Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
25384/18.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: OBRIGAÇÃO REAL E ÓNUS REAL
OBRIGAÇÃO PROPTER REM
TRANSMISSÃO DA COISA
OBRAS CLANDESTINAS
Nº do Documento: RP2020090825384/18.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nossa lei não define nenhum os conceitos de obrigação real e ónus real, sendo a expressão ónus real um mero nomen com que unitariamente se designam as mais diversas realidades jurídicas.
II - A obrigação “propter rem” é aquela cujo sujeito passivo – o devedor – é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa, nascendo com a violação e subsistindo, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção.
III - Consequentemente, em caso de transmissão da coisa, e porque o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória, o novo titular do direito real (porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto) fica colocado, relativamente a esse estatuto, na mesma situação em que se encontrava o anterior, ou seja, as obrigações transmitem-se com o direito real de que elas decorrem, cabendo-lhe, como tal, a obrigação de realizar a prestação.
IV - Adquirida em acção executiva movida contra o executado que veio a ser declarado insolvente, uma fracção autónoma a este pertencente e na qual haviam sido efectuadas obras clandestinas violadoras do direito de propriedade do prédio vizinho, penhorada a fracção e não tendo o Administrador de Insolvência reposto o prédio na situação que se encontrava antes dessas obras clandestinas apesar de a Massa Insolvente ter sido condenada a executar as mesmas obras e pagar as despesas necessárias à execução das obras de reconstrução do prédio do Autor, após a venda da fracção a um terceiro, este adquirente passa a ser parte legítima na execução, transmitindo-se-lhe aquela obrigação (propter rem) que incidia sobre o insolvente anterior proprietário da fracção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 25384/18.0T8PRT-A.P1
Relator: Fernando Baptista
Adjuntos:
Des. Amaral Ferreira
Des. Deolinda Varão

SUMÁRIO:
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I. RELATÓRIO

Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

B… deduziu embargos à execução que lhe foi instaurada por C…, invocando a inexistência/inexequibilidade do titulo executivo.
Alega, em suma, que apesar de a execução ter sido instaurada contra o ali Executado, este não só não foi parte nessa acção nem a sentença o condena a pagar o que quer que seja, sendo que ademais não há sucessão na obrigação. Que, pese embora tenha adquirido o imóvel identificado, com a transmissão da propriedade deste imóvel não se transmitiu para o Executado a obrigação de pagar tal indemnização.
Mais defende que a sentença dada à execução apenas tem força de caso julgado e impõe-se ao Executado no que respeita à obrigação de permitir e tolerar que na sua fração “A” sejam executadas as obras (descritas nas alíneas a) e b) da parte dispositiva da sentença dada à execução) necessárias a repor a situação existente antes das obras ilicitamente realizadas pelo anterior proprietário dessa fracção “A”, mas já não no que tange ao pagamento da indemnização exequenda.

Invoca ainda o pagamento da quantia exequenda e a inexequibilidade do título quanto aos juros de mora peticionados.

O exequente/embargado C… contestou, pugnando pela improcedência dos embargos, defendendo que o executado sucedeu na obrigação do condenado primitivo, pelo que, por via da aplicação do disposto no art.º 54.º n.º 1 do CPC, é parte legítima na acção, até por força da autoridade de caso julgado.
Impugna ainda o invocado pagamento da quantia exequenda e pugna pela exigibilidade e exequibilidade dos juros peticionados.

Foi designada uma audiência prévia, sem que houvesse acordo inter partes.
Por entender que os autos já continham todos os elementos para prolação de decisão de mérito, foi proferido saneador sentença, na qual se julgaram os embargos procedentes, declarando-se, em consequência, extinta a execução a que os embargos estão apensos.

Inconformado com esta sentença, dela recorreu o exequente/embargado C…, apresentando alegações que remata com as seguintes
CONCLUSÕES
1. O Executado reconhece e aceita nos embargos que o Exequente efectue as obras de construção civil, a que se refere a al. C) da sentença dada à execução.

2. Sendo estranho que se aceite apenas parte de uma sentença (permite executar obras) remetendo para o Exequente o seu custo.

3. O Exequente continua impedido de fruir na totalidade o gozo e uso da sua fracção, já que uma parte desta é ocupada pela fracção do Executado.

4. A obrigação de pagamento transmitiu-se para o adquirente, pelo que a sentença dada à execução é um título executivo, sendo o executado parte legítima na execução apensa, nos termos do art. 54, nº. 1 do CPC.,

5. Porque está em causa uma obrigação propter rem e não um qualquer ónus.

6. Ónus várias vezes aflorado, mas que nunca foi concretizado ou devidamente definido.

7. As obrigações reais propter rem ou ob rem são deveres de conteúdo positivo impostos ou permitidos por normas de direito privado que incidem sobre o titular de um direito.

8. E que, em caso de transmissão do direito a que a obrigação propter rem esteja ligada, esta transfere-se para o comprador ou adquirente.

9. Consistem, assim, em obrigações que se formaram antes da transmissão do bem, que ainda não foram cumpridas e se transferem para o adquirente.

10. No caso a que reporta a execução, trata-se do cumprimento de uma obrigação, nascida antes da venda e que se transmitiu para o adquirente.

11. No texto do nº. 2 do art. 824 do C.C. não há qualquer referência a ónus ou encargos.

12. Refere antes “… direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia …”,

13. Com a utilização do termo “ónus” o Senhor Administrador pretendeu apenas comunicar que o adquirente da fracção seria obrigado a aceitar o conteúdo da Douta Sentença que condenou a Massa Insolvente.

14. Com a inclusão do texto e do documento, pretendeu o Exequente salientar que o Administrador reconhecia a obrigação e alertava eventuais compradores para a sua existência.

15. No requerimento inicial da execução, o Exequente sempre empregou o termo “obrigação” e nunca “ónus”.

16. Para o Prof. Prof. Manuel Henrique Mesquita o termo “ónus” não corresponde a um conceito preciso, é um simples nomen que designa diversas realidades jurídicas.

17. Com a leitura e análise de todas as peças processuais não se conclui a que se reporta em concreto o termo “ónus”.

18. Sendo vago, genérico e susceptível de criar insegurança jurídica.

19. As obrigações impostas pela Douta Sentença proferida contra a Massa Insolvente transmitiram-se com a aquisição da fracção pelo Executado, já que são obrigações propter rem e não um qualquer “ónus”.

20. O Executado é parte legítima na execução apensa e a Douta Sentença dada à execução é um título executivo.

Pelo que, na procedência do presente recurso, deve ser revogada a douta sentença recorrida que julgou os presentes embargos procedentes e provados e que declarou extinta a execução apensa, substituindo-a por outra que julgue não provados e improcedentes os embargos, decretando que o Executado é parte legítima na execução e a douta sentença dada à execução é um título executivo, como será de inteira
JUSTIÇA

Houve conta-alegações, nelas se pugnando pela manutenção do sentenciado.

Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. AS QUESTÕES

Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº4 e 639º, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

A questão suscitada no recurso reduz-se a saber se há título executivo contra o executado.
• O que, por sua vez, pressupõe saber se a obrigação de pagamento aludida na sentença que condenou a massa insolvente de D…, se transmitiu ao embargante/executado com aquisição por si efectuada da fracção.
• E tal pressupõe, por sua vez, saber se estamos perante uma obrigação propter rem ou um qualquer ónus ou encargo.

II.2. OS FACTOS

No tribunal a quo consideraram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão da questão que constitui objecto do litígio:
1. O título que serve de base à execução, é a sentença proferida nos autos de acção declarativa de condenação com processo comum ordinário que correu os seus termos na extinta 1ª Secção, da 1ª Vara Cível do Porto, sob o nº. 484/10.9TVPRT junta a fls. 8 e ss dos autos de execução, transitada em julgado, cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual consta o seguinte segmento decisório: Pelo exposto, ponderado o estatuído nos preceitos legais supra invocados julgo a presente acção procedente e provada, nos termos sobreditos, e consequentemente decide-se:
A) Condenar a Massa Insolvente de D… a entregar ao A C…, o espaço actualmente ocupado pela fracção A correspondente ao local onde se encontra a varanda;
B) Condenar a Massa Insolvente a afastar o telhado da varanda a construir, respeitando a distância legal do RGEU (3 metros); e
C) Pagar as despesas a suportar por terceiro que proceda à execução das ditas obras de reconstrução do prédio do A, no montante global de € 74.492,40.
2. A acção referida em 1. Foi proposta pelo Exequente, C…, contra a Massa Insolvente de D….
3.O Senhor Administrador da Massa Insolvente, não executou as obras nem pagou a quantia a que foi condenada, pelo que o Autor, aqui exequente, deduziu a competente Execução para pagamento de quantia certa (no valor de € 74.492,40 e juros vencidos até 11/09/2012, no valor de € 5.290,00) no valor global de € 79.782,40, a qual foi distribuída à 1ª Secção do 2º Juízo de Execução do Porto, sob o nº. 5547/12.3YYPRT.
4. Nessa execução procedeu-se à penhora do único imóvel da Massa Insolvente e ao seu registo na competente Conservatória do Registo Predial (fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs. … e …, com entrada pelo número …, da União de freguesias …, do concelho do Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial … sob o nº. 121 e inscrita na matriz predial sob o artigo 9286).
5. Após o registo da penhora, por despacho do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira (Proc. 2701/08.6TBVFR-H) foi requerida a remessa dos Autos de Execução para serem apensados ao Processo de Insolvência, o que foi feito.
6. Posteriormente, o Senhor Administrador da Massa Insolvente procedeu à venda da fracção supra identificada, em 29.8.2016, pela quantia de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) a B…, casado sob o regime de separação de bens com E…, residente Rua …, nº. …, …, ….-… Porto, nos termos constantes da escritura de compra e venda junta a fls. 12 a 13 da execução, e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
7. O Senhor Administrador da Massa Insolvente inseriu nos anúncios publicados, para venda desse imóvel mediante propostas em carta fechada, a entregar até ao dia 2.1.2012 o seguinte texto: “Mais informa o aqui administrador que sobre o prédio incide um ónus de € 74.492,40 que acresce (sublinhado nosso) ao valor ora publicitado porquanto a massa insolvente foi condenada a custear esse valor que dizem respeito a obras de demolição, obras essas que não se encontravam legalizadas”, e nos demais termos constantes do anuncio de fls. 14 v e cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual consta para alem do mais, que se aceitam propostas de valor igual ou superior a € 202.3000,00.
8. A venda da fracção A) concretizou-se na modalidade de venda por negociação particular, tendo o executado encetado negociações com o AI em Abril de 2016. A proposta foi apresentada ao credor hipotecário, que a aceitou e a venda da fracção concretizou-se na escritura de compra e venda referida em 6.
9. Do produto da venda, o Exequente, recebeu na supra identificada execução a quantia de € 43.800,96, correspondente à quantia transferida para os autos de execução, após rateio final levado a cabo nos autos de insolvência, nos termos que constam do documento junto aos autos a fls. 13v, sendo que ademais essa execução foi declarada extinta por inutilidade da lide, por inexistirem mais bens capazes de garantir o restante ainda em débito (cfr. fls. 13v).
10. Na execução a que estes autos se encontram apensos, o exequente peticiona, do executado o pagamento do remanescente da quantia ainda em débito ao exequente acrescida dos juros legais vencidos até 30 de Novembro de 2018 no valor de € 21.013,97 e dos vincendos até integral pagamento no valor global de € 51.704,41 (74.492,40 + 21.013,97 – 43.800,96); e bem ainda que o executado permita que o Exequente efectue as obras de construção civil nas fracções “A” e “C”, ordenadas pela Douta Sentença, após receber a totalidade da quantia exequenda, invocando para o efeito , a qualidade do executado enquanto ao comprador da fracção “A”.
11. O executado embargante não se opõe a que o exequente efectue as obras de construção civil nas fracções “A” e “C”, a que se refere a al. C) da sentença dada à execução.

III. O DIREITO

Vejamos, então, as questões suscitadas no recurso.

Em causa, como vimos, saber:
- Se há título executivo contra o executado.
- Se a obrigação de pagamento, aludida na sentença (que condenou a massa insolvente de D…), se transmitiu ao embargante/executado ao adquirir a fracção.
- Se estamos perante uma obrigação propter rem ou um (qualquer) ónus ou encargo.
Vejamos.

O título executivo dado à execução contra o executado/embargante foi a sentença condenatória que condenou a Massa Insolvente de D…, a:
A) Condenar a Massa Insolvente de D… a entregar ao A C…, o espaço actualmente ocupado pela fracção A correspondente ao local onde se encontra a varanda;
B) Condenar a Massa Insolvente a afastar o telhado da varanda a construir, respeitando a distância legal do RGEU (3 metros); e
C) Pagar as despesas a suportar por terceiro que proceda à execução das ditas obras de reconstrução do prédio do A, no montante global de € 74.492,40.

Nesta execução foi penhorado o imóvel da Massa Insolvente, o qual veio a ser vendido pelo Administrador da Massa Insolvente ao embargante/executado B….
Invoca o exequente que o caso julgado daquela sentença se estende ao executado/embargante, na medida em que a referida obrigação de pagamento ínsita na sentença se transmitiu ao executado adquirente da fracção, ou seja, que o adquirente sucedeu nessa obrigação.

No que tange à legitimidade passiva na acção executiva, reza o artº 53, nº1:
“A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.”.
Assim sendo, se mais não tivéssemos, teríamos que o executado/embargante, porque não figura como demandado na acção ordinária que constitui o título executivo, ficaria arredado de poder ser demandado, por ausência dessa legitimidade processual.

Porém, o subsequente artº 54º do CPC contém o que denomina de “Desvios à regra geral da determinação da legitimidade”.
De entre esses desvios, temos – para o que aqui importa –, o disposto no nº 1 desse normativo: “Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.
Acrescentando o artº 55º do mesmo diploma legal que “A execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado”.

Ora, é precisamente por considerar que inexiste no caso sub judice uma situação de “sucessão … na obrigação” por banda do executado/embargante (ao adquirir a fracção) que a sentença a quo decidiu não haver título executivo contra o mesmo embargante, dado entender, dessa forma, que não tinha legitimidade passiva.
Quis juris?

ÓNUS OU OBRIGAÇÃO?

A questão é assaz importante, na medida em que, como vimos, no artº 54º, nº1 CPC se fala em “sucessão no direito ou na obrigação”.
Para além de que sempre há que ter em consideração o estatuído no artº 824º do CC, ao dispor que na venda em execução “os bens são vendidos livres dos direitos de garantia que os onerem…”. Referindo a decisão recorrida que, então, “nada sendo estipulado no acto da compra e venda sempre o “ónus” anunciado cairia com a venda em execução”, precisamente por aplicação daquele normativo.

Mas faz confusão a sentença: sendo, embora, certo que esse artº 824º se reporta à venda em processos de execução e de insolvência, certo é, também, que no mesmo artº não se fala em “ónus” ou “encargos”, mas, sim, em “direitos de garantia que os onerem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia”.
Mas nada disto se discute nos presentes autos!

É certo que nos anúncios publicados pelo AI para a venda da fracção consta que “Mais informa o aqui administrador que sobre o prédio incide um ónus de € 74.492,40 que acresce ao valor ora publicitado porquanto a massa insolvente foi condenada a custear esse valor que dizem respeito a obras de demolição, obras essas que não se encontravam legalizadas– (cfr Doc. a fls. 52).
Mas será que tal menção nos anúncios se reporta mesmo a um ónus real incidente sobre a fracção?
É claro que não.

Transportamo-nos, então, aqui para a vetusta temática, brilhantemente tratada pelo Senhor Professor Henrique Mesquita, na sua obra “Obrigações reais e Ónus Reais”[1].
O Ilustre Professor, a págs. 37 ss delimita os conceitos de obrigação real e de ónus real.
Escreveu-se ali:
A distinção entre estas duas figuras tem sido feita com base nos mais diversos critérios, daí resultando que determinadas relações jurídicas ora são constituídas como obrigações reais ora como ónus reais.
A lei portuguesa não fornece qualquer apoio para a distinção, quer porque não define nenhuma das noções, quer porque a expressão ónus real tem sido nela utilizada com os mais dispares significados: ora se fala de ónus real para aludir a certas prestações periódicas devidas pelo proprietário de coisas registáveis; ora para aludir a vinculações ou limitações a que certos bens ficam sujeitos; ora para abranger figuras tão heterogéneas como as que se enumeravam no § 2º do art. 949 do Código de Seabra (a hipoteca; o dote; o arrendamento por mais de quatro, não o havendo; etc.). Utilizada com tal amplitude de sentido, a expressão não corresponde a um conceito preciso: é um simples nomen com que unitariamente se designam as mais diversas realidades jurídicas. Tentaremos averiguar se haverá um conceito autónomo de ónus real e, em caso afirmativo, quais, à face do ordenamento jurídico português, as relações ou situações que nele devem enquadrar-se.”.

Portanto, a denominação ónus que se fez constar nos anúncios da fracção não passa disso mesmo, um um simples nomen com que unitariamente se designam as mais diversas realidades jurídicas” (nas palavras do Ilustre Professor).
Com efeito, nesses anúncios, o Sr Administrador de Insolvência apenas teve o cuidado de manifestar o seu reconhecimento da obrigação em causa e ali plasmada, chamando, dessa forma, a atenção de potenciais compradores para existência da mesma, a fim de não serem surpreendidos aquando da compra da fracção, dessa forma deixando bem vincado que os adquirentes da fracção ficavam vinculados ao cumprimento daquela obrigação, ínsita na sentença condenatória.

Uma obrigação, portanto, e não qualquer ónus (nos termos sufragados na decisão recorrida).

DA NATUREZA DA OBRIGAÇÃO EM CAUSA (OBRIGAÇÃO PROPTER REM) E DA SUCESSÃO NESSA OBRIGAÇÃO (DE PAGAMENTO DA INDEMNIZAÇÃO POR CONSTRUÇÃO ILÍCITA, ALUDIDA NA SENTENÇA)

Pergunta-se, então: não se tratando de um ónus, mas de mera obrigação, afinal de que obrigação falamos: de que realidade jurídica falamos se trata?

Cremos estar-se perante aquilo que a Doutrina denomina de obrigação propter rem – e que tão brilhantemente foi tratada na aludida Tese do citado Professor Henrique Mesquita.
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A obrigação “propter rem” é aquela cujo sujeito passivo – o devedor – é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa[2]. Consubstancia uma verdadeira relação creditória incrustada no estatuto do direito real, figurando como elemento do seu conteúdo[3].

Para melhor compreensão da matéria, permitimo-nos, com a devida vénia, citar R. PINTO DUARTE[4]:
«Muitos direitos reais implicam deveres. São os casos, por exemplo, do dever dos comproprietários de contribuírem para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum (art. 1411, n.° 1), do dever dos condóminos de contribuírem para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns (art. 1424, n.° 1)[5] e do dever dos usufrutuários de efectuarem as reparações ordinárias e de suportarem as despesas de administração (art. 1472, n.° 1). Alguns destes deveres são verdadeiras relações jurídicas obrigacionais. Na medida em que as mesmas façam parte do estatuto de um direito real, são chamadas obrigações reais ou obrigações propter rem. As obrigações reais não são direitos reais, mas sim, como dissemos, verdadeiras relações obrigacionais. (…)[6].
A categoria das obrigações reais não é nominalmente recebida pelas leis - o que determina grandes flutuações doutrinarias. Discute-se, por exemplo, se deve abranger todos os deveres ou apenas os deveres que consistem em prestações de carácter positivo. Segundo a opinião do Autor português que mais profundamente estudou o assunto, M. HENRIQUE MESQUITA[7], não devem caber nesta categoria os deveres que sejam construíveis sem recurso ao conceito de relação obrigacional, como é o caso dos deveres de abstenção dos titulares dos prédios servientes ou os próprios de outras relações de vizinhança.
As obrigações reais dizem-se ambulatórias quando se transmitem automaticamente com o direito real. O interesse da categoria «obrigações reais ambulatórias» é obviamente mais nítido que o da categoria «obrigações reais não ambulatórias» - pois estas não parecem ter um regime específico. Certamente por isso, muitos autores (nalgumas literaturas estrangeiras, isso é mesmo corrente) só incluem nas obrigações reais as obrigações ambulatórias[8]. Parte relevante da nossa Doutrina[9], porém, sustenta o interesse das duas categorias.
O principal problema que as obrigações reais colocam é, precisamente, saber se são ambulatórias ou não. Como a lei não fornece um critério geral sobre o proble­ma, é possível argumentar num sentido e noutro a propósito de quase todas as obrigações reais. Tome-se, por exemplo, o caso da já referida obrigação que impen­de sobre os condóminos de contribuírem para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse (art. 1424, n.° 1). Será que quando alguém compra uma fracção autónoma assume as dívidas de tal tipo relativas a períodos anteriores à transmissão de propriedade? A lei não diz que sim, nem diz que não, parecendo que é viável sustentar quer a resposta afirmativa, quer a resposta negativa[10].
Procurando apresentar um critério geral para o problema, M. HENRIQUE MESQUITA[11] sugere que:
- sejam consideradas ambulatórias as obrigações reais de facere que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa objecto do direito real (v. g., o dever de realização de obras de reparação ordinária pelo usufrutuário imposto pelo art. 1472º);
- sejam tendencialmente consideradas não ambulatórias todas as demais, nomeadamente a generalidade das obrigações pecuniárias (a excepção é constituída pelas obrigações ,cujos pressupostos materiais se encontram objectivados na coisa sobre que o direito real incide»)[12].
É de dizer que, por vezes, a discussão sobre o carácter ambulatório das obrigações propter rem se mostra viciada por alguns a fazerem por referência a obrigações meramente potenciais e outros a obrigações existentes. Tome-se o caso da obrigação dos comproprietários de contribuírem para as despesas necessárias à conservação da coisa comum: se se encarar a obrigação em causa na sua vertente meramente potencial (a de contribuir se e quando for necessário), parece óbvio que a mesma acompanhará sempre a posição de comproprietário; se se pensar numa obrigação actual de um comproprietário de contribuir para uma certa despesa de conservação (v. g., consertar o telhado que deixa passar água) já será discutível se, em caso de alienação da posição de comproprietário, a obrigação em causa a acompanhará.
Em nossa opinião, o problema da transmissão automática das obrigações reais (ou seja, o do seu carácter ambulatório) só se coloca a propósito de obrigações existentes e, à face da falta de elementos na lei, não é susceptível de uma solução geral. Os critérios de M. HENRIQUE MESQUITA podem ser tomados como indiciários - mas não mais do que isso.
Por último, diga-se que, embora a categoria das obrigações reais tenha sido pensada para as obrigações de fonte legal, também se pode discutir a sua aplicação a obrigações de fonte voluntárias.».

• Bem a propósito, escreveu-se no Acórdão do STJ de 08/07/2003[13] que nas denominadas obrigações propter rem, obrigações que decorrem do estatuto dos iura in re, o sujeito passivo é o titular do direito real, in casu do domínio, e por ele e à custa dele devem ser satisfeitas.
E continua o douto aresto:
«De notar que não se trata de uma obrigação de indemnizar, mas da obrigação de fazer coincidir a situação material da coisa com o estatuto do direito real que lhe molda o objecto.
Daí que se possa mesmo dizer que a violação do estatuto dos iura in re acabe por reflectir a "violação de um direito real alheio", tendo a respectiva obrigação propter rem "sempre como devedor o titular do direito real, mesmo que os actos que a originam sejam praticados por terceiro igualmente vinculado ao cumprimento" (HENRIQUE MESQUITA, "Obrigações Reais e ónus Reais" 309/311).
Obrigação propter rem, como a que agora se aprecia, resulta, pois, "directa e imediatamente, da aplicação do estatuto do direito à situação em que a coisa objectivamente se encontra". Nasce com a violação e subsiste, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção.
Consequentemente, em caso de transmissão, o novo titular do direito real fica colocado, relativamente a esse estatuto, na mesma situação em que se encontrava o anterior, ou seja, as obrigações transmitem-se com o direito real de que elas decorrem.
E quando tal sucede, escreve o Prof. Henrique Mesquita (ob. cit., 333), «o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória. Mesmo que ele, não obstante a alienação, se dispusesse a fazê-lo, só lograria efectuar o cumprimento caso o novo titular do direito real o autorizasse a interferir na res».
Por isso, ou seja, porque a obrigação está ligada ao domínio e com o detentor desta posição jurídica coincide a legitimidade para nela interferir, é também este sujeito que deve realizar a prestação. Portanto, impõe-se também a conclusão de que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto.
Transcrevendo novamente H. Mesquita (loc. cit., 336), dir-se-á que, como obrigações ambulatórias que são, «trata-se sempre, em síntese, de obrigações que só podem ser cumpridas por quem seja titular do direito real de cujo estatuto promanam (...)» - os negritos são nossos.

A propósito das Obrigações “propter rem” decorrentes da violação do estatuto de um direito real, o Professor Henrique Mesquita[14] dá alguns exemplos.
Assim, v.g., este exemplo: “o dono de um prédio urbano abre nele uma janela voltada sobre o prédio vizinho, a menos de metro e meio da linha divisória” (cfr. artº 1360º, nº1 CC).
Ensina, então, o Professor que neste caso (como noutros que cita), “o proprietário infringiu o estatuto do direito de propriedade, ficando automaticamente obrigado, perante o proprietário ou proprietários em benefício dos quais são estabelecidas as restrições desrespeitadas, a praticar os actos necessários a conformar a situação material com o regime fixado na lei. Mais concretamente, …pelo que respeita à janela, fica obrigado a tapá-la ou a transformá-la numa abertura de tolerância cujas medidas não excedam os limites que a lei estabelece” (cfr. artº 1363º CC).
E remata: “Generalizando, diremos que a violação, por qualquer proprietário, do direito de vizinhança, sempre que se traduza em inovações ou transformações materiais que contrariem as restrições que a lei impõe em benefício dos proprietários vizinhos, faz nascer, a cargo do autor da violação, uma obrigação propter rem e, concomitantemente, atribui ao proprietário ou aos proprietários lesados o direito de exigir[15] a destruição das obras realizadas”[16].

O mesmo Mestre acrescenta que poderão surgir também obrigações propter rem, em consequência da violação do regime legal a que o proprietário se encontra adstrito, fora do campo das relações de vizinhança.
Assim, um dos casos referidos é o das construções clandestinas, estabelecendo o RGEU que as Câmaras Municipais podem ordenar a demolição das obras não licenciadas, podendo essa entidade proceder a tal demolição no caso de o proprietário o não fazer no prazo concedido para o efeito, sendo, então, a cargo do proprietário o pagamento das despesas que vierem a ser efectuadas.
Ora, como diz o Professor[17], surgem aqui dois deveres de conteúdo positivo: o de proceder à demolição das obras clandestinas e o de pagar as despesas feitas pela câmara municipal, e aquele dever não for cumprido dentro do prazo estabelecido e a demolição vier a ser levada a cabo pela própria câmara.
Ora, este segundo dever, embora tendo a sua matriz no direito público, enquadra-se numa verdadeira relação obrigacional: é uma obrigação que tem a sua fonte no estatuto dos direitos sobre as coisas, devendo, como tal, ser qualificada como obrigação real.

Sobre obrigações reais ou propter rem, pode consultar-se, ainda, para além de M. HENRIQUE MESQUITA[18], designadamente, GERMÁN DE CASTRO VÍTORES, La Obligación Real en el Derecho de Bienes, Madrid, Centro de Estudios Registrales, 2000, e ISABEL SIERRA PÉREZ, Obligaciones – Propter Rem», Hoy: Los Gastos Comunes en la Propriedad Horizontal, Valência, Tirant lo Blanch, 2002.
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Voltando ao caso presente, temos, portanto, que em causa está o ressarcimento das despesas necessárias à execução das obras de reposição do prédio do Exequente no estado anterior às obras clandestinas levadas a cabo pelo insolvente D…, no seu prédio contíguo ou vizinho daquele.
Logo, atento o que ficou dito, trata-se de verdadeira obrigação propter rem, uma obrigação que resulta do facto de o insolvente ser o titular de um determinado direito real sobre a coisa (a fracção onde foram feitas as obras clandestinas) – resulta, como dito supra, directa e imediatamente, da aplicação do estatuto do direito à situação em que a coisa objectivamente se encontra. Nasce com a violação e subsiste, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção.

Sendo assim, essa obrigação transmite-se ao adquirente da coisa com o direito real de que ela decorre: o novo titular do direito real fica colocado, relativamente ao cumprimento dessa obrigação (no caso sub judice, a obrigação de pagar as despesas necessárias à reposição da anterior situação do prédio do Exequente), na mesmíssima situação em que se encontrava o anterior (o insolvente D…).
Ora, como «o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória[19] e, por isso, ou seja, “porque a obrigação está ligada ao domínio e com o detentor desta posição jurídica coincide a legitimidade para nela interferir, é também este sujeito que deve realizar a prestação. Portanto, impõe-se também a conclusão de que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto.”[20].

Sendo assim, é evidente que o executado/embargante é parte legítima na demanda, constituindo a sentença dada à execução um título executivo perfeitamente válido.
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IV. DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se não provados e improcedentes os embargos de executado, sendo o Executado parte legítima na execução e constituindo a sentença exequenda título executivo válido.

Custas pelo Apelante.

Porto, 8 de Setembro de 2020
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
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[1] Coleção tesses – Almedina.
[2] MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 1979-512.
[3] HENRIQUE MESQUITA, in R.D.E.S., XXIII, pág. 153. Ver, ainda, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 75.
[4] Direitos Reais, 2ª ed., Principia, 2007, pp. 22 ss.
[5] Acerca da natureza propter rem deste dever, veja-se o Ac. do S.T.J., de 16.05.2000.
[6] São «obrigações não reais» todas as que não integrem o estatuto de um direito real. Obrigação relacionada com um direito real que não integre o seu estatuto, é toda aquela assumida relativamente a coisas que sejam estranhas à titularidade de um direito real. Veja-se o exemplo tratado no Ac. da Rel. de Coimbra de 18.05.1999.
[7] Obrigações Reais e Ónus Reais, pp. 294-295.
[8] Sobre a questão, v. M. HENRIQLE MESQUITA, Obrigações Reais, pág. 37, CARVALHO FERNAN­DES, pág. 180, e GERMÁN DE CASTRO VÍTORES, La Obligación Real, cit., págs. 721 e segs. Como exemplo de autor recente que inclui o carácter ambulatório entre as características das obrigações reais, refira-se NATUCCI (pág. 119), que diz que se entende geralmente por obrigação propter rem qualquer obrigação que esteja a cargo de um sujeito enquanto ele seja proprietário ou titular de outro direito real ou ainda simplesmente possuidor de certa coisa, mas explicita que ao conceito é inerente que quem sucede na posição jurídica desse sujeito se torna igualmente obrigado.
[9] O caso de M. Henrique Mesquita, ob. cit., p. 323.
[10] No seu acórdão de 14, 12.04. o STl considerou que algumas das referidas obrigações são ambulatórias e outras não.
[11] Obrigações Reais, págs. 299e segs., maxime págs. 330, 331, 336 e 343.
[12] Por força de tal critério as referidas obrigações dos condóminos não se transmitiriam quando as fracções autónomas se transmitem.
[13] Que citámos e seguimos de perto no Ac. da Relação do Porto lavrado no processo nº 2748/08, 3ª secção, de que fomos relator.
[14] Ob cit., pp 27 ss.
[15] Que se traduz numa pretensão real.
[16] No mesmo sentido, a propósito do artº 913º do Cód. Civ. Italiano, ver BIONDI, Limiti legali della proprietà servitù, oneri reali, obbligazioni Q”propter rem”, in raporto all`art. 913 codice civile, cit., col. 617 e ss.
[17] Pág. 277.
[18] Obrigações Reais e Ónus Reais, cit.
[19] «Mesmo que ele, não obstante a alienação, se dispusesse a fazê-lo, só lograria efectuar o cumprimento caso o novo titular do direito real o autorizasse a interferir na res» - refere Henrique mesquita, loc. cit.
[20] Mesmo Autor – cit supra.