Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0151490
Nº Convencional: JTRP00033480
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200112100151490
Data do Acordão: 12/10/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 4 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 81/95-2S
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO. AGRAVO.
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA.
Área Temática: DIR ECON - DIR SEG.
DIR FINANC.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334.
DL 446/85 DE 1985/10/25.
Sumário: É ilegítima, por constituir abuso de direito, a cláusula de um contrato de locação financeira pela qual se impõe que os locatários paguem o prémio de seguro, mas a indemnização pela perda da coisa seria paga directamente à locadora e, só depois, os locatários poderiam abater as prestações devidas até final do contrato e valor residual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

L.........., S.A., intentou, em 18.1.1995, pelos ..............., actualmente ............l, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:
Patrícia ........., e;
Carlos ............
Pedindo a condenação dos RR., a pagarem-lhe a quantia de 3.597.316$00, acrescida de juros vincendos, sobre o capital em dívida desde 17/11/94.
Alegou, essencialmente, o incumprimento do contrato de locação financeira celebrado com a ré, devido à
perda total dos bens objecto de tal contrato, com a consequente resolução do mesmo por parte da Autora, nos termos contratualmente estipulados – art. 9º da Cláusulas Gerais do Contrato.
A Ré, pessoalmente citada, contestou, alegando a excepção de ilegitimidade, por ter celebrado um contrato de seguro – por exigência da demandante - tendo por objecto os bens locados, alegando que apenas a seguradora “Companhia de Seguros ..........” detém legitimidade passiva.
Nos termos do art. 325º do Código de Processo Civil, a ré requereu, em 12.5.1997, o “chamamento a juízo” da seguradora que, contestando, declinou ser responsável ao abrigo do invocado contrato de seguro
para ressarcir os prejuízos advenientes do sinistro.
O Réu foi citado por éditos e não contestou.
Citado o MºPº - art. 15º do Código de Processo Civil – igualmente não contestou, em representação do ausente.
No saneador, além do mais, a ré foi julgada parte legítima.
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Inconformada, recorreu a Ré que, alegando, formulou as seguintes conclusões:
1- A recorrente é parte ilegítima no presente pleito, porquanto transferiu a responsabilidade por danos e prejuízos sofridos pelo equipamento locado.
2- A transferência da responsabilidade protagonizada pelos locatários com a aceitação da cobertura dos riscos por parte da Companhia de Seguros ........... faz proceder a ilegitimidade invocada pela recorrente.
3- Ao admitir a cobertura dos riscos constantes da Apólice de Seguro nº ............, designadamente, o risco de roubo, a citada Seguradora instituiu-se enquanto única entidade sujeita da relação material controvertida, nos termos do art. 26° do Código de Processo Civil vigente;
4- É nos termos do disposto no n° 3 do artigo 9° das Cláusulas Contratuais Gerais do Contrato de Locação que a Autora se deverá ressarcir, já que a Recorrente sempre cumpriu as disposições contratuais expressas, a saber, as constantes do artigo 8° do contrato de locação em causa;
5- O furto do equipamento do interior da discoteca ............. acontecido entre 14 e 16 de Maio de 1992, foi participado pela Recorrente/Locatária, participação que não só foi feita à Autora, nos termos e no prazo previstos no n° 4 do artigo 6° do Contrato de Locação Financeira, como, de igual forma, participado às autoridades policiais e judiciais, e no prazo de vigência do seguro em causa;
6- Furtado o equipamento locado e jamais recuperado, é considerada a perda total do mesmo nos termos do n°3 do artigo 9° da Contrato de Locação, pois acontece a resolução contratual “ex-nunc” para todos os efeitos;
7- Sempre a Autora teria de propor a presente acção contra a Companhia de Seguros .........., pois esta ,jamais liquidou o montante indemnizatório constante da Apólice de Seguro em causa;
8- Ao decidir como o fez violou o M.mo Juiz no processo o disposto no art. 26º do Código de Processo Civil.
9- Razão pela qual deve a decisão ser revogada, e, procedendo as invocações da recorrente, ser esta declarada parte ilegítima no pleito.
Como que será feita Justiça.
Contra-alegaram, no agravo, a Autora e “Companhia de Seguros ...........”.
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A final, foi proferida sentença que condenou os RR., a pagar à Autora a quantia de 3.597.316$00, acrescidos de juros à taxa legal, contados desde 17.11.1994, sobre a quantia de 1.447.338$00, até efectivo pagamento.
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Inconformada com tal sentença dela recorreu a Ré que alegando, formulou as seguintes conclusões:
1. A apelante, enquanto Locatária do equipamento mobiliário locado transferiu a responsabilidade por danos e prejuízos sofridos pelo equipamento locado para a Companhia de Seguros ............. – nos termos expressos no próprio contrato de locação financeira subscrito - admitindo esta a cobertura dos riscos constantes da Apólice de Seguro n° ..........., designadamente, o risco de roubo;
2. É nos termos do disposto no n° 3 do artigo 9° das Cláusulas Contratuais Gerais do Contrato de Locação, junto aos autos, que a Autora se deverá ressarcir;
3. Furtado o equipamento locado e jamais recuperado, é considerada a “perda total” do mesmo, nos termos do n°3 do artigo 9° do Contrato de Locação, acontecendo automaticamente a resolução contratual “ex -nunc”, para todos os efeitos;
4. A Companhia de Seguros ................. jamais liquidou o montante indemnizatório constante da Apólice de Seguro em causa;
5. A Recorrente não beneficia do direito de regresso contra a seguradora, antes, como definido no ponto 3. do Artigo 9.° das Condições Gerais do Contrato de Locação, a Recorrente teria o direito a receber o valor da indemnização paga pela companhia de seguros à locadora;
6. Tal convenção exarada no Contrato de Locação não afronta o espírito e a letra do Decreto-Lei n° 446/85, de 25 de Outubro (Cláusulas Contratuais Gerais), no sentido em que não contraria os seus arts.12.°, 15.°, 16° e 18° e 19.°, integrando-se, assim, no conceito amplo determinado no art. 10.° do mesmo normativo;
7. Encontra-se violado, na decisão recorrida, o disposto nos arts. 24.° do Decreto-Lei n.° 171 /79, de 6 de Junho e arts. 10.°, 12.°, 15.°, 16° e 18° e 19.° Decreto-Lei n° 446/ 85, de 25 de Outubro;
8. Pelo que se pugna por que, a decisão recorrida seja revogada e proferida decisão que absolva a Recorrente do pedido, com as legais consequências.
Com o que se fará Justiça.
A Autora contra-alegou pugnando pela confirmação do Julgado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto:
1) O autor celebrou com os réus, em 10/3/92, pelo valor de 2.280.000$00, acrescido de IVA, o contrato constante de fls. 5 a 10, com o n° ............, tendo por objecto um projector de vídeo gigante, marca Seleco, uma Tela com motor e comando, uma antena parabólica c/180 rotativa e um vídeo Mitsubish – resposta ao quesito 1º;
2) O equipamento foi entregue aos réus na data e condições acordadas, cfr. auto de fls. 11 - resposta ao quesito 2°;
3) O equipamento sofreu um sinistro, com perda total, isto é foi furtado entre 14/16 de Maio de 1992 e jamais recuperado – resposta ao quesito 3º;
4) À data do sinistro encontravam-se vencidas e não pagas as rendas n°s 2 e 3 no valor de 239.698$00 cada (no valor total de 479.396$00) - resposta ao quesito 4°;
5) As rendas vencidas à data do sinistro eram de 1.447.338$00 - resposta ao quesito 5°;
6) O valor financeiro do equipamento (rendas vincendas e valor residual) era à data do sinistro, de 1.041.139$00 - resposta ao quesito 6º.
Fundamentação:
Nos termos do art. 710º, nº1, do Código de Processo Civil, porque com o recurso de apelação interposto pela Ré, subiu o recurso de agravo também por si interposto do despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade por si suscitada, importa conhecer, antes de mais, de tal recurso.
Em função das conclusões formuladas pela recorrente, o respectivo objecto consiste em determinar se a ré é parte legítima.
Relevam para conhecimento de tal recurso os factos constantes dos itens 1) e 3) dos factos considerados provados na sentença e, ainda, que entre a ré e a Companhia de Seguros ............, foi celebrado um contrato de seguro – Apólice nº............. – do Ramo Riscos Múltiplos-Empresas – fls. 57 e 59 -, tendo por objecto os bens dados em locação financeira à agravante, cobrindo o risco de roubo do equipamento, segurando o valor total de 2.667.600$00 - cfr. documento de fls. 59.
Sustenta a recorrente que, por via deste contrato de seguro que foi imposto pela locadora para celebrar o contrato de locação financeira “sub-judice”, é ela recorrente parte ilegítima, já que tendo-se verificado uma ocorrência que exprime o risco coberto pelo contrato, a indemnização devida à locadora deve ser paga , nos termos do contrato de seguro, pela seguradora.
Com o devido respeito não assiste razão à ré.
Com efeito, foi entre a autora e a ré que foi celebrado o contrato que foi invocado como causa de pedir. Sujeitos dessa relação jurídico-contratual são a locadora e os locatários e não a seguradora.
A legitimidade passiva, de harmonia com o art. 26º do Código de Processo Civil, resulta do facto de o demandado ter interesse directo em contradizer; interesse que se “antecipa” pelo prejuízo que para si possa resultar da procedência da acção.
Já antes da Revisão do Código de Processo Civil de 1995/96, se entendia que a legitimidade activa e passiva se aferiam em função do modo como o Autor configurava a sua pretensão, atenta a causa de pedir invocada e o pedido formulado.
Assim é que o actualmente vigente nº3 do citado normativo estabelece que - “Na falta de indicação em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
A legitimidade passiva tem, assim, que ver com um interesse directo em contestar e não meramente reflexo ou indirecto, e afere- se pela alegação do demandante.
Ora, na tese desta, quem é responsável pelo pagamento da indemnização peticionada é a ré e não a seguradora.
Por tal, é manifesto que Ré é parte legítima, pelo que não merece censura o despacho que assim determinou.
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Da apelação:
A questão objecto do recurso, delimitada pelo teor das conclusões da apelante/ré, que delimitam o respectivo âmbito, consiste em saber se quem deveria ter sido condenada era a seguradora interveniente “Companhia de Seguros ..........” e não a ré, em função do estipulado quer, no contrato celebrado com a Autora, quer por mor do celebrado entre a ré e tal seguradora.
Vejamos:
A Autora alegou ter celebrado com os RR. um contrato que denominou de locação financeira, tendo por objecto equipamento identificado nos autos que foi entregue aos locatários.
Esse contrato acha-se a fls. 5 a 11 dos autos, foi celebrado em 10 de Março de 1992- cfr. fls. 8 - tendo o equipamento sido recepcionado pela ré em 10.3 seguinte – ut. fls. 11.
A causa de pedir invocada, foi o facto de a apelante estar em mora quanto ao pagamento das rendas vencidas em 5.6.92 e 5.9.92, no valor respectivamente, de 239.698$00 cada qual, e o facto de ter ocorrido “sinistro total” do equipamento locado, entre 14 e 16 de Maio de 1992.
Invocou, ainda, a apelada, como causa de pedir, a perda total dos bens locados, socorrendo-se da cláusula 9ª das Cláusulas Gerais do Contrato.
Com efeito o nº3 da referida cláusula explicita – “Se o sinistro for total, o contrato será declarado resolvido “ex-nunc”, para todos os efeitos: o locatário terá o direito de receber o valor da indemnização paga pela companhia de seguros ao locador, deduzido da importância das prestações ainda devidas e do valor residual do equipamento fixado nas Cláusulas Particulares”.
A apelante continua, tal como no recurso de agravo, a sustentar que, por via do contrato de seguro que fez com a seguradora, não lhe pode ser assacada a responsabilidade de indemnizar a locadora pelo valor dos objectos locados.
É certo que pede pela sua absolvição, mas não pode ignorar que, antes do sinistro, já se encontrava em mora, quanto ao pagamento de duas rendas, no valor total de 479.396$00 e só ela é responsável pelo respectivo incumprimento, por não ter ilidido a presunção de culpa que sobre si impende como devedora – art. 799º, nº1, do Código Civil.
A relação jurídico-contratual, envolvendo a Autora e a ré é um contrato de locação financeira mobiliária, a que se aplica o regime legal do DL 171/79, de 6 de Junho, que era o vigente à data da celebração do contrato.
“A locação financeira é um contrato pelo qual uma entidade – o locador financeiro – concede a outra – o locatário financeiro - o gozo temporário de uma coisa corpórea, adquirida, para o efeito, pelo próprio locador a um terceiro, por indicação do locatário” – “Manual de Direito Bancário”, 1998, pág. 550 de Menezes Cordeiro.
O citado civilista na pág. 553 explicita:
“A locação financeira postula uma intervenção de três sujeitos: o fornecedor, o locador e o locatário.
Infere-se, daí, que ela surge em união com - pelo menos - um contrato de compra e venda.
A própria locação financeira consigna depois, em regra, uma opção de compra, a favor do locatário.
Muitas vezes, a locação financeira obriga a celebrar outros contratos: seguros e garantias.
A locação financeira ocorre, assim, como um núcleo apto a suportar os fenómenos da união de contratos e dos contratos mistos. Tomando-a, na sua globalidade, a locação financeira é um contrato oneroso, sinalagmático, bivinculante, temporário mas originando relações duradouras e de feição financeira”.
Como resulta das Cláusula Gerais - 8ª, nº2 - a locatária obrigou-se a subscrever junto de uma seguradora que “mereça a confiança do locador”, um contrato de seguro que garanta a sua responsabilidade civil ilimitadamente e o equipamento locado contra todos os riscos incluídos nas cláusulas particulares, nomeadamente os de incêndio, roubo, inundação, explosão, raio e destruição, pelo valor de reposição.
Como resulta dos documentos de fls. 57 e 59, aquele de 6.10.92, emitido pela “Companhia de Seguros .........”, a locatária fez com ela um seguro, pelo valor de 2.667.600$00, por 42 meses, relativamente aos bens locados, resultando de tal documento que entre os riscos cobertos estava o de “roubo” do equipamento.
Como resulta da resposta ao quesito 3º - “O equipamento sofreu um sinistro, com perda total, isto é, foi furtado entre 14/16 de Maio de 1992 e jamais recuperado”.
As partes não discutem se o furto constitui efectivamente perda total, parecendo aceitar que, desde que o bem não tenha sido recuperado, se encontra definitivamente perdido.
Já antes vimos que se o sinistro fosse total, ou seja, se a perda fosse total – conceito que se liga então à “irrecuperabilidade” definitiva do objecto locado - ocorre a resolução do contrato, desde a data dessa perda, com as consequências que antes referimos ao transcrever o art. 9º, nº3º, das Cláusulas Contratuais Gerais. [CCG].
O art. 12º das CCG estabelece, no seu nº4 que – “Se a resolução for devida a sinistro observar-se-à o disposto no art. 9º”.
Como é sabido os bens locados, enquanto o período de locação não findar e o locatário não exercer a opção de compra, são propriedade do locador.
Assim, quando ocorreu a perda total por furto, os bens locados, em poder da ré/locatária, respectiva detentora alieno nomine eram propriedade da Autora.
Se analisarmos a Cláusula que define o regime contratual, para hipótese de perda total – a já repetidamente citada Cláusula 9ª, nº3, das CCG – os traços essenciais são os seguintes:
1)- O contrato será resolvido “ex-nunc”;
2)- O locatário terá direito a receber o valor da indemnização paga pela companhia de seguros ao locador;
3)- Esse valor será deduzido da importância das prestações ainda devidas e do valor residual do equipamento fixados nas cláusulas particulares.
De harmonia com o ponto 2), a indemnização pela perda total será paga à locadora e, pelos vistos, directamente, e só depois, a esse valor recebido, o locatário deduzirá as prestações vincendas e o valor residual.
Daí, que a seguradora “Companhia de Seguros .........” esteja obrigada a indemnizar a Autora em função da apólice de fls. 57 e 59 e sua aceitação, nos arts. 8º e 12º do articulado de fls.105 a 109, “pelo valor dos bens seguros” – 2.667.600$00.
Do contrato de seguro deveria resultar como é natural que o valor do seguro apenas pudesse ser exigido dos tomadores do seguro, ou seja, pela pessoa do segurado; mas da citada cláusula 9ª, nº3, assim não será, porquanto do seguro feito pelos locatários a indemnização pela perda da coisa será prestada directamente à Locadora.
Ora a locadora não alegou ter, sequer, intimado a seguradora para dela haver o valor da indemnização, actuando como se o locatário, antes desse momento tivesse que pagar as rendas do contrato de locação e o valor residual – por via da resolução automática do contrato -, e só depois lhe caberia abater esse valor ao pago pela seguradora à locadora.
Tal Cláusula gera um patente desequilíbrio contratual a favor da locadora, entidade notoriamente mais poderosa financeiramente que, se se quedar inerte, frustará ao locatário exercer a “dedução” que a citada cláusula lhe faculta.
Em suma, os locatários pagam o prémio de seguro, mas a indemnização pela perda da coisa será paga directamente à locadora e, só depois, os locatários poderão abater as prestações devidas até final do contrato e o valor residual, ficando inteiramente à mercê da actuação da locadora que, enquanto credora, é que “escolherá” a oportunidade de reclamar da seguradora dos locatários o valor da indemnização prevista no contrato.
Tal procedimento, a nosso ver, afronta os princípios da boa-fé e exprime claro abuso do direito – art. 334º do Código Civil.
A excepção material inominada do abuso do direito é de conhecimento oficioso.
Dispõe o art. 334º do C. Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
A figura do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria aplicado sem reparos, numa concreta situação peculiar da relação jurídica, se revela injusto e fere o sentido de justiça dominante na comunidade social.
“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. do STJ, de 28.11.96, in CJSTJ , 1996, 3, 117.
A parte actua a coberto de um poder legal, formal, visando objectivos que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
“Há abuso do direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.
Mas, mesmo que a conduta da autora ao reclamar a indemnização pela resolução do contrato sem accionar a seguradora, não configurasse abuso do direito, sempre seria de questionar a interpretação da Cláusula 9ª, nº3, das CCG do Contrato de Locação Financeira em causa, quando articulada com as do seguro que a locadora impôs à locatária.
Sendo duvidosa a sua interpretação e como se trata de contratos onerosos – o de seguro e o de locação financeira – é cabível o regime legal consignado no art. 237º do Código Civil, que estipula que, em caso de dúvida, sobre o sentido da declaração, prevalece nos negócios onerosos, o sentido que conduzir ao “maior equilíbrio das prestações”.
O sentido mais harmonioso que um esforço interpretativo reclama, postula que sendo a Locadora o contraente mais poderoso financeiramente, só possa reclamar dos locatários a indemnização devida pela resolução do contrato quando estiver em condições de lhes possibilitar deduzir, na indemnização que receber da seguradora, os valores das rendas vincendas o e valor residual que estes – os locatários – lhe terão de solver.
Assim, concluímos que de acordo com os dados factuais constantes dos autos, os RR. apenas podem ser condenados, por ora, a pagar à apelada o montante das rendas vencidas, em mora à data do sinistro, no valor total de 479.396$400, acrescidas de juros de mora, às taxas legais sucessivamente vigentes – juros das dívidas comerciais – desde 5.6.1992, sobre 239.698$00 e sobre idêntica quantia desde 5.9.1992, até efectivo reembolso.
Pese embora o que dissemos não se nos afigura que a decisão recorrida tenha violado os preceitos indicados na conclusão 7ª das alegações da recorrente, não havendo, também violação dos artigos ali citados do DL. 446/85, de 25.10.
Nos termos do art. 328º, nº2, do Código de Processo Civil de 1961, esta decisão constitui caso julgado quanto à chamada à autoria - “Companhia de Seguros ............”.
Decisão:
Nestes termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em:
I- Negar provimento ao recurso de agravo, confirmando-se o despacho recorrido.
II- Conceder provimento parcial ao recurso de apelação, revogando-se, parcialmente, a sentença recorrida e condenando-se os RR., a pagarem à Autora as rendas vencidas, em mora à data do sinistro, no valor total de 479.396$400, acrescido de juros de mora, às taxas legais sucessivamente vigentes – juros relativos a dívidas comerciais – desde 5.6.1992 sobre 239.698$00, e sobre idêntica quantia desde 5.9.1992, até efectivo reembolso.
Custas do agravo pela agravante.
Custas da apelação, em ambas as instâncias, pela Autora e pelos RR., na proporção em que decaíram, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigou a Ré.
Porto, 10 de Dezembro de 2001
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale