Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ANABELA MORAIS | ||
| Descritores: | VALOR DA CAUSA TERRENO BALDIO | ||
| Nº do Documento: | RP202510132407/23.6T8PRD-C.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A determinação do valor da causa obedece ao critério fundamental da «utilidade económica imediato do pedido», ou seja, o “valor da causa há-de representar a utilidade económica imediata que pela acção se pretende obter”. II - Para o apuramento do valor da causa ter-se-á que atender, não apenas ao pedido formulado, mas, ainda, à causa de pedir: o pedido desligado da causa de pedir não basta à determinação do valor da acção, também a causa de pedir, por si, não o determina. III - Na aplicação do critério do valor da coisa, quando o objecto do litigio incide apenas sobre parte de uma coisa e não sobre a sua totalidade, só ao valor daquela se deve atender. IV - Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião. V - Sendo o objecto do litígio uma parcela de terreno que a autora pretende ver reconhecida como parte integrante de um terreno baldio, na determinação do valor da acção não há que recorrer ao critério enunciado pelo legislador para determinar o valor da coisa que não se encontra fora do comércio jurídico. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 2407/23.6T8PRD-C.P1
Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo Relatora: Anabela Mendes Morais; Primeiro Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo Segunda Adjunta: Carla Jesus Costa Fraga Torres
I_Relatório A autora Freguesia ... intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra as rés (i) A..., Lda., e (ii) B..., Lda., pedindo que:
Para fundamentar as suas pretensões, alegou, em síntese, que: _ Desde tempos imemoriais, é senhora, possuidora e administradora de um conjunto de terrenos denominados “Baldios” que se situam na sua área geográfica, os quais têm estado sempre na sua posse, gozo e fruição, bem como dos moradores e vizinhos da Freguesia ..., concelho de Paredes. _ Esses terrenos “baldios” eram aproveitados pelas comunidades locais para apascentação de gado, recolha de lenhas e matos e outras utilizações que servissem os moradores da freguesia e moradores vizinhos. _ Em 15 de Março de 1910, foi aprovado, por Alvará do Governo Civil, o Código de Posturas da Freguesia ... que continha as regras de utilização dos baldios e sanções a aplicar aos infractores. _ Por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 4 de Outubro de 1939, foi reconhecido à Autora, o direito e uso exclusivo sobre os referidos terrenos baldios. _ No ano de 1982, aquando da actualização das matrizes prediais, procedeu à reinscrição dos diversos terrenos baldios a seu favor. _ A Autora tem, desde sempre, usado e fruído dos baldios que integram a sua área geográfica, assim como a população da freguesia que pelos mesmos circulam, aproveitam o mato, lenhas e todas as utilidades dos mesmos. _ Entre os terrenos Baldios administrados pela Autora, encontra-se o “...”, sito em ..., Freguesia ..., concelho de Paredes, a confinar de norte com limite da freguesia ..., do nascente com limite da freguesia ..., do Sul e Poente com caminho público, inscrito no Serviço de Finanças de Paredes sob o artigo matricial rústico n.º ..., composto por pinhal e mato, como a área total de 1,120000 (ha), não descrito na Conservatória do Registo Predial. _ No início do ano 2021, a Autora solicitou a elaboração de um levantamento topográfico a fim de confirmar a área efectiva do referido terreno, tendo apurado que por referência, quer aos marcos divisórios implantados no prédio, quer ao muro de telhão existente a nascente e que delimita o limite da freguesia, que a área do mencionado baldio é de 7.925,00 m2 e não a área que consta da caderneta predial. _ A Autora teve conhecimento da apresentação, junto da Câmara Municipal ..., pela Ré B..., Lda., na qualidade de comodatária, de um pedido de licenciamento para construção de uma central de betão. _ No pedido de licenciamento, consta a seguinte identificação do prédio sobre o qual irá incidir a operação urbanística: prédio rústico denominado “...”, inscrito na matriz predial sob o artigo rústico n.º ..., com a área total de 20700 m2, sito no lugar da ..., freguesia ..., concelho de Paredes, a confinar de Norte com AA e carreiro público, de Sul com terrenos baldios da Freguesia ..., Nascente com BB e carreiro público e Poente com CC, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o artigo ..., e cuja propriedade encontra-se registad a favor da Ré - A... Lda. _ Esse prédio confronta a nascente com o mencionado baldio da Autora, existindo um muro de telhão que divide e delimita ambos os prédios. _ A Ré - B..., Lda., no âmbito do referido pedido de licenciamento, requereu e foi-lhe deferido o destaque de uma parcela com a área de 7.283,15 m2, a ser desanexada do baldio denominado “...”. _ Compulsadas as plantas instrutórias juntas com o pedido de licenciamento e o levantamento topográfico elaborado e que delimitam a alegada área do prédio registado a favor da Ré- A... Lda, constatou que a mesma abrange o “...”, pertencendo a este a parcela de terreno a desanexar para efeitos de destaque, com a área de 7.283,15 m2. _ Esse baldio estava e está, por força da lei, fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação privada por qualquer forma ou título, apenas sendo susceptível de ser possuído e gerido pelas comunidades locais e na ausência destas, pela Autora Freguesia .... _ O licenciamento para construção e o destaque daquela parcela de terreno e subsequente registo predial a favor da Ré - A..., Lda., violam a proibição legal enunciada no artigo 6º, n.ºs 3 e 4, da Lei nº 75/2017, de 17 de Agosto, na medida em que abrangem o “prédio” da Autora e consubstanciam a prática de actos de apropriação ilegítima e ilegal de um terreno “baldio”, sendo, portanto, nulos, conforme resulta da conjugação desses artigos – artigos 6º, nºs 3 e 4, da Lei n.º 75/2017, de 17/08 – com o disposto nos artigos 280º e 294º do Código Civil, sendo os efeitos os previstos no artigo 289º deste código, devendo ser extintos por cancelamento todos os actos de inscrição e descrição predial que tenham incidido, ou ainda venham a incidir, sobre o “...”. Nesse articulado, a Autora atribuiu à acção o valor de € 30.000,01.
I.2_ Citadas, as Rés apresentaram contestação, deduzindo defesa por excepção e por impugnação. O valor dado à acção não foi impugnado.
I.3_ Em 12/3/2024, foi proferida decisão, constando da parte decisória: «Na petição inicial, a Autora atribuiu à causa o valor de € 30.000,01. Na contestação das Rés as mesmas aceitaram o valor dado à acção por parte da Autora. Entende porém, a aqui signatária, por verificar um desfasamento entre a realidade e o valor dado à presente acção, atentos os elementos já constantes dos autos, não aceitar o valor indicado pela Autora e aceite pelas Rés para a presente acção. De facto, com a presente acção, a Autora pretende que “a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência: a) Ser o prédio rústico denominado “...”, composto por pinhal e mato, com a área de 7925 M2, sito em ..., Freguesia ..., concelho de Paredes, a confinar de norte com limite da freguesia ..., do nascente com limite da freguesia ..., do Sul e Poente com caminho público, inscrito no Serviço de Finanças de Paredes sob o artigo matricial rústico n.º ..., não descrito na Conservatória do Registo Predial, declarado Baldio; b) Ser ordenado o cancelamento de qualquer descrição predial e inscrição matricial que tenha sido realizada, ou ainda venha a ser, com base na certidão emitida pelo Pelouro do Planeamento e Urbanismo da Câmara Municipal ..., em 20 de outubro de 2021; c) Serem as Rés condenadas a reconhecer que a Autora tem a seu cargo a administração do baldio melhor identificado na alínea a) antecedente do pedido; d) Serem as Rés condenadas à abstenção da prática de qualquer ato sobre o referido prédio melhor identificado na alínea a) antecedente do pedido. e) E, ainda, serem os Réus condenados a pagar as custas e encargos.“. Assim sendo, importa fixar o valor da causa, em consonância com a realidade, com os elementos do processo, com os pedidos feitos, tudo nos termos do disposto nos arts.296º, nº1, 297º, nºs.1, 2, 301º, nº1, 302º, nº1, 306º, nº1 e 310º, nº1, todos do C.P.C. Cumpre apreciar e decidir. Dispõe o art. 297º, nº 1, do C.P.C., que: “Se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela acção se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.”. Já o art. 297º, nº 2, do C.P.C., estatui que: “Cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.”. Para o que neste caso também nos interessa, quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade (…) de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes – cfr. nº1 do art.301º, do C.P.C. Por seu turno, estipula o art.302º, nº 1, do C.P.C. que se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa. Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes – cfr. art.306º, nº1, do C.P.C. Como vimos, a Autora indicou o valor da acção e as Rés não o impugnaram. Porém, de acordo com o disposto no art.308º, do C.P.C., quando o juiz não o aceite (como foi o caso), a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo. Aqui chegados, cabe então “lançar mão” dos elementos constantes do processo para fixação do valor da causa, uma vez que o valor dado à mesma pelas partes se mostra ostensivamente em contradição com a realidade. Para o caso, devemos ter em conta, o que já ficou supra exarado, bem como os pedidos feitos – cfr. art.297º, nº3, do C.P.C. Assim sendo o valor da acção não deverá, nem poderá, a nosso ver, ser inferior a € 126.340,58, e isto porque: - a procedência da acção tem obviamente implícita a apreciação da validade, da modificação ou resolução de um acto jurídico – concretamente da compra e venda celebrada e titulada pelo documento nº2, junto com a contestação aos autos – compra e venda essa que importou o valor de € 330.000,00; - uma vez que a área do prédio objecto do acto jurídico cuja validade aqui está em causa (20.700,00m2) excede a área reivindicada pela Autora, a nosso ver, o valor da acção deverá ser correspondente ao valor encontrado para a área aqui em causa – 7.925,00m2. Ante o exposto, ao abrigo dos artigos supra citados, decido fixar o valor da causa em € 126.340,58. Em consequência e ao abrigo dos arts. 310º, nº 1, do C.P.C. e 117º, nºs 1, alínea a), e 3, da Lei nº 62/2013, de 26.08, determino a remessa dos autos para a Secção Cível da Instância Central de Penafiel do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este. * Custas do incidente, que fixo no mínimo legal, a suportar pela Autora - cfr. arts. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C. e 7º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais. * Registe, notifique e, oportunamente (transitado), cumpra nos termos determinados.». I.4_ Em 19/4/2024, foi efectuada a transferência electrónica dos autos para o Juízo Central Cível. I.5_ Inconformadas, as Rés A..., LDA. e B..., LDA., por requerimento apresentado em 26/4/2024, interpuseram recurso da decisão proferida em 13/3/2024, formulando as seguintes conclusões: “1. O recurso ora submetido à mui criteriosa apreciação de Vossas Excelências vem interposto da douta Sentença que fixou o valor da causa em € 126.340,58 (cento e vinte e seis mil, trezentos e quarenta euros e cinquenta e oito cêntimos) e em consequência determinou a incompetência do Tribunal a quo. 2. O Tribunal entendeu na sentença recorrida que a presente ação tem por objeto a apreciação da existência, validade, modificação ou resolução do contrato de compra e venda que titulou a aquisição do prédio rústico denominado por «...» pela 1.ª Ré. 3. Pelo que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 301.º do CPC, e tendo ainda em consideração o preço estipulado no referido contrato e a área do prédio que a Autora reclama ser baldio (7.925,00 m2), o Tribunal fixou proporcionalmente o valor da causa em €126.340,58 (cento e vinte e seis mil, trezentos e quarenta euros e cinquenta e oito cêntimos). 4. Entendimento com o qual as Recorrentes não podem conformar-se por entenderem que o Tribunal a quo efetuou uma menos acertada e ponderada interpretação e aplicação do Direito. 5. Cabe às partes carrear para os autos os factos que constituem a sua causa de pedir que sustenta e donde resulta a pretensão por si deduzida (vide artigo 5.º, n.º 1, artigo 552.º, n.º 1, alínea d), artigo 571.º e artigo 574.º do CPC). 6. A causa de pedir e o pedido formulado pela Autora definem o objeto da ação, donde, por sua vez, resulta a utilidade económica da procedência da ação – o que constitui o valor da causa. 7. Tal como a ação se encontra configurada constitui objecto da ação a questão de saber se (1) o prédio rústico denominado «...» consiste, de facto, num terreno baldio, na aceção da Lei n.º 75/2017, de 17/08, (2) se parte da área do prédio rústico denominado «...» integra o prédio referido em (1) – e qual área em concreto – e (3) se a administração do prédio rústico identificado em (1) cabe à Autora. 8. Com a presente ação a Autora visa o reconhecimento de um direito de aproveitamento de um logradouro comum que é o terreno baldio. 9. O que não é mais do que um pedido de reconhecimento de um direito real a se, de titularidade difusa e que faculta a cada um dos compartes a posse limitada às faculdades de uso e fruição das utilidades da coisa. 10. A nulidade do contrato de compra e venda que titula a aquisição do prédio «...» pela 1.ª Ré não é objecto dos presentes autos. 11. A Autora, no pedido por si formulado, não requer a nulidade do referido contrato. 12. Ainda que expressamente o formulasse, a verdade é que tal pedido é meramente dependente, subordinado, não autónomo, secundário e consequencial relativamente à causa de pedir e ao pedido relativo ao reconhecimento do direito real. 13. Na estrita medida em que tal pedido apenas procede se proceder o pedido relativo ao reconhecimento do direito real e de que a sua titularidade pertencente realmente à Autora. 14. O mesmo se passando com o pedido efectivamente deduzido de cancelamento de qualquer descrição predial e inscrição matricial. 15. O valor da causa deve ser fixado em função do único pedido autónomo, relativo ao reconhecimento do direito real a se, ao contrário do que decidiu o douto Tribunal recorrido. 16. Nos termos do n.º 4 do artigo 302.º do CPC, quando a ação tem por fim valer outro direito real que não o direito de propriedade deve atender-se ao seu conteúdo e duração provável. 17. A este propósito pronunciou-se já o Tribunal da Relação de Coimbra afirmando que, para efeitos da referida norma, deve atender-se às utilidades, ainda que futuras ou eventuais, proporcionadas ao titular do direito, enquanto benefícios ou utilidades com eventual e direta repercussão no respetivo património do seu titular. 18. In casu, a utilidade proporcionada é a exploração de um logradouro comum que permite, entre outras coisas, um espaço para apascentação de gado, captação de lenhas, matos, culturas e caça, podendo ainda constituir um local de desenvolvimento cultural, social e desportivo da comunidade que o aproveita. 19. Tendo sempre em consideração a área do prédio «...» que a Autora reclama ser baldio e parte integrante do prédio «...», que se cifra em 7.283,15 m2 - e não em 7.925,00 m2 como o Tribunal defendeu na sentença recorrida, uma vez que esta última corresponde à alegada área total do prédio «...» - e ainda o preço médio de mercado do metro quadrado no concelho de Paredes, que se encontra estabelecido na quantia de € 1,246/m2 . 20. Face ao exposto, o conteúdo do direito real a se em causa nos presentes autos representa uam benefício económico de pelo menos € 30.000,01. 21. Devendo ser esse o valor da causa. 22. Caso assim não se entenda, e uma vez que está em causa um interesse imaterial e difuso, cuja titularidade cabe a todos e cada um dos membros de uma classe ou grupo – in casu, aos compartes -, recaindo sobre um bem que pode ser gozado de forma concorrente e não exclusiva, sempre será de aplicar o critério ínsito no n.º 1 do artigo 303.º do CPC, fixando-se, também por esta via o valor da acção em € 30.000,01. 23. Entendem as Recorrentes que o Tribunal a quo efetuou uma menos acertada interpretação e aplicação do Direito, nomeadamente do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 571.º, 574.º, 296.º, 302.º, n.º 4 e 303.º, n.º 1, todos do CPC. TERMOS EM QUE, NOS MAIS DE DIREITO E COM MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida nos termos supra expostos.»
I.6_ Não foram apresentadas contra-alegações.
I.7_ Não tendo sido admitido o recurso, pelas Recorrentes foi deduzido o incidente de reclamação, o qual foi julgado procedente.
I.8_ Corridos os vistos, cumpre decidir.
II_ Questão Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso. Assim, perante as conclusões da alegação das recorrentes há que apreciar e decidir se o valor da acção fixado pelo Tribunal a quo é o correcto ou, ao invés, é-o o proposto pelas Recorrentes.
III_ Fundamentação de facto Os factos a considerar são os referidos no relatório que antecede.
IV_ Fundamentação de direito Insurgem-se as recorrentes contra a decisão que fixou o valor da acção em €126.340,58 (cento e vinte e seis mil, trezentos e quarenta euros e cinquenta e oito cêntimos), sustentando que pelo Tribunal a quo foi efectuada uma “menos acertada interpretação e aplicação do Direito, nomeadamente do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 571.º, 574.º, 296.º, 302.º, n.º 4 e 303.º, n.º 1, todos do CPC”. Dissentem da aplicação do critério estabelecido no n.º 1 do artigo 301.º do CPC e do recurso ao preço estipulado no contrato de compra e venda que titulou a aquisição do prédio rústico denominado por «...», pela 1.ª Ré, bem como à área do prédio que a Autora reclama ser baldio (7.925,00m2), sustentando que a presente acção não tem por objecto a apreciação da existência, validade, modificação ou resolução desse contrato, nem constar do pedido, formulado pela Autora, a declaração de nulidade do mesmo. Advogam que a causa de pedir e o pedido formulado pela Autora definem o objecto da acção, donde, por sua vez, resulta a utilidade económica da procedência da acção, o que constitui o valor da causa. A presente acção, tal como se encontra configurada, tem por objecto, “saber se (1) o prédio rústico denominado «...» consiste, de facto, num terreno baldio, na acepção da Lei n.º 75/2017, de 17/08, (2) se parte da área do prédio rústico denominado «...» integra o prédio referido em (1) – e qual a área em concreto – e (3) se a administração do prédio rústico identificado em (1) cabe à Autora”. Concluem que a Autora, com a presente acção, visa o reconhecimento de um direito de aproveitamento de um logradouro comum que é o terreno baldio, ou seja, o “reconhecimento de um direito real a se, de titularidade difusa e que faculta a cada um dos compartes a posse limitada às faculdades de uso e fruição das utilidades da coisa”, sendo meramente dependente, subordinado, não autónomo, secundário e consequencial relativamente à causa de pedir e ao pedido relativo ao reconhecimento do direito real, o pedido de cancelamento de qualquer descrição predial e inscrição matricial. Assim sendo, o “valor da causa deve ser fixado em função do único pedido autónomo, relativo ao reconhecimento do direito real a se”, com recurso ao critério fixado no n.º 4 do artigo 302.º do CPC que dispõe “quando a ação tem por fim valer outro direito real que não o direito de propriedade deve atender-se ao seu conteúdo e duração provável”. Com apoio no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 19/3/2019, sustentam que para efeitos do nº4 do artigo 302º do CPC, deve atender-se às utilidades, ainda que futuras ou eventuais, proporcionadas ao titular do direito, enquanto benefícios ou utilidades com eventual e direta repercussão no respetivo património do seu titular”. No caso, a “utilidade proporcionada é a exploração de um logradouro comum que permite, entre outras coisas, um espaço para apascentação de gãos, captação de lenhas, matos, culturas e caça, podendo ainda constituir um local de desenvolvimento cultural, social e desportivo da comunidade que o aproveita. Assim, tendo em consideração “a área do prédio «...» que a Autora reclama ser baldio e parte integrante do prédio «...», que se cifra em 7.283,15 m2 - e não em 7.925,00 m2 como o Tribunal a quo defendeu na sentença recorrida, uma vez que esta última corresponde à alegada área total do prédio «...» - e, ainda, ao preço médio de mercado do metro quadrado no concelho de Paredes, que se encontra estabelecido na quantia de €1,246/m2,(…) o conteúdo do “direito real a se” em causa nos presentes autos representa um benefício económico de, pelo menos, € 30.000,01.». Caso assim não se entenda, e uma vez que está em causa um interesse imaterial e difuso, cuja titularidade cabe a todos e a cada um dos membros de uma classe ou grupo – in casu, aos compartes -, recaindo sobre um bem que pode ser gozado de forma concorrente e não exclusiva, sempre será de aplicar o critério ínsito no n.º 1 do artigo 303.º do CPC, fixando-se, também, por esta via o valor da acção em €30.000,01. Cumpre apreciar e decidir. De harmonia com o disposto no artigo 296º, nº1, do C.P.Civil, a determinação do valor da causa obedece ao critério fundamental da «utilidade económica imediato do pedido» que, na maior parte das vezes, resulta do confronto entre o pedido ou pedidos formulados e a sua representação económica (cfr. artigos 297º, nº1, 1ªparte; 301º, nº1, e 302º, do CPC). À luz da ideia de que o pedido representa a «utilidade económica imediata do pedido» e como critério geral da respectiva definição, estabelece-se na primeira parte do nº1 do artigo 297º do C.P.Civil que “se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário”. Estipula-se na segunda parte do nº1 do citado artigo 297º que “se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício”, ou seja, o valor da causa determinar-se-á pela tradução pecuniária desse benefício. Nesta situação, para o apuramento do valor da causa ter-se-á que atender, não apenas ao pedido formulado, mas, ainda, à causa de pedir. Como referem Lebre Freitas e Isabel Alexandre[2], «[h]á, porém, que ter em conta que o pedido se funda sempre na causa de pedir [que] o explica e delimita. Dela não abstrai o critério da utilidade económica imediata do pedido, pelo que este não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir, para apuramento do valor da causa. [Tal] como o pedido desligado da causa de pedir não basta à determinação do valor da acção, também a causa de pedir, por si, não o determina.» Procede, assim, a pretensão recursória pelo que se impõe a revogação da decisão que fixou o valor da acção em €126.340,58 (cento e vinte e seis mil, trezentos e quarenta euros e cinquenta e oito cêntimos). * A lei define como momento relevante para determinar o valor quando a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações posteriores, tais como, a ampliação, redução ou alteração do pedido. Assim, em regra, o circunstancialismo relevante para o apuramento da competência do tribunal fixa-se no momento em que a acção é proposta. Esta regra geral comporta excepções, nomeadamente no caso de dedução de pedido reconvencional (cfr. artigo 299º, nº1, do CPC). De harmonia com o disposto no artigo 310º, nº1, do Código de Processo Civil, fixado, à presente acção, o valor de €30.000,01, a consequência seria a remessa do processo ao Juízo local, por este ser o competente, a determinar oficiosamente. Fixado ao presente recurso efeito meramente devolutivo, a acção prosseguiu os seus ulteriores termos, encontrando-se, no presente, na fase de julgamento[17], tendo já sido dado início à produção de prova. Como ensina Salvador da Costa[18] ,“o valor processual da causa consubstancia a sua utilidade económica, configurada na petição inicial, independentemente de depois disso algum facto a haver alterado. Assim, as partes, ao indicarem o valor processual da causa ou ao impugná-lo, bem como o tribunal ao fixá-lo, devem considerar a situação existente ao tempo da propositura da acção”. Um dos princípios que rege o processo civil é o da estabilidade da instância. A estabilidade da instância encontra-se expressamente consagrada no artigo 260º do CPC e tem em vista evitar que os elementos subjectivos ou o objecto do processo possam ser livremente modificados pelas partes, com isso prejudicando o regular andamento da causa e impedindo ou dificultando a actividade do tribunal a quem compete administrar a justiça. Em conformidade com o princípio da estabilidade da instância, depois de citado o réu, a instância deve manter-se quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvaguardando-se as possibilidades de modificação [objectivas e subjectivas] consignadas na lei. Referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[19] (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil. Os Artigos da Reforma, Vol. I, Almedina, p. 264), “[a] excepção ao princípio da estabilidade da instância, permitindo-se que o seu vértice seja alterado, só deve ser autorizada para dar satisfação a um outro princípio: o acesso (pela contraparte) ao direito ao julgamento mais garantístico realizado por uma grande instância cível (na terminologia adotada na reforma da organização judiciária). Se não estiver em causa uma preterição do direito ao julgamento por instância de categoria superior, o princípio da estabilidade da instância não pode ser violado – a satisfação de qualquer outro princípio não o justifica ou cauciona, não determinando a alteração do valor da causa a alteração do tribunal competente.». A razão de ser do diverso tratamento dado à situação em que é fixado à causa um valor superior ao indicado pelo autor – remessa oficiosa para o tribunal competente – e à situação em que é fixado à causa um valor inferior ao inicialmente indicado pelo autor – caso em que o tribunal mantém a sua competência –, “é a de que sendo mais garantístico o julgamento realizado na instância central, as partes dele não devem ser privadas por o autor ter atribuído à causa um valor inferior ao real (o que não acontece no inverso)” [21]. * Custas Nenhuma das partes deu causa ao incidente de verificação do valor da acção, tendo o valor da acção sido oficiosamente fixado em €126.340,58 (cento e vinte e seis mil, trezentos e quarenta euros e cinquenta e oito cêntimos). As Rés interpuseram o presente recurso, não tendo a Autora apresentado resposta. Procedendo o recurso, ambas as partes tiram proveito da decisão. Assim, atento o critério do proveito, constante do segmento final do nº 1 do artigo 527º do CPC, devem ser repartidas as custas do incidente e do recurso, de modo igual, entre as partes (art. 527º, nºs1 e 2, do C.P.Civil). * V_ Decisão Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência, decide-se: Custas do incidente de verificação do valor da acção e da apelação a suportar, de modo igual, por ambas as partes (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). * ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Anabela Morais; Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo Carla Fraga Torres ____________________ [1] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, 1946, pág. 591. [2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed, Almedina, 2021, pág. 601. [3]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/3/2025, proferido no processo nº1641/24.6T8STS-A.P1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/cd75374f82ec19d480258c590058dcdd?OpenDocument. [4] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, 1946, pág. 626. [5] Constituem acções tendentes à tutela de interesses difusos, no caso dos consumidores, a acção inibitória destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos dos consumidores que atentem contra a sua saúde e segurança física, ou se traduzam no uso de cláusulas proibidas, ou consistam em práticas comerciais expressamente proibidas por lei (artigos 10º e 11º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho). [6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires e Sousa, Código de Processo Civil Anotado - Parte Geral e Processo de Declaração, vol. I, 3ªedição, Almedina, 2022, pág. 389. [7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Almedina, 2021, pág. 601. [8] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13ªedição Actualizada e ampliada, Almedina, 2024, pág. 46. [9] Eurico Lopes-Cardoso, Os Incidentes da Instância, 5ªedição, Almedina, 2008, pág. 47. [10]Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº131/23.9T8VLN-A.G1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/5eedb35d6c158ddd80258aec004ca9ea?OpenDocument. [11] Acórdão proferido no processo nº5991/17.0T8VIS-A.C1 e acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2019:5991.17.0T8VIS.A.C1.64. [12] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, 1946, pág. 594. [13] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº131/23.9T8VLN-A.G1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/5eedb35d6c158ddd80258aec004ca9ea?OpenDocument. [14] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13ªedição Actualizada e ampliada, Almedina, 2024, pág. 69. [15] Acórdão de 24/10/2019, proferido no processo nº850/13.8T8LSA.C1.S2, acessível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2019:850.13.8T8LSA.C1.S2.B0?search=ABB9y3alRL3RlKyP_dA. [16] Eurico Lopes-Cardoso, Os Incidentes da Instância, 5ªedição, Almedina, 2008, pág. 52. [17] Conhecimento da fase dos autos principiais obtido mediante acesso ao processo, via Citius. [18] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13ª ed., Almedina, pág. 34. [19] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil. Os Artigos da Reforma, Vol. I, Almedina, pág. 264. [20] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4.ªed., Almedina, 2021, págs. 618 e 619. [21] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4.ªed., Almedina, 2021, págs. 618 e 619. |