Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | FILIPE CAROÇO | ||
| Descritores: | RELEVÂNCIA NEGATIVA DE CAUSA VIRTUAL NEXO CAUSAL SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA DETERMINAÇÃO E CONCRETIZAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP202110282126/18.5T8GDM.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Para efeito de nexo causal, na sua formulação negativa, que o nosso sistema jurídico acolhe, a condição deixará de ser causa do dano, sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo inadequada para este dano. O autor do facto será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto, que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem adequadamente produzido ou que não seriam prováveis. II - Existe nexo causal relevante entre o facto praticado pelo réu de fazer circular abusivamente um veículo no seu interesse próprio e o prejuízo daí resultante para o autor, seu proprietário, por se manter sujeito passivo de IUC e destinatário de notificações para pagamento de coimas e taxas de portagem relativas àquela circulação pelo réu, quando o automóvel lhe fora entregue pelo autor, assim como o respetivo DUA, com o fim de o desmantelar e abater por ter sido classificado como perda total em acidente de viação, violando o réu este contrato. III - Resulta do art.º 829º-A do Código Civil que a sanção pecuniária compulsória prevista no n.” 1 tem de ser determinada e concretizada nos seus termos, de forma casuística e equitativa, mediante decisão judicial, sendo designada de sanção pecuniária compulsória judicial; já a sanção pecuniária compulsória prescrita no n.° 4 emerge da própria lei, de modo taxativo e automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária, sem necessidade de intermediação judicial, tomando a designação de sanção pecuniária compulsória legal ou de juros legais compulsórios. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Proc. nº 2126/18.5T8GDM.P1 (apelação) Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – J 3 Relator Filipe Caroço Adj. Desemb. Judite Pires Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. B..., com o NIF ……..., residente em ..., . - …., ..., Zurique, Suíça, instaurou ação declarativa com processo comum contra C... – ... UNIPESSOAL, LDA., NIPC ……..., com sede na Rua do ..., nº ..., ….-... ..., Gondomar, alegando essencialmente que vendeu e entregou à R. um veículo acidentado, como perda total, para desmontagem e abate, ficando ela com a possibilidade de aproveitar algumas das peças que o integram, dali decorrendo o seu dever de comunicar às entidades competentes, incluindo o Instituto da Mobilidade e Transportes (IMT) e o Fisco, o abate do veículo em causa, a fim de que não continuasse a ser cobrado ao A. o Imposto Único de Circulação Automóvel. Porém, em vez de proceder ao abate e de fazer aquelas comunicações, a R. reparou o automóvel e colocou-o em circulação, razão pela qual o A. tem estado a ser tributado pelo Fisco, todos os anos, em sede de IUC. Deixou, no entanto, de fazer os pagamentos e, por isso, está a ser executado. Acrescem penalizações por violação do Código da Estrada e dívidas de portagens causadas pela R. A R. deve ao A. todos os IUC por este liquidados desde 2009 até 2014, no valor de €50,00 por cada ano, no total de €300,00 e ainda os IUC que se encontram em fase de execução por não terem sido pagos, relativamente a 2015, 2016, 2017 e 2018, sendo que o A. desconhece qual o montante certo de juros, multas e custas dos processos, que continuarão a vencer-se até ao respetivo pagamento. A R. deve ainda taxas de portagem que o A. não pagou e se encontram em processo de execução, desconhecendo o A. o seu exato valor, com juros, multas e custas processuais que continuarão a vencer-se até ao respetivo pagamento. A R. deve também os montantes relativos a coimas por infrações à legislação estradal, também em execução, sobre as quais acrescem juros, multas e custas dos processos, que continuarão a vencer-se até ao respetivo pagamento. O A., dada a utilização abusiva do veículo pela R., tem sofrido e continua a sofrer de angústia e insónias, pelo que deve ser indemnizado a título de danos não patrimoniais. Entende ainda o A. que o uso do veículo tem o valor diário de €5,00, pelo que, a esse título, deve ser indemnizado pelos valores dos últimos 5 anos, no total de €9.125,00, acrescendo-lhe o mesmo valor diário pelo período de tempo que decorreu entre a petição inicial e a citação e ainda, pela mesma causa, €20,00 por cada dia de uso abusivo desde a citação até ao dia do abate do veículo. Sobre tais quantias acrescem juros de mora legais, ainda na perspetiva do A., desde a data da citação até integral pagamento, acrescidos da sobretaxa de 5% a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829º A do Código Civil, desde a data do trânsito em julgado da sentença condenatória até integral pagamento. O A. fez culminar o seu articulado com o seguinte pedido: «A) Que a R. seja condenada a proceder ao abate do veículo do A. e a comunicar esse abate ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes e ao fisco, nos termos referidos em 3º, 4º e 5º desta petição. B) Que a R. seja condenada a pagar ao A. as quantias de 10.425,00€ (dez mil quatrocentos e vinte cinco euros) por danos materiais e morais e uso indevido do veículo do A., conforme o acima alegado. C) Que a R. seja condenada a pagar ao A. a quantia a liquidar em execução de sentença por danos materiais e morais e pelo uso indevido do veículo do A. em montante a liquidar em execução de sentença, também conforme o alegado de 13º a 26º. D) Que a R. seja condenada, ainda, no pagamento da quantia de 20,00€ (vinte euros) por cada dia de uso abusivo desse veículo desde a citação e até ao abate do mesmo, conforme referido em 27º. E) Que a R. seja condenada no pagamento de juros à taxa legal de 4%, acrescidos da sobretaxa de 5% a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artº 829º A do CC., desde o trânsito em julgado da sentença e até integral pagamento.» Citada, a R. contestou a ação invocando a ilegitimidade das partes e a litigância de má fé do A. Alegou que o A. foi declarado insolvente por sentença de 7.10.2010 e que o veículo foi apreendido à ordem da massa insolvente, incidindo sobre ele uma reserva de propriedade a favor do Banco D…, S.A., deixando o A. de ter legitimidade ativa para a ação. A R. não é proprietária do veículo e o A. teve oportunidade de reagir em sede própria relativamente às quantias cujo pagamento lhe foi solicitado, sendo-lhe imputável a não identificação do detentor do veículo. Se o veículo circula é porque o A. o permitiu. Não é da R. que o A. poderá exigir seja o que for, mas apenas, e somente da Massa Insolvente de B…. Acrescentou que o A. não demonstrou ter liquidado qualquer montante, seja a título de IUC ou de coimas. Concluiu pela sua absolvição da instância, por ilegitimidade ou, não se entendendo assim, pela improcedência da ação por inexistência de danos e nexos de causalidade, ou em função da prescrição de eventual direito de regresso que se possa configurar, e respetivos juros moratórios, com as demais consequências legais, sempre com condenação do A. por litigância de má fé. O A. respondeu à matéria de exceção, defendendo a legitimidade das partes e afirmando que há muito que o processo de insolvência se encontra encerrado. Quanto à prescrição, defende que se trata de dano por incumprimento contratual, sendo aplicável o art.º 798º do Código Civil e não o art.º 483º do mesmo código, pelo que o prazo de prescrição, neste caso, é o ordinário, de 20 anos, ao abrigo do art.º 309º também do Código Civil. Mais se opôs à sua condenação como litigante de má fé. Teve início a audiência prévia e foi proferido despacho saneador depois das partes terem prescindido da sua continuação, com identificação do objeto do litígio e especificação e temas de prova. Mais se pronunciou o tribunal sobre os requerimentos probatórios. Realizou-se a audiência final, após a qual foi proferida sentença que julgou improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva e culminou com o seguinte segmento decisório, ipsis verbis: «Em face do exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência, condeno a Ré “C... – ... Unipessoal, Lda.” a proceder ao abate do veículo da marca Renault com a matrícula ..-..-NC, absolvendo-a do demais peticionado e absolvendo o Autor do pedido de condenação como litigante de má fé. Custas da ação a cargo do Autor e da Ré, na proporção do decaimento que se fixa em 80% para o primeiro e em 20% para a segunda. (…)». * Inconformado, o A. apelou daquela decisão final, com as seguintes CONCLUSÕES:«A. O autor pretende com este recurso, (1) que seja alterada a sentença quanto à matéria de facto dada como não provada e (2) que a Ré seja condenada integralmente no pedido. B. Alteração da sentença quanto à matéria de facto dada como não provada: “o Autor tem vindo a receber as notificações para liquidar o imposto único de circulação e efetuou o pagamento de €50,00 em cada um dos anos entre 2009 e 2014, deixando de o fazer por não ter meios económicos; (artigos 8.°, 9.° e 13.°). C. Quanto à primeira parte do “quesito” não pode haver a mínima dúvida de que ela se encontra provada. As respetivas notificações para pagamento do IUC juntas aos autos, nomeadamente com o requerimento de 21 de Outubro de 2019 assim o provam. D. Por outro lado também o prova o depoimento da testemunha E…. Dúvidas não restam que têm ido para o endereço da testemunha, cunhada do A., por este não ter residência em Portugal, as notificações para pagamento do IUC, e que a testemunha enviou as notificações à irmã e ao cunhado, o A. Aliás, seria muito estranho que o Serviço de Finanças não o fizesse. Por isso, a primeira parte do “quesito” deve ser dada como PROVADA. E. Mas deve também dar-se como provada a segunda parte do “quesito”. Na verdade, o documento nº 3 da p.i. é uma declaração do Serviço de Finanças de Gondomar de que o A. nada deve ao fisco a 5 de Junho de 2014. Ora se não deve, é porque o imposto foi pago, e não se vislumbra nem está em causa sequer, que foi outra pessoa que pagou. Nem a R. alega que o pagou apesar do contrato. No modesto entendimento do Autor não há outra hipótese. F. Acresce ainda que a referida testemunha confirmou o pagamento dos IUC. No entanto, a Sr.ª Juíza pôs em dúvida o pagamento porquanto a testemunha falou em mil e poucos euros pagos pelo marido, e os IUC nunca chegariam a isso. Porém, nada no depoimento da testemunha diz que não foram pagos outros impostos ou dívidas além do IUC com esses “mil e tal euros”. G. Mais, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não provada, nesta parte, é claramente, reconhecido pela Sr.ª Juíza o pagamento do IUC, pagamento, esse, que certamente terá sido feito com juros do processo e custas da execução, pelo que se compreende que o valor realmente pago seja superior. Se fosse inferior é que seria de duvidar… H. Outra contradição da Sr.ª Juíza se mostra evidente quando na sua fundamentação reconhece que a Ré esteve na posse do veículo pelo menos durante 7 anos, e se comprometeu a pagar o IUC, além de portagens e coimas. Mas a Ré não alega ter pago os IUC. Pelo que dúvidas não restam que foi o A. quem os pagou. Por outro lado, comprometeu-se a pagar todos os IUC relativamente ao período em que circulou com o veículo. Mas também não pagou. Assim, também a segunda parte da matéria de facto em causa deverá ser considerada PROVADA. I. Quanto à matéria de facto dada como não provada, relativamente à convocação do Autor para se apresentar nas autoridades policiais,, isto é, O Autor foi convocado para se apresentar nas autoridades policiais, nomeadamente à GNR, o que o tem incomodado profundamente; (artigos 12.° e 21.°) também o A. não deixa de estranhar que assim tenha sido, tendo em conta o depoimento da testemunha supra citada. Não se aceita é que o depoimento da testemunha, absolutamente isento, tenha sido posto em crise sem qualquer prova em contrário, e quando o simples senso comum deixaria perceber que, com infrações ao Código da Estrada, o mais natural é que a polícia tentasse fazer notificações ao proprietário do veículo. Assim, também essa matéria de facto deverá ser considerada, PROVADA. J. A Ré foi absolvida das alíneas b), c), d) e e) do pedido, e também aqui não concorda o A. com a douta sentença recorrida. Aliás, a própria sentença é contraditória nos seus fundamentos, quando considera que se verificou o incumprimento do contrato celebrado entre ambos e condena a Ré a cumprir o acordado. Ao não cumprir o contrato, impõe-se a aplicação do artigo 798º do CPC. Mais, a Ré não só não cumpriu o contrato como claramente agiu de má fé, incluindo no modo como se comportou na presente ação e continua comportar-se. K. É claro que existe nexo de causalidade entre o não cumprimento do contrato e o dano. A disposição do 486.° do Cód. Civil referida na Douta Sentença refere-se à responsabilidade extra-contratual. Mas o que aqui está em causa é a responsabilidade contratual. Como é óbvio, se a Ré tivesse cumprido o contrato não haveria coimas por incumprimento das regras de circulação nem pagamento de portagens. L. E também não haveria IUCs a pagar porque se fosse efetuado o abate, conforme o contratado, e mesmo que fosse o A. a ter de comunicar esse abate ao IMT e ao Serviço de Finanças, este tê-lo-ia feito. Aliás, ao pôr o veículo em circulação, a Ré comprometeu-se com o administrador da insolvência a pagar o IUC, pelo que só por má fé recusa agora a obrigação de o pagar. M. Na douta sentença recorrida existe mais uma vez contradição entre a fundamentação e o decidido. A pág.s 12 da sentença. Aí se refere que: “…as simples omissões só dão lugar à obrigação de reparar os danos quando…havia…por força de lei, ou de negócio jurídico, a obrigação de praticar o ato, e que este ato omitido seja causal do dano, ou o tivesse evitado, se praticado (artigo 563º do Cód. Civil) – negrito nosso. Aplicado ao presente caso, o que aqui se afirma é o seguinte: Se houver um contrato, e se o ato contratado (abate do veículo) tivesse sido praticado, evitaria o dano. N. E, garantidamente, se praticado o ato, essa prática do ato teria evitado o dano, já que não é possível duvidar que se o veículo tivesse sido abatido não circularia, não apanharia coimas, não passava em portagens sem as pagar, o A. poderia ter comunicado o seu abate e posto termo ao pagamento do IUC, e não teria sofrido danos morais. O. Mas sempre se dirá que está aqui em causa não só uma ação (o abate) mas também uma ação: o uso indevido do veículo que deveria ter sido abatido e não circular. E foi essa ação que levou à consumação dos danos relativamente aos quais se formularam os pedidos indemnizatórios. P. A douta sentença recorrida violou, entre outros, os artigos 762º, 798º, 562º, 563º e 564º do Código Civil, pelo que deverá ser revogada na parte em que o recorrente não obteve vencimento, e substituída por outra na qual os factos não provados acima referidos sejam considerados provados e a R. condenada no pedido.» (sic) * A R. não ofereceu contra-alegações.* Foram colhidos os vistos legais.* II. As questões a apreciar --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do A. (art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil), cumprindo-nos decidir: 1. Erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto; 2. O contrato e os efeitos do seu (in)cumprimento, nomeadamente: a) A (in)existência de nexo causal relevante par efeito da responsabilidade, entre a ação ou omissão da R. e os danos verificados; b) Obrigação de indemnizar. * III.É a seguinte a matéria de facto considerada provada na 1ª instância[1]: 1) Por meio da Ap. 02804 de 09/11/2006, encontra-se registado a favor do Autor o direito de propriedade sobre o veículo da marca Renault com a matrícula ..-..-NC e encontra-se registada a favor do “Banco D..., S.A.” reserva de propriedade sobre o mesmo veículo. (artigo 1.º) 2) Em 2008, o veículo com a matrícula ..-..-NC sofreu danos que levaram a seguradora a considerar que se verificava uma situação de perda total; (artigo 2.º) 3) Em consequência, o Autor entregou o veículo à Ré para desmontagem e abate, entregando-lhe ainda o documento único automóvel, comprometendo-se a Ré a proceder ao abate do mesmo, ficando com o veículo para sucata, com a possibilidade de a Ré o desmontar e aproveitar algumas peças que não se encontrassem danificadas; (artigos 3.º e 4.º) 4) A Ré reparou o veículo e circula com o mesmo; (artigos 6.º e 7.º) 5) Ao Autor foram movidos processos de execução fiscal por falta de pagamento do imposto único de circulação respeitante aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018 e de taxas de portagem com base na circulação do dito veículo; (artigo 9.º) 6) A Ré comete infrações rodoviárias ao circular com o dito veículo; (artigo 10.º) 7) A Ré circula com o dito veículo nas auto-estradas sem liquidar as taxas de portagem, nomeadamente na A29, em 29/01/2016 e 08/02/2016, pelo que foi movido ao Autor processo executivo para cobrança desses valores; (artigos 11.º, 15.º e 16.º) 8) A utilização da viatura pela Ré tem abalado o Autor, causando-lhe angústia e insónias, sentindo-se humilhado; (artigo 22.º) Da Contestação 9) A Ré é uma sociedade comercial que tem por objeto social a manutenção, reparação, desmontagem e montagem de veículos automóveis, de suas partes, peças e acessórios, comércio por grosso e a retalho de qualquer tipo de partes, acessórios e peças, novas, usadas e recondicionadas, para quaisquer veículos automóveis; comércio por grosso e a retalho de veículos automóveis ligeiros, novos e usados; comércio por grosso e a retalho de outros veículos automóveis, novos e usados. (artigo 1.º) 10) Por sentença proferida no dia 07 de outubro de 2010, no processo n.º 3156/10.0TBGDM, que correu termos pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar foi declarada a insolvência do Autor e de F...; (artigo 9.º) 11) Por meio da Ap. 5876 de 18/01/2011, encontra-se registada a favor da massa insolvente de B... a apreensão do veículo id. em 1), realizada em 10 de novembro de 2010 no âmbito do processo n.º 3156/10.0TBGDM; (artigo 10.º) * O tribunal considerou não provada a seguinte materialidade[2]:Da Petição Inicial 12) Em consequência, o Autor tem vindo a receber as notificações para liquidar o imposto único de circulação e efetuou o pagamento de €50,00 em cada um dos anos entre 2009 e 2014, deixando de o fazer por não ter meios económicos; (artigos 8.º, 9.º e 13.º) 13) O Autor foi convocado para se apresentar nas autoridades policiais, nomeadamente à GNR, o que o tem incomodado profundamente; (artigos 12.º e 21.º) * IV.Apreciação do recurso 1. Erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto O apelante pretende que sejam dados como provados os dois pontos da matéria de facto dada como não provada, ali identificados como pontos 12) e 13). Pela correta identificação dos meios de prova, com referência às passagens da gravação dos depoimentos testemunhais que tem por relevantes, o A. cumpriu o ónus de impugnação especificada previsto no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil. Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, dentro dos limites da impugnação (vinculação temática no recurso). Como refere A. Abrantes Geraldes[3], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”. Citando Antunes Varela, escreve Baltazar Coelho[4]que “a prova jurídica de determinado facto … não visa obter a certeza absoluta, irremovível da (sua) verificação, antes se reporta apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador ou, o que vale por dizer, apenas aponta para a certeza relativa dos factos pretéritos da vida social e não para a certeza absoluta do fenómeno de carácter científico”. Na mesma linha, ensina Vaz Serra[5]que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e convincente da sua formação. O recorrente pretende que sejam dados como provados os seguintes factos: 12) O A. tem vindo a receber as notificações para liquidar o imposto único de circulação e efetuou o pagamento de €50,00 em cada um dos anos entre 2009 e 2014, deixando de o fazer por não ter meios económicos. (artigos 8.°, 9.° e 13.°). 13) O A. foi convocado para se apresentar nas autoridades policiais, nomeadamente à GNR, o que o tem incomodado profundamente. (artigos 12.° e 21.°) Além de determinados documentos juntos aos autos (notificações para pagamento de IUC, o recorrente apela a excertos do depoimento da testemunha E... para a alteração pretendida. Vejamos. Em 2017, a notificação para pagamento do IUC ainda foi processado em nome do A. (pág.s 233 e 234). O veículo nunca deixou de estar registado a favor dele (embora com reserva de propriedade a favor de um credor). Dos documentos de pág.s 237 a 241 resulta que o IUC relativo aos anos de 2009 a 2013 foi total e sucessivamente pago, ainda que nalguns casos com atraso. Tais documentos estão emitidos em nome do A. (o seu sujeito passivo). É o que resulta ainda da certidão emitida pelo Serviço de Finanças, junta a pág.s 242, nos termos da qual o A. tinha a sua situação fiscal estava regularizada no dia 5.6.2014. Refere-se na motivação da sentença: «(…) a Ré não impugna qualquer um dos factos vertidos na petição inicial, pois limitou-se a arguir as exceções de ilegitimidade ativa e passiva, pugnando pela sua absolvição da instância e impugna apenas o valor peticionado a título de IUC’s e coimas, referindo que o Autor não comprova o seu pagamento (…).Foi, pois, com base na admissão por acordo resultante da não impugnação que se tiveram por provados os factos elencados sob os n.ºs 2), 3), 4), 6), 7), 8), sendo que, quanto ao mencionado em 7), atendeu-se ainda às cópias de fls. 12 a 14.» O A. alegou na petição inicial: «(…) 8º Em consequência disso, o Autor tem estado a ser tributado pelo fisco, todos os anos, em sede de IUC, que o mesmo pagou algumas vezes, 9º deixando o A. de pagar, por não ter meios económicos para o fazer e nada dever relativamente a esse imposto, estando, por isso, a ser executado. (…) 13º A R. deve, assim, ao A. o pagamento de todos os IUC por este liquidados desde 2009 até 2014, 50,00€ (cinquenta euros) por cada ano, no total de 300,00€ (trezentos euros), cfr. Doc. Nº 3. 14º E ainda os IUC que se encontram em fase de execução por não terem sido pagos, relativamente a 2015, 2016, 2017 e 2018, sendo que o A. desconhece qual o montante certo de juros, multas e custas dos processos, que continuarão a vencer-se até ao respectivo pagamento, pelo que se remete para execução de sentença a sua liquidação, cfr. Docs. Nºs 4, 5, 6 e 7. (…).» Efetivamente, na contestação, a R. não negou estes factos, tendo pugnado, sobretudo, pela invocação da sua ilegitimidade, alegando que o veículo passou da esfera jurídica do A. para a Massa Insolvente, com transmissão do feixe de direitos e obrigações inerentes, sem que alguma vez a contestante tivesse sido titular de quaisquer direitos sobre aquele bem. Negou ser ou ter sido proprietária do veículo, sem que afirmasse ter efetuado qualquer pagamento de IUC a ele relativo ou motivo para o pagar. Afirmou ainda que, se o veículo circula, é porque o A. permitiu que assim acontecesse e que o A. não demonstrou ter liquidado qualquer montante as título de IUC (artigo 24º). Conclui-se daqui, com toda a segurança, que a R. nada pagou, em qualquer ano, a título de IUC relativamente ao veículo ..-..-NC. Os documentos juntos aos autos, designadamente as missivas do Administrador da Insolvência, apontam também no sentido seguro de que o pagamento do IUC também não saiu da Massa Insolvente. Veja-se, por exemplo, o documento de pág. 304, denominado “DECLARAÇÃO ANULAÇÃO NEGÓCIO COMPRA E VENDA”, pelo qual o Administrador da Insolvência e a R. anularam um suposto contrato verbal de compra e venda do veículo alegadamente celebrado no dia 21.1.2011, por não poder ser levado a registo, de onde consta: “(…)assumindo, ainda, o comprador a responsabilidade por eventuais coimas, falta de pagamento de IUC’s, falta de pagamento de portagens, que possam vir a ser imputadas à Massa Insolvente, em acção de regresso, e em relação ao período entre 21-01-2011 e a presente data de 26-09-2018 (…)”. E quando ali se escreve “Quando for levantado o veículo será assinada declaração de levantamento da viatura, que ficará em posse do representante legal da C...”, querem as partes dizer que é o documento que fica na posse da R., transitando o veículo, pelo seu levantamento, para a Massa Insolvente (trecho do documento que nos parece não ter sido devidamente interpretado pelo tribunal recorrido na motivação da decisão em matéria de facto). O IUC relativo aos anos de 2009 a 2013 foi efetivamente pago (cf. doc.s de pág.s 237 a 242). Dado o referido conjunto de circunstâncias, foi certamente o A. que o pagou; matéria sobre a qual não fica dúvida razoável. A testemunha E... é irmã do cônjuge do A. Todas as cartas relacionadas com o IUC, coimas (designadamente por excesso de velocidade e estacionamento proibido) foram enviadas para a morada de uma casa que ela tem arrendada e que foi indicada pelo seu cunhado, residente na Suíça, para receber a correspondência em Portugal. O inquilino da testemunha entrega-lhe todas as cartas que ali recebe e logo a E... abre e lê à irmã através do WathsApp as que são dirigidas àquela ou ao seu marido, aqui A. É esse o motivo pelo qual está a par da situação criada pela R. Aquando da chegada e da leitura das primeiras missivas é que a sua irmã e cunhado lhe contaram o que se havia passado com o veículo, designadamente que o haviam vendido para abate e que, afinal, o comprador o trazia em circulação, assim originando todas as despesas contra o seu interesse e a sua vontade. A testemunha noticiou inclusivamente que o seu cunhado inicialmente pagou as despesas par evitar a progressão daquelas obrigações, com multas e juros, mas acabou por deixar de fazer os pagamentos por entender que não era devedor de nada e resultarem de uma utilização abusiva do automóvel por parte da R. Este depoimento foi muito escorreito, seguro e explicado, não tendo a testemunha hesitado em revelar o desconhecimento de alguns factos favoráveis ao A. e à sua irmã, como sejam o desconhecimento do valor total das quantias peticionadas ao demandante pelas diversas entidades (relacionadas com a utilização dada ao veículo desde a sua entrega à R.), tendo também manifestado dúvidas quanto ao valor total que o A. pagou antes de ter deixado de o fazer. A possibilidade séria de a cessação de pagamento ter como causa o convencimento do A. e cônjuge de que aquelas despesas não são da sua responsabilidade e ausência de provas relativas a incapacidade financeira para fazer tais pagamento, apesar de terem sido declarados insolventes (mas por sentença de outubro do ido ano de 2010) conduzem à falta de prova da última parte do ponto 12. Quanto ao valor do IUC efetivamente pago pelo A., resulta o mesmo documentado a pág.s 237 a 242 (relativamente aos anos de 2009 a 2013), não sendo de excluir o pagamento de juros e a existência de penalizações por atraso nos pagamentos. O ponto 13 está provado com base no documento de pág.s 243 e 244, tendo a testemunha E... referido no seu depoimento, com aparente seriedade, que o seu cunhado também foi procurado por soldados da GNR na morada de destino das cartas, por três vezes. Decorre do exposto que os pontos 12 e 13 da matéria dada como não provada transitam para o acervo dos factos provados, com o seguinte teor: 12) Em consequência, o A. tem vindo a receber as notificações para liquidar o imposto único de circulação e efetuou pagamentos, àquele título, em cada um dos anos entre 2009 e 2014, relativamente aos anos de 2009 a 2013, em valor total não inferior a €160,36; 13) O Autor foi convocado para se apresentar nas autoridades policiais, nomeadamente no posto da GNR, o que lhe causado incómodo. Procede parcialmente, naqueles termos, a primeira questão da apelação. * 2. O contrato e os efeitos do seu (in)cumprimentoNa sequência de uma situação de declarada perda total do veículo ..-..-NC, em razão de acidente, o A., já então seu proprietário beneficiário do registo, entregou-o à R. para desmontagem e abate, entregando-lhe ainda o documento único automóvel (DUA), comprometendo-se a última a proceder ao seu abate, ficando com o veículo para sucata, com a possibilidade de o desmontar e aproveitar algumas peças que não se encontrassem danificadas. Porém, a R., ao arrepio do acordado, reparou o veículo e passou a circular com ele. Não contendo o Código Civil[7] uma noção de contrato, ele exprime a noção legal de obrigação no art.º 397º, como sendo “o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita a outra pessoa à realização de uma prestação”, cabendo às partes “fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação” (art.º 398º, nº 1). Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluir nestes as clausulas que lhes aprouver (art.º 405º, nº 1). Com efeito, pode entender-se por contrato --- de entre as várias definições sugeridas pela doutrina e pela jurisprudência --- o acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição unitária de interesses.[7] Em matéria contratual são princípios fundamentais o da liberdade contratual e o da responsabilidade contratual, i.e, pacta sunt servanda (o contrato deve ser pontualmente cumprido — artigo 406°, n.° 1). Com vista a assegurar a correta satisfação dos interesses dos contratantes, impõe a lei civil que os contratos sejam negociados (art.º 227º, nº 1), integrados (art.º 239º), alterados (art.º 437º) e cumpridos (art.º 762º, nº 2) de harmonia com os ditames da boa fé, sendo ainda certo que, se estes forem violados de modo manifesto, podem vir a tornar ilegítimo o exercício do direito assegurado contratualmente (art.º 334º). A ideia de procedimento de boa fé está ligada a fidelidade, lealdade, honestidade e confiança no cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato. Almeida Costa[8] define a regra da eficácia vinculativa através dos seguintes princípios: - O da pontualidade, utilizando a lei o termo “pontualmente” com o alcance de que o contrato deve ser executado ponto por ponto, quer dizer, em todas as suas cláusulas e não apenas no prazo estipulado[9]; e - Os da irretratabilidade ou da irrevogabilidade dos vínculos contratuais e da intangibilidade do seu conteúdo, fundindo-se estes no que também se designa por princípio da estabilidade dos contratos. Como refere Enzo Roppo, cada um “é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fica ligado de modo irrevogável à palavra dada: pacta sunt servanda”[10], sendo certo que, é “nesta estrutura de confiança que se intercala o laço social instituído pelos contratos e pelos pactos de todos os tipos que conferem uma estrutura jurídica à troca das palavras dadas”, e que, o “facto de os pactos deverem ser observados é um princípio que constitui uma regra de reconhecimento que ultrapassa o face a face da promessa de pessoa a pessoa”[11]. Os factos concretos revelam a existência de um acordo de vontades obtido entre o A. e a R. pelo qual, com ou sem contrapartida (não está provado que a tivesse tido), a última se obrigou a destinar para desmontagem e abate o veículo que o A. lhe entregou, juntamente com o respetivo Documento Único Automóvel (DUA), ficando a R. com a possibilidade de aproveitar algumas peças que não se encontrassem danificadas. Como observámos, existe uma eficácia comum a todos os contratos que se consubstancia no princípio da força vinculativa ou da obrigatoriedade; significa que, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz, constitui lei imperativa entre as partes. Manifestamente, a R. não cumpriu o contrato. Em vez de abater o veículo que o A. lhe entregou, como se comprometera, reparou-o e colocou-o em circulação em seu benefício exclusivo. Na responsabilidade contratual, a determinação da culpa afere-se pela diligência de um bom pai de família, através do recurso aos deveres de diligência exigíveis do homem comum, do "homo prudens", sem apelo a critérios normativos, legais (cf. nº 2 do art.º 799º que remete para a regra da responsabilidade civil prevista no nº 2 do art.º 487º)[12]. São ao caso aplicáveis as regras gerais relativas ao cumprimento e incumprimento das obrigações, designadamente os art.ºs 762º e seg.s, na medida em que não contrariem as ditas disposições especiais. O nosso sistema jurídico-processual reparte o ónus da prova entre autor e réu pelo modo como este princípio geral está consignado no art.º 342º: - a quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos, positivos ou negativos, constitutivos do direito alegado ("actore non probante reus absolvitur"); - à parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito ("reus excipiendo fit actor"). Cabia ao A. --- para além do dever de alegar (art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil) --- demonstrar que entre ele e a R. existe um determinado acordo negocial e, em seu cumprimento, lhe entregou o veículo para abate e que a R. não o abateu, dando-lhe destino diferente, incumprindo o contrato (art.º 342º, nº 1). Competia à R. alegar e provar que agiu sem culpa no incumprimento, ilidindo a presunção (iuris tantum) de culpa típica da responsabilidade contratual (art.º 799º, nº 1). A R. não ilidiu aquela presunção de culpa, pelo que, tendo violado culposamente o contrato, deve responder pelos prejuízos que tenham resultado para o A. em razão do seu incumprimento (art.º 798º) se, acaso, se verificar também o nexo causal entre o facto e o prejuízo. Tendo sido a R. já condenada na 1ª instância no abate do veículo e na sua comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes e ao Fisco --- decisão já transitada em julgado nesta parte, ao abrigo do art.º 635º, nº 5, do Código de Processo Civil (princípio da proibição da reformatio in pejus) --- subsistem para apreciação, nos termos do recurso, as seguintes questões: a) A (in)existência de nexo causal relevante par efeito da responsabilidade, entre a ação ou omissão da R. e os danos verificados Sendo o nexo causal um dos pressupostos da responsabilidade contratual[13](a juntar ao ato de incumprimento culposo e ao dano), importa saber se, em concreto, se verifica no caso. Considerou essencialmente o tribunal a quo que é imputável ao A. o facto de a propriedade do veículo continuar averbada em seu nome, por isso, sendo-lhe atribuível também a responsabilidade pela não promoção do cancelamento do registo e a circulação do veículo. Afastou o tribunal a existência de nexo causal entre a conduta da R. (que situou no incumprimento da obrigação de abate da viatura e circulação com a mesma) e os danos que o A. alega ter sofrido, designadamente quanto às quantias peticionadas a título de IUC. De acordo com o art.º 563º, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Releva aqui a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual, para que um facto seja causa de um dano, é necessário que, no plano naturalístico, ele seja uma condição sem a qual o dano não se teria verificado e, além disso, que, no plano geral e abstrato, ele seja causa adequada desse mesmo dano. Na sua formulação negativa que o nosso Direito acolheu, “a condição deixará de ser causa do dano, sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para este dano”.[14] Segundo a referida doutrina, essa aferição global da adequação deve partir de um juízo de prognose posterior objetiva, formulado em função das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de todo o processo factual que, em concreto, desencadeou a lesão e o dano, no âmbito da sua aptidão geral ou abstrata para produzir esse dano, pois que a causalidade adequada não se refere a um facto e ao dano isoladamente considerados. A indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito nessa altura prever que não ocorressem, se não fosse a lesão. Ou, por outras palavras: o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido”. Em diferente formulação, em anotação ao art.º 563º[15], defendem, por seu turno, os Profs. Pires de Lima – Antunes Varela: “… não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito”.[16] I. Galvão Telles[17]refere que a lei reconduz a questão da causalidade adequada a uma questão de probabilidade, o que significa aderir à tese da causa adequada, pois esta tese tem esse significado. Causa adequada é justamente aquela que, agravando o risco de produção do prejuízo, o torna mais provável. “A acção que é condição ou pressuposto de um dano deixa de ser, e só deixa de ser, sua causa, sob o prisma do Direito, quando com ela concorra, para a produção desse dano, uma circunstância anómala ou extraordinária, sem a qual não haveria um risco, maior do que o comum, de o prejuízo se verificar. Mas circunstância anómala ou extraordinária que o agente ignore e não tenha que conhecer, à data da acção. Porque, se a conhece ou ela é susceptível de ser conhecida a esse tempo, então existe a adequação que imprime relevância ao nexo entre o facto e o dano como um nexo de causalidade jurídica”. Sobre aquela doutrina, discorreu L. Menezes Leitão [18]: “…para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano não basta que o facto tenha sido em concreto causa do dano, em termos de conditio sine qua non. É necessário que, em abstracto, seja também adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas (…) A averiguação da adequação abstracta do facto a produzir o dano só pode ser realizada a posteriori, através da avaliação se seria previsível que a prática daquele facto originasse aquele dano (prognose póstuma). A doutrina da adequação aceita que essa avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador externo a efectuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente”. Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.6.2002[19], “no que concerne à responsabilidade por facto ilícito culposo – contratual ou extracontratual – o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais (…). A doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano”. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2004[20] consignou-se que “deve ter-se por acolhida a sua formulação negativa, segundo a qual só deixará de haver nexo causal adequado se o facto que actua como condição, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para surgir um tal dano e só se tornou condição dele em resultado de outras circunstâncias extraordinárias que intervieram no caso concreto”. A causa (adequada) pode ser não necessariamente direta e imediata, mas indireta, bastando que a ação causal desencadeie outra condição que, diretamente, suscite o dano.[21] De acordo com o Código da Estrada vigente à data em que o veículo foi considerado perda total pela seguradora, cuja última redação fora então introduzida pelo Decreto-lei nº 113/2008, de 1 de julho, dispunha o respetivo 118º, nº 1, que “por cada veículo matriculado deve ser emitido um documento destinado a certificar a respectiva matrícula, donde constem as características que o permitam identificar”. O nº 2 consigna que “é titular do documento de identificação do veículo a pessoa, singular ou colectiva, em nome da qual o veículo for matriculado e que, na qualidade de proprietária ou a outro título jurídico, dele possa dispor, sendo responsável pela sua circulação”. Porém, “o adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído direito que confira a titularidade do documento de identificação do veículo deve, no prazo de 30 dias a contar da aquisição ou constituição do direito, comunicar tal facto à autoridade competente para a matrícula” (nº 3). Também “o vendedor ou a pessoa que, a qualquer título jurídico, transfira para outrem a titularidade de direito sobre o veículo deve comunicar tal facto à autoridade competente para a matrícula, nos termos e no prazo referidos no número anterior, identificando o adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído o direito” (nº 4, ainda do citado art.º 118º). O subsequente art.º 119º dispunha já então, além do mais, que a matrícula deve ser cancelada quando “o veículo fique inutilizado ou haja desaparecido” (nº 1, al. a)), devendo considera-se inutilizado quando “tenha sofrido danos que impossibilitem definitivamente a sua circulação ou afectem gravemente as suas condições de segurança” (nº 2). Segundo o nº 4, o cancelamento da matrícula deve ser requerido pelo proprietário, no prazo de 30 dias, quando o veículo fique inutilizado. E, de acordo com o nº 6, “se o proprietário não for titular do documento de identificação do veículo, o cancelamento deve ser requerido, conjuntamente, pelo proprietário e pelo titular daquele documento”. São sujeitos passivos do imposto (Imposto Único de Circulação) os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados (art.º 3º, nº 1, do CIUC, na redação que vigorou até dezembro de 2015). Conforme o nº 2 do mesmo artigo, eram então já equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade --- como aconteceu com o A. ---, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação. O facto gerador do IUC é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional (nº 1 do art.º 6º do mesmo código).[22] Portanto, não há qualquer dúvida de que, encontrando-se o veículo matriculado e registado em nome do A. era ele o sujeito passivo do IUC, como considerou sempre a Autoridade Tributária, emitindo os avisos de pagamento para ele e em seu nome. O art.º 14º do Decreto-lei nº 196/2003, de 23 de agosto, determina: “(…) 2 - Os proprietários ou detentores de VFV são responsáveis, nos termos do disposto no presente artigo, pelo seu encaminhamento, e custos do mesmo, para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento, que exerça a sua actividade de harmonia com o disposto nos artigos 19.º e 20.º 3 - Quando se trate de veículo inutilizado, nos termos do n.º 2 do artigo 119.º do Código da Estrada, o proprietário é responsável pelo seu encaminhamento, e respectivos custos, para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento, no prazo máximo de 30 dias a contar da data em que o veículo fique inutilizado, com excepção dos casos previstos nas alíneas a) e b) do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro.” Nos termos do nº 1 do art.º 17º, do mesmo decreto-lei, na versão vigente à data em que o veículo foi declarado perda total pela entidade seguradora, “o cancelamento da matrícula de um VFV encontra-se condicionado à exibição, perante o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT), de um certificado de destruição emitido por um operador de desmantelamento que exerça a respectiva actividade de harmonia com o disposto no artigo 20.º “. Dispunha então já o subsequente nº 2: “Para efeitos do disposto no n.º 1, quando da entrega de um VFV nos termos do n.º 2 do artigo 14.º o seu proprietário e outros legítimos possuidores devem: a) Entregar o certificado de matrícula ou o documento de identificação do veículo e o título de registo de propriedade; b) Requerer o cancelamento da respectiva matrícula, através do preenchimento de impresso de modelo legal, que será disponibilizado pelo centro de recepção ou operador de desmantelamento.” E o nº 5 dispunha: “Quando se trate de VFV cujo possuidor não deva ter em seu poder o certificado de matrícula ou o documento de identificação do veículo e o título do registo de propriedade, este fica dispensado de os apresentar, devendo apenas fazer prova de que o certificado de matrícula ou o título do registo de propriedade e o documento de identificação do veículo foram remetidos ao IMTT.” De acordo com o nº 8 do mesmo artigo, “o operador de desmantelamento deve conservar uma cópia do certificado de destruição por um período não inferior a cinco anos e remeter, no prazo máximo de cinco dias úteis a contar da data de recepção do VFV: a) O original do certificado de destruição ao proprietário ou legal detentor do VFV; b) (…) c) Uma cópia do certificado de destruição, acompanhada da documentação referida no n.º 2, nos casos em que esta deva ser apresentada, ao IMTT.” O nº 9 determina que “logo que receba a documentação mencionada na alínea c) do n.º 8 o IMTT procede ao cancelamento da matrícula”. Retomando o caso concreto, a R. assumiu, pelo contrato que celebrou com o A., a obrigação de desenvolver o processo de desmantelamento e abate do veículo ..-..-NC. Por essa razão, recebeu do A. não apenas o veículo, mas também o Documento Único Automóvel (DUA), que dele ficou desapossado. Passe o aforismo, a R. “ficou com a faca e o queijo na mão”. Tivesse a R. levado a cabo as necessárias diligências, preenchendo, obtendo e remetendo os documentos indispensáveis, assim como o veículo para o destino previsto na lei, teria o A. logrado o cancelamento da matrícula e o registo da sua propriedade, com o consequente termo da sua sujeição ao IUC, por deixar de figurar como proprietário do veículo. Ao receber o veículo do A. para aquele fim, ficou a R. constituída na obrigação de desenvolver diligentemente a sua ação para que tal resultado fosse atingido, ainda que isso pudesse estar dependente da colaboração do A., que, na afirmativa, sempre lhe deveria solicitar. No entanto, não foi o que aconteceu. Em vez de diligenciar pelo abate legal do veículo, a R., por arte sua, reparou-o e colocou-o em circulação, assim o mantendo contra a vontade do A. e em persistente incumprimento do contrato. Por causa disso, por não cumprir o contrato, o A. continuou a figurar na documentação oficial como proprietário do veículo e a ser tributado em sede de IUC como cumpria fazer à Administração Fiscal. A extinção da tributação do A. em sede de IUC ficara, pelo contrato, dependente de uma ação devida pela R. A posse do veículo pela R. era precária; servia apenas um fim: o seu desmantelamento e abate. Com o desconhecimento do A., a R. inverteu aquele título, passando a utilizar o veículo como se fosse sua proprietária, sempre em incumprimento do contrato e escapulindo-se às obrigações, designadamente de ordem fiscal, que resultam para o proprietário, não podendo deixar de saber que, assim atuando, o A. continuava onerado com todos os encargos próprios do dono e até sem a posse do DUC, de que a R. se apropriou com fim diferente na sequência da entrega que lhe foi feita com o fim exclusivo do abate. Com efeito, ocorre o nexo causal entre o incumprimento culposo do contrato pela R. e o prejuízo emergente para o A. de permanecer sujeito passivo da obrigação fiscal de pagamento do IUC após aquela entrega para abate. Tivesse a R. cumprido o contrato, a matrícula do veículo seria cancelada e a circulação do veículo não seria tributada. Aquele incumprimento foi causa adequada do pagamento do IUC ou da dívida de IUC ainda não satisfeita pelo A. De igual modo, não fosse a R. ter colocado o veículo em circulação no seu interesse próprio e em violação do contrato, não teria sido o A. chamado a responder por multas resultantes de violação das leis que regulam o trânsito rodoviário ou de taxas relativas à utilização de autoestradas, que não lhe são imputáveis, mas a contraordenações e faltas de pagamento da R., enquanto beneficiária abusiva da circulação do veículo, quer se considere ou não que era sua proprietária. Deve, alias, notar-se que o representante legal da R., nessa sua qualidade, viria a subscrever, juntamente com o Administrador da Insolvência do A. a “Declaração de Anulação Negócio de Compra e Venda”, como lhe chamaram, de 26.9.2018, pela qual aquele reconheceu a obrigação de restituir (só) então o veículo ..-..-NC “com sinais de uso, mas sem problemas mecânicos, e com plena capacidade para circular, (…), assumindo, ainda (…) a responsabilidade por eventuais coimas, falta de pagamento de IUC’s, falta de pagamento de portagens, que possam vir a ser imputadas à Massa Insolvente, em acção de regresso, e em relação ao período entre 21-01-2011 e a presente data de 26-09-2018 (…)”. Decorre do exposto que a R. se tornou responsável por todos os prejuízos que, da circulação abusiva com o veículo, no seu interesse próprio, resultaram para o demandante, também a título de multas e taxas de portagem durante todo o período de tempo que decorreu desde que o recebeu do A. até que o restituiu ao Administrador da Insolvência, em 26.9.2018. A alegação constante do art.º 13º da petição inicial pressupondo que a entrega do veículo ocorreu pelo menos no ano de 2009, não mereceu a impugnação pela R. na contestação. Assim e dados os factos provados, a R. é responsável pelo pagamento de todo o IUC que o A. pagou relativamente aos anos de 2009 a 2013, em valor não inferior a €160,36 e ainda pelo IUC que está a ser exigido ao demandante relativamente aos anos de 2014 a 2018, valores estes acrescidos de juros, multas e custas processuais que se vencerem e tiver que pagar, a liquidar em execução de sentença (art.º 609º, nº 2, do Código de Processo Civil). Está também provado que a R. comete infrações rodoviárias com o veículo e que circulou com ele nas autoestradas sem que tivesse liquidado as taxas de portagem, nomeadamente na A29, em 29.1.2016 e em 8.2.2016, tendo sido, por isso, o A. destinatário de um processo executivo para cobrança desses valores. Aquelas coimas e taxas não ocorreriam se não fosse a utilização abusiva do veículo que a R. levou por diante, em violação do contrato e não podem ser imputadas ao A., não obstante figurar no registo como seu proprietário. A R. é também responsável por todos os pagamentos que o A. vier a efetuar a este título, incluindo os juros, multas e custas processuais inerentes, a determinar em oportuna liquidação. Estão reunidos todos os pressupostos da responsabilidade contratual. b) Obrigação de indemnizar A utilização abusiva do veículo pela R. tem abalado o A., causando-lhe angústia e insónias, sentindo-se também humilhado e incomodado em consequência da ação da R., para o que contribuiu ainda o facto de ter sido várias vezes convocado para se apresentar junto de autoridades policiais, nomeadamente a GNR. É de €1.000,00 o valor da indemnização que o A. pede a título de danos não patrimoniais, sem prejuízo do que se apurar em oportuna liquidação relativamente e aos danos morais de que padeceu entre a data da instalação da ação e a data em que cessar a utilização abusiva do veículo. Dispõe o art.º 496º, nº 1, do Código Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. A inserção sistemática daquele preceito (na subsecção referente à responsabilidade civil por factos ilícitos) e a inexistência de qualquer disposição legal que, de forma expressa, determine a sua aplicabilidade à responsabilidade contratual, gerou controvérsia, na doutrina e na jurisprudência, no que respeita à possibilidade de esse tipo de dano ser indemnizado quando tem a sua origem no incumprimento ou cumprimento defeituoso de um contrato. Invocando que a ressarcibilidade desse tipo de dano introduziria no capítulo da responsabilidade contratual um fator de séria perturbação da certeza e segurança do comércio jurídico, considera o Prof. Antunes Varela que os danos não patrimoniais não são suscetíveis de indemnização no âmbito da responsabilidade contratual[23]. Em sentido contrário, opina o Prof. Galvão Telles[24], referindo que, entre a responsabilidade extraobrigacional e a obrigacional não existia uma diferença que justificasse estender a primeira e não a segunda aos prejuízos não patrimoniais. Certo é, porém, que a nossa jurisprudência tem pendido para admitir a indemnização daqueles danos, no âmbito da responsabilidade contratual[25]e, na verdade, não vislumbramos razões válidas para considerar que os danos morais com gravidade e relevância suficiente para merecer a tutela do direito apenas devam ser considerados quando esteja em causa uma responsabilidade por factos ilícitos e pelo risco, quando é certo que a responsabilidade contratual, emergente do incumprimento (culposo) ou cumprimento defeituoso de um contrato, pode igualmente causar danos daquela natureza com idêntica ou superior gravidade. Todavia, e como se refere no acórdão da Relação do Porto de 07.07.2005, acima mencionado, a admissão da ressarcibilidade desses danos não preclude que se atente na realidade contratual para efeitos de considerar o mínimo geral do merecimento da tutela do direito aferida a partir da gravidade do dano. Afigura-se-nos, pois, que, mostrando-se verificados os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar, essa obrigação inclui também os danos não patrimoniais, desde que estes assumam relevância e gravidade bastante para merecer a tutela do direito. Os danos não patrimoniais associados ao incumprimento de um contrato reconduzem-se, em regra, a meros incómodos, aborrecimentos e frustrações que, como se mencionou, não assumem a relevância e gravidade que seria necessária para conferir ao lesado o direito à respetiva indemnização. Mas, como é óbvio, nem sempre será assim, já que, por vezes e por variadas razões, os danos morais sofridos em consequência desse facto ultrapassam aquilo que devemos ter como razoável e suportável para quem vê desrespeitado o seu direito a obter o integral cumprimento de um contrato que celebrou com outrem. Neste caso concreto, a situação de incumprimento contratual perdura pelo menos desde o ano de 2009, com avolumar de prejuízos para o A. e incerteza permanente quanto aos atos ilícitos negligentes ou dolosos que a R. irá cometer com o veículo, com responsabilização indevida do primeiro. Na verdade, a situação é bem justificativa de humilhação, angústia e perturbação do sono, para além dos incómodos inerentes de que a convocação para comparecer junto das autoridades policiais é apenas uma manifestação. Esta indemnização, a calcular seguindo a equidade (art.º 496º, nº 4, do Código Civil), funciona, não propriamente como uma reparação, mas como um almejo de compensação do sofrimento psicológico prolongado por que tem passado o A., sendo razoável que se fixe na peticionada quantia de €1.000,00, sem prejuízo do que for apurado oportunamente, até ao momento em que tenha ficado ou venha a ficar definitivamente eliminada a possibilidade de a R. continuar a utilizar o automóvel em causa. Pretende ainda o A. uma indemnização de €9.125,00, calculada à razão de €5,00/dia pela utilização que abusiva do automóvel pela R. nos últimos 5 anos, mas contabilizando também o tempo decorrido desde a petição inicial até à data da citação, à mesma razão diária, e depois desta à razão diária de €20,00, por cada dia de uso abusivo até á data do respetivo abate, a liquidar oportunamente. Toda a indemnização pressupõe um dano; é um princípio basilar da obrigação de indemnizar, devendo ser reconstituída a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562º do Código Civil). Como o A. entregou o veículo à R. para abate, quer da sua privação, quer do facto de se tratar de um uso abusivo, não resultou para ele qualquer prejuízo patrimonial direto ou imediato. O abuso na utilização do veículo integra o incumprimento contratual e as suas consequências danosas cuja reparação se situa ao nível das indemnizações atrás consideradas; nada mais. A última das pretensões formuladas pelo A. --- além dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, devidos ao abrigo dos art.ºs 804º, 805º, nºs 1 e 3 e 806º, nºs 1 e 2, do Código Civil) --- é a condenação da R. na sanção pecuniária compulsória de 5% de sobretaxa aos juros, nos termos do art.º 829º-A do Código Civil. Dispõe aquele normativo legal: «1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso. 2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar. 3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado. 4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.» A sanção pecuniária compulsória visa pressionar o devedor a cumprir a obrigação o mais rapidamente possível, penalizando o atraso e visando prestigiar a autoridade da Justiça, que já não indemnizar o credor pelos danos decorrentes do atraso no cumprimento da obrigação.[26] O artigo 829.°-A do Cód. Civil estabelece duas espécies de sanção pecuniária compulsória: uma, prevista no n.º 1, de natureza subsidiária, destinada a compelir o devedor à execução específica da generalidade das obrigações de prestação de facto infungível; outra, prevista no n.° 4, tendente a incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, decorrentes de fonte seja negocial seja extranegocial com determinação judicial, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado. Daqueles normativos resulta que a sanção pecuniária compulsória prevista no n.” 1 tem de ser determinada e concretizada nos seus termos, de forma casuística e equitativa, mediante decisão judicial, sendo designada de sanção pecuniária compulsória judicial; já a sanção pecuniária compulsória prescrita no n.° 4 emerge da própria lei, de modo taxativo e automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária, sem necessidade de intermediação judicial, tomando a designação de sanção pecuniária compulsória legal ou de juros legais compulsórios.[27] Com efeito, sendo automaticamente devidos os juros compulsórios previstos no citado nº 4 do art.º 829º-A, nas condições ali previstas, é inútil o tribunal proferir condenação nesta matéria, pelo que nisso sobrestará. A apelação procede parcialmente, revogando-se a sentença recorrida. * SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)* …………………. …………………. …………………. * V.Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogando a sentença na parte em que foi impugnada, condena-se a R. a pagar ao A.: 1. Tudo o que este pagou a título de IUC relativamente aos anos de 2009 a 2013, em valor não inferior a €160,36 e ainda pelo IUC exigido ao demandante relativamente aos anos de 2014 a 2018, valores estes acrescidos de juros, multas e custas processuais relativos à sua cobrança que se vencerem e tiver que pagar, a liquidar oportunamente; 2. Tudo o que o A. tiver que pagar a título de coima por infrações rodoviárias, taxa de portagem em autoestradas, relativas aos anos de 2009 e seg.s, incluindo os juros, multas e custas processuais que sejam cobrados por causa delas enquanto se manteve ou se mantiver a possibilidade de a R. continuar a circular com o veículo, a determinar em oportuna liquidação. 3. Uma indemnização por danos não patrimoniais já sofridos até à data da instauração da ação (27.6.2018), no valor de €1.000,00, sem prejuízo do que se apurar em oportuna liquidação relativamente aos danos morais de que padeceu e padecerá entre a data da instalação da ação e aquela em que tenha ficado ou venha a ficar definitivamente eliminada a possibilidade de a R. continuar a utilizar o veículo ..-..-NC. 4. Sobre as quantias pecuniárias já liquidadas, os respetivos juros de mora, vencidos desde a citação, à taxa legal atual de 4% ou à taxa que em cada momento vigorar até integral pagamento. No mais, improcede a apelação, sem prejuízo da aplicação automática da sanção pecuniária compulsória prevista art.º 829º-A, nº 4, do Código de Processo Civil. * Custas da apelação e na 1ª instância pelo A. e pela R., na proporção do decaimento (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).* Porto, 21 de outubro de 2021 Filipe Caroço Judite Pires Aristides Rodrigues de Almeida. ____________________________________ [1] Por transcrição. [2] Por transcrição. [3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225. [4] Sob o título “Os Ónus da Alegação e da Prova, em Geral …”, Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, T I, pág. 19. [5] Provas – Direito Probatório Material, BMJ 110/82 e 171. [6] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem. [7] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, Almedina, 2000, pág. 12. [8] Direito das Obrigações, Almedina 1979, pág. 232. [9] Cf. também Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, 2.° vol., pág. 13. [10] O Contrato, 1989, pág. 34. [11] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, pág. 32. [12] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2004, in www.dgsi.pt. [13] Tal como na responsabilidade extracontratual. [14] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª Edição, pág. 900, na senda de ENNECERUS-LEHMANN (Recht der Schuldverhaltnisse, 14ª ed., 1954, pág. 63. [15] Código Civil anotado, Vol. I, 2ª edição, pág. 502. [16] Ali se remetendo-se para M. Andrade, Teoria Geral das Obrigações, pág.s 355 e seg.s). [17] Direito das Obrigações, Coimbra, 3ª edição, pág,.s 362 e seg.s. [18] Direito das Obrigações, Vol. I, 6ª edição, pág.s. 345 a 346. [19] Proc. 02B1750, in www.dgsi.pt. [20] Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça , I, pág. 46. [21] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.2005, proc. 05B294 e de 6.3.2007, proc. 07A138, in www.dgsi.pt. [22] Não obstante ser de entender que o registo automóvel não é constitutivo. [23] Cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pág. 106. No mesmo sentido, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, 1974, págs. 170/171, [24] Cfr. Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 340, mas também Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. XII, pág. 432, Pinto Monteiro, Sobre a reparação dos danos morais, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro de 1992, nº 1, 1º Ano, pág.s 21 seg.s, Maya de Lucena, Danos não Patrimoniais, O Dano da morte, págs 19 seg.s. [25] Vejam-se nesse sentido, os acórdãos do STJ de 04.05.2001, proc. 1194/07.0TBBNV.L1.S1, de 24.06.2010, proc. 535/07.4TVLSB.L1.S1 e de 25.03.2010, proc. 2688/07.2TBVCT.G1.S1 e os acórdãos da Relação do Porto de 28.02.2008 e 07.07.2005, com os nºs convencionais JTRP00041158 e JTRP00038283, respetivamente, todos in www.dgsi.pt. [26] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2013, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, III, pág. 84. Cf. também nota preambular do Decreto-lei nº 262/83, de 16 de Junho, que introduziu no nosso sistema jurídico-privado o instituto da sanção pecuniária compulsória. [27] Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2019, Colectânea de Jurisprudência do STJ III, pág. 50; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2006, Colectânea de Jurisprudência do Supremo III, pág. 53. |