a polipectomia, com estudo histológico subsequente e a pesquisa de lesões síncronas no cólon (lesões presentes simultaneamente no cólon)?
6- A acuidade diagnóstica da colonoscopia depende do atingimento do cego com boa visualização de toda a mucosa do cólon?
7- O diagnóstico constante do relatório da colonoscopia total realizada à Autora é de “Pólipo do Cólon”, cfr documento nº 1 junto com a petição inicial?
8- Este diagnóstico foi posteriormente confirmado no relatório do exame anatomopatológico efectuado na sequência da remoção do pólipo - “Pólipo cólico”, cf. documento nº 1 junto com a petição inicial?
9- O relatório do exame anatomopatológico conclui ainda que “Ao exame histológico observa-se adenoma tubular com displasia de baixo grau”, cfr. documento nº 1 junto com a petição inicial?
10- O procedimento de colonoscopia, com polipectomia, prescrito pela médica de família e realizado à Autora tinha, além da finalidade diagnóstica, uma finalidade terapêutica e após a comprovação histológica, uma finalidade curativa?
11- De acordo com a regulamentação da Direcção Geral de Saúde e de acordo com as guide lines nacionais e internacionais, a colonoscopia assume, nestas situações, um cariz terapêutico e quase sempre curativo no caso de presença de pólipos do cólon?
12- O tratamento curativo a que se refere a NOC nº ... de 31.03.2014 é a cirurgia endoscópica de excisão do pólipo (polipectomia) ou a cirurgia precoce nos casos de cancros iniciais, cfr. Documento nº 3 junto com a contestação da 2ª Ré?
13- O pólipo encontrado na Autora e que foi posteriormente analisado era um adenoma tubular?
14- A cirurgia endoscópica para remoção do pólipo (polipectomia) realizada à Autora insere-se no âmbito da credencial de MCDT de colonoscopia prescrita à Autora e envolve um pacote de procedimentos que inclui a Colonoscopia Total, a Sedação e outros cinco procedimentos terapêuticos: a biopsia transendoscópica, a polipectomia endoscópica, a injeção de fármacos, a aplicação de clips e a tatuagem?
15- E, já pressupõe que a Autora conheça, aquando da prescrição do pacote de colonoscopia pela médica assistente, o seu alcance, finalidade, riscos e benefícios?
16- O procedimento realizado à Autora traduz-se numa intervenção de natureza invasiva, implica a introdução e manuseamento do colonoscópio no organismo da paciente, possibilitando a observação do intestino com vista ao diagnóstico, terapêutica e cura, tais como, a recolha de fragmentos da mucosa (biópsia), a remoção de pólipos (polipectomia) ou outros?
17- Durante o procedimento a que a Autora foi submetida no dia 9 de março de 2021, foram adoptados os procedimentos adequados ao tipo de procedimento em causa – colonoscopia com sedação, seguido de polipectomia - e observadas as normas que a boa prática médica impõe?
18- Os procedimentos e práticas médicas descritos nos artigos 53º a 63º, 65º a 74º, 78º a 90º e 92º a 95º, 98º a 102º, 105º a 113º, estão de acordo com as legis artis para este tipo de procedimento?
19- O cólon é um órgão tubular muito tortuoso, com partes móveis e outras fixas, com forma, tamanho, áreas fixas e angulações que são variáveis de paciente para paciente, cf. Documento nº 13 junto com a contestação da 2ª Ré?
20- O cólon é uma víscera oca, o lúmen está frequentemente colapsado e as paredes “coladas” umas nas outras?
21- Para que o colonoscópio possa entrar e visualizar as paredes do intestino grosso em todos os ângulos é necessário provocar uma insuflação do mesmo, permitindo abertura do lúmen e adequada progressão do colonoscópio?
22- Dado que o cólon é tortuoso e móvel, o avanço do colonoscópio vai esticando o cólon, o que não permitiria completar a colonoscopia apenas desta forma, cf. Documento nº 14 junto com a contestação da 2ª Ré?
23- Dado que o cólon está ligado ao mesentério (um órgão em forma de membrana pregueada que fixa o cólon pelo seu exterior à parede da cavidade abdominal), e dada a forma variável do mesentério, a progressão resulta na formação de ansas variáveis, cf. Documento nº 15 junto com a contestação da 2ª Ré?
24- A formação de ansas e o estiramento do cólon impedem que a colonoscopia se faça apenas com o avanço do colonoscópio?
25- Assim, em paralelo com o avanço do colonoscópio (que estica o cólon), devem realizar-se recuos com o mesmo?
26- Através de complexas combinações de manobras nos vários comandos (com a mão esquerda) e com manobras no tubo de inserção (com a mão direita), o médico deve efectuar recuos com o objetivo de encolher o cólon sobre o colonoscópio – as designadas manobras de retilinização?
27- As manobras de retilinização são obrigatórias em todas as colonoscopias para impedir que o cólon estique, encolhendo-o sobre o colonoscópio e para desfazer as ansas, cf. Documento nº 16 junto com a contestação da 2ª Ré?
28- O avanço do colonoscópio através do cólon, um órgão tubular e tortuoso, consegue-se, portanto, com manobras de avanço (que esticam o cólon e fazem ansas) em conjunto com manobras de retilinização (que encolhem o colón e desfazem as ansas) cf. Documento nº 17 junto com a contestação da 2ª Ré?
29- A visualização da mucosa do cólon assume particular importância porquanto permite identificar a patologia que se procura– pólipos, cancros do cólon, etc.?
30- A colonoscopia deve ser considerada otimizada quando é alcançado o nível pretendido, designadamente, o cego, com excelentes condições de preparação, permitindo a observação cuidada da maior extensão da mucosa colorretal?
31- O “Cólon com arranhadura de gato” é um achado endoscópico raro que normalmente não tem implicações clínicas, e tende a ocorrer como resultado de traumatismo secundário à insuflação, frequentemente associado a situações de distensibilidade do cólon?
32- A identificação por parte do médico que executa o procedimento de “estrias de eritema friáveis” (com aspecto sugestivo de “arranhadura de gato” por eventual “barotrauma”) nas quais se constata simultaneamente erosão diminuta, com friabilidade, podem, por cautela, ser encerradas com clip hemostático para cessar hemorragia?
33- Na fase de retirada do colonoscópio, com progressão em sentido inverso desde o cego até ao ânus o cólon geralmente não tem ansas (está retilinizado)?
34- Quando se identifica patologia no cólon, são passados instrumentos terapêuticos através do canal de trabalho do colonoscópio (ansas de polipectomia, clips, pinças, …)?
35- Quando se está na presença de um pólipo séssil com 7 mm está conforme as legis artis utilizar a técnica de guilhotina (polipectomia com ansa sem corrente)?
36- Nos pólipos com 10 ou mais milímetros utiliza-se corrente de eletrocirurgia para remoção dos mesmos?
37- Nos pólipos com menos de 10 mm, a técnica de polipectomia com ansa sem corrente de eletrocirurgia diminui o risco de eventos adversos e é, portanto, a técnica recomendada de acordo com as leges artis?
38- No caso dos autos, atenta a configuração do pólipo e a sua situação concreta, a técnica de remoção utilizada pela 2ª Ré (técnica de guilhotina - polipectomia com ansa sem corrente) estava suportada pelas guide lines aplicáveis à data dos factos?
39- De acordo com a documentação clínica constante dos autos a Autora manteve os parâmetros vitais estáveis durante todo o procedimento realizado – a colonoscopia?
40- De acordo com a documentação clínica constante dos autos, não se verificaram quaisquer intercorrências durante a polipectomia, o pólipo foi recuperado para estudo histológico e a escara de polipectomia foi verificada quanto a sinais de complicações imediatas como perfuração ou hemorragia, bem como a presença de lesão (adenoma) residual, cfr. relatório da colonoscopia (documento nº 1 da petição inicial)?
41- De acordo com a documentação clínica constante dos autos a Autora não apresentou dor durante o recobro?
42- A histologia veio a revelar tratar-se de uma adenoma tubular com displasia de baixo grau (neoplasia intra-epitelial de baixo grau), sendo a exérese considerada curativa, cfr. Documento nº 1 junto com a petição inicial?
43- De acordo com a documentação clínica constante dos autos a 2ª Ré médica actuou de forma diligente, tendo empregado todas e as melhores providências exigidas para o procedimento em questão, atendendo ao estado da ciência e da técnica à data em que ocorreram os factos?
44- A perfuração do cólon é um evento adverso raro, mas conhecido, e é inerente à realização da colonoscopia, e não depende da técnica da colonoscopia ou da dificuldade da mesma?
45- De acordo com a revisão publicado em revista indexada, que avalia grandes estudos (≥ 50.000 colonoscopias) publicados desde 2000, é reportada uma taxa de perfuração relatada entre 0,005 a 0,085%, rara mas nunca desprezível, cfr. Documento nº 24 junto com a contestação da 2ª Ré?
46- O risco de perfuração associado à colonoscopia é superior na colonoscopia com polipectomia, como é amplamente reportado em vários estudos, designadamente da revisão sistemática e meta-análise junta como Documento nº 25 na contestação da 2ª Ré?
47- A localização do pólipo no cego constitui um factor independente que condiciona maior risco de perfuração?
48- Neste sentido, o estudo observacional sobre o risco de eventos adversos durante a colonoscopia com polipectomia reporta que a localização cecal (mas não em outras partes do cólon proximal) é um dos principais fatores de risco para perfuração, independentemente do tamanho do pólipo, cfr. Documento nº 26 junto com a contestação da 2ª Ré?
49- A presença de aderências pélvicas (frequentemente em relação com antecedentes de cirurgia abdominal/pélvica ou infecção) também contribuem para uma maior incidência de perfuração?
50- Neste mesmo sentido se pronuncia o estudo prospectivo com análise multivariada junta como Documento nº 27 com a contestação da 2ª Ré?
51- A Autora, do género feminino, foi submetida a uma colonoscopia diagnóstica e terapêutica, na qual foi identificado e removido um pólipo do cego?
52- De acordo com o alegado pela 2ª Ré médica na sua contestação, durante o procedimento foi realizada progressão cuidadosa do colonoscópio, constatando-se acentuada tortuosidade cólica, que através da aplicação de manobras de avanço e retilinização, combinadas com insuflação e aspiração de ar, foi possível totalizar a colonoscopia com progressão até ao cego?
53- E, face à acentuada tortuosidade cólica, revelou-se necessário transpor várias angulações do cólon, e constatou-se no cego aspectos sugestivos de “Arranhaduras de gato” («cat scratch colon»)?
54- Trata-se de um termo criado por McDonnell, em 2007, para se referir a estrias eritematosas brilhantes do cólon direito, semelhantes a arranhaduras de gato, observadas esporadicamente em exames endoscópicos, mais frequentemente devido a traumatismo por insuflação de ar em paredes do cólon menos distensível, e habitualmente sem significado patológico?
55- Não obstante a observação de todas as regras e cuidados que a legis artis impõe para este tipo de procedimento a perfuração do cólon, após a realização de uma colonoscopia, é rara, mas encontra-se descrita e pode manifestar-se tardiamente em relação ao procedimento?
56- O estudo multicêntrico reporta tempos para o diagnóstico de perfuração entre imediato e até 72h, cfr. Documento nº 27 junto com a contestação da 2ª Ré?
57- A técnica de polipectomia usada pela 2ª Ré consiste na técnica de polipectomia sem corrente (“polipectomia com ansa a frio”) que é considerada uma opção segura e eficaz para pequenos pólipos colorretais?
58- A mais recente diretriz clínica da Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal recomenda a polipectomia sem corrente como a técnica preferencial para remoção de pólipos até 10 m, cfr. Documento nº 28 com a contestação da 2ª Ré?
59- A perfuração do cólon após colonoscopia pode resultar apenas do normal movimento de passagem do colonoscópio a esse nível, não sendo antecipável ou evitável no decurso de uma colonoscopia?
60- A 2ª Ré actuou de acordo com as chamadas leges artis, tendo cumprido todos os deveres a que estava obrigada, designadamente, o de diligência e o de vigilância.
61- A ocorrência de uma perfuração do cólon durante o procedimento de colonoscopia, com polipectomia e sedação, constitui uma complicação rara (1/100000), não antecipável e que pode ocorrer mesmo com excelente técnica e não pode ser considerado "a priori" como erro técnico?»
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Por força do art. 613º nº 3 do C.P.C., o disposto no art. 615º do C.P.C. é aplicável “com as necessárias adaptações aos despachos”.
Nos termos do art. 615º nº 1 al. c) do C.P.C., “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
No tocante a esta causa de nulidade, “vem-se entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 2 de junho de 2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1).
Nas conclusões recursivas, pode ler-se:
“O despacho recorrido incorre em nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC), porquanto, entendendo que a perícia requerida foi apenas uma perícia à pessoa, com vista a apurar de eventuais danos decorrentes do procedimento médico a que a Autora foi sujeita, concomitantemente, deferiu quesitos exclusivamente relacionados com a análise dos procedimentos médicos adotados, como sejam os quesitos 1 da Autora e os quesitos 7 a 9, 39, 40, 42 e 51 da 2.ª Ré, o que implica a violação do chamado silogismo judiciário.”
Da fundamentação do despacho recorrido consta que “o perito apenas pode verificar o que existe à data da realização da perícia, o que já existiu e que seja verificável através de um qualquer registo ou sobre o que é provável que possa vir a acontecer e, aqui, sempre com um grau de previsibilidade relativo”.
O procedimento médico a que a A. foi sujeita “já existiu” e é “verificável através de um qualquer registo”.
Da fundamentação do despacho recorrido consta ainda que “a perícia médico-legal deferida, a realizar à pessoa da A, pelo INML, é isso mesmo, perícia à pessoa, com vista a apurar de eventuais danos decorrentes do procedimento médico a que foi sujeita, não perícia ao procedimento médico em si”.
A perícia ordenada pelo tribunal recorrido destina-se não só a apurar os danos, mas também o nexo de causalidade entre os danos e o procedimento médico a que a A. foi sujeita. É nessa medida que releva o procedimento médico para a realização da perícia ordenada pelo tribunal recorrido.
Ao empregar a expressão “perícia ao procedimento médico em si”, o tribunal recorrido certamente teve presente a questão da violação da leges artis e esta, no seu entender, não cabe no âmbito da perícia médico-legal ordenada: a perícia à pessoa da A.
Improcede, pois, a arguição da nulidade da decisão recorrida com fundamento na oposição entre os fundamentos e a decisão.
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Nas conclusões recursivas, pode ler-se:
“O Tribunal a quo não exerceu os seus deveres de gestão processual e inquisitório (artigos 411.º e 417.º do CPC), não diligenciando pelo suprimento de incongruências no requerimento probatório da Autora, nem no sentido de ver esclarecida a delimitação do objeto da perícia, assim se enfermando o despacho recorrido de nulidade, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 195.º do CPC.”
Nos termos do art. 195º nº 1 do C.P.C., “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
“É postulado tradicional, que o próprio Supremo tem várias vezes proclamado: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se (…). A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo” (Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 424)
“A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”.
“Se a justificação dos postulados é fácil, nem sempre é fácil fazê-los funcionar com segurança. Há casos nítidos em que a aplicação dos referidos princípios não dá lugar a embaraços.”
“Há outros casos em que o funcionamento concreto dos postulados jurisprudenciais levanta dúvidas. São os casos em que por trás da irregularidade cometida está um despacho, mas este não contem uma pronúncia expressa sobre a irregularidade” (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, pág. 507).
“… são possíveis três situações bastante distintas:
- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso - como aliás resulta expressamente da passagem transcrita de Alberto dos Reis -, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso.”
“No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.”
“O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida - hipótese em que o recurso é procedente - ou não há vícios da decisão impugnada - situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão- -surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula - isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer - ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual - situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.” - Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 28/01/2019, Jurisprudência 2018 (163) acessível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html
Da mesma forma, a omissão do convite ao aperfeiçoamento pode ser conhecida pelo tribunal ad quem se se comunicar à decisão recorrida, implicando a nulidade desta por excesso de pronúncia.
Na alegação recursiva, pode ler-se:
“Em face do patente contrassenso entre o corpo formal do requerimento probatório da Autora, em particular, por referência à prova pericial requerida, e os quesitos indicados por aquela, o Tribunal a quo podia (e devia), ao abrigo dos seus poderes-deveres de gestão processual e do inquisitório previstos, respetivamente, nos artigos 417.º e 411.º do CPC, ter notificado a Autora de modo a permitir que esta esclarecesse a que haveria, afinal, de reportar a perícia, ou, no limite, convidá-la a suprir as putativas deficiências do seu requerimento probatório.”
Por força do art. 197º nº 1 do C.P.C., “a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato”.
A recorrente não pode, pois, invocar a omissão do convite ao aperfeiçoamento de requerimento probatório que não foi por ela apresentado, pois o convite não podia ser dirigido à recorrente nem satisfeito por ela.
Quem podia invocar a omissão do convite ao aperfeiçoamento do requerimento probatório conformou-se com a decisão recorrida.
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Nos termos do art. 388º do C.C., “a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial”.
“O verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. IV, página 171).
Conforme dispõe o art. 476º nº 1 do C.P.C., “se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando- -lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição”.
Os únicos fundamentos para indeferir a realização da perícia são os previstos no art. 476º nº 1 do C.P.C., isto é, ser a diligência impertinente ou dilatória.
O tribunal recorrido não indeferiu a realização da perícia, mas sim algumas das questões propostas pelas partes.
Resulta do art. 476º nº 2 do C.P.C. que “incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.”
Os fundamentos para indeferir questões suscitadas pelas partes são os previstos no art. 476º nº 2 do C.P.C., ou seja, serem as mesmas inadmissíveis ou irrelevantes.
O tribunal recorrido admitiu a perícia médico-legal requerida pela A. e as questões suscitadas pelas partes que não digam respeito a esse tipo de perícia são inadmissíveis.
Por força do art. 467º nº 3 do C.P.C., “as perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta”.
Conforme resulta do art. 2º nº 1 do Regime Jurídico das Perícias Médico-legais e Forenses, “as perícias são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais e forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P. (INMLCF, I. P.), nos termos dos respetivos estatutos”.
Nos termos do art. 21º nº 4 do referido regime jurídico, “dado o grau de especialização dos médicos peritos e a organização das delegações e gabinetes médico-legais e forenses do INMLCF, I.P., deverá ser dada primazia, nestes serviços, aos exames singulares, ficando as perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada”.
O art. 9º nº 2 dos Estatutos do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. dispõe o seguinte:
“Ao Serviço de Clínica e Patologia Forenses compete, na unidade funcional da Clínica Forense, a realização de exames e perícias em pessoas:
a) Para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psicofísica, nos diversos domínios do Direito, designadamente no âmbito do Direito penal, civil e do trabalho, nas comarcas do âmbito territorial de atuação da delegação;
b) De natureza psiquiátrica e psicológica forenses;
c) Outros atos neste domínio, designadamente avaliações de natureza social.”
Por força do art. 11º nº 1 al. a) dos referidos estatutos, “aos Gabinetes Médico-Legais e Forenses compete a realização de exames e perícias em pessoas, para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psicofísica, nomeadamente, no âmbito do Direito penal, civil e do trabalho, bem como a realização de perícias de psiquiatria e psicologia forenses”.
Ao conselho médico-legal podem ser pedidos “pareceres sobre questões técnicas e científicas no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses” (art. 7º nº 1 al. b) da Lei Orgânica do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P.).
Conforme resulta do art. 5º nº 1 do Regulamento do Conselho Médico Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., o pedido de parecer pode ser indeferido liminarmente “com fundamento na impossibilidade objetiva de apreciação pelo CML, por défice de registos clínicos imprescindíveis à apreciação do processo em questão”.
O conselho médico-legal não examina pessoas, mas sim registos clínicos.
Se o parecer do conselho médico-legal tem ou não valor de prova pericial é questão que não releva para a decisão do presente recurso. Relevante é que a perícia que o tribunal recorrido admitiu é uma perícia em pessoa para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psicofísica no âmbito do direito civil e as questões suscitadas pelas partes que não digam respeito a este tipo de perícia são inadmissíveis.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.

Porto, 28 de outubro de 2025
Maria do Céu Silva
Alberto Taveira
Raquel Correia de Lima