Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6491/22.1T8MAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: PERSI
HERDEIROS DO MUTUÁRIO
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RP202409126491/22.1T8MAI-A.P1
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ainda que os executados (que adquiriram a posição de mutuários mortis causa) só respondam até ao valor das forças da herança do primitivo mutuário, beneficiam da proteção proporcionada pelo PERSI, quando tenham a qualidade de consumidores (tal como o falecido mutuário), ao menos quando a situação de incumprimento é ulterior à data da abertura da sucessão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 6491/22.1T8MAI-A.P1 – Apelação
Tribunal a quo: Juízo de Execução da Maia – Juiz 2



Recorrente(s): Banco 1..., S.A.
Recorrido(a/s): AA e BB



Sumário:
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:



I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

Por apenso à execução contra si instaurada pelo Banco 1..., S.A., na qualidade de herdeiros da primitiva mutuária, vieram AA e BB deduzir embargos de executado, pedindo para “serem os embargantes absolvidos integralmente do pedido”.
Para tanto, alegaram, além do mais, no que para o julgamento da apelação releva, “que o Banco 1... estava obrigado a integrar os executados e ora embargantes no PERSI, mas (…) tal não aconteceu, razão pela qual se verifica uma exceção dilatória inominadas”.

Notificada, a embargada contestou, sustentando que “a definição legal de cliente bancário não é extensível aos executados e a sujeição dos herdeiros à integração no PERSI não está expressamente consagrada na lei, por opção do legislador (ao contrário do fiador)”. Acrescenta que “o banco exequente, deu cumprimento ao regime obrigatório do PERSI, (…) no que diz respeito (…) à devedora primitiva.”
Na fase intermédia do processo, o tribunal a quo julgou os embargos procedentes, concluindo nos seguintes termos:
Nos termos e pelos fundamentos expostos procedem os presentes embargos em face da procedência da exceção dilatória inominada invocada pelos embargantes com a sua consequente absolvição da instância executiva.

Inconformada, a embargada apresentou o presente recurso de apelação desta decisão, concluindo, no essencial:
c) A sujeição dos herdeiros no PERSI não está expressamente consagrada na lei, por opção do legislador. (…)
e) Ora, o referido procedimento só se aplica diretamente aos clientes bancários, o que não é o caso, porquanto, os executados herdeiros não se configuram enquanto mutuários, nem adquiriram essa qualidade por via da morte da devedora primitiva, quer também por substituição nos contratos, e por essa razão, não reúnem os requisitos legais para integração no PERSI.
f) Sendo certo que a responsabilidade dos herdeiros, fica integralmente limitada aos bens que compõem a herança (…), pelo que, não se verificam os perigos de endividamento excessivo que se visa impedir com a aplicabilidade do PERSI, motivo pelo qual, também por esta via o legislador não sujeitou essa obrigatoriedade acerca da integração dos herdeiros em PERSI.

Os apelados não contra-alegaram.

Após os vistos legais, cumpre decidir.


II – Objeto do recurso:

Atentas as conclusões das alegações de recurso, que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil, a questão de direito a apreciar consiste na aplicabilidade do PERSI aos herdeiros do primitivo mutuário.
Acresce a decisão sobre a responsabilidade pelas custas.


III – Fundamentação:

É a seguinte a matéria de facto (considerada na decisão recorrida e oficiosamente, nos moldes infra explicitados) relevante para a apreciação do mérito do recurso (procedendo-se, para melhor apreensão, à identificação do tema da factualidade em causa incluída nos factos provados).


Factos provados

1. Celebração do contrato de mútuo

1 – No exercício da sua atividade bancária, o Banco 2..., S.A. (Banco 2...), celebrou com os mutuários CC e DD, por escritura pública de compra e venda de 27 de setembro de 2006, um contrato de empréstimo com garantia hipotecária, conforme resulta da cópia do contrato de mútuo com hipoteca e documento complementar que dele faz parte integrante
2 – Nos termos do mencionado contrato o Banco 2... concedeu um empréstimo no montante de € 207.437,55 (…), quantia que os mutuários declararam ter recebido naquela data a título de empréstimo e da qual se confessaram devedores para com o Banco 2....
3 – Ficou acordado reembolsar o banco Banco 2... da quantia mutuada em 468 prestações mensais de capital e juros, vencendo-se a primeira no dia 5 de outubro de 2006.
4 – Sendo que, para garantia das obrigações emergentes do contrato, do pontual pagamento e liquidação da quantia mutuada de € 207.437,55 (…), e bem assim, dos juros que se vencerem e ainda das despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 8.297,50 (…), foi constituída hipoteca voluntária que se encontra registada sob a AP. ... de 2006/09/14 a favor do Banco 2... sobre o imóvel abaixo identificado, sendo o montante máximo garantido de capital e acessórios de € 293.524,13 (…):
fração autónoma designada pelas letras AB correspondente a uma habitação, com entrada pelo n....31 da Avenida ..., de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo piso, do tipo T-Quatro, designada por trinta e um, com dois terraços a nascente e a poente, da qual fazem parte dois logradouros, designados, respetivamente por ... e ..., ambos situados a nível térreo e orientados a nascente e a poente, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., ... e Rua ..., da freguesia ..., do Concelho ..., descrito na 2. a Conservatória do Registo Predial de Maia sob o n....78, da referida freguesia e inscrita na matriz predial sob o artigo n. ...95.

5 – Em 14 de março de 2007, e conforme decorre da "alteração de contrato de mútuo de regime geral para regime deficiente, acordaram as partes na alteração das condições em que existiu uma reestruturação parcial do crédito concedido.
6 – Também por escritura pública de 25 de março de 2010, foi celebrado entre o Banco 2... e os então mutuários, um outro contrato de empréstimo com garantia hipotecária, nos termos do qual foi concedido um empréstimo no valor de € 40.000,00 (…), quantia que declararam ter recebido a título de empréstimo e da qual se confessaram devedores para com o Banco 2....
7 – Ficou acordado reembolsar o Banco 2... da quantia mutuada em 120 prestações mensais de capital e juros, vencendo-se a primeira no dia 2 de abril de 2010.
8 – Para garantia das obrigações emergentes do contrato do pontual pagamento e liquidação da quantia mutuada de € 40.000,00 (…), e bem assim, dos juros que se vencerem e ainda das despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 1.600,00 (…), foi também constituída hipoteca voluntária a favor do Banco 2... sobre o imóvel acima identificado, sendo o montante máximo garantido de capital e acessórios de € 56.600,00 (…).
9 – As hipotecas voluntárias foram registadas a favor do Banco 2... na competente Conservatória do Registo Predial de Maia (mostrando-se, entretanto, registada a transmissão da posição de credor garantido para a exequente), sob a apresentação 1. de 2006/09/14 e apresentação 1734. de 2010/03/05:
– AP. ... de 2006/09/14 – Capital no montante de € 207.437,55, juro anual de 10,5%, acrescido de 2% em caso de mora, despesas no montante de € 8.297,50, um montante máximo assegurado € 293.524,13.
– Ap. ...34 de 2010/03/05 – Capital no montante de € 40.000,00, juro anual de 10,5%, acrescido de 2% em caso de mora, despesas no montante de € 1.600,00, um montante máximo assegurado €56.600,00.
10 – Conforme resulta das cláusulas gerais dos documentos complementares às escrituras e contratos, ficou então estipulado que o incumprimento de qualquer das prestações dos mútuos concedidos pelo Banco 2..., implicaria o vencimento imediato das restantes.

2. Incumprimento do contrato de mútuo

11 – Sendo que os mutuários não cumpriram com as obrigações emergentes dos referidos Contratos, tendo deixado de pagar definitivamente as prestações que se tinham obrigado nos termos de cada um dos respetivos financiamentos a partir das prestações de empréstimo vencidas em 5 de maio de 2016 e 2 de maio de 2016 respetivamente.
12 – Face ao exposto, na presente data, o montante global em dívida ascende à quantia global de €151.348,00 (…), correspondente à soma das quantias abaixo indicadas:
a) Contrato I. no valor de €126.208,25, correspondente às seguintes parcelas abaixo:
– Capital entretanto vencido e não pago de € 118.856,66.
– Juros contratuais à taxa em vigor, acrescida da sobretaxa de 3% a título de cláusula penal contabilizados desde a data de incumprimento (05/05/2016 – data da última prestação paga), até à data de cálculo (08/11/2022) e bem assim, o respetivo imposto de selo à taxa de 4%,ascendendo o valor global em € 5.470,28.
– Despesas e ISUC de € 1.881,31.
b) Contrato II. no valor de €25.139,75, correspondente às seguintes parcelas abaixo.
– Capital entretanto vencido e não pago de € 17.333,89.
– Juros contratuais à taxa em vigor, acrescida da sobretaxa de 3% a título de cláusula penal contabilizados desde a data de incumprimento (02/05/2016 – data da última prestação paga), até à data de cálculo (08/11/2022) e bem assim, o respetivo imposto de selo à taxa de 4%,ascendendo o valor global em € 6.927,29,
– Despesas e ISUC de € 878,57.
13 – Perfazendo, neste particular, um valor em dívida de €151.348,00 (…), relativo à soma de cada parcela acima.

3. Titularidade passiva e ativa da relação material controvertida

14 – Em ../../2011, faleceu a mutuária CC, tendo-lhe sucedido (…) o seu cônjuge, DD, e seus descendentes, AA e BB.
15 – DD, também ele mutuário nos contratos de empréstimo que se executam, apresentou-se à insolvência que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comercio de Santo Tirso – Juiz 3, sob o processo n.º 3322/17.8T8STS, onde se apreendeu a favor da massa insolvente a sua quota parte e o direito ao quinhão hereditário que o insolvente é titular na herança aberta por óbito da sua mulher CC.
16 – O processo de insolvência encontra-se já em fase de liquidação, com vista à promoção e venda conjunta do dito imóvel, onerado então a favor do banco exequente.
17 – Os executados AA e BB aceitaram a referida herança de CC, assumindo, desde então uma quota ideal e abstrata do todo o património hereditário.
18 – Os executados AA e BB não foram integrados pelo exequente no regime do PERSI.

19 – No requerimento executivo, na sustentação da legitimidade passiva dos executados, a exequente alegou, além do mais:
15. [A] mutuária CC, faleceu em ../../2011 (…), tendo-lhe sucedido (…) o seu cônjuge DD e seus descendentes AA e BB. (…)
18. Os executados AA e BB (…) aceitaram referida herança (…) de CC, assumindo, desde então uma quota ideal e abstrata do todo o património hereditário (…).
19. A fração autónoma garante então os valores relativos ao crédito exequendo e integra assim a dita herança ilíquida e indivisa.
20. Determina a lei, designadamente no artigo 54.º do Código de Processo Civil, que tendo havido sucessão mortis causa na titularidade da obrigação exequenda, devem então assumir, liminarmente, a posição de parte, como executados, os sucessores da pessoa que figure no título como devedor, ou seja, a legitimidade que é concedida ao sujeito que figure no título executivo como devedor será, igualmente, reconhecida aos seus sucessores.
21. Assim, constituem partes passivas legítimas os aqui executados AA e BB.
22. O Banco 1..., S.A, aqui exequente, foi constituído em 3 de agosto de 2014 (…) sendo o seu objeto social a “Administração de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do Banco 2..., S.A. para o Banco 1..., S.A., e desenvolvimento das atividades transferidas (…)”.
20 – No “Anexo com indicação de bens à penhora”, a exequente preencheu o campo intitulado “BENS INDICADOS À PENHORA” com os dizeres “não são indicados bens à penhora”.
21 – Na contestação aos presentes embargos de executado, a embargada alegou, além do mais: 11. (…) os empréstimos dados à execução, dada a falta de pagamento das prestações acordadas, registaram incumprimento a partir de 05/05/2016 e 02/05/2016, data da última prestação liquidada e assim alocada à dívida.
12. Tendo o banco em decorrência da mora, enviado as cartas cominatórias, onde integrou a mutuária no PERSI, o qual foi extinto em 19/08/2016 (…).
13. Conforme resulta dos autos, a mutuária faleceu em ../../2011, não tendo, contudo, o banco qualquer conhecimento.
14. Pois, certo é que, o incumprimento dos empréstimos só se verificou em 05/05/2016 e 02/05/2016, razão pela qual, atenta a falta de pagamento das obrigações estipuladas, o banco deu início ao procedimento de integração em PERSI, que se veio a extinguir (…).

Os factos meramente processuais enunciados no ponto 19 – factos assentes –, no ponto 20 – factos assentes – e no ponto 21 – factos assentes – foram oficiosamente aditado por este tribunal ad quem (art. 662.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), por não estarem controvertidos e se encontrarem plenamente provados por documento.
Também o ponto 1 – e os restantes nos quais é identificado a primitiva mutuante – foi oficiosamente retificado, por ser ostensivo que enfermava de lapso na identificação da entidade bancária que concedeu o empréstimo. Aliás, nas datas de celebração dos contratos, a exequente ainda nem sequer existia.


Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito a abordar:
1. Qualidade de cliente bancário
2. Âmbito da responsabilidade do herdeiro
3. Responsabilidade pelas custas

1. Qualidade de cliente bancário

Começa a apelante por defender que as disposições legais respeitantes ao PERSI não são aplicáveis aos executados, por não serem estes “clientes bancários”.
Sem razão.
Estabelece a al. a) do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro – diploma que cria e regulamenta o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) –, que, “para efeitos do presente decreto-lei, entende-se por: a) «Cliente bancário» o consumidor, na aceção dada pelo n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, (…) que intervenha como mutuário em contrato de crédito”. O “cliente bancário” é, assim, (i) o consumidor (ii) que intervenha como mutuário em contrato de crédito.
O n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor define como consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Os executados são pessoas singulares, tendo ingressado na titularidade passiva da relação creditícia por sucessão por morte da primitiva mutuária – incontroversamente uma consumidora, como, aliás, resulta do facto 21 –, e não em razão do exercício da sua atividade profissional. Recorde-se que, por força da aceitação da herança, os herdeiros ingressam na “titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam” – arts. 2024.º, 2032.º e 2050.º do Cód. Civil.
A apelante, no requerimento executivo, não deixa de reconhecer a aquisição passiva da qualidade de mutuários por parte dos executados, designadamente no seu art. 20.º, conforme consta do ponto 19 – da fundamentação de facto. Sob pena de exercer o seu direito abusivamente, não pode a exequente, para poder demandar os executados (pessoas singulares que não atuam aqui profissionalmente), invocar a sua qualidade de mutuários, e, no passo seguinte, recusar-lhes a proteção legal dispensada aos mutuários com estas qualidades.
Não podem assim subsistir dúvidas de que os executados, nas suas relações com a mutuante, são consumidores, gozando da proteção legal que a lei a estes dispensa. Na evidenciação desta qualidade já vai a demonstração do segundo requisito necessário à qualificação da pessoa singular como “cliente bancário”: que intervenha como mutuário em contrato de crédito celebrado com uma instituição bancária.

Os executados não celebraram o contrato de mútuo, pelo seu punho, com a exequente (ou com instituição da qual a exequente tenha adquirido a sua posição). No entanto, a lei não reserva a proteção concedida aos consumidores às pessoas singulares que tenham outorgado, pelo seu punho, o contrato de mútuo, considerando a qualidade de “cliente bancário” pessoalíssima, insuscetível de ser adquirida por morte do primitivo cliente. Não consta da lei que se considera “cliente bancário” o consumidor que tenha celebrado o contrato de mútuo – o que, ainda assim, não deveria impedir a atribuição desta qualidade de cliente aos herdeiros –, mas sim o consumidor “que intervenha como mutuário em contrato de crédito”.
Alega a apelante que o regime previsto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, tem “como objetivo conduzir os bancos a terem uma relação cuidadosa com aqueles com quem contratou”. Ora, como a instituição bancária não contratou com os herdeiros, não pôde adequar a sua decisão de conceder o mútuo à capacidade de endividamento destes. Sugere, assim, a apelante que o PERSI representa um regime sancionatório da instituição bancária, por ter concedido crédito sem as devidas cautelas. Como é ostensivo, nada disto resulta da lei.
A consagração do PERSI não tem (principalmente) “como objetivo conduzir os bancos a terem uma relação cuidadosa com aqueles com quem contratou”. Este objetivo existe, mas é reflexo. De outro modo, ter-se-ia estabelecido na lei a ressalva “salvo se a instituição bancária provar que teve uma relação cuidadosa com aqueles com quem contratou”. O PERSI não é um mecanismo sancionatório das instituições bancárias irresponsáveis; quando muito é dissuasor. O objetivo principal do PERSI é, sim, a “redução dos níveis de endividamento das famílias” e “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento”. Ora, não existe razão para se considerar que o caso vertente deva ser excluído desta tutela legal.
Ainda que a instituição bancária tenha tido uma atuação irrepreensível na concessão do crédito – e até que este tenha sido concedido antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro –, o mutuário (à data do incumprimento) beneficia da proteção concedida pelo regime que estabelece o PERSI. A atuação correta das entidades bancárias impõe-se “em todas as fases das relações de crédito”. Inexiste fundamento para se exonerar a instituição desta obrigação perante os herdeiros, atuais mutuários – nesta qualidade executados –, na fase executiva do negócio jurídico, a pretexto de, quanto a estes, “pessoalissimamente”, ter inexistido idêntica obrigação na fase estipulativa do negócio jurídico (por ter sido celebrado com o autor da herança).
Surge, pois, como inevitável a conclusão de que os executados são “clientes bancários”, para efeitos da obrigatoriedade da sua sujeição a um PERSI.

2. Âmbito da responsabilidade do herdeiro

Sustenta, ainda, a apelante “que a responsabilidade dos herdeiros, fica integralmente limitada aos bens que compõem a herança (…), pelo que, não se verificam os perigos de endividamento excessivo que se visa impedir com a aplicabilidade do PERSI, motivo pelo qual, também por esta via o legislador não sujeitou essa obrigatoriedade acerca da integração dos herdeiros em PERSI”. Não se alcança a racionalidade desta posição.
Tal como acima referido, o regime em questão não visa apenas (nem principalmente) evitar o endividamento excessivo no momento da celebração do contrato de mútuo, mas sim o estado de endividamento excessivo, ainda que nascido de causas supervenientes – como o “desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com (…) dificuldades económicas”. É evidente que, na pessoa do herdeiro, também se podem concretizar os perigos do estado de endividamento excessivo.
Não vê por que razão um qualquer herdeiro que, por exemplo, no ano de 2010, adquire a casa onde habita por sucessão mortis causa e ingressa na titularidade passiva de um contrato de mútuo garantido por hipoteca sobre a referida casa, liquida pontualmente as prestações mensais do mútuo durante uma década e, inesperadamente, é despedido, ficando sem possibilidade de pagar pontualmente o empréstimo, não deve beneficiar de um PERSI – a pretexto de a sua casa de habitação indicada à penhora ter sido adquirida por sucessão por morte do primitivo mutuário. Têm aqui pleno cabimento a letra e a ratio da lei – sendo esta, conforme consta da exposição de motivos do diploma acima referido, designadamente, “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”, através de uma “atuação (…) correta” das entidades bancárias “em todas as fases das relações de crédito”.

Implicitamente, a apelante atribui aqui legitimidade processual aos executados, não por terem sucedido na posição de mutuários, mas sim por terem sucedido na posição de proprietários do imóvel hipotecado para garantia do crédito exequendo. Ou seja, e afirmamos isto com um propósito meramente explicativo, a recorrente, (apenas) na motivação da alegação de recurso, como que retira a legitimidade dos executados, não do n.º 1 do art. 54.º do Cód. Proc. Civil, mas sim do n.º 2 do mesmo artigo.
No entanto, é, no caso dos autos, deslocada a discussão em torno da inclusão do terceiro titular do bem que garante o crédito exequendo no âmbito de proteção deste regime, por identidade de razão com a proteção dispensada ao fiador (art 21.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro).
É que, por um lado, a exequente é clara na atribuição da qualidade de mutuários aos executados, fazendo decorrer desta qualidade a sua legitimidade. Não refere que estes são demandados, apenas e só, porque são os atuais comproprietários do concreto bem herdado que pretende ver penhorado.
Por outro lado, no “Anexo com indicação de bens à penhora”, a exequente preencheu o campo intitulado “BENS INDICADOS À PENHORA” com os dizeres “não são indicados bens à penhora”, ainda que tenha referido a existência da garantia hipotecária sobre o imóvel acima referido. Não limita, assim, a exequente a responsabilidade dos executados ao produto da venda do bem hipotecado, podendo, no limite, serem executados bens que excedem as forças da herança, se os herdeiros não satisfizerem o ónus previsto no n.º 2 do art. 2071.º do Cód. Civil.
Em conclusão, ainda que os herdeiros (que adquiriram a posição de mutuários mortis causa) só respondam pelas forças da herança, beneficiam da proteção proporcionada pelo PERSI, quando tenham a qualidade de consumidores (tal como o falecido mutuário), pelo menos quando a situação de incumprimento é ulterior à data da abertura da sucessão, como é o caso.

3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).
A responsabilidade pelas custas cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).




IV – Dispositivo:

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão apelada.

Custas a cargo da apelante.
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Notifique.
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Porto, 12/9/2024 (data constante da assinatura eletrónica)
Ana Luísa Loureiro
Isabel Peixoto Pereira
Ana Vieira