Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1849/20.3T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DAS DELIBERAÇÕES
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Nº do Documento: RP202106081849/20.3T8MTS.P1
Data do Acordão: 06/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I –As ações de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser intentadas contra o(s) condómino(s).
II – A legitimidade processual não se confunde com a personalidade judiciária e são distintos os pressupostos em que assentam cada um dos institutos.
III – Sem prejuízo de o artigo 1433.º, n.º 6, do Código Civil permitir ao administrador do condomínio ou a pessoa que a assembleia de condóminos designar a representação judiciária dos condóminos contra quem as ações são propostas, apenas aos condóminos que aprovaram as deliberações impugnadas está investida a legitimidade processual passiva para a demanda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1.849/20.3T8MTS.P1
Sumário
(artigo 663º, nº7 do CPC)
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Acórdão
I – Relatório
B…, Lda. propôs a presente ação contra C…, todos devidamente identificados nos autos, peticionando que seja declarada nula ou, subsidiariamente, anulada a deliberação de assembleia de condóminos aprovada com o voto do réu.
Após contraditório, o tribunal recorrido proferiu decisão final na qual conclui que, em casos como o dos autos, “a solução com melhor estribo legal é a que impõe que a presente ação seja proposta contra o condomínio, representado pela sua administração”.
Desta forma, na respetiva parte dispositiva, julgou o réu condómino parte ilegítima e ao abrigo do disposto nos artigos 30, 278º/1/d), 576º/2, 577º/e) e 578º, do Código de Processo Civil, absolveu o mesmo da instância com custas a suportar pelo autor.
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A empresa autora não se conformou com o decidido e deduziu o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A. A Douta Sentença recorrida viola o estatuído no art.º 1433º n.º 6 do Cód. Civil.
B. Não pode haver uma interpretação contrária à própria letra da lei.
C. A acção de anulação de deliberações da Assembleia de Condomínio deve ser intentada contra o condómino presente e não contra o Condomínio.
D. Pelo que, o Apelado é parte legitima.
E. E em consequência deve ser revogada a Douta Sentença recorrida e substituída por outra que considere o Apelado parte legítima e que a ação prossiga os ulteriores termos processuais .
II – Delimitação do objeto do recurso; questões a apreciar.
O objeto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações dos recorrentes. Deste modo, haverá apenas uma única questão a dirimir: apurar da legitimidade processual do réu demandado.
III -Fundamentação de Direito
A sentença aplicável explicita, nos respetivos fundamentos da decisão, a questão sob escrutínio e os motivos pela opção tomada.
Assim, em síntese breve, explica-se que a presente ação se insere no âmbito das relações jurídicas que se estabelecem no âmbito do condomínio, integrando este um órgão deliberativo, a assembleia de condóminos, e um órgão executivo, o administrador do condomínio (arts. 1430º e ss , do CCivil). Importaria apurar se a presente acção deveria ter sido proposta contra o condómino que votou favoravelmente a deliberação em crise, se contra o condomínio (representado pela sua administração).
O tribunal “a quo” entende que se deveria optar pela segunda opção.
E embora refira que o art. 1433º do Código Civil indique deverem ser partes os “condóminos contra quem são propostas as ações”, afirma que tal redação é anterior à reforma de 94 e não foi objeto da necessária atualização, sendo que só com a Reforma de 1995/1996, o artigo 6.º, alínea e) do CPC estendeu a personalidade judiciária ao condomínio.
Citando o aresto de 13-02-2017 desta Relação do Porto, explica que “quando no nº 6, do artigo 1433º, do Código Civil se faz referência aos condóminos, o legislador incorreu nalguma incorreção de expressão e de facto parece ter-se tido na mira, uma entidade coletiva, a assembleia de condóminos corporizada pelos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada, o condomínio vinculado pelas deliberações impugnadas e cuja execução compete ao administrador, como já antes se viu”.
Deste modo, termina, sempre seguindo o acórdão em causa, por entender que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos, compete ao condomínio, representado pelo administrador, pois que se a este cabe executar as deliberações da assembleia de condóminos (artigo 1436º, alínea h), do Código Civil), por igualdade de razão, cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.
Discorda, naturalmente, a recorrente.
E fá-lo, invocando igualmente doutrina e jurisprudência atinente, com o argumento que a personalidade judiciária do condomínio não se destina à ação de anulação de deliberações sociais no âmbito do disposto no art. 1437.º do Código Civil, pelo que estando em causa deliberações aprovadas com o voto do único condómino presente, C…, ora apelado, será contra este que se deve dirigir a presente ação.
Cumpre tomar posição, devidamente, sobre a descrita polémica.
Desde logo, enunciemos os preceitos legais que regulam estas matérias e que, efetivamente, parecem acobertar a tese defendida pela apelante.
Assim, de acordo com o artigo 12º, alínea e) do Código de Processo Civil, a personalidade judiciária estende-se ao condomínio, embora circunscrita às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador. E isto porque tal norma remete diretamente para o artigo 1437º do Código Civil e também para o artigo 1436º que discrimina as diversas funções que competem ao administrador, nas quais se inclui apenas a execução das deliberações da assembleia (alínea h), do artigo 1436º do Código Civil). Finalmente, o nº 6, do artigo 1433º do Código Civil prevê que a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as ações compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito (negrito nosso).
Não valerá muito a pena descrever as posições opostas sobre esta matéria quer da doutrina quer da jurisprudência; tal tarefa de investigação e recolha encontra-se presente já em vários arestos jurisprudenciais facilmente acessíveis nas bases de dados jurisprudenciais.
Por todos, elenque-se o Acórdão desta Relação do Porto, já citado na sentença apelada, presente no processso nº 232/16.0T8MTS.P1, de 13 de fevereiro de 2017.
Nela pode ler-se: “Os recorrentes pugnam pela revogação da decisão recorrida sustentando que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos compete ao condomínio e não aos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada. (...)A questão decidenda tem dividido a jurisprudência dos tribunais superiores, embora a que provém do Supremo Tribunal de Justiça seja maioritária no sentido da decisão recorrida. A doutrina também se apresenta dividida e, nalguns casos, com algumas ambiguidades, embora pareça dominante a que se pronuncia no sentido sustentado pelos recorrentes.”
Depois, citam-se, com explicitação dos mesmos, quinze arestos, nove no sentido defendido pela decisão recorrida e seis em sentido contrário, ao passo que na doutrina citam-se igualmente diversos autores com posições díspares. Nomeadamente, alude-se a Abrantes Geraldes, o qual afirma pertencer a legitimidade passiva aos condóminos que tenham aprovado a deliberação, conforme resulta do art. 1433.º, n.º 6, do CC, e elencam-se autores que defendem esta mesma tese como Miguel Mesquita, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre e ainda, embora “com alguma ambiguidade”, Lopes do Rego.
Por sua vez, a decisão mais recente deste nosso Tribunal da Relação sobre este dissídio que nos foi possível recensear, podendo existir outras, data de 26 de outubro de 2020, processo nº 902/19.0T8PFR.P1, detalhando-se no respetivo sumário que “em ação de impugnação de deliberação de assembleia dos condóminos instaurada ao abrigo do disposto no artigo 1433º nº 1 do CC e adotando uma interpretação atualista do nº 6 deste mesmo artigo, é o condomínio representado pelo seu administrador ou pessoa que a assembleia designar quem deve ser demandado.”
Este manifesto conflito entre duas posições antagónicas relativamente a uma orientação que nega a legitimidade processual passiva do condomínio com uma outra que a atesta surge-nos igualmente retratado no Acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Março de 2019, processo nº 26294/17.4T8LSB.L1-2, em que a decisão foi inclusivamente tomada por maioria, com um voto de vencido no coletivo de juízes.
Diremos, numa síntese possível, que se defrontam, no essencial, duas teses: uma que, em nome de uma maior agilização processual, atribui a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos ao condomínio, representado pelo administrador, “pois que se a este cabe executar as deliberações da assembleia de condóminos (artigo 1436º, alínea h), do Código Civil), por igualdade de razão, cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio” (citamos o acórdão desta Relação de 2017) com uma outra, mais atreita à letra da lei, e que Miguel Teixeira de Sousa resumiu no seu blog em publicação muito recente, de Maio deste ano, disponível neste link (https://blogippc.blogspot.com/2021/05/jurisprudencia-2020-209.html), na qual entendeu discordar da orientação dos citados acórdãos desta Relação, em particular o de 26 de Outubro de 2020. Neste sentido, o Autor escreve: “Salvo o devido respeito, o acórdão (aludindo ao de 26.10.2020) - e a orientação que a ele está subjacente -- padece de um equívoco. Para se justificar uma "interpretação actualista" do art. 1433.º, n.º 6, CC é necessário que tenha havido alguma mudança legislativa que imponha que, onde nesse preceito se lê "condóminos", se deva ler "condomínio". Ora, a única alteração legislativa que se verificou foi a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio através do disposto no art. 12.º, al. e), CPC. Isso sucedeu, no entanto, não de forma irrestrita, mas apenas "relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador". Qualquer que seja o sentido que se atribua a esta expressão, é claro que: - A acção de impugnação de uma deliberação da assembleia de condóminos não é uma acção respeitante aos poderes do administrador, dado que o art. 1436.º CC não atribui ao administrador nenhuns poderes para a impugnação de deliberações sociais, nem, muito menos, para ser demandado na acção de impugnação de uma deliberação social; - A acção de impugnação de uma deliberação da assembleia de condóminos não é uma acção respeitante às relações entre o condomínio e o administrador, pelo que, nesta base, também não pode ser reconhecida personalidade judiciária (nem legitimidade processual) ao condomínio.
Em suma: qualquer que seja a interpretação que se faça do disposto no art. 12.º, al. e), CPC (sendo certo que a interpretação aceitável é a segunda), nenhuma delas permite atribuir personalidade judiciária ao condomínio numa acção de impugnação de uma deliberação social.
Para além desta opção pela vertente legalmente mais consentânea com a redação do artigo 1436º, nº6 do Código Civil que estabelece serem estas ações propostas “contra os condóminos” e não contra o condomínio ou quem o administra, parece-nos que se perfilam outras três ordens de razões a tender nesta mesma direção.
Um primeiro motivo decorre da própria natureza deste tipo de litígios. Na verdade, o que se pretende pôr em causa é a posição, individualmente assumida, por aqueles que votaram favoravelmente a deliberação que se pretende impugnar; ora, estes são os condóminos e só estes - nada concerne ao condomínio no seu todo ou ao seu administrador, enquanto tal. Resulta claro que tal voto surge no contexto do exercício da livre autonomia privada em função de interesses concretos e específicos de cada condómino em nada subsumíveis aos interesses coletivos do condomínio. Estão sempre em causa litígios entre condóminos, no caso até apenas dois, um que votou favoravelmente uma determinada deliberação e outro que se opõe a esta. A circunstância de estarmos perante um único condómino demandado torna ainda mais impressivo o argumento ora expendido.
Ou seja, a questão da impugnação das deliberações é uma questão entre condóminos e a discrepância entre a posição destes decorre das posições individuais de cada um deles – por isso, a legitimidade para impugnar e para defender a deliberação sempre deve radicar nos próprios condóminos.
Uma segunda ordem de razões assume uma natureza conceptual.
A legitimidade processual não se confunde com a personalidade judiciária, sendo, manifestamente, distintos os pressupostos em que assentam os institutos respetivos.
A atribuição de personalidade judiciária ao condomínio através do disposto no art. 12.º, al. e) do CPC não confere, necessariamente, a este a possibilidade de se assumir como parte em todas as ações que envolvam a assembleia de condóminos. Como vimos acima e sublinha Miguel Teixeira de Sousa, isso acontece apenas “relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador” e nessas não se elenca a presente ação. Neste sentido, perfilhamos a solução propugnada por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, pág. 122), a propósito do artigo 383º do CPC relativamente à legitimidade processual ativa e passiva no pedido de suspensão das deliberações da assembleia de condóminos, situação em tudo similar à deste tipo de ações de impugnação, em sede principal, das deliberações desta assembleia. Neste mesmo sentido, escrevem os autores: “tem legitimidade para requerer a suspensão quem a tem para propor a ação de anulação: qualquer condómino que não tenha aprovado a deliberação (art. 1433-1 CC). A suspensão há de ser pedida contra os restantes condóminos, representados pelo administrador ou por pessoa que a assembleia designe para o efeito (n.º 2 e art. 1433-6 CC). Na falta desta designação, é, pois citado para o procedimento cautelar o administrador do condomínio.”
Haverá, portanto, que distinguir entre aquele a quem cabe a legitimidade passiva quer na suspensão das deliberações da assembleia quer, como no nosso caso, na ação de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos - a nosso ver, cabe aos condóminos – com aquele a quem possa caber, depois, a sua representação, eventualmente ao administrador.
A alínea e) do art. 12.º do CPC diz respeito à personalidade judiciária e à extensão da mesma; mas o que está em causa, no nosso caso, entronca noutro âmbito distinto, restrito, relativo à legitimidade processual. Ora, nos termos do n.º 3 do art. 30.º do CPC a determinação da legitimidade deve ser aferida em função da titularidade da relação material controvertida e, como vimos, apenas aos condóminos, e não ao condomínio, essa titularidade pode ser imputada tendo em conta, justamente, a controvérsia subjacente a esta relação material.
A legitimidade passiva na ação de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos cabe a cada um dos condóminos e, dentro destes, apenas àqueles que votaram favoravelmente as deliberações, na medida em que são os únicos que reúnem interesse em contradizer no âmbito da relação material controvertida.
Estes considerandos remetem-nos para um argumento final, concernente à própria substância do conflito, já acima aflorado e que igualmente nos parece ponderoso: a intervenção do condomínio, representado em juízo pelo administrador, vincula, responsabiliza todos os condóminos ou, pelo menos, todos aqueles que não tenham intentado, do lado ativo, as ações de impugnação ou anulação; deste modo, como consequência dessa responsabilização que se repercute, nomeadamente, em sede de instância executiva de sentença proferida contra o condomínio, “os respetivos condóminos podem ser igualmente demandados na medida dos limites dos valores de cada uma da(s) fracção(es) autónomas respetivas” (citamos acórdão por nós relatado em 24 de Janeiro de 2017, processo nº7496/07.8YYPRT-B.P1).
Sucede que esta responsabilização dos condóminos, apenas atribuível caso reconheçamos legitimidade processual passiva ao condomínio, não fará, salvo melhor opinião, qualquer sentido relativamente àqueles condóminos que, não tendo sequer aprovado a deliberação, se arriscam a ser chamados a responsabilizar-se, em caso de improcedência da posição assumida pelo condomínio que pugnou pela validade da deliberação em causa (v.g. através do pagamento de custas, incluindo as de parte, ou do pagamento de honorários judiciais).
Em síntese conclusiva: considerando o teor da norma legal aplicável (artigo 1433.º, n.º 6 do Código Civil) que, mal ou bem, impõe que esta ação seja intentada contra o(s) condóminos; considerando a natureza deste tipo de ações que diz respeito aos interesses particulares de cada condómino, conflituantes entre si, e não a um qualquer interesse comum do condomínio; considerando estar em causa uma questão de legitimidade processual e não uma extensão da personalidade judiciária concedida ao condomínio, aliás afastada na lei, e considerando, finalmente, que não faria sentido impor, neste tipo de ações, uma responsabilização indireta ou mediata aos condóminos por força de uma intervenção processual autónoma do condomínio, entendemos dever perfilhar a posição defendida no recurso deduzido quanto à legitimidade processual passiva do condómino demandado.
O presente recurso será, portanto, integralmente provido.
IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se revogar a sentença recorrida, considerando-se o apelado parte legítima, devendo a presente ação prosseguir os ulteriores termos processuais.
Custas pelo apelado.

Porto, 8 de Junho de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues