Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
81/21.3PFMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CARTA DE CONDUÇÃO EMITIDA NO ESTRANGEIRO
Nº do Documento: RP2023110881/21.3PFMT.P1
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Do n.º 5 do artigo 125º do Código da Estrada, na redação introduzida pelo Decreto-Lei nº 46/2022 de 12 de julho (aplicável retroativamente enquanto lei mais favorável), pode concluir-se que constituem requisitos necessários e cumulativos do carácter habilitante para a condução de veículos em território nacional, de aplicação aos títulos emitidos pelos Estados membros da O.C.D.E. ou da C.P.L.P. os seguintes: que o titular tenha mais de 18 de idade; e que o título se encontre válido e não apreendido, suspenso, caducado ou cassado por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 81/21.3PFMTS.P1


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO
No processo comum n.º81/21.3PFMTS do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3, por sentença proferida em 2/6/2023, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal p. e p. pelo art.3.º, n.ºs 1 e 2 do DL 2/98, de 3/1, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1 - Afigura-se ao ora recorrente que a douta sentença proferida nos autos de Processo Comum Singular acima identificado, que condenou o recorrente AA pela prática, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelos artigos 3º nº1 e 2 do DL nº 2/98, de 03 de Janeiro de 1998, artigo 121º nº1, artigo 122º nº 2 e 3 e artigo 124º do Código da Estrada, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de €360,00, para além das custas do processo.
2 – Tal condenação teve por base uma errada apreciação dos elementos probatórios recolhidos, e por uma errada interpretação do Direito e da Lei, pelo que tem que se discordar da douta decisão proferida naqueles termos.
3. – A decisão agora posta em causa é, face a todo o conteúdo da audiência, as declarações do arguido e à lei em vigor à data dos factos e aplicável nos presentes autos, incompreensível, inaceitável e em nada abonatória de um sistema judicial que se quer credível, isento e justo, sendo este recurso a manifestação do sentimento de revolta e injustiça que se apoderou do arguido/recorrente AA em face da decisão ora recorrida.
4 – No dia 13 de setembro de 2021, pelas 10h e 30m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-MS na Avenida o comércio do ... em Matosinhos, quando foi fiscalizado pelos agentes da autoridade.
5- À data, o arguido não era titular de documento válido português que o habilitasse para o exercício da condução
6 - O arguido foi titular de carta de condução emitida pela DETRAN da República Federal do Brasil com data de validade até 30/03/2020.
7 – Tal como sucedeu em Portugal, durante a pandemia, as cartas de condução no brasil que caducavam em 01/03/2020 foram prorrogadas até 31-12-2021.
8 – Assim a data dos factos a carta de condução emitida pela República Federal do Brasil do arguido encontrava-se ainda válida.
9 – Acontece que o DL nº 46/2022, de 12 de julho, que entrou em vigor no dia 1 de agosto de 2022, visou como expressamente se prevê no respetivo artigo 1º, alterar o Código da Estrada com vista a conceder habilitação à condução de veículos a motor em território nacional dos detentores de títulos de condução emitidos por Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico (OCDE).
10 - A República Federativa do Brasil e a República Portuguesa subscreveram a Convenção de Viena de 8 de Novembro de 1968, sobre circulação rodoviária.
11 - O artigo 2º do DL n.º 46/2022, de 12/07, alterou o artigo 125º do Código de Estrada (aprovado pelo DL nº114/94 de 3 de Maio).
12- Determina agora o referido artigo 125º sob a epigrafe de “outros títulos” que:
1 - Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:
i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;
ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade;
13 - Convocando agora as normas aplicáveis, diremos que, são pressupostos de aplicação aos títulos elencados no nº1 do artigo 125º do Código da Estrada, na sobredita redação, conforme se dispõe no nº5 do mesmo artigo:
a) - Que o titular tenha a idade mínima legal imposta pela lei portuguesa para a condução de veículos automóveis;
b) – Que o título se encontre válido e não apreendido, suspenso, caducado ou cassado por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicada ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor
14- O arguido porque nascido em 1991 tinha mais de 18 anos quando foi fiscalizado no exercício da condução automóvel, pelo que, verificado está o 1º pressuposto.
15 - Por outro lado, o título de que é titular emitido pela DETRAN da República Federal do Brasil, como dele próprio consta, caducou em 30/03/2020, mas foi prorrogado até ao dia 31/12/2021.
16 - Assim podia o arguido conduzir validamente com a sua carta brasileira no território português por estar a mesma válida.
17- Nesses termos o arguido não praticou o crime de que vem acusado.
18 – Por isso deve o arguido ser absolvido do crime de condução sem habilitação legal.
Contudo se assim não se entender,
19 - Constando a caducidade do próprio título, a mesma resulta, automaticamente, da decisão administrativa que o emitiu, ou, no limite, na disposição que no direito Brasileiro fixa tal prazo de caducidade.
20 – Nesse caso, não está, pois, verificado o 2º pressuposto em referência, não podendo o arguido conduzir em território Nacional, já que o título que a habilita para o exercício da condução embora válido, está caducado.
21 - Caímos então na previsão do nº 8 do referido artigo 125º, (na redação DL n.º 46/2022, de 12/07).
22 - Com efeito, o arguido é titular de um título de condução emitido pela DETRAN da República Federal do Brasil, válido, mas caducado, pelo que a sua conduta preenche a contraordenação prevista neste preceito legal, sancionável com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.
23 - Em suma, a atual redação do nº 5 do artigo 125º do Código da Estrada, conjugado com o disposto no nº 8 do mesmo artigo demonstra ter o legislador afastado a tipicidade da conduta praticada pela arguida com referência ao artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, antes a subsumindo à contraordenação prevista no nº 8 do referido normativo, razão pela qual não pode, (até por força do princípio da aplicação imediata da lei penal mais favorável consagrado no art. 2º, nº 4 do Cód. Penal, para quem entenda que, no momento da prática dos factos a conduta da arguida era subsumível ao ilícito tipificado no artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) ser o arguido condenado pelo crime de que vinha acusado.
TERMOS EM QUE V. EXAS. DEVERÃO CONCEDER PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E EM CONSEQUÊNCIA:
ABSOLVER O ARGUIDO DO CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL A QUE FOI CONDENADO, CONSIDERANDO QUE A DATA DOS FACTOS A SUA CARTA DE CONDUÇÃO AINDA SE ENCONTRAVA VALIDA POR MOTIVOS DE COVID.
OU NA EVENTUALIDADE DE SE ENTENDER QUE A CARTA DE CONDUÇÃO ESTAVA CADUCADA A DATA DOS FACTOS, ABSOLVER O ARGUIDO DO CRIME DE QUE VINHA ACUSADO EM VIRTUDE DA DESPENALIZAÇÃO DA CONDUTA ILICITA.
TAL COMO SE CONTEMPLA NAS CONCLUSÕES ADUZIDAS, FAZENDO ASSIM VOSSAS EXCELÊNCIAS INTEIRA, SÂ E COSTUMADA JUSTIÇA!
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pelo não provimento do recurso (referência 81531).
Admitido o recurso e remetidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto, foi aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, tendo a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente e em consequência revogada a sentença recorrida, uma vez que a conduta do arguido foi descriminalizada por força da nova redação dada ao art.125.º do C.Estrada pelo DL n.º46/2022, de 12/7 (referência 17264383).
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, o arguido apresentou resposta ao parecer, manifestando a sua concordância com o mesmo quanto à descriminalização da sua conduta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.


II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos a que se seguiu a respetiva fundamentação:
“Factos provados
1) O arguido AA é nacional da República Federativa do Brasil e encontra-se em Portugal desde, pelo menos, 01.08.2019, não tendo, porém, estatuto de residente.
2) O arguido AA foi titular de carta de condução, emitida pela República Federativa do Brasil, que perdeu a sua validade no dia 30.03.2020.
3) No dia 13.09.2021, pelas 10h30m, o arguido AA conduziu o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca “Volkswagen”, modelo ..., com a matrícula ..-..-MS, na Avenida ...”, em Matosinhos.
4) Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA conduziu o mencionado veículo automóvel sem ser possuidor de carta de condução válida, ou qualquer outro documento que o habilitasse para tal.
5) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo não lhe ser permitido conduzir em via pública, tal como fez, sem ser possuidor da necessária carta de condução válida ou outro documento que o habitasse para tal, o que representou, quis e conseguiu.
6) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
7) Mais se apurou quanto ao arguido que:
8) É barbeiro, exercendo tais funções por conta própria.
9) Aufere o rendimento médio mensal de €1.000,00.
10) A sua companheira encontra-se desempregada.
11) Tem dois filhos, um com 7 anos e outro com 4 meses de idade.
12) Contribui para o sustento do seu filho de 7 anos, que vive com a mãe no Brasil, com a quantia mensal de cerca de €200,00.
13)Vive com a sogra, a companheira e o filho mais novo, em casa da primeira, contribuindo para as despesas domésticas com a quantia mensal de €200,00.
14) Nunca foi condenado pela prática de crimes.

Factos não provados
Inexistem.

Motivação
Na formação da sua convicção o Tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com o preceituado no artigo 127.º do CPP.
O arguido esteve presente durante a audiência de julgamento, tendo confessado os factos, integralmente e sem reservas.
Tais confessados resultam igualmente da prova documental, a saber, print do registo de propriedade – fls. 13; informação prestada pelo SEF – fls. 44; Carteira Nacional de Habilitação emitida pela República Federativa do Brasil – fls. 48.
As condições pessoais do arguido resultaram novamente dos factos por si declarados, os quais se nos afiguraram sinceros, sem que tivessem sido infirmados por outra prova.
A ausência de antecedentes criminais está certificada no CRC atualizado junto aos autos.”

Apreciação
É entendimento uniforme da jurisprudência que o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.
Atentas a motivação e as conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto – art.410.º, n.º2, alínea a) do C.P.Penal – e impugnação dos pontos 2, 4 e 5 dos factos provados
- errada qualificação jurídica dos factos

1ªquestão: na tese recursiva, a sentença enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, porquanto houve omissão de pronúncia sobre factos alegados pela defesa relevantes para a decisão, pois resulta das declarações do arguido, que a carta de condução de que é titular, emitida pelas autoridades brasileiras, terá caducado em 30 de março de 2020, em plena pandemia, mas que o Estado Brasileiro prorrogou a validade dos documentos caducados durante esse período. Porém, nos factos dados como provados, o tribunal apenas deu como assente que a carta de condução brasileira havia caducado em 30 de março de 2020, quando de acordo com informação publicada no site da Detran do Brasil as cartas de condução caducadas a 1 de março de 2020 têm validade prolongada até ao dia 31/12/2021.
Do mesmo passo, o arguido impugna os pontos 2, 4 e 5 dos factos provados, transcrevendo as declarações que prestou.
O recorrente confunde a impugnação ampla da matéria de facto com a revista alargada, pois embora pretenda a reapreciação da prova gravada, transcrevendo as suas declarações, invoca o vício do art.410.º, n.º2, alínea a), do C.P.Penal.
É consabido que a matéria de facto pode ser impugnada por duas formas: invocando os vícios do art. 410.º, n.º2, do C.P.Penal, a designada “revista alargada” ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.º3 e 4, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido art. 410.º, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.Penal.
O recurso que impugne amplamente a matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, uma reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, destinando-se a corrigir erros manifestos de julgamento quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Por isso, quando o recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, de acordo com o disposto no citado normativo, tem de especificar:
- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que implica a individualização de cada um dos factos impugnados.
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que só fica satisfeito, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição atualizada, pág.1131, «com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida».
Além disso, o recorrente tem de expor a razões pelos quais essas provas impõem decisão diversa da recorrida. Este é «o cerne do dever de especificação», com o que se visa impor ao recorrente «que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado» (ob.cit.).
Assentes estas noções, atentemos no invocado vício previsto no art.410.º, n.º2, alínea a) do C.P.Penal
Dispõe o art.410.º, n.º2, do C.P.Penal «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.
No caso presente, em face do texto da decisão recorrida os factos apurados são suficientes para a decisão proferida e aquele facto que o recorrente entende que se tinha de apurar - prorrogação do prazo de validade dos documentos - não resulta necessário de acordo com o teor daquela.
Em relação à impugnação ampla da matéria de facto, o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada previsto no art.412.º n.º3 e 4 do C.P.Penal, uma vez que não discriminou relativamente a cada um dos factos que considera incorretamente julgado as concretas passagens em que se funda a impugnação e que impõem uma decisão diversa da recorrida, limitando-se antes a transcrever as suas declarações.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
2ªquestão: sustenta o recorrente que o tribunal não fez um adequado enquadramento jurídico dos factos, uma vez que não cometeu qualquer ilícito, pois a sua carta de condução não estava caducada, tendo o prazo de validade sido prorrogado até 31/12/2021 em virtude da pandemia da Covid.
Caso o tribunal assim não entenda, defende o recorrente que a sua conduta, com a entrada em vigor do DL n.º46/2022, de 12 de julho, passou a constituir uma contraordenação nos termos do art.125.º do C.Estrada.
Apreciemos, antes de mais, a questão do prazo de validade da carta de condução do arguido, mais precisamente da carteira nacional de habilitação como se designa no Brasil, ter ou não expirado aquando da ação de fiscalização pelos agentes da PSP.
Nos termos do art.121.º, n.º 1, do Código da Estrada «Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.»
Por outro lado, de acordo com o Despacho nº 10942/2000 de 21/3/2000, publicado no Diário da República n.º 123/2000, Série II de 27/5/2000, é reconhecida em Portugal a carteira nacional de habilitação (carta de condução emitida no Brasil) nos mesmos termos em que nesse país se reconhece a nossa carta de condução, estabelecendo-se no referido despacho: «As carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada.»
Como a habilitação para a condução só é reconhecida se a carta nacional de habilitação se apresentar dentro do prazo de validade, cabe apreciar se a CNH de que o arguido era titular tinha caducado ou não quando foi fiscalizado.
Nos termos do ponto 2 dos factos provados, a validade da CNH de que o arguido é titular expirou em 30/3/2020, aliás, conforme consta da cópia junta a fls.48 dos autos.
No entanto, em 24/3/2021, foi publicada a Portaria Contran n.º208, do Conselho Nacional de Trânsito e aplicável a todos os condutores habilitados pelo órgão executivo de trânsito do Estado de São Paulo, que prorrogou por tempo indeterminado «o prazo para renovação das Carteiras Nacionais de Habilitação (CNH) e das Autorizações para Conduzir Ciclomotor (ACC) vencidas desde 1º de março de 2020 e com vencimento a partir da data de publicação desta Portaria».
Como se refere no Ac.R.Porto de 5/7/2023, proc.n.º15/21.5PGGDM.P1, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, «Com tal prorrogação, tal como aconteceu em Portugal por ocasião e, em consequência do estado de pandemia, as CNH cuja validade expirou desde 01.03.2020 e que viessem a expirar até à data da revogação da referida Portaria, permitiam que os seus titulares continuassem a conduzir na via pública veículos para os quais se encontrassem habilitados (embora com os respetivos títulos formalmente expirados).
Ou seja, tudo se passava como se tais títulos permanecessem plenamente válidos.»
Ora, a Portaria Contran n.º208 foi revogada pela Deliberação Contran n.º243, de 8 de novembro de 2021, referendada pela Resolução Contran n.º894, de 13 de dezembro, que estabeleceu que as CNH cujo prazo de validade expirava em março e abril de 2020 , tinham que ser renovadas até 31 de dezembro de 2021.
Revertendo ao caso vertente, a validade da CNH do arguido expirava em 30/3/2020, mas por força da Portaria Contran nº 208, de 24/3/2021, o arguido continuava habilitado a conduzir no Brasil. Continuando habilitado a conduzir nesse país, face ao despacho nº10942/2000, será de concluir que o arguido se encontrava habilitado a conduzir em Portugal quando foi fiscalizado.
Porém, este raciocínio tem de ser conjugado com o disposto no art.125.º, n.º3, do Código da Estrada, na versão em vigor aquando dos factos, uma vez que o arguido estava em Portugal desde 1/8/2019 e tinha o estatuto de não residente.
O art.125.º do Código da Estrada reconhece a validade de alguns títulos habilitantes emitidos no estrangeiro para a condução em Portugal, embora os sujeite a determinados requisitos.
À data da prática dos factos imputados ao arguido, o art. 125.º do Código da Estrada tinha a seguinte redação:
«1 - Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a)-Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b)- Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c)- Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
d)- Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;
e)-Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
f)- (Revogada)
g)- Licenças especiais de condução;
h)- Autorizações especiais de condução;
i)- Licença de aprendizagem.
2– A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3– Os titulares das licenças referidas nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor, em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4– Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5– Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação.
6– (Revogado.)
7– (Revogado.)
8– Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.»
Assim, embora a CNH de que o arguido era titular o habilitasse a conduzir em Portugal, quer por força da alínea c), quer da alínea d) do nº 1 do art.125.º, uma vez que a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa subscreveram a Convenção de Viena de 8 de Novembro de 1968, sobre circulação rodoviária, para além de Portugal ter reconhecido em condições de reciprocidade os títulos de condução emitidos pelo Brasil através do Despacho nº 10942/2000, e dado que o arguido tinha o estatuto de não residente, só estava autorizado a conduzir em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada em Portugal. Ora, o arguido já se encontrava em Portugal há mais de um ano quando ocorreu a operação de fiscalização, pelo que incorreu na contraordenação prevista no n.º8 do citado art.125.º do Código da Estrada, punível com coima de € 300,00 a € 1.500,00.
Em 1 de agosto de 2022, entrou em vigor o DL n.º 46/2022, de 12/7, cujo art.2.º alterou o art.125.º do Código de Estrada, o qual passou a ter a seguinte redação:
«1 - Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:
i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;
ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade;
d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
e) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;
f) (Revogada)
g) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
h) Licenças especiais de condução;
i) Autorizações especiais de condução;
j) Licença de aprendizagem.
2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor (sublinhado nosso).
6 - (Revogado)
7 - (Revogado)
8 - Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.»
Como se escreveu no Ac.R.Évora de 15/11/2022, proc. n.º 1718/21.0GBABF.E1, « (…) são pressupostos de aplicação aos títulos elencados no n.º1 do artigo 125.º do Código da Estrada, na sobredita redacção, conforme se dispõe no nº5 do mesmo artigo:
a - Que o titular tenha a idade mínima legal imposta pela lei portuguesa para a condução de veículos automóveis;
b – Que o título se encontre válido e não apreendido, suspenso, caducado ou cassado por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicada ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.»
No caso em apreço, o arguido nasceu em .../.../1991, pelo que tinha 30 anos quando foi fiscalizado no exercício da condução automóvel, assim estando verificado o primeiro pressuposto.
Por outro lado, é titular de carta de condução emitida pela República Federal do Brasil, a qual caducava em 30/3/2020, mas que por força da Portaria Contran nº 208, de 24/3/2021, conjugada com a Deliberação Contran n.º243, de 8 de novembro de 2021, referendada pela Resolução Contran n.º894, de 13 de dezembro, e com o despacho n.º10942/200, o arguido continuava habilitado a conduzir no Brasil até 31 de dezembro de 2021 e por consequência também em Portugal até essa data.
Assim sendo, mostra-se verificado também o segundo pressuposto.
Em conclusão, ao abrigo do art.125.º, n.ºs 1, alínea c) e 5 do Código da Estrada, na redação introduzida pelo DL n.º46/2022, de 12/7, o arguido estaria habilitado a conduzir em Portugal, não incorrendo em contraordenação.
Nos termos do art.3.º, n.º2, do RGCOC, aplicável ex vi art.132.º do Código da Estrada « Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.».
Pelo exposto, estava o arguido devidamente habilitado a conduzir em território nacional face à aplicação da lei nova mais favorável, pelo que se impõe a procedência do recurso.

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA e em consequência, revogando a sentença recorrida, absolvê-lo da prática do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal p. e p. pelo art.3.º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º2/98, de 3/1.

Sem custas.

(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)



Porto, 8/11/2023
Maria Luísa Arantes
Pedro Afonso Lucas
Eduarda Lobo