Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
30/21.9SFPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: AMNISTIA
PERDÃO GENÉRICO
LEI ESPECIAL
ACTO DE CLEMÊNCIA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
JOVEM
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP2024010530/21.9SFPRT-B.P1
Data do Acordão: 01/05/2024
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (DECISÃO SUMÁRIA)
Decisão: REJEITADO, POR MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE, O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Tem sido entendido, mormente pelo Tribunal Constitucional, que a amnistia ou o perdão genérico não são um mero acto de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade.
II – Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados, tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita, racionalmente, segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de Direito, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
III – A Jornada Mundial da Juventude é um evento religioso instituído pelo Papa João Paulo II em 1985, que reúne milhões de católicos de todo o mundo, sobretudo jovens, e daí que a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico também pela idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade, o que tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, não seja destituída de qualquer racionalidade.
IV – É certo que não se vislumbra qualquer relação da concessão desta amnistia com quaisquer das tarefas de política criminal que devem caber ao direito de graça, designadamente a intervenção como “válvula de segurança» do sistema”, evitando a severidade da lei mediante circunstâncias supervenientes nas relações comunitárias ou da situação pessoal do agraciado, mas a verdade é que tem sido “tradicional” entre nós a publicação de leis de amnistia para efeitos de comemoração de eventos festivos ou de visitas ao país de personalidades importantes.
V – A sobredita delimitação pela idade da aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se afigura decisivamente irracional e arbitrária, tendo em conta o evento que se comemora destinado em primeiro lugar à juventude católica, mas também aberto a pessoas não católicas e não jovens, pelo que tal delimitação está dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio da igualdade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n. 30/21.9SFPRT-B.P1

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Decisão sumária
(Artigo 417º, n.º 6, al. b) do Código de Processo Penal)


1 - RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 30/21.9SFPRT-B.P1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 15, foi proferido em 25.09.2023 o seguinte despacho:
«Em 1 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
A Lei é aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, desde que não excluídos pelo catálogo previsto no art.7º do referido diploma.
O arguido nasceu em .../.../1988 e os factos datam de 2022.
Uma vez que tinha já mais de 30 anos à data da prática dos factos, o referido regime não lhe é aplicável, tornando-se despiciendo aferir dos restantes pressupostos.
Notifique.»
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Não se conformando com esta decisão, o arguido AA recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte:
«1- O tribunal a quo proferiu Despacho com referência 451788789 a excluir a aplicação da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto pelo facto do arguido ter mais de 30 anos,
2- Entende-se que o tribunal a quo ocorreu em manifesta inconstitucionalidade ao interpretar o artigo 2º da Lei nº 38- A/2023 de 2 de Agosto em conjugação com o disposto no artigo 13º da C.R.P excluindo a aplicação da amnistia consagrada na Lei elencada, na medida em que excluir a aplicação de determinada norma unicamente em função da idade de alguém é violador do principio da igualdade consagrado na C.R.P.
3- Foi decidido recentemente pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, pelo Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – Juiz 1 no âmbito do processo 29/23.0PAMGR a aplicação da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto à pessoa com mais de 30 anos
4- Entende-se que deve ao arguido ser aplicado o disposto da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, amnistiando-lhe um ano de prisão.
5- Deve revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a aplicação da amnistia de 1 ano ao arguido, dado o crime de detenção de arma proibida assim o permitir...”»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, concluiu pela negação de provimento ao recurso e manutenção do despacho recorrido.
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Nesta instância, Ministério Público, no seu parecer, pronunciou-se sentido de que o recurso não merece provimento.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 - QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e a decidir é a de se saber se o arguido deve beneficiar da aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 02-08, por força da inconstitucionalidade do estatuído no n.° 1 do artigo 2° da mesma Lei na parte em que limita a sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
2.2- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, conforme se diz no seu artigo 1º veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Nos termos do seu artigo 2º, n.º 1 e na parte que interessa ao caso dos autos «Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º»
Da interpretação da lei resulta que os maiores de 30 anos de idade à data da prática do facto não beneficiam das medidas de graça da lei relativamente às sanções penais.
Ora, de acordo com o artigo 127º do Código Penal, "a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto". Nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 128º do Código Penal, "a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como medida de segurança"; "o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte"[1].
A amnistia é um pressuposto negativo da punição, com o mesmo regime jurídico (quanto ao efeito principal) do perdão genérico: pretende-se impedir que o agente sofra a sanção a que já foi (ou pode vir a ser) condenado.
A amnistia dirige-se à infração enquanto tal, impedindo a sua punição ou extinguindo-a, determinando mesmo a extinção das penas já aplicadas; pelo seu lado, o perdão genérico atinge apenas a sanção aplicada, determinando a sua extinção total ou parcial.
A amnistia ou o perdão genérico não são um mero ato de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade, conforme disse o Tribunal Constitucional no Ac. TC 347/2000[2] e vários outros acórdãos nesse citados. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
Embora o legislador tenha uma ampla margem de manobra quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência, a verdade é que se não houver qualquer racionalidade nessa delimitação entramos num arbítrio não consentido pelo artigo 13º da CRP.
O legislador pretendeu exercer este direito de graça da Lei n.º 38-A/2023 por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude e da visita Papal a ela associada.
A Jornada Mundial da Juventude é um evento religioso instituído pelo Papa João Paulo II em 1985, que reúne milhões de católicos de todo o mundo, sobretudo jovens.
Daí que a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico também pela idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade, o que tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, não seja destituída de qualquer racionalidade.
É certo que não se vislumbra qualquer relação da concessão desta amnistia com quaisquer das tarefas de política criminal que devem caber ao direito de graça, designadamente a intervenção como «válvula de segurança» do sistema, evitando a severidade da lei mediante circunstâncias supervenientes nas relações comunitárias ou da situação pessoal do agraciado, mas a verdade é que tem sido ‘tradicional’ entre nós a publicação de leis de amnistia para efeitos de comemoração de eventos festivos ou de visitas ao país de personalidades importantes[3].
Seja como for, a delimitação pela idade, até aos 30 anos, da aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se afigura decisivamente irracional e arbitrária, tendo em conta o evento que se comemora destinado em primeiro lugar à juventude católica, mas também aberto a pessoas não católicas e não jovens, pelo que tal delimitação está dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio da igualdade[4] .
Concluindo, tendo o arguido à data da prática dos factos que lhe são imputados mais do que 30 anos, ficando fora do âmbito de aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, o recurso é manifestamente improcedente.
Nestes termos, sumariamente se decidirá, ao abrigo do disposto nos artigos 420º, n.º 1, alínea a) e 417º, n.º 6, alínea b) do Código de Processo Penal, pela rejeição do recurso.
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3- DECISÃO.
Nestes termos e com os fundamentos mencionados, rejeita-se, por manifestamente improcedente, o recurso interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC (art.º 8º nº 9, com referência à tabela III anexa), a que acresce o montante de 3 UC, nos termos do art.º 420º nº 3 do C.P.
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Notifique.


Porto, 5 de janeiro de 2004
William Themudo Gilman
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[1] Cfr. sobre esta matéria: Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 687-690; Ac. TC 347/2000 e Ac. TC 444/97, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000347.html, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970444.html .
[2] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000347.html .
[3] Cfr. sobre estes aspetos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 685-687.
[4] No sentido da não violação do pricípio da igualdade pela Lei n.º 38-A/2023, cfr. o Ac. TRP de 19.12.2023, proc. 24/21 .4PEPRT-B.P1 (Raul Cordeiro), ainda não publicado em www.dgsi.pt, mas disponível para consulta no livro de registo de sentenças desta relação sentenças desta Relação; o Ac. TRC de 22.11.2023, proc. 39/07.5TELSB-H.C1 (João Abrunhosa), in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/d2762142f201fda180258a830039c6f0?OpenDocument