Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
828/23.3T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: COMPRA E VENDA DE IMÓVEL
MOTIVO DETERMINANTE DA VONTADE
AUSÊNCIA DE LICENCIAMENTO
Nº do Documento: RP20251027828/23.3T8VCD.P1
Data do Acordão: 10/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A circunstância de o imóvel ter ou não sido objeto de licenciamento constitui um motivo determinante da vontade na compra e venda.
II - A ausência de licenciamento, consistente na elaboração do projeto e respetiva aprovação, não se confunde com a obtenção da licença de utilização, que é o culminar de um processo de licenciamento regular e que atesta que um imóvel está legalmente apto ao fim a que se destina.
III - É anulável a declaração negocial em que o declaratário não podia deixar de ignorar a essencialidade para o declarante da ausência de licenciamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 828/23.3T8VCD.P1
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Sumário
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Relatora: Teresa Maria Fonseca
1.ª adjunta: Eugénia Maria Cunha
2.º adjunto: António Mendes Coelho

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AA intentou a presente ação declarativa de condenação contra BB.
Pediu:
- a declaração de resolução do contrato identificado no artigo 1.º da petição inicial, por perda do interesse no negócio por causa imputável exclusivamente ao R. e que se condene este no pagamento do montante previamente entregue a título de sinal, em dobro, ou seja, € 26.000,00;
- subsidiariamente, a declaração de nulidade do contrato por erro na formação da vontade, nos termos do art.º 251.º do Código Civil, com os efeitos dos art.º 289.º do Código Civil, sendo restituídos € 13.000,00 a título de sinal;
- subsidiariamente, a declaração de resolução do contrato, pela impossibilidade de obtenção de financiamento, operando a respetiva cláusula 11.º, devendo ser restituídos € 13.000,00 entregues a título de sinal;
- subsidiariamente, a restituição de € 13.000,00 pagos a título de sinal, aquando da celebração do contrato, com fundamento em enriquecimento sem causa do R.;
Cumulativamente, pediu a condenação do R. a pagar-lhe pelo menos € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, alegadamente sofridos em resultado da atuação daquele.
Invocou ter celebrado com o R. contrato-promessa para cedência de posição contratual em contrato-promessa de compra e venda de um imóvel celebrado pelo R., ter entregue € 13.000,00 a título de sinal e início de pagamento do preço, ter o R. incumprido o acordado ao não subscrever a escritura no prazo acordado e ter perdido o interesse na celebração do acordo.
Mais alegou ter sido acordado que realizaria um conjunto limitado de obras no imóvel - a demolição de um canil - para obtenção da licença de habitabilidade do mesmo. Era, porém, necessária a existência de projeto de arquitetura. A ausência de projeto, bem como da licença teriam impedido a realização de avaliação do imóvel tendente à obtenção de um financiamento bancário para a compra.
O R. contestou, dizendo que o A. conhecia o estado do imóvel e ter sido este que omitiu os trabalhos necessários à regularização do imóvel. Tal justificaria a retenção do valor recebido a título de sinal.
Foram julgados verificados os pressupostos processuais, com enunciação de temas da prova.
Na sequência do julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, anulando o contrato celebrado e condenando-se o R. a pagar ao A. € 13.000,00, absolvendo-o do pedido remanescente.
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Inconformado, o R. interpôs o presente recurso, que finalizou com as conclusões que em seguida se transcrevem.
(…)
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O R. contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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II - Questões a dirimir:
a - da reapreciação da matéria de facto: factos 13, 14, 15 e 16 da matéria provada e aditamento de factos;
b - se se verifica erro na celebração do negócio conducente à anulabilidade.
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III - Fundamentação de facto (constante da sentença)
Factos provados:
(Do pacto)
1. Em 23 de julho de 2021, A. e R. celebraram um contrato intitulado de “Proposta/Intenção de assumir Posição Contratual”.
2. O referido contrato era referente à aquisição do imóvel sito na Rua ..., freguesia ... e concelho de Paços de Ferreira, inscrito na matriz sob o número ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o número ....
3. Através do supramencionado contrato o autor propôs assumir a posição contratual que o réu ocupava no contrato-promessa de compra e venda constante do anexo I, referido no contrato, em que era promitente vendedor uma instituição bancária.
4. Na data da assinatura do contrato (em 23 de julho de 2021), o autor entregou ao réu a quantia de 13.000,00€ (treze mil euros) a título de sinal, tal como estabelecido na cláusula 7, al. a), do aludido contrato.
5. Tendo-se fixado, na cláusula 6.º da “Proposta/Intenção de assumir posição contratual”, o valor total da venda do imóvel na quantia de 130.000,00€ (cento e trinta mil euros).
6. Ficou ínsito na cláusula 9.ª do contrato outorgado que:
“Contudo, caso a cedência de posição contratual não seja aceite ambas as partes intervenientes acordam a assinatura do contrato de promessa de compra e venda de bem futuro e respetiva escritura até ao dia 9 de outubro de 2021.”
7. Estabeleceu-se na cláusula 11.ª do acordo que:
“Caso o valor da avaliação bancária seja inferior a 135.000€ (cento e trinta e cinco mil euros), fica acordado entre as partes a devolução do valor do sinal de 13.000€ (treze mil euros), ficando excluídas do presente acordo qualquer benfeitoria realizada no imóvel pelo declarante.”
8. Refere-se no referido pacto, na sua cláusula 12.ª, que:
“É da exclusiva responsabilidade do declarante a obtenção da Licença de Habitabilidade, assumindo igualmente o compromisso de realizar, a expensas suas, as obras que venham a ser impostas em sede de licenciamento.”
9. Constando da cláusula 13.ª que:
“O BB autoriza o declarante a realizar as obras de melhoria no imóvel logo após a assinatura da proposta de cedência contratual, conferindo poderes ao declarante através de uma Procuração autenticada para o efeito, para tratar e obter junto das entidades competentes tudo o que for necessário para regularizar o imóvel e celebrar a escritura de compra e venda da propriedade.”
10. E na cláusula seguinte, a 14.ª, exarou-se que:
“As benfeitorias a realizar incluem:
- melhoria das casas de banho;
- conclusão da cozinha (móveis)
- demolição do canil para obtenção da respetiva licença de habitabilidade;
- quaisquer outras modificações não expressas na presente proposta terão que ser expressamente comunicadas e autorizadas por escrito e assinadas por ambas as partes.”.
11. Tendo sido tal negócio mediado através da empresa A..., Lda., melhor conhecida como B....
12. O contrato-promessa constante no “anexo I”, e referido no contrato, nunca foi entregue ao autor.
13. Tendo-lhe sido comunicado previamente pelo réu, através da entidade referida em 11, que a licença de habitabilidade do imóvel seria conseguida após o término das obras necessárias.
14. Convencendo-se o autor de que o imóvel teria, no futuro, uma licença de habitabilidade, bastando realizar os trabalhos e demolir o canil que se encontrava no terreno para poder obter a licença de habitabilidade, pensando que já teria sido aprovado o projeto de arquitetura.
15. Contudo, a Câmara Municipal ... não aprovou qualquer projeto para o imóvel sito na Rua ..., freguesia ... e concelho de Paços de Ferreira, inscrito na matriz sob o número ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o número ....
(Após o pacto)
16. Após o ocorrido, o autor solicitou um orçamento para analisar o que seria necessário para a obtenção da licença de utilização, verificando que seria necessário despender 3.550,00€ em pedidos para obter a licença, bem como efetuar obras no imóvel que ascendiam a um valor superior a 20.000,00€.
17. Por conseguinte, a 30 de março de 2022, o autor enviou uma missiva ao réu para resolver o contrato, com base na cláusula 11.ª, porquanto, e em suma, na impossibilidade de obtenção da licença de habitabilidade a avaliação bancária seria impossível e, consequentemente, a possibilidade de obtenção de financiamento bancário.
18. Não obtendo resposta, a 19 de abril de 2022, o autor enviou nova missiva, com vista à resolução amigável deste diferendo, visando a devolução do sinal.
19. O réu respondeu alegando, nomeadamente, que: “(...) no que concerne a Sua desistência, infelizmente não concordo com a devolução do sinal adiantado (...).”
20. E referindo que: “a moradia foi colocada a sua disposição, para a realização das intervenções necessárias, com vista a obtenção da referida licença de utilização, que se encontra em falta e sempre foi do seu conhecimento”.
21. A 29 de novembro de 2022, o autor deu entrada da notificação judicial avulsa no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Vila do Conde, Juiz 1, sob o processo n.º ..., para interpelar o réu para cumprir definitivamente o disposto na cláusula 5.ª n.º 3, do contrato já aqui junto como documento n.º 1, concedendo-lhe o prazo de 7 (sete) dias, para a realização da escritura.
22. O réu foi notificado em 2 de dezembro o de 2022.
23. Por missiva de 12 de dezembro de 2022 o réu respondeu, em suma, imputando a responsabilidade pelo incumprimento ao autor, negando-se a realizar a escritura e, novamente, a devolver o valor recebido.
24. A 30 de novembro de 2021, o réu adquiriu o direito de usufruto do imóvel referido em 2 pela quantia de 9.000,00€ (nove mil euros), ao Banco 1..., S.A., pelo prazo de 5 anos.
(Dos efeitos sentidos pelo autor com o sucedido)
25. Com o sucedido, o autor sentiu angústia, tristeza e ansiedade, pois tinha o projeto pessoal de fazer no imóvel a sua residência, saindo de casa dos seus pais.
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Não considera o tribunal demostrado:
A. Que o autor solicitou ao réu a marcação da escritura referida na cláusula 9.ª do pacto.
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IV - Fundamentação jurídica
a - Da reapreciação da matéria de facto
O apelante pretende ver aditada a seguinte matéria ao elenco de factos provados:
1. “O contrato celebrado entre as partes junto como documento n.º 1 da P.I. foi redigido por advogados da confiança do Autor, assinado por este e apenas dias depois entregue ao Réu para o subscrever”;
2. “O Autor e o Réu só se conheceram posteriormente à data da assinatura do contrato junto como documento n.º 1”;
3. “O Autor foi informado por CC e DD da inexistência de licenciamento”.
Nos termos do preceituado no art.º 639.º/1 do C.P.C., o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.
Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto versa o art.º 640.º/1 do C.P.C. que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do disposto no art.º 640.º/2/a) do C.P.C., quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
O recorrente, quer na identificação do objeto do recurso, quer nas conclusões, tem de definir especificamente aquilo que pretende ver reapreciado, indicando os factos que pretende ver eliminados, alterados ou aditados.
O apelante indicou a matéria de facto que pretende ver reapreciada e a decisão que deve ser proferida. Quanto aos meios de prova, a apelante remeteu genericamente para a transcrição de depoimentos de testemunhas, mormente de DD e de CC, bem como para o depoimento do A..
Relativamente à alegação de que o contrato celebrado entre as partes foi redigido por advogados da confiança do A. e de que o A. e o R. só se conheceram posteriormente à data da assinatura do contrato, trata-se de matéria não concretamente alegada, e, ademais, meramente complementar. Ainda assim, compulsada a prova produzida, não se entrevê que tenha sido produzida prova de que o documento em apreço tenha sido redigido por advogados da confiança do A..
Quanto ao momento do conhecimento pessoal entre A. e R., DD, cujo depoimento, ao contrário do defendido pelo apelante foi explícito e, à aparência, isento, referiu que achava que A. e R. se conheceram mais tarde, mas nada de certo se apurou a este respeito. Mesmo a referência de CC a que o A. e o R. não chegaram a conversar um com o outro não é sinónimo de não se terem conhecido. Em suma, não é possível localizar no tempo com exatidão o momento em que tal ocorreu.
Tampouco foi produzida prova de que o A. tivesse conhecimento da inexistência de licenciamento. As testemunhas referiram a existência de um problema com a licença de habitabilidade e não de ausência de licenciamento. Trata-se de questões que não se confundem entre si. CC e DD referiram saber que havia a questão da licença para resolver. A ideia inicial era a de que o problema residia nos anexos ilegais. Não estavam, porém, seguros de qual o problema. Aguardavam uma reunião com a Câmara ....
Indefere-se, por conseguinte, a introdução dos três factos aventados.
A questão da licença entronca diretamente na factualidade que o apelante pretende ver vertida na matéria assente.
Segundo o recorrente, o tribunal a quo considerou indevidamente provados os seguintes factos:
13. Tendo-lhe sido comunicado previamente pelo réu, através da entidade referida em 11, que a licença de habitabilidade do imóvel seria conseguida após o término das obras necessárias.
14. Convencendo-se o autor de que o imóvel teria, no futuro, uma licença de habitabilidade, bastando realizar os trabalhos e demolir o canil que se encontrava no terreno para poder obter a licença de habitabilidade, pensando que teria sido aprovado o projeto de arquitetura.
15. Contudo, a Câmara Municipal ... não aprovou qualquer projeto para o imóvel sito na Rua ..., freguesia ... e concelho de Paços de Ferreira, inscrito na matriz sob o número ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o número ...”.
16. Após o ocorrido, o autor solicitou um orçamento para analisar o que seria necessário para a obtenção da licença de utilização, verificando que seria necessário despender 3.550,00€ em pedidos para obter a licença, bem como efetuar obras no imóvel que ascendiam a um valor superior a 20.000,00€”.
Decorreu da inquirição de DD, EE e CC que estes receberam informação do R. no sentido de que a licença estaria “suspensa”. A realização de obras, todavia, redundaria na respetiva regularização. Ao contrário do sustentado pelo apelante, o depoimento prestado pela testemunha CC não demonstra que o apelado tivesse consciência da inexistência de licenciamento. O apelado sabia, sim, que não existia licença ou, nas palavas das testemunhas, que esta estaria suspensa. Desconhecia, todavia, a ausência de licenciamento em sentido próprio, nos termos reportados no ponto 15.
A apelante não especificou fundamentos bastantes para a impugnação do ponto 16 dos factos assentes, sendo certo que o orçamento carreado para os autos atesta o aí vertido no que se refere ao valor do licenciamento. Assim indefere-se o requerido.
Improcede, a impugnação da matéria de facto avançada pelo apelante.
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b - Se se verifica erro na celebração do negócio conducente à anulabilidade.
O apelante sustenta que a sentença julgou erroneamente preenchidos os requisitos constantes do art.º 247.º do Código Civil. O apelado comprometeu-se a obter a licença de habitabilidade, pelo que inexistiria erro determinante da vontade. Acresce que apelante e apelado nem sequer se conheceriam aquando da celebração do negócio.
A sentença recorrida entendeu que o A. se vinculou no contrato no pressuposto de que se encontrava apenas em falta a licença de utilização. Bem assim, que lhe bastaria realizar pequenos trabalhos de construção civil e demolir o canil que se encontrava no terreno para que a questão da falta de licença de habitação ficasse desbloqueada.
Consta do acordo celebrado que era da exclusiva responsabilidade do A. a obtenção da licença de habitabilidade, tendo este assumido o compromisso de realizar, a expensas suas, as obras que venham a ser impostas em sede de licenciamento.
Mais ficou acordado que BB autorizava o A. a realizar as obras de melhoria no imóvel logo após a assinatura da proposta de cedência contratual, conferindo poderes ao declarante através de uma Procuração autenticada para o efeito, para tratar e obter junto das entidades competentes tudo o que for necessário para regularizar o imóvel e celebrar a escritura de compra e venda da propriedade.”
As benfeitorias a realizar incluíam:
- melhoria das casas de banho;
- conclusão da cozinha (móveis)
- demolição do canil para obtenção da respetiva licença de habitabilidade;
Quaisquer outras modificações não expressas na presente proposta teriam que ser expressamente comunicadas e autorizadas por escrito e assinadas por ambas as partes.
Fora previamente comunicado pelo R., através da entidade referida em 11, da empresa “A..., Lda.”, melhor conhecida como B..., que a licença de habitabilidade do imóvel seria conseguida após o término das obras necessárias. Convenceu-se, pois, o A., pressupondo que o projeto de arquitetura teria sido já aprovado, que o imóvel teria, no futuro, uma licença de habitabilidade, bastando realizar os trabalhos e demolir o canil que se encontrava no terreno para obtenção daquela.
Apurou-se, porém, que a Câmara Municipal ... não aprovara qualquer projeto para o imóvel.
Do exposto decorre que o A. outorgou o contrato no pressuposto de que este fora objeto de licenciamento, ainda que, por questões de somenos importância, que importariam a realização de obras que se comprometeu a efetuar, não tivesse sido ainda emitida a licença de utilização ou de habitação.
É sabido que o processo de licenciamento de obras, enunciado no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (R.J.U.E.), aprovado pelo decreto-lei 555/99, de 16 de dezembro, objeto de sucessivas alterações, começa com a elaboração do projeto de arquitetura e de especialidades, seguido pela entrega do pedido na Câmara Municipal. Após a análise e aprovação de todas as fases pela câmara e pelas entidades competentes, e com o pagamento das taxas, é emitido o alvará de licença de construção, que permite legalmente dar início à obra.
Já a obtenção da licença de habitação resulta do culminar de um processo de licenciamento regular. A licença de utilização é um documento emitido pela Câmara Municipal competente que atesta que um imóvel está legalmente apto para o fim a que se destina, seja ele habitação, comércio ou indústria. Garante que cumpre as normas de segurança e que está em conformidade com a legislação e com o projeto aprovado.
Como se lê na sentença de 1.ª instância:
Porém, nem o projeto inicial tinha sido apresentado ao município e muito menos autorizado, o que implicava que qualquer parte da construção ali existente, por ilegal, estaria sujeita a alteração ou mesmo demolição por imposição administrativa: tudo era passível de alteração pelo município pois nem projeto aprovado existia.
Não era a esta situação que o autor se pretendia sujeitar.
Perante a factualidade exposta, não tem o tribunal qualquer dúvida de que este fator – o conjunto delimitado de trabalhos a efetuar – foi um elemento basilar para a aceitação pelo autor do pacto em causa, para a sua vinculação, circunstância comunicada, por estar refletida no pacto, e seguramente conhecida pelo réu.
Preceitua o art.º 247.º do C.C. (Código Civil), sob a epígrafe erro na declaração, que quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objeto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário (neste caso, o R.) conhecesse, ou não devesse ignorar, a essencialidade, para o declarante (neste caso, o A.), do objeto sobre que haja incidido o erro (artigos 251.º e 247.º/2 do C.C.)
Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.
Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (art.º 251.º), quer o dolo (art.º 254.º/1) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
A essencialidade do erro (ou do dolo) deve ser analisada sob o aspeto subjetivo do errante ou do contraente enganado (deceptus), ou seja, daquele que haja sido levado a formular uma ideia inexata acerca do objeto do negócio, sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.
Comete dolo ilícito o deceptor - autor do artifício, sugestão ou embuste - que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria.
Para a anulação do negócio exige a lei que se trate de um dolus malus (art.º 253.º/2), que não de meras sugestões ou artifícios usuais considerados legítimos segundo as conceções dominantes no comércio jurídico (dolus bonus) (cf. ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 20-1-2005, proc. 04B4349, Ferreira de Almeida e ac. do S.T.J. de 7-9-2021, 3527/18.4T8VCT.G1.S1, Fernando Samões).
Entre as condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade encontra-se a sua "essencialidade", no sentido de que só é relevante o erro essencial (determinante), isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio, em si mesmo, e não apenas nos termos em que foi concluído (vd. Pinto, Carlos Alberto Mota, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., p. 508 e ss.).
O erro só é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objeto ou de outro tipo ou com outra pessoa.
O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objeto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objeto sobre que haja incidido o erro (artigos 251.º e 247.º/2 do C.C.), sendo que "a qualidade de um objeto se reporta a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida" (Andrade, Manuel de, in Teoria Geral, vol. II, pp. 235 e 248).
Importa levar em linha de conta os deveres que as partes contratantes devem observar, com relevo para os decorrentes da boa-fé, nomeadamente os deveres impostos pelo art.º 227.º do C.C..
A circunstância de um imóvel ter ou não sido objeto de licenciamento constitui um motivo determinante da vontade num negócio de compra e venda de imóvel, no caso destinado a habitação. Do ponto de vista do adquirente, a existência de um processo de licenciamento, ou a respetiva ausência, não pode deixar de constituir um elemento essencial. Quanto ao ponto de vista do vendedor, este não deverá ignorar que se trata de questão de determinante relevância para o comprador - resulta, por isso, inócuo o momento em que travaram conhecimento pessoal. Acresce, em qualquer caso, que o negócio foi intermediado por terceiros.
Verifica-se a previsão do art.º 251.º, em conjugação com o art.º 247.º, ambos do C.C., no sentido de que a declaração negocial é anulável porque o declaratário, in casu o A., não podia deixar de ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro.
Bem andou a sentença recorrida ao anular o negócio celebrado, com a inerente restituição de quanto foi prestado (art.º 289.º/1 do C.C.).
A apelação está condenada ao insucesso.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a sentença proferida, por razões que dela em nada dissentem.
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Custas pelo apelante, por ter decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 27-10-2025
Teresa Fonseca
Eugénia Cunha
Mendes Coelho