Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7332/24.0T9MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA NATÉRCIA ROCHA
Descritores: NA FASE DE INQUÉRITO A INTERVENÇÃO DO JUIZ É PROVOCADA
NÃO OBSTANTE PARA CERTOS ATOS A SUA COMPETÊNCIA É EXCLUSIVA
NOS ATOS DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO JUIZ COMPETE AOS FUNCIONÁRIOS EXECUTAR AS DECISÕES
Nº do Documento: RP202510157332/24.0T9MAI.P1
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Durante o inquérito, a intervenção do juiz é sempre provocada (artigo 268.º, n.º 2, do Código Processo Penal), tipificada na lei e limitada a específicos atos da sua competência que contendam com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
II - A decisão em causa nos autos, - condenação em sanção processual, nos termos do artigo 116.º, n.º 1 do Código de Processo Penal-, é ato da competência exclusiva do juiz de instrução (cf. art.º 268.º, n.º 1, al. f) e art.º 116.º, ambos do Código de Processo Penal).
III - Nos atos da sua competência exclusiva cabe-lhe a si ou aos funcionários sob sua dependência executar as suas decisões.
IV - E é exatamente essa a interpretação que resulta do disposto no artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), no artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 27/2025, de 20 de março, e no artigo 157.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Inq. n.º 7332/24.0T9MAI.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal da Maia – J1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
No âmbito do Processo de Inquérito n.º 7332/24.0MAI a correr termos no Juízo Local Criminal da Maia (J1), foi proferido o seguinte despacho judicial:
“A multa processual foi aplicada na fase de inquérito.
A liquidação da referida multa é, assim, liquidada pelos serviços do Ministério Público, após trânsito em julgado da respetiva decisão.
Pelo exposto, decidindo em conformidade, determino a devolução dos autos aos serviços do Ministério Público”.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1. O Ministério Público, não se conforma com o despacho judicial de 27-05-2025 (Referência Citius: 472318164) que decidiu que compete aos Serviços do Ministério Público a liquidação da sanção processual aplicada, nos termos do artigo 116.º, n.º 1 do C.P.P., a AA por despacho judicial de 17-03-2025.
2. Nos termos conjugados do disposto no artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto; no artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 27/2025, de 20 de março e no artigo 157.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, compete às secretarias dos tribunais executar os despachos judiciais.
3. A circunstância de determinado despacho judicial ter sido proferido durante a fase de inquérito não leva a que a competência para o executar se transfira para os oficiais de justiça afetos à secretaria do Ministério Público, até porque não estando estes funcionários na dependência funcional dos senhores juízes não poderiam receber ordens
para praticar os atos processuais em causa.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine sejam os oficiais de justiça afetos ao Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 1 a proceder à liquidação e emissão de guias para pagamento da sanção processual aplicada a AA, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 1 do C.P.P.

Neste Tribunal de recurso a Digna Procurador-Geral Adjunta no parecer que emitiu e que se encontra nos autos, pugna pela procedência do recurso.

Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado com interesse para a decisão.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais que constam dos autos:
1) Por despacho de 17.03.2025, e na sequência de promoção do Ministério Público, a Mm.ª Juiz do Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 1, nas vestes de Juiz de Instrução Criminal, condenou, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 1 do C.P.P., AA em 2 (duas) UC por ter faltado injustificadamente a diligência processual para a qual tinha sido regularmente notificado.
2) Após ter sido proferido despacho de arquivamento do inquérito, foram os presentes autos remetidos ao Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 1 para liquidação da referida multa processual.
3) Em 27.05.2025, foi proferido o seguinte despacho judicial:
“A multa processual foi aplicada na fase de inquérito.
A liquidação da referida multa é, assim, liquidada pelos serviços do Ministério Público, após trânsito em julgado da respetiva decisão.
Pelo exposto, decidindo em conformidade, determino a devolução dos autos aos serviços do Ministério Público”. (…)”.

Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).

A questão que cumpre apreciar é a de saber quem deverá executar os procedimentos materiais para a liquidação da sanção processual aplicada, nos termos do artigo 116.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, por despacho judicial previamente proferido realizado em fase de inquérito.

Vejamos.
Para fundamentar o seu recurso o magistrado recorrente alega que a circunstância de determinado despacho judicial ter sido proferido durante a fase de inquérito não leva a que a competência para o executar se transfira para os oficiais de justiça afetos à secretaria do Ministério Público, até porque não estando estes funcionários na dependência funcional dos senhores juízes não poderiam receber ordens para praticar os atos processuais em causa.
Ora, o dissídio no caso concreto limita-se à questão de saber quem deverá executar os procedimentos materiais do cumprimento do despacho judicial previamente proferido, ou seja, para cumprimento dos atos de competência exclusiva do juiz, ainda que realizados em fase de inquérito, sendo que a resposta terá que ser necessariamente no sentido defendido pela aqui recorrente, ou seja, competirá ao juiz e funcionários afetos à secção judicial de instrução criminal ou afetos à secção judicial do Juízo Local Criminal que, sob as vestes, de Juiz de Instrução profere o despacho.
Sem dúvida que a direção do inquérito cabe, em exclusivo, ao Ministério Público, que decide sobre os atos de investigação a realizar e impulsiona a intervenção do Juiz de Instrução nos casos previstos na lei processual penal (artigos 268,º e 269.º do Código Processo Penal), conforme resulta da norma prevista no artigo 263,º do Código Processo Penal em consonância com as normas constitucionais que consagram a estrutura acusatória do processo penal e a autonomia do Ministério Público (cf. respetivamente artigos 32..º, n.º 5, e 219.º, n.º 2, da CRP).
Também é sabido que o Ministério Público tem funcionários na sua dependência funcional (art.º 18.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26.08), dispondo de uma secretaria e serviços próprios (ver, também, DL 49/2014, de 27.03).
Durante o inquérito, a intervenção do juiz é sempre provocada (artigo 268.º, n.º 2, do Código Processo Penal), tipificada na lei e limitada a específicos atos da sua competência que contendam com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Nos atos da sua competência exclusiva cabe-lhe a si ou aos funcionários sob sua dependência executar as suas decisões (artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013, de 26.08 e artigo 41.º, n.º 3 do DL n.º 49/2014 de 27.03 que regulamenta a Lei n.º 62/2013, de 26.08).
A decisão em causa nos autos, - condenação em sanção processual, nos termos do artigo 116.º, n.º 1 do Código de Processo Penal-, é ato da competência exclusiva do juiz de instrução (cf. art.º 268.º, n.º 1, al. f) e art.º 116.º, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, por conseguinte, sendo a condenação em sanção processual, nos termos do artigo 116.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, de competência exclusiva do juiz de instrução, a sua decisão será executada pelo juiz e/ou pelos funcionários que estão na sua dependência funcional e não pelo Ministério Público e/ou seus funcionários.
E é exatamente essa a interpretação que resulta do disposto no artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), no artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 27/2025, de 20 de março, e no artigo 157.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Nesta medida, é inequívoco que os oficiais de justiça cumprem os despachos proferidos pelo magistrado de que dependem em termos funcionais.
Ora, ainda que o despacho judicial em crise tenha sido proferido na fase de inquérito a sua execução compete aos oficiais de justiça que estão na dependência do magistrado judicial que proferiu a decisão.
Carece, pois, de cabimento e fundamento legal o entendimento do Tribunal a quo.
Já vários arestos se pronunciaram no sentido do entendimento por que pugnamos, embora versando sobre questões concretas diversas, designadamente o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.06.2006, o Ac. da Relação do Porto de 06.11.2019, e Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2022 e de 09.03.2022, e, entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/5/2024, proc. n.º 418/23.0T9VFR.S1, relatado pela Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, todos disponíveis in www.dgsi.pt, o
Nestes termos, entendemos que o recurso merece provimento, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine sejam os oficiais de justiça afetos ao Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 1 a proceder à liquidação e emissão de guias para pagamento da sanção processual aplicada a AA, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam a decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine sejam os oficiais de justiça afetos ao Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 1 a proceder à liquidação e emissão de guias para pagamento da sanção processual aplicada a AA, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Sem custas.

Porto, 15 de outubro de 2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Natércia Rocha
Raúl Esteves
Amélia Carolina Teixeira