Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
460/20.3T8AVR-K.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
RENDAS VINCENDAS
DÍVIDAS DA INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS DA MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RP20240521460/20.3T8AVR-K.P2
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Num caso de um contrato de locação atípico, contendo elementos típicos da locação em geral e da locação financeira, onde, além do mais, a obrigação assumida pela locatária, ora insolvente, é fracionada quanto ao seu cumprimento - o valor do aluguer mensal contratualmente ajustado - mas unitária em si mesma já que cada uma das prestações a cujo pagamento se obrigou reconduz-se a uma fração do montante global, previamente definido, a reembolsar à locadora.
II – Assim, a função de tais rendas não é a de remunerar a locadora pela concessão temporária do gozo das coisas locadas, mas reembolsá-lo da quantia que despendeu com a sua aquisição, acrescida dos custos ou remuneração da locadora pela execução do contrato/financiamento.
III – Por outro lado, as coisas cujo gozo a locadora se obrigou a conceder à locatária, ora insolvente, foram adquiridas sob indicação/escolha da locatária; também se tendo convencionado que, após a entrega de tais bens à locatária, o risco de perda ou deterioração dos mesmos corria por conta da locatária, ora insolvente, encontrando-se esta obrigado a efetuar seguro dos bens locados.
IV- Perante estas características do contrato subjacente, o mesmo difere expressivamente do contrato de locação típico, não pode, por isso, ser subsumível ao regime especial previsto no art.º 108.º do CIRE, para o contrato de locação típico, sendo subsumível ao regime geral previsto no art.º 102.º do CIRE.
V – E assim tal contrato suspendeu-se, automaticamente, com a declaração de insolvência da locatária.
VI – Os créditos em apreço nos autos são créditos sobre a insolvência e não sobre a massa insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 460/20.3T8AVR-K.P2
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 1 Recorrente – Massa Insolvente da A..., Ld.ª
Recorrida – B..., SA
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Anabela Miranda
Desemb. Rodrigues Pires

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – B..., S.A. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Aveiro, por apenso ao respetivo processo de insolvência, a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Massa Insolvente da A..., Ld.ª e A..., Ld.ª relativa a dívidas da massa, pedindo condenação da primeira no pagamento da quantia de €61.914,68, correspondente aos alugueres vencidos desde 01.03.2020 a 15.12.2022 (alugueres de março de 2020 a dezembro de 2022), acrescida da quantia de € 7.004,29, a título de juros de mora vencidos desde a data de vencimento de cada um dos alugueres até 15.12.2022, calculados à taxa convencionada nos contratos de locação, atualmente correspondente à taxa de 8,00%, e das quantias vincendas a liquidar a final, a título de alugueres vincendos, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados e de juros de mora vincendos, calculados desde 16.12.2022 até integral pagamento, à taxa convencionada no contrato de locação, atualmente correspondente à taxa de 8,00%.
Alegou, para tanto e em síntese, que a 2.ª ré, na qualidade de locatária, celebrou em 15.06.2016, com a autora, na qualidade de locadora, ao abrigo de um contrato ...-
..., no âmbito do qual aquela escolheu diversos objetos para alugar: - Implementação ... (software de gestão e contabilidade), melhor identificada na fatura n.º ..., de 16.02.2016, emitida à locadora pela C..., Ld.ª com o valor de €57.810,00.
Tal contrato de locação foi celebrado por 36 meses, renovável por sucessivos períodos de 6 meses, a contar do dia da receção dos bens, que ocorreu em 15.02.2016, mas com início da contagem do prazo no primeiro dia do mês seguinte, e termo inicial em 28.02.2019, o qual de renovou sucessivamente até 01.09.2022, e manter-se-á em vigor até ser denunciado por uma das partes, considerando que nenhuma das partes o denunciou com um aviso prévio de 3 meses.
O valor do aluguer mensal ajustado foi de €1.480,50 (acrescido de IVA), a pagar mensalmente por débito direto. Os bens foram entregues à locatária e para tanto foram adquiridos e pagos pela ora autora, com a finalidade exclusiva de serem alugados à ora insolvente. A insolvente ainda que com atrasos pagou os alugueres vencidos até dezembro de 2018, ficando em dívida os alugueres vencidos desde então.
Em 15.07.2019 a credora, ora autora, reclamou créditos no âmbito do PER n.º 2148/19.9T8AVR, tendo sido posteriormente reconhecido pelo AJP a totalidade do crédito reclamado. Após a autora ter tomado conhecimento do PER suspendeu a faturação, por forma a evitar a obrigação de pagamento do IVA, face à incerteza quanto ao seu recebimento.
Em 06.03.2020 a credora, ora autora, reclamou créditos nos autos principais, tendo sido posteriormente reconhecido pelo AI a totalidade do crédito reclamado, nos termos reclamados. E já após a data da declaração de insolvência, venceram-se os alugueres referentes aos meses de março de 2020 a dezembro de 2022.
Após a declaração de insolvência e até à presente data, as 1.ª e 2.ª rés não procederam a qualquer outro pagamento de aluguer à locadora, ora autora, não obstante terem sido reclamados ao AI. Sendo que, no que respeita à dívida da massa insolvente, todos os alugueres vencidos após a data de declaração de insolvência deveriam ter sido pagos nas respetivas datas de vencimento, uma vez que não ocorreu qualquer circunstância que determinasse a suspensão ou cessação do contrato, pelo que está em dívida €68.918,97, a que acrescem os juros de mora vincendos, desde 16.12.2022 até integral pagamento, à taxa convencionada de 8,00%, e os alugueres que se vencerem, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato de locação e restituição dos bens locados.


As rés, regularmente citadas, em tempo, não deduziram contestação.
Pelo que, de seguida, foi proferido despacho a considerar confessados os factos alegados pela autora, tendo a mesma sido notificada para alegar por escrito, o que fez.

Foi depois proferida sentença de onde consta: “Pelo exposto, julgo a presente ação integralmente procedente, por provada, termos em que decido condenar a Massa Insolvente da A..., Ld.ª:
▪ No pagamento da quantia de €61.914,68, acrescida da quantia de juros de mora vencidos calculados desde a data de vencimento de cada um dos alugueres até 15.12.2022, à taxa convencionada nos contratos de locação; e
▪ No pagamento das quantias vincendas, a título de alugueres vincendos, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados, acrescidas de juros de mora vincendos, calculados a data de vencimento de cada um dos alugueres vincendos [a partir de 16.12.2022] até integral pagamento, à taxa convencionada no contrato de locação.
Custas a cargo da massa insolvente.
Valor da causa: € 68.918,97.
Notifique.
Registe.”.

Inconformada com tal decisão, dela veio a ré - Massa Insolvente da A..., Ld.ª - recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue a ação improcedente.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. Por sentença entendeu a Mm.ª Juiz condenar a apelante “Massa Insolvente da A..., Ld.ª” no pagamento da quantia de €61.914,68, acrescida da quantia de juros de mora vencidos calculados desde a data de vencimento de cada um dos alugueres até 15.12.2022, à taxa convencionada nos contratos de locação; e no pagamento das quantias vincendas, a título de alugueres vincendos, desde 01.01.2023 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados, acrescidas de juros de mora vincendos, calculados a data de vencimento de cada um dos alugueres vincendos [a partir de 16.12.2022] até integral pagamento, à taxa convencionada no contrato de locação, bem como nas custas;
2. A Mm.ª Juiz a quo determinou que tais quantias vencidas constituem dívidas da Massa Insolvente por aplicação do artigo 108.º do CIRE.
3. No entanto, a apelante entende que este normativo apenas tem aplicabilidade quando estamos perante típicos contratos de locação em que o interesse primordial é o valor económico do bem, sem que intervenham outro tipo de encargos suportados pelo locador;
4. E não a locações em que objeto contratual se funda no pagamento das prestações, sem que exista interesse no retorno do gozo do bem;
5. Pelo que entende a apelante estarmos perante um contrato atípico, no qual se deve aplicar o regime geral instituído no artigo 102.º do CIRE, do qual resulta que o “(…) cumprimento do contrato fica suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.”.
6. Pelo que, tais quantias devidas pelo contrato de locação até à declaração de insolvência, ou qualquer outra posterior, não se constituem dívidas da massa insolvente, mas sim de créditos sobre a insolvência;
7. A opção por tal entendimento não frustra as legitimas expetativas das partes que tem sempre direito a serem ressarcidas dos prejuízos causados pelo incumprimento contratual, conforme prevê a alínea c) do n.º 3 do artigo 102.º do CIRE;
8. Nomeadamente o direito a exigirem, como crédito sobre a insolvência, isto é, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida.
9. Pelo que, salvo melhor opinião, a douta sentença proferida pela Mm.ª Juiz a quo, viola os artigos 50.º e 102.º do CIRE devendo esta ser alterada por douto Acórdão que julgue a ação improcedente e, consequentemente, absolva a Massa Insolvente nos pedidos formulados, assim se fazendo JUSTIÇA.


A autora juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes “os factos melhor descritos na petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos”(que aqui vamos reproduzir para cabal entendimento desta peça processual):
1. A autora – B..., S.A. – é uma sociedade comercial que, iniciou a sua atividade em Portugal, no segundo trimestre de 2008, tendo por objeto social “aluguer de equipamento de escritório, de máquinas e de equipamento informático, incluindo software e hardware, atividades relacionadas e revenda de equipamentos usados. Aquisição de equipamentos informáticos, software e outros bens para aluguer e aluguer dos mesmos, prestação de consultoria de serviços relativos a manutenção e reparação de equipamentos informáticos, software e outros bens, tanto novos como usados. Aquisição e venda de imóveis.”.
2. A 2.ª ré/devedora, na qualidade de locatária, celebrou com a B..., S.A., na qualidade de locadora, na data de 15.06.2016, ao abrigo de um contrato ...-..., do qual fazem parte as Condições Gerais de Locação e os Termos e Condições Gerais Relativas ao Seguro de Propriedade da B....
3. No âmbito do contrato ...-... a locatária, ora insolvente, escolheu diversos objetos para alugar ao abrigo do mencionado contrato: Implementação ... (software de gestão e contabilidade), melhor identificada na fatura n.º ..., de 16.02.2016, emitida à locadora pela C..., Ld.ª.
4. A insolvente podia ter adquirido os referidos equipamentos por compra ao referido fornecedor, pelo pagamento do respetivo preço de €57.810,00.
5. No entanto, após ter conhecimento que poderia utilizar os equipamentos através de locação, a insolvente optou por celebrar com a credora, B..., S.A., o contrato de locação, ao qual foi atribuído o n.º ....
6. O mencionado contrato de locação identificado com o número ... prevê: a identificação da locatária, aqui insolvente e a identificação da locadora, aqui autora.
7. A identificação dos fornecedores dos equipamentos: D..., Ld.ª.
8. A identificação dos equipamentos locados: Implementação ....
9. O contrato de locação foi celebrado por 36 meses, renovável por sucessivos períodos de 6 meses, a contar do dia da receção dos bens, que ocorreu em 15.02.2016, mas com início da contagem do prazo no primeiro dia do mês seguinte, ou seja, em 01.03.2016 e termo inicial em 28.02.2019, sucede que o contrato de locação se renovou em 01.03.2019, 01.09.2019, 01.03.2020, 01.09.2020, 01.03.2021, 01.09.2021, 01.03.2022, 01.09.2022, e manter-se-á em vigor até ser denunciado por uma das partes (ou a locadora, aqui autora, ou o Administrador da Insolvência, em representação da massa insolvente - considerando que nenhuma das partes o denunciou com um aviso prévio de 3 meses.
10. O valor do aluguer mensal ajustado foi de €1.480,50 (acrescido de IVA), a pagar mensalmente por débito direto.
11. Após a entrega dos bens locados à locatária e da respetiva assinatura do documento de “Confirmação de Aceitação”, a B..., S.A. procedeu ao pagamento do preço dos bens descritos na fatura da fornecedora.
12. Os bens locados, entregues à locatária, ora insolvente, foram adquiridos e pago o preço pela ora autora, com a finalidade exclusiva de serem alugados à ora insolvente.
13. Assim, entregues os bens locados à ora insolvente e recebidos pela locadora os documentos de “Confirmação de Aceitação”, foram emitidas e enviadas à locatária diversas faturas, relativas a taxa de serviço e outros.
14. A insolvente ainda que com atrasos pagou os alugueres vencidos até dezembro de 2018, ficando em dívida os alugueres vencidos de janeiro a dezembro de 2019, os alugueres vencidos de janeiro a março de 2020, os custos de aviso e juros de mora, tendo as entradas de débito direto sido devolvidas com a informação.
15. Em 15.07.2019 a credora, B..., S.A., reclamou créditos no âmbito do Processo Especial de Revitalização n.º 2148/19.9T8AVR, tendo sido posteriormente reconhecido pelo Administrador Judicial Provisório a totalidade do crédito reclamado.
16. Após a locadora ter tomado conhecimento do PER da insolvente suspendeu a faturação, por forma a evitar a obrigação de pagamento do IVA, face à incerteza quanto ao seu recebimento.
17. Assim, a locatária, aqui insolvente, obrigou-se a amortizar integralmente o custo de aquisição dos bens que escolheu, bem como a suportar as despesas de execução do contrato, através do pagamento mínimo dos alugueres fixados no contrato e a restituir os bens findo o contrato.
18. Em 06.03.2020 a credora, B..., S.A., reclamou créditos nos autos principais (de insolvência) tendo sido posteriormente reconhecido pelo Administrador da Insolvência a totalidade do crédito reclamado, nos termos reclamados.
19. A aqui autora aproveitou, através da mencionada reclamação de créditos, para dar conhecimento do contrato celebrado e em vigor, além de ter solicitado o pagamento da dívida da massa vencida, bem como de que se aguardava tomada de posição quanto ao contrato, sendo que a aqui autora estava impedida de o resolver por falta de pagamento dos alugueres, nos termos das mencionadas normas legais.
20. Já após a data da declaração de insolvência, ocorrida em 11.02.2020, venceram-se os alugueres referentes aos meses de março de 2020 a dezembro de 2022.
21. Após a declaração de insolvência (em 11.02.2020) e até à presente data, as 1.ª e 2.ª rés não procederam a qualquer outro pagamento de aluguer à locadora, ora autora, não obstante terem sido reclamados ao Sr. Administrador de Insolvência.
22. Sendo que, no que respeita à dívida da massa insolvente, todos os alugueres vencidos após a data de declaração de insolvência deveriam ter sido pagos nas respetivas datas de vencimento, uma vez que não ocorreu qualquer circunstância que determinasse a suspensão ou cessação do contrato.
23. Assim o crédito vencido sobre a Massa Insolvente, liquidado até 15.12.2022, no montante de €68.918,97, relativo aos alugueres vencidos de março de 2020 a dezembro de 2022, acrescido dos juros de mora à taxa convencionada no contrato (taxa legal) desde a data de vencimento de cada um dos alugueres à taxas de 8,00% até 15.12.2022, conforme resulta do quadro infra:

24. Como consta expressamente do Contrato de Locação, a locadora adquiriu os bens locados exclusivamente para os alugar à locatária, em benefício da mesma, os quais não teriam sido adquiridos e pagos se não tivesse sido celebrado o contrato entre as ora autora e 2.ª ré.

III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações da ré/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Da qualificação do contrato subjacente.
2.ª – Da natureza dos créditos, sobre a massa insolvente ou sobre a insolvência.

1.ªquestão – Da qualificação do contrato subjacente.
A decisão de 1.ª instância, no que concerne à qualificação do contrato entendeu que: “(…) o art.º 1.º do Decreto Lei n.º 149/95, de 24.06, fornece-nos a noção de locação financeira, sendo que, de acordo com esse artigo, um dos elementos essenciais da locação financeira é a faculdade de aquisição do bem decorrido o período de locação acordado.
No caso em apreço, tendo em conta o exposto, está contratualmente afastada essa hipótese, pelo que podemos concluir que não estamos, in casu, perante um contrato de locação financeira.
Mas estaremos perante um simples contrato de locação?
O contrato de locação consiste no aluguer de móveis durante um certo período, mediante retribuição e que, findo aquele período, deverão ser restituídos ao locador – cfr. art.ºs 1022.º e 1038.º, al . i), do Código Civil e 141.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Neste caso em apreço, os bens não pertencem à insolvente, nem do contrato em
referência nasce para aquela o direito de os adquirir.
Com efeito, da factualidade provada decorre que a autora nunca perdeu a qualidade de proprietária dos bens por si locados à insolvente, nem assumiu a obrigação de os vender (…)”.
Nada a censurar a tal qualificação e também a apelante defende que estamos perante um contrato de locação atípico.
Na realidade donde decorre, no essencial, que os equipamentos locados foram adquiridos pela autora, ao fornecedor dos mesmos, mediante escolha prévia da insolvente e no interesse desta, estabelecendo-se um prazo para a duração do dito contrato, obrigando-se a insolvente ao pagamento de uma renda mensal que amortizaria integralmente o custo de aquisição dos equipamentos que escolheu, despesas de execução e lucro estimado e vinculando-se ainda a restituir à autora os bens locados após o termo do contrato. Visto esse mesmo clausulado do contrato em apreço, fica reforçada a conclusão de que não estamos perante uma mera locação, mas antes diante de um contrato com uma função creditícia. A relação jurídica em causa estabeleceu-se diretamente entre a autora/locadora e a ora insolvente/locatária, sendo o fornecedor dos bens objeto do contrato de locação um estranho à relação jurídica firmada entre as partes, a verdade é que a relação económica que está subjacente ao contrato sub judice, tal como sucede no contrato de locação financeira, estabelece-se de forma triangular entre o vendedor/fornecedor dos bens locados, o locatário e o locador adquirente dos bens. Como já se referiu não configura um típico contrato de locação, pois que a retribuição (renda) convencionada pelas partes não corresponde à mera contrapartida do gozo ou fruição que deverá ser proporcionado à locatária, ora insolvente. É um contrato ao qual está subjacente uma função creditícia ou de financiamento que se opera através da disponibilidade ao locatário de um bem – previamente adquirido a terceiro pelo locador e escolhido pela locatária - em que o propósito fundamental do locador é o reembolso do valor mutuado. Por outro lado, a estrutura triangular deste contrato – formada entre o fornecedor do bem, o locador e a locatária – afasta-o da qualificação jurídica do contrato de locação operacional.
Mas, também não pode ser qualificado de contrato típico de locação financeira (cuja definição legal consta do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho - Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados), porquanto a faculdade detida pelo locatário de adquirir a coisa locada no termo do contrato – que é elemento essencial caracterizador deste contrato - não está prevista contratualmente. Por tudo isto, e sem nos merecer qualquer censura, concluiu o Tribunal recorrido que está em causa um contrato atípico e misto (que não se subsume, nem a locação, nem à locação financeira (leasing)), que tem como finalidade económico-social a “cedência operacional” do uso de um bem móvel, como finalidade acessória o “financiamento da disponibilidade” do bem locado, o qual se regerá pelas normas contratualmente estipuladas e aceites pelas partes, e na falta destas, pelas normas de natureza geral que regulam os contratos, e nomeadamente, as normas relativas à locação.

2.ªquestão – Da natureza dos créditos, sobre a massa insolvente ou sobre a insolvência.
Está provado nos autos, além do mais, que a autora adquiriu os bens objeto do supra aludido contrato, exclusivamente para os alugar à ora insolvente, em benefício desta, e nada nos leva a concluir em contrário, ou seja, que a autora os não teria adquirido e pago se não tivesse celebrado o contrato em apreço com a ora insolvente. No âmbito da execução de tal contrato, a autora entregou tais bens à ora insolvente, que se comprometeu a liquidar as rendas durante o prazo de 36 meses, sendo que o valor do aluguer mensal ajustado foi de €1.480,50, acrescido de IVA, renovável por sucessivos períodos de 6 meses, a contar do dia da receção dos bens, o que ocorreu em 15.02.2016, mas com início da contagem do prazo no 1.º dia do mês seguinte, ou seja, em 01.03.2016 e termo inicial em 28.02.2019, pelo que o contrato se renovou, sem dúvidas, em 01.03.2019 e 01.09.2019.
Como se viu a declaração de insolvência da locatária ocorreu em 11.02.2020.
Há assim que apurar o que sucedeu a tal contrato em consequência dessa declaração de insolvência.
Preceitua o art.º 102.º do CIRE, que abre o capítulo dos “Efeitos sobre os negócios em curso” (Capítulo IV do Título IV, relativo aos efeitos da declaração de insolvência e sob a epígrafe “Princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos” que:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.
3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:

a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;
b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efetuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;
c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;
d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:
i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);
ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);

iii) Constitui crédito sobre a insolvência;
e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respetivos montantes.
4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável”.
Por sua vez, consagra o art.º 108.º do CIRE, sob a epígrafe “Locação em que o locatário é o insolvente” que:
“1 - A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior.
2 - Excetua-se do número anterior o caso de o locado se destinar à habitação do insolvente, caso em que o administrador da insolvência poderá apenas declarar que o direito ao pagamento de rendas vencidas depois de transcorridos 60 dias sobre tal declaração não será exercível no processo de insolvência, ficando o senhorio, nessa hipótese, constituído no direito de exigir, como crédito sobre a insolvência, indemnização dos prejuízos sofridos em caso de despejo por falta de pagamentos de alguma ou algumas das referidas rendas, até ao montante das correspondentes a um trimestre.
3 - A denúncia do contrato pelo administrador da insolvência facultada pelo n.º 1 obriga ao pagamento, como crédito sobre a insolvência, das retribuições correspondentes ao período intercedente entre a data de produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente, deduzidas dos custos inerentes à prestação do locador por esse período, bem como dos ganhos obtidos através de uma aplicação alternativa do locado, desde que imputáveis à antecipação do fim do contrato, com atualização de todas as quantias, nos termos do n.º 2 do artigo 91.º, para a data de produção dos efeitos da denúncia.
4 - O locador não pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário com algum dos seguintes fundamentos:
a) Falta de pagamento das rendas ou alugueres respeitantes ao período anterior à data da declaração de insolvência;
b) Deterioração da situação financeira do locatário.
5 -Não tendo a coisa locada sido ainda entregue ao locatário à data da declaração de insolvência deste, tanto o administrador da insolvência como o locador podem resolver o contrato, sendo lícito a qualquer deles fixar ao outro um prazo razoável para o efeito, findo o qual cessa o direito de resolução”.
In casu” defende a ré/massa insolvente/apelante que, tratando-se de um contrato de locação atípico, deverá aplicar-se o preceituado no art.º 102.º do CIRE ao contrato celebrado entre a insolvente e a autora, e consequentemente, o mesmo ficou suspenso por via da declaração de insolvência desta e até que o AI declarasse optar pela execução ou recusar o seu cumprimento.
Vejamos.
Na realidade, o princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração da insolvência é o de que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela sua execução ou recusar o cumprimento, cfr. art.º 102.º n.º1 do CIRE). A aplicação de tal norma pressupõe o preenchimento cumulativo de três requisitos: i) inexistência de regulação especial do negócio nos artigos seguintes ii) existência de um contrato bilateral sinalagmático; iii) não ter havido cumprimento total ou parcial nem pelo insolvente nem pela outra parte.
Os contratos abrangidos pelo art.º 102.º do CIRE ficam com o seu cumprimento suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento, constituindo os créditos do contraente não insolvente meros créditos sobre a insolvência, caso o administrador opte pela recusa do cumprimento (als. c) e d) do n.º3 de tal preceito.
Todavia, nem todos os negócios bilaterais não cumpridos (total ou parcialmente) por ambos os contraentes se encontrarão sujeitos ao regime constante do art.º 102.º, uma vez que o CIRE prevê regimes específicos para determinadas situações, nomeadamente, no aqui nos interessa, nos art.º 104.º e 108.º.
A locação financeira constitui um negócio em curso previsto e regulado no art.º 104.º do CIRE, fixando-lhe a lei um regime idêntico – operações semelhantes – ao da venda com reserva de propriedade e à locação venda, cfr. art.º 104.º n.ºs 1 e 2 do CIRE. Os casos aí regulados são os da insolvência do locador financeiro e a do locatário financeiro, previsto no art.º 104.º, n.ºs 1, 3 e 5 do CIRE, respetivamente.
Ora, como se viu, o contrato subjacente não é qualificável como um típico contrato de locação financeira, mas antes um contrato de locação atípico, pois embora tenha caraterísticas típicas e comuns da locação, cfr. art.º 1022.º do C.Civil, e da locação financeira, DL n.º 149/95, como seja, a concessão temporária do gozo de uma coisa, o caráter temporário e remunerado do negócio e o facto de a propriedade do objeto pertencer ao locador na vigência do contrato. Mas divergem no que concerne à obrigação de proporcionar o gozo da coisa que, na locação em geral tem um conteúdo bem diverso do dever de conceder o gozo do bem no âmbito da locação financeira onde, como é sabido, constitui um mero instrumento de concretização do financiamento da utilização (eventual aquisição), de um bem que é escolhido pelo próprio locatário financeiro, sendo este o fim específico do contrato de locação financeira do art.º 1.º do referido DL n.º 149/95. E também a retribuição num e noutro contrato têm funções bem diversas, já que na locação corresponde à mera contrapartida do gozo da coisa, enquanto na locação financeira engloba outras perspetivas (v.g. o preço de aquisição do bem e o lucro financeiro do locador); sendo ainda as rendas qualificadas como prestações periódicas na locação e, qualificadas como prestações fracionadas na locação financeira.
Apenas na locação financeira a coisa cujo gozo será proporcionado, será adquirida sob indicação ou sob escolha do locatário financeiro; e também o risco de perda ou deterioração do bem, salvo estipulação em contrário, corre por conta do locatário financeiro, encontrando-se este obrigado a efetuar seguro do bem locado, cfr. art.ºs 14.º e 15.º do DL n.º149/95 e o contrato deve prever a opção de compra pelo locatário financeiro, no final do contrato, por um determinado preço.
Assim sendo, “in casu”, atentas as características próprias do contrato subjacente, não é aplicável o regime previsto no art.º 104.º do CIRE.
Mas ser-lhe-á aplicável o regime previsto no art.º 108.º do CIRE, como se entendeu em 1.ª instância?
No que concerne à previsão do art.º 108.º do CIRE, ele aplica-se aos contratos de locação geral, a que se referem os art.ºs 1022.º e seguintes do C.Civil.
Quanto ao contrato de locação geral, a sua noção é dada pelo art.º 1022.º do C.Civil, segundo o qual “Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”. As obrigações do locador estão previstas no art.º 1031.º do C.Civil. E, quanto à restituição da coisa locada, o art.º 1043.º consagra que “1. Na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato. 2. ...".
Na verdade, a declaração de insolvência não afeta, o contrato de locação, em que o insolvente é locatário apenas conferindo, ao administrador da insolvência a possibilidade de lhe pôr termo mediante denúncia. cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, pág.502.
Relativamente ao preceituado no art.º 169 do CPEREF, a que corresponde hoje o art.º 108.º do CIRE, e relativamente à falência do arrendatário (regime este agora alargado à locação em geral) Maria do Rosário Epifânio, in “Os Efeitos Substantivos da Falência”, Publicações Universidade Católica, pág. 355 referia que: “A consagração deste regime de continuidade do arrendamento deve-se à natureza do contrato: uma vez que se trata de um contrato duradouro, enquanto o liquidatário judicial não optar pela extinção do contrato, ao arrendatário continua a ser necessariamente a proporcionado o gozo da coisa e, correspondentemente, ao senhorio deve continuar a ser reconhecido o direito ao pagamento das rendas na íntegra. Isto significa, por outras palavras, que a solução de manutenção do contrato (sem qualquer suspensão da sua execução), se e enquanto o liquidatário não optar pela extinção do contrato, não apresenta a sua razão de ser direta ou imediata na tutela do senhorio in bonis (maxime do pagamento integral das rendas após a declaração de insolvência): pelo contrário, ela fundamenta-se antes na necessidade de proteção do interesse da massa falida, id quod plerumque accidit – ou seja, da necessidade de permitir à massa falida a manutenção do gozo dos bens integrantes da massa falida”.
Como se viu o contrato subjacente, qualificável como um contrato de locação atípico e misto, mormente, e no que concerne à retribuição, conforme o clausulado ela corresponde “à amortização total dos custos do locador incorridos em conexão com a aquisição do bem locado e com a execução do contrato, bem como do lucro estimado”. Ou seja, a obrigação assumida pela ora insolvente é fracionada quanto ao seu cumprimento - o valor do aluguer mensal ajustado foi de €1.480,50 (acrescido de IVA) - mas unitária em si mesma já que cada uma das prestações a cujo pagamento se obrigou reconduz-se a uma fração do montante global, previamente definido, a reembolsar à locadora. Ou seja, as partes não convencionaram a cedência temporária do gozo dos bens a troco de uma renda correspondente ao seu valor de uso e, consequentemente, ao decurso do tempo, antes contratualizaram que cada uma das prestações/rendas a cujo pagamento a ora insolvente se obrigou não é mais do que uma parcela ou fração do montante global, previamente definido, a reembolsar à locadora. Ou seja, a função de tais rendas não é a de remunerar a locadora pela concessão temporária do gozo das coisas locadas, mas reembolsá-lo da quantia que despendeu com a sua aquisição, acrescida dos custos ou remuneração da locadora pela execução do contrato/financiamento.
Em suma, o contrato subjacente, tem características que o fazem divergir significativamente do contrato de locação típico, já que se não pode olvidar que a primordial função do mesmo é o financiamento da utilização ou gozo de determinados bens, bens que a locatária, ora insolvente escolheu, que foram, por tal razão, depois adquiridos pela locadora e entregues à primeira, porá quem passou a correr o risco de perda e deterioração da coisa.
Assim sendo, entendemos que face às características próprias do contrato em causa, que o diferenciam expressivamente do contrato de locação típico, o mesmo não será subsumível ao regime especial previsto no art.º 108.º do CIRE para esse mesmo contrato de locação. E assim, resta socorrermo-nos do regime geral previsto no art.º 102.º do CIRE, ou seja, como se preceitua no n.º1 de tal artigo, com a declaração de insolvência da A..., Ld.ª ocorrida em 11.02.2020, “o cumprimento” do contrato em apreço ficou “suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”. E assim, se o AI optar pela execução do contrato, o crédito da ora autora/apelada será um crédito sobre a massa insolvente, cfr. art.ºs 102.º n.º4 e 51.º n.º1, al. f). ambos do CIRE, mas se optar por recusar o cumprimento, não há lugar à restituição do que foi prestando, ficando a autora/apelada com direito a pedir como créditos sobre a insolvência, o valor das prestações da ora insolvente, na parte incumprida e a indemnização dos prejuízos causados pelo incumprimento.
In casu”, parece-nos quase evidente que o AI não pretende o cumprimento do contrato, todavia, não se pode olvidar o preceituado no n.º2 do art.º 102.º do CIRE e, se assim for, manifesto é de concluir que os créditos invocados nos autos pela autora/apelada não são créditos sobre a massa insolvente, podendo ser créditos sobre a insolvência e como tal deveriam ser reclamados no apenso de reclamação de créditos, cfr. art.ºs 128.º e segs do CIRE, ou então serem peticionados contra a massa insolvente, os credores e a devedora por via da ação para verificação ulterior de créditos, prevista no art.º 146.º do CIRE.
Procedem as conclusões da ré/apelante, havendo de se revogar a decisão recorrida.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e consequentemente, julga-se a ação improcedente, absolvendo-se a ré/apelante do pedido.
Custas pela autora/apelada.

Porto, 2024.05.21
Anabela Dias da Silva
Anabela Miranda
Rodrigues Pires